Capítulo 19

Greenacres, 2011

— Ela diz que quer voltar para casa.

Laurel esfregou os olhos com uma das mãos e tacteou a mesa-de-cabeceira com a outra. Por fim, lá encontrou os óculos.

— Ela quer o quê?

A voz de Rose chegou-lhe uma vez mais da extremidade oposta da linha, desta feita mais vagarosa e cheia de paciência, como se estivesse a falar com alguém para quem o inglês fosse uma segunda língua.

— Disse-me esta manhã. Quer voltar para casa. Para Greenacres. — Nova pausa. — Em vez de ficar no hospital.

— Ah. — Ainda a segurar no telefone, Laurel pôs os óculos e semicerrou os olhos para a janela do quarto. Santo Deus, mas estava um dia de sol. — Ela quer voltar para casa. Então, e o médico? O que é que ele acha disso?

— Vou falar com ele quando acabar de fazer a ronda dos doentes, mas... ah, Lol — baixou a voz —, as enfermeiras disseram-me que ele acha que chegou o momento.

Sozinha no quarto da sua meninice, a ver o sol matinal a espraiar-se pelo papel de parede desbotado, Laurel, soltou um suspiro. Chegara o momento. Era escusado perguntar o que pretendiam as enfermeiras dizer com aquilo.

— Bom, nesse caso...

— Sim.

— É para casa que ela deve ir.

— Sim.

— E nós tratamos dela aqui. — Ao ver que não obtinha resposta, Laurel insistiu: — Rose?

— Estou aqui. Estás a falar a sério, Lol? Também vais ficar com ela em casa, acompanhá-la?

Laurel falou por entre o cigarro que estava a tentar acender.

— É óbvio que estou a falar a sério.

— Estás com uma voz estranha. Estás... a chorar, Lol?

Sacudiu o fósforo para o apagar e tirou o cigarro da boca.

— Não, não estou a chorar. — Nova pausa, e Laurel teve a impressão de ouvir a irmã a dar nós aos colares de contas, um sinal claro da sua aflição. — Rose, está tudo bem comigo. Vai ficar tudo bem connosco. Vamos ajudar-nos uma à outra, vais ver.

Rose emitiu um leve ruído sufocado, eventualmente de concordância, talvez de dúvida, e depois mudou de assunto.

— Então, ontem à noite, chegaste bem a casa?

— Cheguei. Embora bastante mais tarde do que tinha previsto. — Na verdade, eram três da madrugada quando ela por fim entrara na quinta. Depois do jantar, acompanhara o irmão ao alojamento dele e tinham passado grande parte da noite a especular a respeito da mãe e de Henry Jenkins. Decidiram que, enquanto Gerry procurava informações sobre o Dr. Rufus, fazia sentido Laurel tentar descobrir o que pudesse acerca da furtiva Vivien. Afinal de contas, ela era o elo de ligação entre a mãe e Henry Jenkins, assim como o motivo provável de ele se ter lançado no encalço de Dorothy Nicolson em 1961.

Na altura, a tarefa afigurara-se-lhe perfeitamente exequível; agora, porém, à luz do dia, Laurel já não estava tão certa disso. Todo o plano parecia feito da matéria insubstancial dos sonhos. Deitou uma olhadela ao pulso despido, perguntando-se vagamente onde teria deixado o relógio.

— Que horas são, Rose? A luz está tão forte.

— Pouco passa das dez.

«Dez?!» Oh, meu Deus, tinha adormecido.

— Rosie, agora tenho de desligar, mas vou directamente para o hospital. Esperas por mim?

— Até ao meio-dia, quando terei de ir buscar a filha mais nova da Sadie à creche.

— Está bem. Nesse caso, vou já ter contigo... Assim, conversamos as duas com o médico.

*

Quando Laurel chegou, Rose já estava acompanhada pelo médico. A enfermeira da recepção informou-a de que estavam à espera dela e indicou-lhe a cafetaria adjacente. Rose deveria andar à procura dela, porque começou a acenar-lhe mesmo antes de ela pôr os pés na cafetaria. Laurel abriu caminho por entre as mesas e, ao aproximar-se de ambos, verificou que Rose estivera a chorar, e não era pouco. Havia lenços de papel amarrotados espalhados pelo tampo da mesa e manchas pretas esborratadas por baixo dos olhos da irmã. Laurel sentou-se ao lado dela e cumprimentou o médico.

— Eu tenho estado aqui a dizer à sua irmã — começou ele, precisamente no mesmo tom de profissional de saúde atencioso que Laurel teria empregado para desempenhar idêntico papel no momento de transmitir más mas inevitáveis notícias — que, na minha opinião, já esgotámos todas as opções de tratamento. Não será com certeza uma surpresa para si, creio eu, se lhe disser que se trata apenas de uma questão de lhe aliviar o sofrimento e assegurar o maior conforto possível.

Laurel assentiu com a cabeça.

— A minha irmã disse-me que a nossa mãe quer ir para casa, Dr. Cotter. É possível?

— Isso não levantaria problema algum — sorriu. — Naturalmente, se ela desejar permanecer no hospital, nós estaremos também em condições de lhe satisfazer esse desejo... Na verdade, a maioria dos nossos doentes permanece connosco até ao fim...

O fim. A mão de Rose procurou a de Laurel por baixo da mesa.

— Mas se estão dispostas a tratar dela em casa...

— Estamos — apressou-se Rose a dizer. — Claro que estamos.

— ... Então, nesse caso, creio que será esta a melhor altura para conversarmos a esse respeito.

Os dedos de Laurel ansiaram por um cigarro. Ela disse:

— A nossa mãe não tem muito tempo de vida. — Era mais uma afirmação do que uma pergunta, uma função da mente de Laurel ao processar o facto, mas o médico, mesmo assim, respondeu-lhe.

— Já tenho tido algumas surpresas — admitiu ele —, mas, em resposta à sua pergunta, não, não tem muito tempo.

*

— Londres — disse Rose, enquanto percorriam lado a lado o linóleo sarapintado do corredor do hospital em direcção ao quarto da mãe. Já lá iam quinze minutos desde que se haviam despedido do médico, mas Rose ainda agarrava um lenço de papel dentro do punho fechado. — É uma reunião de trabalho, é isso?

— Trabalho? Que trabalho? Já te disse, Rose, que tirei uns dias de folga.

— Não gosto nada de te ouvir dizer essas coisas, Lol. Deixas-me nervosa quando dizes essas coisas. — Rose levantou uma mão para cumprimentar uma enfermeira que se cruzou com elas.

— Que género de coisas?

— Que estás a ter uns dias de folga. — Rose deteve-se e teve um arrepio; a sua cabeleira farta e rebelde estremeceu com ela. Trazia vestido um macacão de ganga e, no peitilho, um alfinete em forma de ovo estrelado, que era novidade para Laurel. — Não é natural; não é normal. Tu sabes que não gosto de quebras na rotina... Deixam-me preocupada.

Laurel não conseguiu conter uma gargalhada.

— Não há motivo para preocupação, Rosie. Vou apenas dar uma saltada a Euston para consultar um livro.

— Um livro?

— Para uma pesquisa que ando a fazer.

— Ah! — Rose retomou a caminhada. — Pesquisa! Eu sabia que tu eras incapaz de fazer folga do trabalho. Ah, Lol, que alívio! — exclamou ela, abanando uma mão diante do rosto manchado de lágrimas. — Assim, já me sinto muito melhor.

— Bom, nesse caso — disse Laurel, com um sorriso —, fico feliz por ter contribuído para isso.

A ideia de começar a pesquisa sobre Vivien na Biblioteca Britânica partira de Gerry. Uma busca, noite avançada, no Google conduzira-os apenas a sites galeses de râguebi e a outros becos sem saída, assim como a curiosas ondulações longínquas da rede, mas a biblioteca, insistira Gerry, não os desapontaria. «Três milhões de novos artigos todos os anos, Lol», comentara o irmão enquanto preenchia os dados da inscrição. «Isso corresponde a dez quilómetros de prateleiras; terão forçosamente de ter alguma coisa.» Gerry entusiasmara-se ao descrever o serviço on-line — «Eles enviam-te directamente para casa cópias do que quer que tu encontres» —, mas Laurel decidira (perversamente, retorquira Gerry com um sorriso) que era de longe mais simples dirigir-se pessoalmente à biblioteca — Laurel já fizera de detective em séries televisivas, sabia que em certas ocasiões o melhor a fazer era sair para o terreno em busca de provas. E se a informação que ela encontrasse a conduzisse mais longe? Seria muito melhor estar no próprio local do que ser obrigada a fazer outro pedido on-line e esperar que este fosse atendido; era de longe melhor agir do que esperar.

Chegaram à porta de Dorothy e Rose abriu-a com um empurrão. A mãe estava a dormir na cama, aparentemente mais magra e frágil do que estivera na manhã da véspera, e subitamente ocorreu a Laurel que a sua decadência acelerava a olhos vistos. As irmãs deixaram-se ficar algum tempo sentadas, a ver o peito de Dorothy a oscilar suavemente, até que Rose tirou um pano do pó da carteira e começou a limpar as fotografias emolduradas expostas.

— Creio que é melhor embalá-las — sugeriu ela em voz baixa. — Assim, ficam prontas para irem para casa.

Laurel assentiu com a cabeça.

— Têm tanto significado para ela, estas fotografias. Sempre tiveram, não foi, Laurel?

A irmã tornou a assentir, mas não lhe respondeu. A menção às fotografias pusera-a a pensar naquela em que Dorothy e Vivien apareciam juntas, na Londres dos tempos da guerra. Estava datada de Maio de 1941, o mês em que a mãe começara a trabalhar na pousada da avó Nicolson e Vivien Jenkins morrera durante um bombardeamento aéreo. Onde teria sido tirada aquela fotografia?, perguntava-se ela. E por quem? Seria o fotógrafo algum conhecido das raparigas... Henry Jenkins, talvez? Ou o namorado da mãe, Jimmy? Laurel franziu a testa. Ainda lhe faltava tanto para completar o quebra-cabeças.

Nesse momento, a porta abriu-se e os barulhos do mundo exterior penetraram no quarto atrás da enfermeira da mãe: pessoas a rir, campainhas a chamar, telefones a tocar. Laurel observou a enfermeira a movimentar-se com eficiência pelo quarto, a medir a pulsação de Dorothy, a tirar-lhe a temperatura, a tomar notas na tabela aos pés da cama. Quando chegou ao fim da sua tarefa, presenteou Laurel e Rose com um sorriso amável e disse-lhes que iria guardar o almoço da mãe para o caso de ela acordar mais tarde e ter fome. Laurel agradeceu-lhe e a enfermeira foi-se embora, fechando a porta atrás de si e deixando o quarto mergulhar uma vez mais num término tranquilo e silencioso no qual só lhes restava esperar. Mas esperar por quê? Não admirava que Dorothy quisesse voltar para casa.

— Rose? — disse Laurel de repente, ao ver a irmã a endireitar as molduras limpas.

— Hum?

— Quando a mãe te pediu que lhe fosses buscar aquele livro, o que trazia a fotografia lá dentro, fez-te impressão andares a vasculhar no malão dela? — Mais concretamente, haveria lá mais alguma coisa capaz de ajudar Laurel a deslindar o mistério? Tentou descobrir alguma maneira de perguntar a Rose sem que esta suspeitasse da investigação.

— Nem por isso. Para ser franca, não pensei muito nisso. Fui lá o mais depressa que pude, com receio de que, se me demorasse, ela fosse atrás de mim até ao sótão. Felizmente, foi sensata e ficou na cama, onde eu a deixara... — Rose sufocou um grito.

— O que foi? Que se passa?

Rose suspirou de alívio, afastando o cabelo da testa.

— Nada, não é nada — disse ela, sacudindo a mão. — Só que eu não fazia a mínima ideia onde tinha encafuado a chave. Ela estava a fazer-se de difícil, percebes; ficou toda alvoroçada quando viu que eu tinha encontrado o livro. Ficou satisfeita, creio eu... Isto é, deve ter ficado, se foi ela que me pediu para ir buscá-lo... mas também estava impertinente, quase irascível; tu bem sabes do que a mãe é capaz.

— Mas entretanto lembraste-te, não foi?

— Ah, sim, claro... Está outra vez na mesa-de-cabeceira dela. — Abanou cabeça e sorriu com ar ingénuo. — Sinceramente, às vezes não sei por onde anda a minha cabeça.

Laurel retribuiu-lhe o sorriso. Pobre, inocente Rose.

— Desculpa, Lol... Tu estavas a perguntar-me qualquer coisa... acerca do malão?

— Ah, não, não era nada de especial. Estava só a fazer conversa.

Foi então que Rose viu as horas e anunciou que tinha de se ir embora para ir buscar a neta à creche.

— Mas passo por cá mais logo e acho que a Iris ficou de vir cá amanhã de manhã. Entre todas, devemos ter tudo pronto para a mudança no sábado... Sabes, sinto um certo entusiasmo. — A expressão dela, porém, não tardou a ensombrar-se. — Imagino que seja um sentimento muito pouco adequado, tendo em conta as circunstâncias.

— Não me parece que haja regras no que toca a estas coisas, Rosie.

— Pois não, acho que tens razão. — Rose debruçou-se para beijar a irmã na face e, em seguida, foi-se embora, deixando atrás de si um rasto do seu perfume a alfazema.

*

O ambiente fora diferente com Rose no quarto, outro corpo a mexer-se, a afadigar-se, a respirar. Sem ela, Laurel ganhou ainda maior consciência de até que ponto a mãe vinha a ficar enfraquecida e silenciosa. O seu telemóvel apitou a anunciar a chegada de uma mensagem e Laurel apressou-se a ver quem era, agarrando-se com gratidão à corda salva-vidas que a ligava ao mundo exterior. Era um e-mail pró-forma da Biblioteca Britânica, a confirmar que o livro que Laurel requisitara estaria disponível na manhã seguinte e lembrando-a de se munir de um documento de identificação para preencher o formulário para o cartão de leitor. Laurel leu-o duas vezes com atenção e em seguida, com relutância, tornou a guardar o telemóvel na carteira. A mensagem proporcionara-lhe um momento bem-vindo de distracção; agora estava de volta ao ponto de partida, ao torpor estupidificante do quarto do hospital.

Já não aguentava mais. O médico dissera-lhe que o mais provável seria a mãe passar a tarde inteira a dormir devido à medicação para as dores, mas, mesmo assim, Laurel foi buscar o álbum de fotografias. Sentou-se à cabeceira da mãe e começou pelo princípio, pela fotografia de Dorothy em jovem, a trabalhar para a avó Nicolson na pousada à beira-mar. Foi avançando através dos anos, narrando uma vez mais a história da família, ouvindo o som tranquilizador da sua própria voz, com a vaga sensação de que, se continuasse a falar naquele tom de normalidade, conseguiria de alguma forma manter a vida no quarto.

Por fim, chegou à fotografia de Gerry no seu segundo aniversário. Fora tirada logo pela manhã, enquanto arrumavam as cestas do piquenique na cozinha, antes de partirem para o regato. A adolescente Laurel — que franja, meu Deus! — tinha Gerry empoleirado numa anca e Rose fazia-lhe cócegas na barriga, para o incitar a rir e gorjear; o dedo apontado de Iris conseguira ficar no retrato (zangada com qualquer coisa, sem dúvida) e a mãe aparecia ao fundo, uma mão na cabeça à medida que inspeccionava o conteúdo da cesta. Em cima da mesa — o coração de Laurel teve um sobressalto; era a primeira vez que reparava em tal coisa — achava-se a faca. Mesmo ao lado do vaso das dálias. «Não se esqueça, mãe», Laurel deu por ela a pensar. «Guarde a faca na cesta e nunca terá de voltar a casa. Assim, não se passará nada. Eu irei descer da casa da árvore antes de o homem aparecer no caminho e ninguém ficará a saber que ele passou por nossa casa naquele dia.»

Mas era uma lógica infantil. Quem poderia garantir que Henry Jenkins não haveria de voltar se não encontrasse ninguém em casa? E talvez da próxima visita as coisas corressem ainda pior. A morte poderia calhar à pessoa errada.

Laurel fechou o álbum. Perdera a ânimo para narrar o passado. Ao invés, ajeitou o lençol da mãe em volta do peito e disse-lhe:

— Ontem à noite estive com o Gerry, mãe.

De nenhures, qual som trazido pelo vento:

— Gerry...

Laurel olhou de relance para os lábios da mãe. Estavam imóveis, embora ligeiramente afastados. Os olhos, esses, estavam fechados.

— Isso mesmo — prosseguiu ela, mais entusiasmada —, o Gerry, fui visitá-lo a Cambridge. Está óptimo, o mesmo rapaz inteligente de sempre. Anda a fazer um mapa do céu, a mãe sabia? Alguma vez lhe passou pela cabeça que o nosso menino haveria de fazer uma coisa tão extraordinária? Disse-me que estão a ponderar enviá-lo durante algum tempo para os Estados Unidos, para fazer pesquisa, uma oportunidade fantástica.

— Oportunidade... — a mãe exalou a palavra. Tinha os lábios secos e Laurel pegou no copo de água, enfiando-lhe na boca, com todo o cuidado, a palhinha flexível.

A mãe bebeu com rigidez, apenas uns goles. Abriu ligeiramente os olhos.

— Laurel — disse ela baixinho.

— Estou aqui, não se aflija.

As pálpebras delicadas de Dorothy tremularam do esforço de se manterem abertas.

— Parecia... — A sua respiração era superficial. — Parecia inofensivo.

— O quê, mãe?

Dos seus olhos, começaram não tanto a cair, mas mais a escorrer lágrimas. As rugas profundas do rosto pálido brilharam. Laurel tirou um lenço de papel da caixa e limpou o rosto da mãe ao de leve, com a mesma ternura que faria a uma criança assustada.

— O que era que parecia inofensivo, mãe? Diga lá.

— Era uma oportunidade, Laurel. Eu tirei... eu tirei...

— Tirou o quê? — Uma jóia, uma fotografia, a vida a Henry Jenkins?

Dorothy agarrou a mão de Laurel com mais firmeza e abriu o mais que podia os olhos lacrimosos. Quando prosseguiu, a sua voz deixava transparecer um novo tom de desespero, assim como de determinação; como se tivesse esperado muito tempo por poder tocar naquele assunto e, não obstante o esforço que lhe exigia, estava decidida a levá-lo até ao fim.

— Era uma oportunidade, Laurel. Nunca pensei poder prejudicar alguém. Eu só queria... eu achava que merecia... que se fizesse justiça. — Dorothy soltou então o ar de forma tão roufenha que provocou arrepios na espinha da filha. A mãe começou então desbobinar as palavras, a fazer lembrar o fio de uma teia de aranha. — Tu acreditas na justiça, que, se somos roubados, devemos poder apropriar-nos de qualquer coisa?

— Não sei, mãe. — Custava-lhe imenso ver a mãe, a idosa doente que afugentara monstros e lágrimas à custa de beijos, atormentada pela culpa e pelos remorsos. Estava desejosa de a poder confortar; tal como também queria saber o que a mãe fizera. Acrescentou com brandura: — Julgo que depende do que foi que nos roubaram e do que é que tencionamos apropriar-nos como recompensa.

A intensidade da expressão da mãe dissipou-se. À claridade que entrava pela janela, podiam ver-se as lágrimas que escorriam dos seus olhos.

— Tudo — disse ela. — Eu sentia que tinha perdido tudo.

*

Nessa tarde, Laurel foi sentar-se a fumar no chão do sótão de Greenacres. Sentia a macieza, a solidez, das tábuas desbotadas por baixo dela e uma réstia do sol do final da tarde penetrava através da minúscula janela de quatro vidraças no cimo do telhado, incidindo como um projector no malão trancado da mãe. Laurel puxou uma fumaça vagarosa do cigarro. Fazia já meia hora que ali estava sentada, tendo por única companhia o cinzeiro, a chave do malão e a sua própria consciência. Não tivera dificuldade em encontrar a chave, escondida no sítio que Rose lhe indicara, mesmo ao fundo da gaveta da mesa-de-cabeceira da mãe. Tudo o que Laurel tinha agora a fazer era inseri-la no cadeado, girá-la e descobrir o que por lá houvesse.

Mas descobrir o quê? Mais acerca da oportunidade que Dorothy vislumbrara? O que fora que a mãe roubara ou fizera?

Não que se desse o caso de esperar encontrar uma confissão por escrito lá dentro; nada que se comparasse. A verdade, porém, era que lhe parecia um sítio importante, embora bastante óbvio, onde procurar pistas do mistério da mãe. Já que ela e Gerry estavam na disposição de calcorrear o país de uma ponta à outra e incomodar outras pessoas para recolher informações capazes de os ajudar a preencher as lacunas, seria seguramente de uma negligência gritante deixarem de fazer tudo o que podiam dentro da sua própria casa. Na realidade, não era uma invasão mais grave da privacidade da mãe do que as investigações que tinham começado por fazer noutros locais, ou era? Abrir o malão não era pior do que ir falar com Kitty Barker, ou andar à procura dos apontamentos do Dr. Rufus, ou ir no dia seguinte à biblioteca em busca de Vivien Jenkins. A sensação que lhe deixava é que era pior.

Laurel olhou para o cadeado. Com a mãe fora de casa, estava prestes a convencer-se de que não era nada por aí além — afinal de contas, a mãe deixara Rose ir-lhe buscar o livro, e não tinha preferências (excepto no que tocava a Gerry, e isso aplicava-se a todas as irmãs); por conseguinte, a mãe não se importaria que Laurel também visse o que havia no seu malão. Uma lógica ténue, talvez, mas não tinha mais nada a que se agarrar. E uma vez Dorothy regressada a Greenacres, tudo acabaria por redundar em nada. Ser-lhe-ia completamente impossível, sabia Laurel, levar a cabo a busca com a mãe no piso de baixo. Era agora ou nunca.

— Desculpe, mãe — disse ela, livrando-se do cigarro com uma achatadela decidida —, mas eu preciso de saber.

Levantou-se com cuidado, sentindo-se como uma gigante ao dirigir-se para a zona em declive do sótão. Ajoelhou-se para introduzir a chave e abrir o cadeado com um estalido. Era o grande momento, sentia Laurel no seu íntimo; mesmo que nunca chegasse a abrir a tampa, o crime já fora cometido.

Já que estava perdido por cem, mais valia perdê-lo por mil, não era? Laurel levantou-se e começou a abrir a tampa do velho malão; todavia, não olhou para o interior. As dobradiças tesas de cabedal rangeram devido à falta de uso e Laurel susteve a respiração. Era outra vez uma criança, a violar uma regra intransigível. Sentia-se aturdida. E agora a tampa estava aberta, o máximo até aonde ia. Laurel afastou a mão e as dobradiças acusaram o peso. Com uma respiração profunda e determinada, atravessou o Rubicão e espreitou para o interior do malão.

Havia qualquer coisa por cima, um envelope, velho e ligeiramente amarelecido, que fora endereçado a Dorothy Nicolson da Quinta Greenacres. O selo era verde-azeitona e apresentava uma jovem rainha Isabel vestida a rigor para a coroação; ao ver aquela imagem da rainha, Laurel teve uma recordação fugaz, como se fosse importante, embora não soubesse precisar o motivo. O envelope não trazia remetente e Laurel mordeu o lábio ao abri-lo, retirando um cartão bege do interior. Trazia uma única palavra escrita em viés a preto: «Obrigado.» Laurel voltou-o e não encontrou mais nada. Agitou o cartão para trás e para a frente, intrigada.

Haveria seguramente muitas pessoas que teriam tido motivos para agradecer à mãe ao longo dos anos, mas não de uma forma tão anónima como aquela — um envelope sem remetente, um cartão sem assinatura —, era estranho, sem dúvida; o facto de Dorothy o ter guardado a sete chaves, mais estranho ainda. Uma prova, concluiu Laurel, de que a mãe deveria saber perfeitamente por quem fora enviado; mais, que o que quer que a pessoa em questão agradecia à mãe era segredo.

Tudo aquilo era deveras misterioso — o suficiente para pôr o coração de Laurel a bater mais depressa —, mas não necessariamente relevante para a investigação. (Por outro lado, poderia tratar-se de facto da pista crucial, mas Laurel não estava a ver maneira de averiguar isso com certeza, não naquele momento; não, a menos que ela perguntasse directamente à mãe, coisa que não tencionava fazer. Pelo menos por enquanto.) Tornou a guardar o cartão dentro do envelope, e inseriu-o na extremidade mais afastada do malão, onde ficou ao lado de uma estatueta de madeira; o Sr. Punch, constatou Laurel com um leve sorriso, a lembrar-se das férias que costumavam passar na pousada da avó Nicolson.

Havia outro objecto dentro do malão, tão grande que ocupava o espaço quase todo. Pareceu-lhe ser um lençol, contudo, quando Laurel pegou nele, o puxou para fora e o estendeu a todo o comprimento, percebeu que se tratava de um casaco, de uma pele já bastante coçada que em tempos deveria ter sido branca. Laurel segurou-o à altura dos ombros o mais longe possível do corpo, deixando-o pendurado, como alguém poderia fazer ao tentar decidir se haveria de comprar um casaco numa loja.

O roupeiro ao fundo do sótão tinha uma porta espelhada. Costumavam brincar lá dentro quando era miúdas, ou, pelo menos, Laurel tivera esse hábito; as irmãs tinham medo de lá entrar, o que fizera do roupeiro o lugar ideal para ela se esconder sempre que precisava de liberdade para desaparecer dentro das histórias que inventava.

Laurel levou o casaco para junto do roupeiro e enfiou os braços nas mangas. Mirou-se ao espelho, voltando-se devagar de um lado para o outro. O casaco ficava-lhe mesmo abaixo do joelho. Era abotoado à frente e tinha um cinto. Era um belo modelo, por muito estragada que a pele pudesse estar; a atenção ao pormenor, o corte. Laurel estava disposta a apostar que alguém pagara bom dinheiro por aquele casaco quando era novo. Interrogou-se se aquela pessoa teria sido a mãe e, a ser assim, como fora possível que uma jovem que trabalhava como criada se poderia ter permitido a semelhante luxo.

Enquanto observava o seu reflexo, sentiu regressar uma recordação longínqua. Não era a primeira vez que Laurel vestia aquele casaco. Fora num dia chuvoso, na sua meninice. Tinham andado a manhã toda a fazer perder as estribeiras à mãe, numa correria escada acima, escada abaixo, e Dorothy mandara-as de castigo para o sótão, para irem brincar às máscaras. As irmãs Nicolson tinham um caixote enorme cheio de máscaras, onde a mãe lhes guardava chapéus, camisas e cachecóis velhos, coisas engraçadas que ia encontrando e que, por artes de magia infantil, poderiam ser transformadas em coisas bonitas.

Enquanto as irmãs se disfarçavam com as suas peças preferidas, Laurel desencantara um saco a um canto do sótão, com qualquer coisa branca e felpuda a espreitar pela abertura. Fora buscar o casaco e não hesitara em vesti-lo. Depois, pusera-se precisamente diante daquele espelho, a admirar a sua pessoa, a pensar no ar imponente que lhe dava; qual Rainha das Neves malévola, mas deslumbrante.

Laurel era uma criança e, por conseguinte, não reparou nos bocados puídos de pele, nem nas manchas escuras ao redor da bainha; reconheceu, isso sim, a autoridade sumptuosa inerente ao casaco. Passou umas horas maravilhosas a mandar as irmãs para dentro de jaulas, a ameaçar atiçar os lobos contra elas se não acatassem as suas ordens, a cacarejar gargalhadas maléficas. Quando a mãe finalmente as chamou para o almoço, Laurel apegara-se de tal maneira ao casaco e ao curioso poder que se recusou simplesmente a despi-lo.

A expressão de Dorothy ao ver a filha mais velha chegar à cozinha naqueles preparos foi difícil de discernir. Não ficou satisfeita, mas também não gritou. Foi pior do que isso. Pálida como a cal e com a voz trémula, disse-lhe: «Despe isso. Despe já isso.» Quando Laurel hesitou em obedecer, a mãe dirigiu-se apressadamente a ela e começou a puxar-lhe o casaco dos ombros, a tartamudear qualquer coisa a respeito de estar calor a mais, de o casaco lhe estar comprido de mais, de o escadote do sótão ser demasiado íngreme para alguém trepar por ele com uma coisa daquelas vestida. Laurel tivera muita sorte em não ter tropeçado e morrido da queda. Nesse momento, olhou para Laurel, o casaco de peles numa trouxa debaixo do braço, e a sua expressão foi quase acusadora, uma mistura de angústia e traição, a rasar o medo. Por um instante terrível e fugaz, Laurel julgou que a mãe iria desatar a chorar. Mas não chorou; mandou a filha sentar-se à mesa e em seguida desapareceu, levando o casaco com ela.

Laurel não tornara a ver o casaco de peles. Perguntara por ele à mãe alguns meses decorridos, numa ocasião em que precisara de uma indumentária para uma peça de teatro da escola, mas Dorothy limitara-se a responder, sem sequer se dignar a olhar para ela: «Aquela velharia? Deitei-o fora. Não servia se não para atrair as ratazanas no sótão.»

Não obstante, ali estava ele agora, escondido no malão da mãe, ao fim de décadas e décadas, guardado a sete chaves. Laurel expirou pensativamente, enfiando as mãos dentro dos bolsos do casaco. Um deles tinha um buraco no cetim do forro, e os dedos dela escorregaram por ele dentro. Tocou em qualquer coisa; parecia-lhe a aresta de um bocado de cartão. Laurel agarrou o que quer que fosse e puxou-o através do buraco.

Era um cartão branco, simples, rectangular, com qualquer coisa escrita. Os dizeres estavam desbotados e Laurel viu-se obrigada a levá-lo para junto do pouco sol que ainda havia para os conseguir ler. Era um bilhete de comboio, constatou ela, um bilhete de ida de Londres para a estação mais próxima da pousada da avó Nicolson. A data carimbada no bilhete era de 23 de Maio de 1941.