Capítulo 17

Universidade de Cambridge, 2011

A chuva amainara e uma Lua cheia rompeu prateada através das nuvens estriadas. Tendo já feito uma visita à Biblioteca da Universidade de Cambridge, Laurel estava agora sentada à porta da Capela do Clare College, à espera de ser atropelada por algum ciclista. Não por um ciclista qualquer; ela tinha um ciclista particular em mente. As Vésperas estavam quase a terminar, havia meia hora que estava a ouvi-las do banco sob a cerejeira, deixando-se transportar pelo grande órgão e pelas vozes do coro. A todo o instante, porém, o ofício chegaria ao fim e um mar de gente irromperia pelas portas da capela, cada um a reclamar a respectiva bicicleta da trintena amontoada no estacionamento metálico e passar por ela a toda a velocidade em várias direcções. Um deles, esperava Laurel, seria Gerry; era algo que sempre haviam partilhado, o amor pela música — o género de música que fazia as pessoas vislumbrar respostas para dúvidas que não sabiam que tinham —, e, mal chegara a Cambridge e vira letreiros à entrada da faculdade a anunciar as Vésperas, Laurel percebera que seria a melhor hipótese de encontrar o irmão.

E, tal como previra, uns minutos depois de «Rejoice in the Lamb», de Benjamin Britten, ter chegado à sua assombrosa conclusão, à medida que as pessoas começavam a surgir aos pares e em pequenos grupos através das portas da capela, uma delas saiu sozinha. Uma silhueta alta e esgalgada cuja aparição ao cimo das escadas arrancou um sorriso a Laurel, porque era seguramente uma das bênçãos mais simples da vida conhecer alguém tão bem ao ponto de se conseguir distingui-lo de imediato ao fundo de um pátio escuro. A silhueta montou numa bicicleta e fez pressão com um pé, vacilando ligeiramente antes de ganhar velocidade.

Laurel chegou-se para a estrada à medida que o irmão se aproximava, acenando e chamando-o pelo nome. Gerry por um triz não a deitou ao chão, parando em seguida e fitando-a de olhos semicerrados através da penumbra luarenta. A sua expressão rasgou-se no mais desarmante dos sorrisos e Laurel perguntou-se porque não vinha visitá-lo mais vezes.

— Lol! — exclamou ele. — Que estás aqui a fazer?

— Queria ver-te. Tentei telefonar-te; deixei-te mensagens.

Gerry abanava a cabeça.

— O gravador estava constantemente a piscar, aquela maldita luzinha vermelha na parte da frente insistia em piscar. Julguei que o gravador estivesse avariado... Tive de o desligar da tomada.

A explicação era tão plausível à luz da pessoa de Gerry que, por maior que tivesse sido a exasperação por não poder contactá-lo, por muito que se tivesse apoquentado com a eventualidade de ele estar zangado com ela, Laurel não foi capaz de conter um sorriso.

— Bom — disse ela —, pelo menos foi da maneira que arranjei um pretexto para vir até cá e fazer-te uma visita. Já jantaste?

— Jantar?

— Comer. Um hábito maçador, bem sei, mas eu ainda o mantenho várias vezes ao dia.

Gerry despenteou a cabeleira escura e emaranhada, como se fizesse um esforço por se lembrar.

— Anda daí! — disse-lhe a irmã. — Eu pago.

Gerry levou a bicicleta à mão ao lado dela e conversaram sobre música durante o caminho até à pequena pizzaria construída num buraco aberto no muro virado para o Arts Theatre. Precisamente o mesmo sítio, constatou Laurel, aonde, na adolescência, fora para assistir à peça A Festa de Anos, de Harold Pinter.

O interior do restaurante estava mal iluminado, com velas a tremular dentro de frascos de vidro em cima de toalhas de mesa aos quadrados vermelhos e brancos. Estava à cunha, mas Gerry e Laurel arranjaram uma mesa ao fundo, mesmo ao lado do forno das pizzas. Laurel despiu o casaco e um jovem de cabelo louro e comprido a cair-lhe numa elaborada madeixa por cima dos olhos veio tomar nota do pedido das pizzas e do vinho. Regressou escassos minutos mais tarde, com uma garrafa de chianti e dois copos sem pé.

— Então — disse Laurel, servindo vinho a ambos —, posso ter a ousadia de perguntar em que tens andado a trabalhar?

— Ainda hoje terminei um artigo sobre os hábitos alimentares das galáxias adolescentes.

— São comilonas, elas?

— Muito, ao que parece.

— E já passaram dos trinta, calculo eu.

— Ligeiramente. À volta de entre três e cinco mil milhões de anos após o Big Bang.

Laurel observava o irmão à medida que este prosseguia, alongando-se entusiasticamente sobre o Very Large Telescope do ESO, no Chile («É o equivalente a um microscópio para um biólogo»), e explicando-lhe que ténues manchas no céu eram na realidade galáxias distantes, e que tudo indicava que algumas («É incrível, Lol») não apresentavam rotação do gás — «Nenhuma das teorias actuais contempla semelhante fenómeno» —, e ela assentia com a cabeça e reagia, não sem uma certa dose de culpa, porque na verdade não estava a prestar a mínima atenção ao que ele dizia. Laurel estava a pensar na maneira como, quando Gerry se entusiasmava, as suas palavras se atropelavam umas às outras, como se a boca do irmão se visse em dificuldades para acompanhar o ritmo da sua magnífica mente; o facto de só respirar quando era absolutamente imprescindível; a forma como abria as mãos com expressividade e os dedos compridos se lhe retesavam, mas com precisão, como se tivessem estrelas em equilíbrio nas pontas. Eram as mãos do pai, constatou Laurel, atenta aos seus movimentos; as maçãs do rosto do pai e os olhos doces atrás dos óculos. Na verdade, havia muito de Stephen Nicolson no seu filho único. As gargalhadas de Gerry, porém, haviam sido herdadas da mãe.

O irmão interrompera o discurso e estava agora a beber vinho. Por muito nervosa que Laurel se sentisse por causa da demanda que tinha em curso, em particular a conversa que sabia que a esperava, havia uma descomplicação na companhia de Gerry que a fazia ansiar por algo que não sabia exprimir ao certo. Sentia o eco de uma recordação de como as coisas haviam sido entre ambos e queria prolongar a sensação um pouco mais antes de estragar o ambiente com confissões. Indagou:

— E o que é que se segue? O que poderá eventualmente rivalizar com os hábitos alimentares das galáxias adolescentes?

— Estou a criar O Mapa Mais Recente de Tudo.

— Continuas a apostar em objectivos modestos e exequíveis, ao que vejo.

Gerry arreganhou um sorriso.

— Devia ser fácil... Não se dá o caso de eu pretender incluir o espaço todo, apenas o céu. Uns meros quinhentos e sessenta milhões de estrelas, galáxias e outros objectos, e fica o caso arrumado.

Laurel estava a contemplar este número quando as pizzas chegaram, e o aroma a alho e a manjericão recordou-lhe de que estava sem comer desde o pequeno-almoço. Comeu com a voracidade de uma galáxia adolescente, com a certeza quase absoluta de que nunca nada na vida lhe havia sabido tão bem como aquela pizza. Gerry perguntou-lhe pelo trabalho e, entre garfadas, Laurel falou-lhe do documentário e da nova versão de Macbeth que andava a filmar. — Ou, melhor dizendo, irei filmar. Tirei uns dias de folga.

Gerry estendeu uma manápula.

— Espera... dias de folga?

— Sim.

O irmão inclinou a cabeça.

— O que é que se passa?

— Porque é que toda a gente insiste em fazer-me essa pergunta?

— Porque tu nunca tiras dias de folga.

— Que disparate!

Gerry arqueou as sobrancelhas.

— Estás a entrar comigo? Já me têm dito que às vezes as piadas me escapam.

— Não, não estou a entrar contigo.

— Nesse caso, tenho de te informar de que todas as provas empíricas vão contra a tua afirmação.

— Provas empíricas? — escarneceu Laurel. — Por favor. Diz o roto ao nu. Quando foi a última vez que tiraste dias de folga?

— Em Junho de 1985, para o casamento do Max Seerjay, em Bath.

— Pronto, aí tens.

— Eu não disse que era diferente de ti quanto a isso. Tu e eu somos muito parecidos, ambos casados com o trabalho: é por isso que eu sei que se passa alguma coisa. — Limpou a boca com o guardanapo de papel e recostou-se à parede de tijolo cor de carvão. — Uns dias de folga anómalos, uma visita anómala... Só posso concluir que as duas coisas estão relacionadas.

Laurel soltou um suspiro.

— Expiração para empatar. Todas as provas de que eu precisava. Queres fazer o favor de explicar o que se passa, Lol?

A irmã dobrou o guardanapo ao meio uma e outra vez ainda. Era agora ou nunca; durante todo aquele tempo, ansiara por que Gerry a acompanhasse na aventura; agora chegara o momento de o cooptar. Disse-lhe:

— Lembras-te daquela vez em que foste passar a noite a minha casa em Londres? Mesmo antes de vires para cá?

Gerry deu-lhe uma resposta afirmativa com uma citação de Monty Python e o Cálice Sagrado:

— «Por favor! Isto é suposto ser um acontecimento feliz.»

Laurel sorriu-lhe.

— «Não vamos agora pôr-nos com quezílias e discussões a respeito de quem matou quem.» Adoro esse filme. — Deslocou uma azeitona de um lado do prato para o outro, a fazer tempo, a tentar encontrar as palavras adequadas. Tarefa impossível, porque de facto não as havia, o melhor seria dizer a primeira coisa que lhe viesse à cabeça, e pronto. — Naquela noite, lá em cima no telhado, tu perguntaste-me uma coisa; perguntaste-me se tinha acontecido alguma coisa quando éramos miúdos. Alguma coisa que envolvesse violência.

— Estou lembrado.

— Estás?

Gerry assentiu com a cabeça, um único aceno, eficiente.

— E ainda te lembras do que eu te respondi?

— Disseste-me que não te recordavas de nada do género.

— Sim, pois foi. Eu disse isso — concordou ela em voz sumida. — Mas menti-te, Gerry. — Escusou-se a acrescentar que fora para o seu próprio bem ou que na altura lhe parecera a atitude mais correcta. Ambas as coisas eram verdade, mas que importância teria isso agora? Não pretendia desculpar o seu comportamento, de forma alguma; mentira e merecia quaisquer recriminações que daí adviessem: não apenas por esconder a verdade ao irmão, mas pelo que dissera aos dois polícias. — Menti.

— Isso sei eu — ripostou ele, acabando de comer a crosta.

Laurel pestanejou.

— Tu sabes? Como?

— Desviaste o olhar do meu quando te perguntei e trataste-me por «G». Nunca fazes isso a menos que estejas atrapalhada. — Encolheu os ombros com desprendimento. — A melhor actriz do país, talvez; mas nem por isso estás à altura dos meus poderes de dedução.

— E ainda há quem te acuse de seres distraído.

— Ai sim? Não fazia ideia. Estou destroçado. — Trocaram um sorriso, ainda que contido, tendo Gerry acrescentado: — Queres dizer-me a verdade agora, Lol?

— Quero. Muito. Ainda a queres ouvir?

— Quero. Muito.

Ela assentiu com a cabeça.

— Então, está bem. — E, assim, começou pelo princípio: uma rapariga numa casa em cima de uma árvore num dia de Verão de 1961, um desconhecido no caminho de acesso a casa, um rapazinho minúsculo ao colo da mãe. Teve especial cuidado em descrever o amor que a mãe tinha àquele rapazinho, as vezes em que se detinha no degrau só para lhe sorrir e inspirar o seu aroma leitoso e lhe fazer cócegas nos pés gordos e cerosos; mas depois o homem de chapéu entrara em cena e os projectores tinham incidido sobre ele. O seu passo furtivo ao transpor o portão adjacente à casa, o facto de o cão ter pressentido antes de qualquer outra pessoa que o mal se aproximava, o latido dele a advertir a mãe, que se virou e deparou com o homem e, como a rapariga na casa da árvore constatou, apanhou um susto.

Quando chegou à parte da história que metia facas e sangue e o rapazinho a chorar sentado na gravilha, pensou Laurel, à medida que ouvia a sua própria voz a sair-lhe do corpo e observava a expressão do irmão adulto à sua frente, que estranho que era estarem a ter aquela conversa tão íntima em público e, não obstante, o quanto o ruído e o bulício daquele lugar eram necessários à sua capacidade narrativa. Ali, naquela pizzaria de Cambridge, rodeados de estudantes na risota e na brincadeira, académicos jovens e inteligentes com a vida ainda toda pela frente, Laurel sentiu-se segura e protegida, de alguma forma mais confortável e em condições de proferir palavras de que não se julgava capaz no silêncio do alojamento do irmão na faculdade, palavras como:

— Ela matou-o, Gerry. Ao homem... Henry Jenkins era como ele se chamava... morreu naquele dia no acesso a nossa casa.

Gerry ouvia-a com toda a atenção, o olhar fixo na toalha da mesa, o rosto absolutamente inexpressivo. Então, um músculo contraiu-se-lhe no queixo escurecido da barba e ele esboçou um ligeiro aceno de cabeça, mais em reconhecimento de que a história chegara ao fim do que em reacção ao seu conteúdo. Laurel aguardou, bebeu o resto de vinho que tinha no copo e serviu mais a ambos.

— Pronto — disse ela. — É tudo. Foi isto que eu vi.

Por fim, Gerry ergueu o olhar para ela. Em seguida, disse-lhe:

— Acho que isso explica tudo.

— Explica o quê?

Os dedos tremiam-lhe de energia nervosa ao falar.

— Às vezes, em miúdo, eu costumava ver uma coisa, pelo canto do olho, uma sombra escura que me assustava sem motivo aparente. É difícil descrever. Eu virava-me e não havia lá nada, apenas a sensação horrível de que já não fora a tempo de a apanhar. O meu coração punha-se aos pulos, e eu não fazia ideia do porquê. Uma vez, contei à mãe; ela levou-me ao oftalmologista.

— Foi por isso que começaste a usar óculos?

— Não, eu uso óculos porque sou míope. Os óculos não resolveram o problema da sombra, mas não há dúvida de que passei a ver as caras das pessoas menos desfocadas.

Laurel sorriu.

Gerry, não. O cientista que havia nele estava aliviado, Laurel via que sim, por ter arranjado uma explicação para algo que até aí fora inexplicável, mas a parte dele que era filho de uma mãe muito amada não se contentava com tão pouco.

— Às vezes as boas pessoas fazem coisas más — observou ele, levando as mãos à cabeça. — Santo Deus! Mas que coisa tão cliché que acabei de dizer.

— Mas não deixa por isso de ser verdade — contrapôs Laurel, desejosa de o consolar. — Fazem mesmo. E às vezes com fortes motivos para isso.

— Que motivos? — Gerry olhou para ela, e era outra vez uma criança, ansioso pelas explicações da irmã mais velha. Laurel teve pena dele: num momento, estava todo feliz a contemplar as maravilhas do universo, no momento seguinte, a irmã confessava-lhe que a mãe matara um homem. — Quem era o tal homem, Lol? Porque foi que ela o matou?

Da forma mais directa ao seu alcance (com Gerry, era preferível apelar à lógica), Laurel contou-lhe o que sabia a respeito de Henry Jenkins, que se tratava de um escritor, fora casado com uma amiga da mãe, Vivien, durante a guerra. Contou-lhe também o que Kitty Barker lhe dissera, que Dorothy e Vivien tinham tido uma zanga terrível no início de 1941.

— E tu achas que essa zanga está relacionada com o que aconteceu em Greenacres, em 1961 — concluiu ele. — Caso contrário, não a terias trazido à liça.

— Acho. — Laurel recordou-se do que Kitty lhe contara acerca da noite em que saíra com a mãe, a forma como ela se comportara, as coisas que dissera. — Creio que a mãe ficou transtornada com o que quer que se tenha passado entre ambas e que fez qualquer coisa para castigar a amiga. Estou convencida de que o plano dela... fosse lá qual fosse... acabou mal, muito pior do que ela esperava, mas que nessa altura já era tarde de mais para consertar a situação. A mãe fugiu de Londres e o Henry Jenkins ficou enfurecido ao ponto de, vinte anos depois, ainda andar à procura dela. — Laurel admirou-se de uma pessoa ser capaz de delinear teorias tão medonhas num tom tão franco e pragmático. A quem a visse de fora, sabia Laurel, haveria de parecer calma, ponderada e empenhada em chegar ao fulcro da questão; não deixava transparecer um laivo sequer da profunda angústia que lhe corroía as entranhas. No entanto, baixou a voz para acrescentar: — Chego mesmo a perguntar-me se ela não terá a sua quota-parte de responsabilidade na morte da Vivien.

— Santo Deus, Lol!

— Se ela não se terá visto obrigada a viver este tempo todo com a culpa, e a mulher que nós conhecemos não será o resultado disso mesmo; se ela terá passado o resto da vida a expiar o pecado.

— Sendo a mãe ideal para todos nós.

— Sim.

— O que estava a resultar lindamente até o Henry Jenkins chegar para ajustar contas.

— Sim.

Gerry quedou-se em silêncio; uma leve ruga sulcava-lhe a pele entre os olhos; estava em reflexão.

— E então? — instou-o Laurel, chegando-se mais a ele. — O cientista és tu... A teoria tem pernas para andar?

— É plausível — admitiu Gerry, com um aceno vagaroso da cabeça. — Não custa a acreditar que os remorsos podem actuar como catalisador da mudança. Nem que um marido se tente vingar de uma desfeita que façam à esposa. E se o que ela fez à Vivien foi assim tão grave, compreendo porque achou que não lhe restava alternativa se não reduzir o Henry Jenkins ao silêncio de uma vez por todas.

O coração de Laurel caiu-lhe aos pés. Havia uma parte ínfima dela, apercebeu-se então, que se agarrara à esperança de que o irmão talvez se risse, descobrisse falhas na teoria com a ponta aguçada da sua mente brilhante, e a aconselhasse a dormir uma noite repousante de sono e a pôr Shakespeare de parte durante uns tempos.

Não fez nada disto. O lógico nele tomara as rédeas e ele disse:

— Pergunto-me o que terá ela feito à Vivien para lhe causar tamanhos remorsos.

— Não faço ideia.

— Fosse lá o que fosse, julgo que tens razão — prosseguiu ele. — O resultado deve ter sido pior do que ela previa. A mãe nunca teria feito mal à amiga de propósito.

Laurel ofereceu-lhe uma resposta cautelosa, recordando-lhe a determinação com que a mãe cravara a faca no peito de Henry Jenkins.

— Ela seria incapaz de lhe fazer mal, Lol.

— Sim, eu diria o mesmo... pelo menos, a princípio. Mas tu já pensaste que nós talvez estejamos para aqui a arranjar desculpas para o comportamento dela apenas porque é nossa mãe, uma pessoa que conhecemos e a quem temos amor?

— É provável que sim — admitiu Gerry —, mas não faz mal. Nós conhecemo-la mesmo.

— Acho que sim. — Algo que Kitty Barker lhe dissera andava a bailar no pensamento de Laurel, acerca da guerra e da maneira como esta exacerbava as paixões; a ameaça de invasão, o medo e a escuridão, noites a fio quase sem pregar olho. — Mas e se naquela época ela era uma pessoa diferente? E se a pressão dos bombardeamentos a afectou? E se mudou depois de se casar com o pai e nos ter? Depois de lhe ser dada uma segunda oportunidade.

— Ninguém muda a esse ponto.

Vinda sabe-se lá de onde, a história do crocodilo veio à memória de Laurel. «Foi por isso que preferiu ser uma senhora, mãezinha?», perguntara ela, e Dorothy respondera-lhe que deixara de se comportar como um crocodilo quando fora mãe. Seria levar as coisas demasiado longe concluir que a história era uma metáfora, que já nessa altura a mãe poderia estar a confessar-lhe que sofrera outro tipo de mudança? Ou estaria Laurel a deturpar um conto que se destinava apenas a entreter uma criança? Imaginou Dorothy naquela tarde, a virar-se para o espelho, a endireitar as alças do seu lindo vestido, à medida que Laurel, então com oito anos e uns olhos muito arregalados, lhe perguntava como fora que se dera uma transformação tão radical. «Ora, ora», retorquira a mãe. «Não te posso contar os meus segredos todos, pois não? Pelo menos, não todos de uma vez. Torna a perguntar-me um destes dias. Quando fores mais velha.»

E era precisamente isto que Laurel tencionava fazer. De repente, ficara cheia de calor, os outros comensais riam-se na sala de jantar à cunha, e o forno das pizzas libertava ondas gigantescas de ar quente e tostado. Laurel abriu a carteira e retirou duas notas de vinte libras e outra de cinco, enfiando-as debaixo da conta e rejeitando as tentativas de Gerry para contribuir para o jantar.

— Eu disse que quem pagava era eu — insistiu ela. Escusou-se a acrescentar que era o mínimo que podia fazer, depois de trazer a sua obsessão tenebrosa para o mundo estrelado de Gerry. — Anda — disse-lhe, pegando no casaco. — Vamos dar um passeio.

*

As conversas no restaurante esmoreciam atrás deles à medida que atravessavam o amplo pátio quadrangular de King’s College em direcção ao rio Cam. A margem estava sossegada, e Laurel ouvia os barcos de fundo chato, empurrados à vara, a baloiçar suavemente na superfície iluminada pelo luar prateado. Uma campainha soou ao longe, e algures num quarto da faculdade alguém ensaiava violino. A música bonita e melancólica fez tanger uma corda do coração de Laurel e, subitamente, ela compreendeu que fizera mal em ir para ali.

Gerry não se abrira muito desde que tinham abandonado o restaurante. Caminhava agora em silêncio ao lado da irmã, empurrando a bicicleta com uma mão. Levava a cabeça baixa, o olhar cravado no chão à sua frente. Laurel deixara o fardo do passado aliciá-la a partilhá-lo; convencera-se a si própria de que Gerry deveria saber, que também ele se achava ligado ao acto monstruoso que testemunhara. À época, porém, ele não passava de um bebé, uma pessoa minúscula, e agora era um homem doce, o preferido da mãe, incapaz de considerar que ela pudesse em tempos ter cometido um acto terrível. Laurel já se preparava para dizer isto mesmo, para lhe pedir desculpa e aligeirar o melhor possível o seu próprio interesse obsessivo pelo caso, quando Gerry lhe perguntou:

— Então e agora, o que é que se segue? Tens alguma pista?

Laurel olhou para ele de relance.

Detivera-se sob a luz amarelada de um candeeiro da rua e estava a ajeitar os óculos na cana do nariz.

— O quê? Não vais deixar o assunto morrer assim sem mais nem menos, pois não? É óbvio que temos de descobrir o que foi que aconteceu. Faz parte da nossa vida, Lol.

Laurel não se lembrava de alguma vez o ter amado tanto como nesse momento.

— Há uma coisa — disse ela, com a voz entrecortada. — Agora que falas nisso. Fui visitar a mãe hoje de manhã e, a dada altura, ela ficou muito desorientada e pediu à enfermeira que mandasse chamar o Dr. Rufus.

— Não é assim tão estranho como isso, tendo em conta que está num hospital, não achas?

— O facto em si não, só que o médico se chama Cotter e não Rufus.

— Terá sido um lapso?

— Não me parece. Ela disse isto com bastante convicção. E além disso... — A imagem vaga de um jovem de nome Jimmy, por quem a mãe em tempos estivera apaixonada, veio à memória de Laurel. — Não é a primeira vez que ela menciona pessoas que conheceu. Suspeito de que o passado ande sempre às voltas na cabeça dela; creio que a mãe quase quer que saibamos o que se passou.

— E tu fizeste-lhe alguma pergunta a esse respeito?

— Acerca do Dr. Rufus, não, mas, de outras coisas, sim. Ela respondeu-me com bastante sinceridade, mas a conversa deixou-a transtornada. Eu vou voltar a falar com ela, claro, mas se houver outra alternativa, estou ansiosa por a experimentar também.

— De acordo.

— Estive há bocado na biblioteca para averiguar se havia alguma maneira de descobrir elementos sobre um médico que exercia em Coventry e talvez também em Londres, nas décadas de 1930 e 1940. Como eu só tinha o apelido e não fazia ideia de qual era a especialidade dele, a bibliotecária aconselhou-me a começar por consultar a base de dados da revista médica Lancet.

— E?

— Encontrei um Dr. Lionel Rufus. Gerry, estou quase certa de que é ele: morava em Coventry naquela época e publicou artigos na área da psicologia da personalidade.

— Tu achas que ela era doente dele? Que a mãe naquele tempo pudesse sofrer de alguma doença?

— Não faço ideia, mas tenciono descobrir.

— Deixa que eu encarrego-me disso — prontificou-se Gerry de súbito. — Conheço pessoas a quem posso perguntar.

— A sério?

O irmão assentia com a cabeça e as palavras atropelaram-se-lhe entusiasticamente ao dizer:

— Tu volta para Suffolk. Mal eu saiba alguma coisa, entro em contacto contigo.

Isto excedia as expectativas de Laurel; não, não excedia nada, era exactamente o que ela desejara. Gerry estava disposto a ajudá-la; juntos, acabariam por descobrir a verdade do sucedido.

— Espero que tenhas noção de que podes descobrir uma coisa terrível. — Não o queria intimidar, mas não podia deixar de o prevenir. — Algo capaz de pôr em causa tudo o que julgávamos que sabíamos acerca da mãe.

Gerry sorriu.

— Tu não és actriz? Não é este o momento em que é suposto dizeres-me que as pessoas não são uma ciência... que as personagens são multifacetadas e que uma nova variável não põe em causa o teorema todo?

— Só te estou a avisar. Vai-te preparando, maninho.

— Eu estou sempre preparado — retorquiu ele, arreganhando um sorriso. — E continuo do lado da mãe.

Laurel arqueou as sobrancelhas, com pena de não possuir a confiança dele. Mas vira o que acontecera naquele dia em Greenacres, sabia do que a mãe era capaz.

— Não é uma atitude lá muito científica da tua parte — observou ela em tom severo —, sobretudo agora que tudo aponta para uma única conclusão.

Gerry pegou-lhe na mão.

— Será possível que as galáxias adolescentes comilonas não te tenham ensinado nada, Lol? — indagou ele em voz baixa, e Laurel sentiu uma onda de preocupação e amor protector invadi-la, porque lhe viu nos olhos o quanto ele precisava de que tudo acabasse por se resolver a bem, e, lá no fundo, ela sabia que isso era altamente improvável. — Nunca descartes a possibilidade de chegares a uma resposta que nenhuma das actuais teorias prevê.