Londres, Fevereiro de 1941
Jimmy atravessou Londres o mais depressa que pôde, com uma ligeireza no passo pouco habitual nele. Havia semanas que não tinha qualquer contacto com Dolly — ela recusara-se a recebê-lo quando a fora visitar a Campden Grove e não respondera às suas cartas —, agora, porém, finalmente, isto. Sentia a carta dentro do bolso, o mesmo em que levara a aliança naquela noite fatídica — oxalá não fosse um mau presságio. A carta chegara à redacção do jornal no início da semana, um simples bilhete a suplicar-lhe que se fosse encontrar com ela no parque dos bancos nos Jardins de Kensington, o mais próximo da estátua de Peter Pan. Havia um assunto sobre o qual precisava de falar com Jimmy, algo que esperava ser do seu agrado.
Dolly mudara de ideias e queria casar-se com ele. Só podia ser isso. Jimmy fazia o possível por ser prudente, detestava tirar conclusões precipitadas, ainda para mais tendo sofrido tanto depois de ela o rejeitar, mas não era capaz de impedir os pensamentos — ou, melhor dizendo, as suas esperanças — de se encaminharem nesse sentido. Que mais poderia ser? Algo que seria do agrado dele: ao que se lembrava, só havia uma coisa capaz disso. Só Deus sabia a falta que tinha de boas notícias.
A casa onde moravam fora destruída numa explosão dez dias antes. Jimmy vira-se completamente apanhado de surpresa. Nos últimos tempos tinha havido uma trégua, sob um dado aspecto, mais sinistra do que os piores bombardeamentos aéreos — toda aquela paz e calmaria não haviam passado de um estratagema para pôr os nervos da população em franja —, todavia, a 18 de Janeiro, uma bomba desgarrada caíra em cheio no telhado do apartamento de Jimmy. Regressara a casa ao fim de uma noite de trabalho e, mal virara a esquina, deparara-se com uma devastação reveladora. Santo Deus! Sustivera a respiração e correra em direcção às chamas e às ruínas. Deixara de ouvir o que quer que fosse para além da sua própria voz e o funcionamento do seu próprio corpo, a respirar e a bombear sangue, à medida que procurava entre os destroços, gritando pelo nome do pai, amaldiçoando-se por não ter arranjado um local mais seguro, por não ter estado presente no momento em que o velhote mais precisava dele. Quando Jimmy encontrara a gaiola amolgada de Finchie, soltara um grito assustador e animalesco de mágoa e desgosto, um grito de que jamais se julgara capaz. E naquele instante vivera a terrível experiência de, subitamente, habitar o cenário de uma das suas fotografias, com a diferença de que a casa em ruínas era a sua casa, os pertences inutilizados eram os seus pertences, o ente querido morto era o seu pai, e ficara então com a certeza de que, por muitos louvores que os editores lhe tecessem, falhara redondamente na tentativa de captar a verdade inerente àquele momento; o medo, o pânico e a assustadora realidade de, de um momento para o outro, ter perdido tudo.
Dera meia-volta e deixara-se cair pesadamente de joelhos, e fora então que vira a Sr.ª Hamblin, a vizinha do lado, a acenar-lhe desorientada do fundo da rua. Fora ter com ela, abraçara-a e oferecera-lhe o seu ombro para ela soluçar, e chorara também, lágrimas ardentes de impotência e raiva e desgosto. E, por fim, ela levantara a cabeça e perguntara-lhe: «Já esteve com o seu pai?», ao que Jimmy lhe respondera: «Não consegui encontrá-lo», e ela apontara para o fundo da rua. «Ele foi com a Cruz Vermelha, creio eu. Um médico novo muito simpático ofereceu-lhe uma chávena de chá, e o Jimmy sabe como ele se pela por chá, ele...»
Jimmy não precisara de ouvir mais nada. Largara numa corrida em direcção ao centro comunitário da igreja onde sabia que a Cruz Vermelha estaria. Entrara de rompante pela porta e vira o pai quase de imediato. O velhote estava sentado a uma mesa com uma chávena de chá à sua frente e Finchie empoleirado no antebraço. A Sr.ª Hamblin conseguira levá-los para o abrigo a tempo e Jimmy teve a impressão de que nunca na vida se sentira tão grato a alguém. Ter-lhe-ia dado o mundo se pudesse e, por isso, era uma grande pena não ter nada de jeito para lhe oferecer. Perdera todas as suas poupanças na explosão, juntamente com tudo o resto. Ficara apenas com a roupa que tinha no corpo e a máquina fotográfica que trazia consigo. E graças a Deus que assim fora — caso contrário, o que haveria de ser dele?
Jimmy afastou o cabelo dos olhos enquanto caminhava. Tinha de afastar o pai do pensamento, o quarto atravancado onde estavam temporariamente alojados. O velhote fazia-o sentir-se vulnerável e hoje não se queria sentir frágil. Não se podia dar a esse luxo. Hoje tinha de fazer por se manter no controlo da situação, circunspecto, talvez até um pouco arredio. Talvez fosse uma demonstração abominável de orgulho da sua parte, mas queria que Dolly o visse e compreendesse que tinha cometido um erro. Desta feita, não se aperaltara com o smoking do pai — mesmo que quisesse, não podia —, mas fizera um esforço por se apresentar o melhor possível.
Saiu da rua e entrou no jardim, atravessando o relvado que dera lugar às hortas vitorianas, percorrendo os caminhos que lhe pareciam agora despidos sem os seus gradeamentos de ferro, e preparou-se para tornar a vê-la. Dolly sempre tivera uma espécie de poder sobre ele, uma forma de, com um simples olhar, o vergar à sua vontade. Aqueles olhos, brilhantes e risonhos, que o tinham observado por cima de uma chávena de chá num café de Coventry; a curva dos lábios dela quando sorria, ligeiramente trocista por vezes, mas, santo Deus, tão excitante, tão cheia de vida. Só de pensar em Dolly, Jimmy já se sentia aquecer, e fez por recuperar o autodomínio, concentrando-se em recordar-se do quanto ela o magoara, para não falar na vergonha por que o fizera passar — a cara dos empregados quando viram Jimmy sozinho no restaurante, ainda com a aliança na mão; nunca se haveria de esquecer da maneira como olharam para ele, a risota que não deveria ter sido depois de ele se ir embora. Jimmy tropeçou na berma do caminho. Santo Deus! Tinha de manter a compostura, conter o optimismo e o desejo, salvaguardar-se contra a eventualidade de uma nova desilusão.
Fez o melhor que podia, mas estava apaixonado por ela havia demasiado tempo, calculou ele (mais tarde, de regresso a casa, ao rememorar os acontecimentos desse dia), e o amor fazia dos homens uns tolos, era mais que sabido. O que é facto é que, sem que fosse de todo essa a sua intenção e contra tudo o que a prudência lhe aconselhava, quando Jimmy Metcalfe se aproximou do local do encontro, estugou o passo numa corrida.
*
Dolly estava sentada num banco, exactamente onde dissera que estaria. Jimmy viu-a primeiro e deteve-se abruptamente, recuperando o fôlego e ajeitando o cabelo, os punhos da camisa, a postura, enquanto olhava para ela. O seu entusiasmo inicial depressa deu lugar ao espanto. Só haviam passado três semanas (apesar de as circunstâncias da separação lhe darem a impressão de que tinham sido três anos), mas ela mudara. Era Dolly, era linda, mas havia qualquer coisa que não batia certo, percebeu Jimmy, mesmo ao longe. Sentiu-se repentinamente deslocado; vinha preparado para ser duro, arrogante se coagido nesse sentido, mas vê-la ali sentada, com os braços em volta do corpo, o olhar cabisbaixo, mais pequena do que a imagem que guardava na memória — era a última coisa de que estava à espera e foi apanhado desprevenido.
Dolly viu-o então e esboçou-lhe um sorriso que lhe iluminou timidamente o semblante. Jimmy retribuiu-lhe o sorriso e encaminhou-se para junto dela, interrogando-se o que teria acontecido; se alguém a teria magoado, lhe fizera algo tão grave ao ponto de lhe roubar o ânimo, ciente de imediato de que seria capaz de matar quem quer que tivesse tido semelhante ousadia.
Dolly levantou-se ao vê-lo aproximar-se e eles abraçaram-se, os ossos dela finos e frágeis como os de um passarinho nas mãos dele. Não vinha agasalhada como devia ser; estivera a nevar, e o velho casaco de peles coçado não era suficientemente quente. Deixou-se ficar abraçada a ele por muito tempo, e Jimmy — que estivera tão magoado, tão furioso por causa da maneira como ela o tratara, da recusa de se explicar; que prometera a si próprio deixar a amargura sobrepor-se a tudo o mais quando a visse naquele dia — deu por ele a acariciar-lhe o cabelo, tal como faria a uma criança perdida e vulnerável.
— Jimmy — disse Dolly por fim, o rosto ainda encostado à camisa dele. — Oh, Jimmy...
— Vá lá — disse ele. — Então o que é isso? Não chores.
Dolly, porém, chorou, lágrimas suaves e luminosas que pareciam não ter fim, e agarrou-o pela zona das costelas, deixando-o preocupado e curiosamente excitado, também. Santo Deus, mas o que se passaria com ele?
— Oh, Jimmy! — repetiu ela. — Estou tão arrependida, tão envergonhada.
— Do que é que estás para aí a falar, Dolly? — Segurou-a pelos ombros e, com relutância, ela encarou o seu olhar.
— Eu cometi um erro, Jimmy — confessou ela. — Um entre tantos. Nunca te deveria ter tratado assim. Naquela noite, no restaurante, o que eu fiz... Ir-me embora daquela maneira, sem mais nem menos. Estou tão arrependida.
Jimmy não tinha um lenço, mas tinha um pano de limpar os óculos e serviu-se dele para lhe secar delicadamente o rosto.
— Não estou à espera de que me perdoes — disse ela. — E também sei que não podemos fazer o tempo voltar para trás, sei bem disso, mas tinha de te dizer isto. Sentia-me tão culpada e precisava de te pedir desculpa pessoalmente para que tu compreendesses que estou a falar a sério. — Pestanejou por entre as lágrimas e acrescentou: — É mesmo a sério, Jimmy, estou imensamente arrependida.
Nessa altura, ele assentiu com a cabeça. Deveria ter dito alguma coisa, mas a surpresa e a emoção eram tão grandes que o deixavam sem palavras. Pareceu-lhe ser suficiente, porque ela sorriu, agora mais abertamente, em resposta. Jimmy detectou-lhe um rasgo da sua antiga vitalidade no sorriso e a sua única vontade foi petrificá-la naquele momento para ela não lhe poder tornar a fugir. Era o género de pessoa que precisava das atenções alheias, constatava ele. Não por uma questão de expectativa egoísta, mas de feitio; à semelhança de um piano ou de uma harpa, fora feita para funcionar melhor com uma determinada afinação.
— Pronto — disse ela, soltando um suspiro de alívio. — Já disse o que tinha a dizer.
— Pois já — ecoou ele, a voz entrecortada, e, incapaz de se conter, fez deslizar o dedo pelo contorno do lábio superior.
Dolly franziu os lábios para lho beijar ao de leve e em seguida fechou os olhos. As pestanas escuras e molhadas contrastavam com as faces.
Deixou-se ficar assim por muito tempo, como se também ela quisesse impedir o mundo de seguir o seu rumo. Quando por fim se afastou, ergueu um olhar tímido para ele.
— Então? — disse-lhe.
— Então… — Jimmy puxou de um cigarro e ofereceu-lho. Dolly aceitou-o de bom grado.
— Leste-me os pensamentos, estou sem um único para amostra.
— Nem parece teu.
— Não? Bom, nesse caso, devo ter mudado.
Dolly disse isto em tom descomprometido, mas enquadrava-se tão bem com o que ele vira à sua chegada que Jimmy franziu o sobrolho. Acendeu os dois cigarros e em seguida apontou no sentido de onde viera.
— Talvez fosse melhor irmos andando — sugeriu ele. — Se continuamos para aqui a segredar, ainda nos acusam de espionagem.
Arrepiaram caminho até aonde outrora tinham estado as grades, a conversar como desconhecidos educados acerca de trivialidades. Quando chegaram à rua, detiveram-se, cada um à espera de que o outro decidisse o que estava para vir. Dolly tomou a iniciativa, virando-se para ele para lhe dizer:
— Ainda bem que vieste, Jimmy. Eu não merecia, mas fico-te agradecida. — A voz dela denotava um tom conclusivo que a princípio lhe escapou. Contudo, quando Dolly esboçou um sorriso corajoso e lhe acenou em despedida, compreendeu que ela se ia embora. Que lhe pedira desculpa. Fizera o que achou que o deixaria feliz, e agora ia à vida dela.
E, nesse instante, a verdade surgiu diante de Jimmy com uma clareza ofuscante. A única coisa que algum dia o faria feliz seria casar-se com ela, levá-la consigo, tomar conta dela e remediar a situação.
— Doll, espera...
Ela pendurara a carteira ao ombro e já se preparava para lhe virar costas, mas olhou para trás quando ele a chamou.
— Anda comigo — pediu-lhe. — Eu só entro ao serviço mais logo. Vamos comer qualquer coisa.
*
Em tempos que já lá iam, Jimmy teria encarado a situação de outra maneira, planeado tudo ao mínimo pormenor e feito o possível por que tudo saísse na perfeição, agora, porém, já não. O orgulho, a perfeição, que fossem para o diabo. Não havia tempo para isso. Já sabia por experiência própria que a vida era feita de momentos efémeros — uma bomba desgarrada, e estava tudo acabado. Esperou apenas que a empregada de mesa viesse tomar nota do pedido e em seguida encheu-se de coragem e disse-lhe:
— A minha proposta, Doll, mantém-se. Amo-te. Sempre te amei. O que eu mais quero na vida é casar-me contigo.
Ela ficou a olhar para ele, os olhos arregalados de surpresa. E quem lhe poderia levar a mal por isso?
— Queres? Mesmo depois...?
— Mesmo depois. — Jimmy estendeu um braço por cima da mesa e Dolly colocou as suas mãos miúdas dentro da dele. Sem o casaco branco, reparou que tinha arranhadelas nos braços finos e pálidos. Tornou a olhar-lhe para o rosto, mais decidido do que nunca a tomar conta dela. — Não tenho nenhuma aliança para te oferecer, Doll — confessou-lhe, entrelaçando os seus dedos nos dela. — O meu apartamento foi bombardeado e nós ficámos sem nada. Cheguei mesmo a pensar que também tinha ficado sem o meu pai. — Dolly acenou ao de leve com a cabeça, aparentemente ainda estupefacta, e Jimmy prosseguiu. Tinha a vaga sensação de que se estava a desviar do assunto, a falar de mais, a deixar por dizer o que queria, mas parecia incapaz de se conter. — Graças a Deus, não fiquei. É um sobrevivente, o meu pai. Quando consegui encontrá-lo, estava com a Cruz Vermelha, a consolar-se com uma chávena de chá quente. — Jimmy esboçou um breve sorriso perante aquela recordação e em seguida abanou a cabeça. — Seja como for... o que eu quero dizer é que a aliança se perdeu. Mas logo que eu possa, compro-te uma.
Dolly engoliu em seco e, quando por fim falou, a sua voz era suave, triste.
— Oh, Jimmy — disse ela —, que má opinião deves ter a meu respeito para achares que eu iria dar importância a uma ninharia dessas.
Foi a vez de Jimmy revelar surpresa.
— Não dás?
— Claro que não. Não preciso de uma aliança para me ligar a ti. — Apertou-lhe as mãos e as lágrimas bailaram-lhe nos olhos. — Eu também te amo, Jimmy. Sempre te amei. O que terei de fazer para te convencer disso?
*
Comeram em silêncio, levantando ocasionalmente o olhar da refeição para sorrir um ao outro. Quando por fim terminaram, Jimmy acendeu um cigarro e disse:
— Imagino que a tua velha patroa há-de querer que saias vestida de noiva de Campden Grove.
Ao ouvi-lo dizer isto, a alegria de Dolly esvaiu-se.
— Doll? O que foi?
Foi nessa altura que ela lhe contou tudo, que Lady Gwendolyn falecera, e que ela, Dolly, já não trabalhava em Campden Grove, mas que estava novamente a morar no quarto minúsculo de Rillington Place. Que fora deixada sem nada e fazia longos turnos numa fábrica de munições para pagar a pensão.
— Mas eu julgava que Lady Gwendolyn fazia tenções de te deixar parte dos bens em testamento — comentou Jimmy. — Não foi isso que tu me disseste, Doll?
Ela desviou o olhar para a janela, uma expressão amargurada a varrer a felicidade de há momentos.
— Sim — confirmou ela. — Foi isso que ela me prometeu, mas isso foi anteriormente. Antes de as coisas mudarem.
Pelo aspecto transtornado do rosto dela, Jimmy percebeu que o que quer que se tivesse passado entre Dolly e a patroa era responsável pelo desânimo que ele lhe pressentira anteriormente.
— Que coisas, Doll? O que foi que mudou?
Ela estava relutante em repetir a história, bastava ver a maneira como se esquivava ao seu olhar para perceber isso, mas Jimmy fazia questão de saber. Era uma atitude egoísta, mas amava-a, ia casar-se com ela e recusava-se a deixá-la sossegada. Ficou sentado em silêncio, deixando claro que esperaria o tempo que fosse preciso, e Dolly deve ter percebido que ele não aceitaria um não como resposta, porque finalmente soltou um suspiro.
— Uma mulher meteu-se entre nós duas, Jimmy, uma mulher poderosa. Ela embirrou comigo e não descansou enquanto não me estragou a vida. — Desviou o olhar da janela e fitou-o. — Eu estava completamente sozinha. Não tive hipóteses contra a Vivien.
— A Vivien? A da cantina? Mas eu julgava que vocês eram amigas?
— Também eu — disse Dolly, com um sorriso pesaroso. — E éramos, acho eu, pelo menos no princípio.
— O que foi que se passou?
Dolly teve um arrepio por baixo da blusa branca fina e lançou uma olhadela à mesa; havia uma certa contenção no seu semblante, e Jimmy interrogou-se se o que estava prestes a contar-lhe não seria para ela motivo de vergonha.
— Eu fui devolver-lhe uma coisa a casa, um fio de ouro que ela tinha perdido, mas quando toquei à campainha, não a apanhei em casa. O marido convidou-me a entrar... Eu já te falei dele, Jimmy, é o tal escritor. Ele convidou-me a entrar e a esperar por ela, e eu assim fiz. — Baixou a cabeça, sacudindo ligeiramente as ondas do cabelo. — Talvez tivesse feito mal, não sei, porque quando a Vivien chegou e me viu, ficou furiosa. Eu vi perfeitamente pela cara dela, estava desconfiada de que nós... Bom, tu podes imaginar. Eu tentei explicar-me, estava segura de que conseguiria fazê-la ver a razão, mas depois... — Voltou a sua atenção uma vez mais para a janela e uma ténue réstia de sol incidiu-lhe na maçã do rosto alta. — Bom... digamos que estava enganada.
O coração de Jimmy entrara em sobressalto; sentia indignação, mas também medo.
— O que foi que tu fizeste, Doll?
A garganta dela mexeu-se, um ligeiro movimento ascendente e descendente como se engolisse em seco, e Jimmy receou que ela fosse começar a chorar. Todavia, não chorou, virou-se de frente para ele e a expressão dela, tão triste, tão magoada, fez que qualquer coisa no seu íntimo se quebrasse. A voz dela pouco mais era do que um suspiro.
— Ela inventou mentiras horríveis a meu respeito, Jimmy. Fez-me passar por falsa diante do marido, mas depois, não contente com isso, foi dizer a Lady Gwendolyn que eu era uma ladra e indigna de confiança.
— Mas isso, isso... — Ele estava estupefacto, escandalizado por ela. — Isso é desprezível.
— O pior de tudo, Jimmy, é que a mentirosa é ela. Há meses que tem um caso ilícito com um homem. Lembras-te de na cantina ela te ter falado no tal médico amigo dela?
— O indivíduo que dirige o hospital das crianças?
— É tudo fachada... Quero eu dizer, o hospital é mesmo um hospital e o médico também, mas é amante dela. Ela usa isso como pretexto para não levantar suspeitas sempre que vai visitá-lo.
Dolly estava a tremer, reparou Jimmy, e quem lhe poderia levar a mal por isso? Quem não haveria de ficar transtornado ao descobrir que uma amiga a atraiçoara de uma forma tão cruel.
— Lamento imenso, Dolly.
— Não é caso para teres pena de mim — disse ela, esforçando-se tanto por aparentar coragem que lhe fez doer a alma. — É duro, mas eu prometi a mim própria que não iria permitir que ela me rebaixasse.
— Assim é que é, linda menina!
— Só que...
A empregada chegou para levantar os pratos, olhando de relance de um para o outro enquanto fingia que se atrapalhava com a faca de Jimmy. Julgava que estavam a discutir, apercebeu-se ele; o facto de se terem quedado em silêncio ao darem pela aproximação dela, de Dolly ter virado apressadamente a cabeça à medida que Jimmy se esforçava por responder à conversa fiada do costume da empregada («O Big Ben não se atrasou um segundo que fosse, sabia?», «Desde que a Catedral de São Paulo continue de pé.»). Agora, olhava furtivamente para Dolly, que fazia o possível por esconder o rosto. Mas Jimmy conseguia ver-lhe o perfil e o lábio inferior começara a tremer-lhe.
— É tudo — disse ele, tentando despachar a empregada. — É tudo, obrigado.
— Não querem pudim? Eu posso dizer-vos...
— Não, não, é tudo.
Ela fungou:
— Como queiram — e deu meia-volta, rodando sobre os calcanhares.
— Dolly? — chamou-a Jimmy quando se viram uma vez mais a sós. — Estavas a dizer alguma coisa?
Os dedos faziam uma ligeira pressão contra os lábios para conter as lágrimas.
— É só que eu gostava muito de Lady Gwendolyn, Jimmy. Gostava dela como se fosse minha mãe. E quando penso que ela partiu deste mundo convencida de que eu era uma mentirosa e ladra... — Interrompeu-se e as lágrimas começaram a deslizar-lhe pelo rosto.
— Pronto, já passou. Vá lá, por favor, não chores. — Chegou a cadeira mais para perto dela, secando com um beijo cada nova lágrima que brotava. — Lady Gwendolyn sabia que tu gostavas muito dela. Tu todos os dias lhe davas provas disso mesmo. E sabes uma coisa?
— O quê?
— Tens razão. Não vais deixar que a Vivien te rebaixe. E eu vou encarregar-me de que assim seja.
— Oh, Jimmy. — Pôs-se a brincar com o botão solto da camisa dele, contorcendo a linha que o segurava. — É uma atitude muito generosa da tua parte, mas como? Como é que eu alguma vez serei capaz de derrotar uma pessoa como ela?
— Vivendo uma vida longa e feliz.
Dolly pestanejou.
— Comigo. — Jimmy sorriu, prendendo-lhe uma madeixa de cabelo atrás da orelha. — E a melhor maneira de a derrotarmos é casarmos um com o outro, amealharmos dinheiro e irmos viver para o campo ou para a beira-mar, como tu preferires, como sempre foi o nosso sonho; vamos derrotá-la vivendo felizes para sempre. — Beijou-lhe a ponta do nariz. — Não é verdade?
Passou um instante e, por fim, ela assentiu com a cabeça devagar, pouco convencida, ao que quis parecer a Jimmy.
— Não é verdade, Dolly?
Desta feita, ela sorriu. Um sorriso ligeiro, porém, que se esvaiu tão depressa quanto tinha surgido. Ela soltou um suspiro, apoiando a face na mão.
— Não julgues que é ingratidão da minha parte, Jimmy. Eu só queria que pudéssemos fazer isso o quanto antes, irmo-nos já embora e começar uma nova vida. Às vezes penso que é a única forma de me sentir melhor.
— Não tardará muito, Doll. Tenho tido imenso trabalho, não há dia que não tire fotografias, e o meu editor está muito confiante quanto ao meu futuro. Creio que...
Dolly sufocou um grito e agarrou-lhe no pulso. Jimmy ficou a meio da frase.
— Fotografias! — exclamou ela, quase sem fôlego. — Oh, Jimmy, tu acabaste de me dar uma ideia, uma maneira de podermos ter tudo, já... a beira-mar e tudo o mais de que tens estado a falar.... e, ao mesmo tempo, podemos dar uma lição à Vivien. — Os olhos brilhavam-lhe. — É isso que tu queres, não é? Irmo-nos embora os dois, começarmos uma nova vida?
— Tu sabes que sim, mas o problema é o dinheiro, Doll, eu não tenho...
— Não estás a prestar atenção ao que te digo. Não percebes que é exactamente isso que te estou a dizer, eu sei como é que havemos de arranjar dinheiro.
Os olhos dela estavam agora fixos nele, refulgentes, quase eufóricos, e, apesar de se ter escusado a contar-lhe o resto da ideia, algo no íntimo dele começou a esmorecer. Jimmy recusou-se a permitir que assim fosse. Não iria deixar que nada estragasse um dia tão feliz.
— Tu ainda te lembras — disse ela, tirando-lhe um cigarro do maço em cima da mesa — de dizeres que por mim serias capaz de tudo?
Jimmy observou-a a acender o fósforo. Lembrava-se de facto; e falara a sério. Todavia, qualquer coisa no brilho dos olhos dela, nos dedos a atrapalharem-se com a caixa dos fósforos, deixou-o com maus presságios. Não sabia o que Dolly se preparava para dizer, apenas que tinha a forte impressão de que preferia não ouvir.
Dolly puxou uma fumaça demorada do cigarro, expirando em seguida uma longa baforada.
— Vivien Jenkins é uma mulher muito rica, Jimmy. Isto, para além de ser uma mentirosa e uma trapaceira que fez de tudo e mais alguma coisa para me prejudicar, para virar as pessoas que me eram queridas contra mim e ficar com a herança que Lady Gwendolyn me prometera. Mas eu conheço-a e sei que tem um ponto fraco.
— Hã?
— Um marido dedicado que ficaria de coração desfeito se descobrisse que ela o anda a enganar.
Jimmy assentiu com a cabeça como se fosse uma máquina programada para reagir assim.
— Eu sei que pode parecer absurdo, Jimmy — prosseguiu Dolly —, mas ouve-me até ao fim. E se alguém comprasse uma fotografia incriminadora, em que a Vivien aparecesse com outro homem?
— Então, e depois? — A voz saía-lhe tão sumida que nem parecia dele.
Dolly olhou para ele, um sorriso nervoso a bailar-lhe nos lábios.
— Tenho a impressão de que ela pagaria bom dinheiro para ficar com essa fotografia. Apenas o suficiente para um jovem casal de namorados, que bem merece um descanso, poder ir para longe daqui.
Nesse momento, enquanto se esforçava por tentar encontrar um sentido no que Dolly lhe dizia, ocorreu a Jimmy que tudo aquilo não passava de mais uma das brincadeiras dela. Que, a todo o instante, ela iria despir a personagem, desatar na gargalhada e dizer: «Jimmy, é claro que eu estou a brincar! Por quem me tomas?»
Mas não despiu. Em lugar disso, estendeu o braço por cima do assento de cabedal, pegou-lhe na mão e aflorou-lhe um beijo.
— Dinheiro, Jimmy — sussurrou-lhe ela, segurando-lhe a mão contra a face quente. — Tal como tu costumavas dizer. Dinheiro suficiente para nos casarmos e vivermos felizes para sempre... Não foi isso que sempre quiseste?
Era, claro, ela bem sabia que sim.
— Ela merece, Jimmy. Tu próprio disseste isso... Ela merece pagar pelo que fez. — Dolly puxou uma fumaça, falando apressadamente através do fumo. — Foi ela quem me convenceu a romper contigo, sabias? Envenenou-me contra ti, Jimmy. Não descansou enquanto não me afastou de ti. Será possível que não vejas o sofrimento que ela nos causou?
Jimmy não sabia o que sentir. A sugestão dela repugnava-o. E ainda o repugnava mais não ter coragem de lhe dizer isso mesmo.
— E imagino que queres que seja eu a tirar essa tal fotografia, é isso?
Dolly sorriu-lhe.
— Ah, não, Jimmy, não é nada disso. Isso seria deixar as coisas muito ao sabor do acaso, seria demasiado arriscado esperar até os apanharmos em flagrante. A minha ideia é muito mais simples do que essa, uma brincadeira de crianças, em comparação.
— Bom, então — disse ele, o olhar fixo no rebordo metálico do tampo da mesa. — O que é, Doll? Conta-me lá.
— Quem vai tirar a fotografia sou eu. — Deu uma puxadela ao botão e este escorregou-lhe dos dedos. — E tu vais aparecer nela.