Londres, 2011
A viagem pela auto-estrada decorreu sem problemas e, às onze da manhã, Laurel já percorria Euston Road, à procura de um lugar para estacionar. Encontrou um junto à estação da linha interurbana e aproveitou logo para lá deixar o Mini verde. Perfeito — a Biblioteca Britânica ficava a dois passos dali e ela já avistara o toldo azul e preto de um Caffè Nero na esquina. Ao fim de uma manhã inteira sem cafeína, o cérebro de Laurel ameaçava derreter.
Vinte minutos mais tarde, uma Laurel muito mais concentrada atravessava o átrio cinzento e branco da biblioteca em direcção ao Gabinete de Registo do Leitor. A jovem com um crachá que dizia «Bonny» não deu mostras de a reconhecer e, depois de ter apanhado um vislumbre do seu reflexo ao transpor as portas de vidro, Laurel tomou isso por um elogio. Depois de ter passado uma noite às voltas na cama, os seus pensamentos a enredarem-se de tanto cogitar acerca do que a mãe poderia ter roubado a Vivien Jenkins, tornara a deixar-se adormecer nessa manhã e a conceder apenas dez minutos a si própria em Greenacres entre sair da cama e enfiar-se no automóvel. A sua rapidez fora louvável, mas não podia alegar que a transição a deixara nas melhores condições. Despenteou o cabelo para lhe dar um pouco de vida, e quando Bonny lhe perguntou: «Posso ajudá-la?», Laurel respondeu-lhe:
— Espero bem que sim, minha querida. — Mostrou-lhe o papel em que Gerry anotara o seu número de leitora. — Creio que deverá haver um livro reservado para mim na Sala de Leitura de Humanidades.
— Deixe-me então verificar — disse-lhe Bonny, digitando qualquer coisa no teclado. — Vou só precisar de um documento de identificação e de um comprovativo de morada para concluir a sua inscrição.
Laurel entregou-lhe ambos e Bonny sorriu-lhe.
— Laurel Nicolson. Tal como a actriz.
— Sim — assentiu Laurel. — Nem mais.
Bonny tratou do cartão de leitor e encaminhou Laurel na direcção da escadaria em curva.
— A sala que pretende fica no segundo piso. Dirija-se directamente ao balcão; o livro já lá deverá estar à sua espera.
E ela assim fez. Isto é, encontrou um cavalheiro extremamente prestável, com um colete de tricô vermelho e uma barba branca emaranhada, à sua espera. Laurel explicou do que andava à procura, entregou-lhe o impresso que lhe havia sido dado no rés-do-chão e, num abrir e fechar de olhos, ele dirigiu-se às prateleiras e depositou um volume fino forrado a cabedal preto em cima do balcão. Laurel leu o título em voz baixa e sentiu um arrepio de entusiasmo: Henry Jenkins. Vida, Amor e Perda de Um Escritor.
Encontrou um lugar vago a um canto e instalou-se, abrindo a capa e inalando o glorioso aroma poeirento das infinitas possibilidades encerradas entre aquelas páginas. Não era um livro particularmente extenso, fora publicado por uma editora de que Laurel nunca ouvira falar e tinha um aspecto nitidamente pouco profissional — qualquer coisa no tamanho e tipo dos caracteres, na ausência de margens, e nas fotografias, escassas e de fraca reprodução; e, como se não bastasse, parecia dever bastante da sua extensão a excertos dos romances de Henry Jenkins. Mas era um ponto de partida, e Laurel estava desejosa de começar. Percorreu o índice e o seu coração pôs-se a bater mais depressa quando ela encontrou o capítulo intitulado «Vida de casado», que despertara a sua atenção quando o vira na listagem da Internet.
Laurel, porém, não seguiu directamente para a página 97. Nos últimos tempos, de cada vez que fechava os olhos, a silhueta escura do desconhecido de preto surgia diante dela, ofuscando-lhe a retina, enquanto subia o caminho de acesso banhado de sol. Estava agora ali a sua oportunidade de ficar a saber mais a respeito dele, de acrescentar cor e pormenor à silhueta que a fazia retrair-se, eventualmente até descobrir o motivo para o acto que a mãe cometera naquele dia. Anteriormente, Laurel já sentira receio, ao procurar Henry Jenkins na Internet, mas aquilo, aquele livro de aparência insignificante, amedrontava-a de uma maneira diferente. As informações que continha haviam sido publicadas há muito tempo (em 1963, constatou, ao verificar a página dos direitos de autor), o que significava que, tendo em conta o desgaste natural, o mais provável seria haver muito poucos exemplares em circulação, a maioria perdida em locais sombrios e pouco visitados. Aquele exemplar em particular passara décadas escondido entre quilómetros e quilómetros de outros livros esquecidos; se Laurel encontrasse alguma coisa lá dentro que não fosse do seu agrado, bastar-lhe-ia tornar a fechá-lo e devolvê-lo. E ficava o caso arrumado. Hesitou, uma breve hesitação, e encheu-se de coragem. Com os dedos cheios de formigueiro, apressou-se a abri-lo no prólogo. Com uma profunda inspiração de súbito e estranho entusiasmo, começou a ler acerca do desconhecido que aparecera no acesso a sua casa.
Quando Henry Ronald Jenkins tinha seis anos, viu a polícia agredir um homem da sua aldeia no Yorkshire, quase até à morte, na High Street. O homem, murmuraram entre si os aldeões reunidos à sua volta, residia em Denaby, uma aldeia próxima — um «inferno na terra» situado no vale de Crags e considerada por muitos a «pior aldeia inglesa». O jovem Jenkins nunca haveria de esquecer o sucedido e, no seu romance de estreia, A Misericórdia dos Diamantes Negros, publicado em 1928, deu vida a uma das personagens mais notáveis da ficção britânica do período entre guerras, um homem de uma verdade e dignidade surpreendentes, cuja situação dramática gerou enorme simpatia quer por parte dos leitores, quer da crítica.
No primeiro capítulo d’A Misericórdia dos Diamantes Negros, polícias com botas munidas de protectores de aço atacam o desafortunado protagonista, Walter Harrison, um indivíduo analfabeto, mas trabalhador, cujos desgostos a nível pessoal o impelem a manifestar-se em prol da mudança social e que acabam por conduzi-lo à sua morte prematura. Jenkins referiu-se ao acontecimento verídico e à sua profunda influência no seu trabalho — «e na minha alma» — no decorrer de uma entrevista radiofónica que, em 1935, deu à BBC: «Nesse dia, enquanto via os polícias fardados a desancarem o homem ao pontapé, tomei consciência de que na nossa sociedade existem os fracos e os poderosos, e que a bondade não constitui um factor determinante em relação a qual dos campos se pertence.» Este tema haveria de encontrar expressão em muitos dos romances posteriores de Henry Jenkins. A Misericórdia dos Diamantes Negros foi considerado uma obra-prima e, graças às críticas abonatórias aquando do lançamento, tornou-se uma sensação editorial. As suas primeiras obras, em particular, foram elogiadas pela sua verosimilitude e pelos retratos impiedosos da vida da classe operária que apresentavam, incluindo descrições intransigentes da pobreza e da violência física.
O próprio Jenkins também fora criado numa família da classe operária. O pai era um capataz subalterno nas minas de carvão Fitzwilliams; era um indivíduo austero que abusava do álcool — «mas só aos sábados» — e que dirigia a família «como se fossem os seus subordinados nas minas». Jenkins foi o único dos seis irmãos a abandonar a aldeia e as expectativas do seu nascimento. Acerca dos pais, Jenkins afirmou: «A minha mãe era uma mulher bonita, mas também vaidosa e desiludida com a vida que lhe calhara em sorte; não fazia ideia, pequena ou concreta que fosse, do que fazer para melhorar a sua situação, e as frustrações tornaram-na amarga. Tinha o hábito de irritar o meu pai, atormentando-o com a primeira coisa que lhe viesse à cabeça; ele era um homem de grande força física, mas muito fraco sob outros aspectos para ser casado com uma mulher como ela. Não se podia dizer que o nosso lar fosse feliz.» Quando o entrevistador da BBC lhe perguntara se as vidas dos pais lhe tinham proporcionado material para os seus romances, Jenkins rira-se e dissera: «Mais do que isso, eles deram-me um claro exemplo da existência a que eu queria mais do que tudo fugir.»
E fugiu mesmo. Após um início de vida tão humilde, Jenkins, graças à sua inteligência precoce e tenacidade, conseguiu livrar-se das minas de carvão e tomar o mundo literário de assalto. Quando o The Times lhe pediu que falasse sobre a sua ascensão vertiginosa, Jenkins concedeu o mérito a um professor primário da escola da sua aldeia, Herbert Taylor, por ter reconhecido as suas aptidões intelectuais, ainda em criança, e o ter encorajado a concorrer a bolsas de estudo para alguns dos melhores colégios particulares. Aos dez anos, Jenkins foi admitido na pequena mas prestigiada Escola Nordstrom, no Oxfordshire. Abandonou a casa paterna em 1911, apanhando o comboio sozinho para uma viagem rumo ao Sul desconhecido. Henry Jenkins nunca mais regressaria ao Yorkshire.
Enquanto alguns antigos alunos de colégios particulares, sobretudo os alunos provenientes de um meio social diferente do da maioria, falam de uma experiência escolar atroz, Jenkins nunca se deixou tentar pelo assunto, limitando-se a afirmar: «Ser admitido num colégio como o Nordstrom mudou o rumo da minha vida no melhor sentido possível.» O director da instituição, Jonathan Carlyon, disse de Jenkins: «Era um aluno extraordinariamente aplicado. Passou os exames finais com notas brilhantes e entrou na Universidade de Oxford no ano seguinte para frequentar a faculdade da sua primeira escolha.» Embora reconhecendo-lhe a inteligência, o seu amigo de Oxford e romancista, tal como ele, Allen Hennessy, mencionou jocosamente uma ampla panóplia de talentos por onde escolher: «Nunca conheci um homem mais carismático do que o Jenkins», disse ele. «Se havia alguma rapariga com quem engraçávamos, descobríamos, enquanto o diabo esfregava um olho, que não era aconselhável apresentá-la ao Harry Jenkins. Bastava ele presenteá-la com um dos seus famosos olhares, para as nossas hipóteses se desfazerem em fumo.» O que não é o mesmo que dizer que Jenkins abusasse dos seus supostos poderes: «Ele era bem-parecido e encantador, apreciava a atenção feminina, mas nunca foi um playboy», opinou Roy Edwards, o editor de Jenkins na Macmillan.
Fosse qual fosse o efeito que Jenkins exercesse sobre o sexo oposto, a sua vida pessoal não se pautou pelas mesmas facilidades que a sua carreira de romancista. Em 1930, viu terminar o seu noivado com a Menina Eliza Holdstock, sucedido sobre o qual se recusou a entrar em pormenores publicamente, até finalmente se casar com Vivien Longmeyer, sobrinha do seu professor da Nordstrom, em 1938. Apesar dos vinte anos de diferença de idade entre ambos, Jenkins considerava este casamento «a coroa de glória da minha vida», e o casal instalou-se em Londres, onde desfrutou de uma vida doméstica feliz no ano prévio ao início da Segunda Guerra Mundial. Nos meses que antecederam a declaração de guerra, Jenkins começou a trabalhar para o Ministério da Informação; era um cargo no qual ele se destacava, facto que não constituiu surpresa para quem o conhecia bem. Tal como Allen Hennessy declarou: «Tudo o que [Jenkins] fazia, fazia na perfeição. Era atlético, inteligente, encantador... O mundo foi feito para homens como ele.»
Por muito que isto seja verdade, no entanto, o mundo nem sempre é generoso para homens como Jenkins. A morte da sua jovem esposa durante um bombardeamento durante as últimas semanas dos ataques aéreos a Londres causou-lhe um desgosto tão grande que a vida de Jenkins começou a descarrilar. Nunca mais publicou nenhum livro; na realidade, permanece um mistério se terá continuado a escrever ou não, mais um a juntar a tantos outros pormenores da última década da sua vida. Quando faleceu, em 1961, a estrela de Henry Ronald Jenkins declinara a tal ponto que o acontecimento quase passou despercebido nos mesmos jornais que outrora o haviam apelidado de «génio». No início da década de 1960, correu o rumor de que Jenkins era responsável por actos de indecência pública que lhe granjearam a alcunha de «Intruso dos Piqueniques de Suffolk»; todavia, estas alegações nunca foram comprovadas. Independentemente de Jenkins ser ou não acusado de tal obscenidade, o facto de este homem, outrora grandioso, ter sido alvo de semelhante especulação constitui um indício claro da sua queda em desgraça. O rapaz a quem o professor em tempos se referira como «capaz de alcançar tudo aquilo a que se propõe», morreu sem nada e sem ninguém. A questão que permanece em aberto para os admiradores de Henry Jenkins é explicar como um homem que tivera tudo poderia ter conhecido tal fim; um fim que apresenta nítidas similitudes com o da sua personagem Walter Harrison, cujo destino também contemplou uma morte discreta e solitária ao fim de uma vida em que o amor se entretecia com a perda.
Laurel recostou-se na cadeira da biblioteca e soltou o suspiro que estivera a conter. A biografia não continha muito que ela não tivesse descoberto já através do Google, e o alívio foi extraordinário. Sentiu-se cinco quilos mais leve. Melhor ainda, apesar da referência ao fim vergonhoso de Jenkins, não houvera qualquer menção a Dorothy Nicolson ou a uma quinta chamada Greenacres. Graças a Deus. Laurel não tivera consciência plena de até que ponto estivera nervosa com receio do que poderia encontrar. Verificou que a coisa mais desconcertante relativamente ao prólogo era o retrato que tecia de um homem que subira na vida a pulso e cujo êxito não era mais do que o resultado de trabalho árduo e talento considerável. Laurel estivera com certa esperança de desvendar qualquer coisa que justificasse o sentimento de ódio acérrimo que ganhara ao homem que lhes aparecera em casa.
Interrogou-se se se poderia dar o caso de o biógrafo se ter enganado. Era possível; tudo era possível. Contudo, apesar de o seu ânimo se elevar momentaneamente, Laurel revirou os olhos. Francamente, a sua própria arrogância não conhecia limites — ter um palpite era uma coisa, agora presumir que sabia mais sobre Henry Jenkins do que o indivíduo que investigara e escrevera a história da sua vida, já era outra completamente diferente.
Havia uma fotografia de Henry Jenkins no frontispício do livro e ela folheou-o até a encontrar, decidida a olhar para lá das carapaças ameaçadoras com que os seus preconceitos o tinham revestido e a ver o escritor carismático e encantador descrito no prólogo. Era mais novo naquela fotografia do que na que Laurel vira on-line e teve de reconhecer que era atraente. Na verdade — ocorreu-lhe à medida que lhe observava as feições cinzeladas —, de certa forma, fazia-lhe lembrar um colega actor por quem em tempos estivera terrivelmente apaixonada. Tinham sido os dois escolhidos para o elenco de uma peça de Tchékov, nos anos 60, e tinham-se envolvido num romance ardente e tempestuoso. Não dera resultado — os romances entre actores raramente davam —, mas, enquanto durara, fora intenso e fascinante.
Laurel fechou o livro. Sentia as faces quentes e uma doce sensação nostálgica a brotar do seu íntimo. Ora esta. Isto não estava nos seus planos. E bastante desconfortável também, tendo em conta as circunstâncias. Engolindo um pequeno nó de inquietação, Laurel recordou-se do seu objectivo e encaminhou-se para a página 97. Após uma respiração profunda para se concentrar, começou a ler o capítulo intitulado «Vida de casado».
Se até ao momento Henry Jenkins fora infeliz nos seus relacionamentos íntimos, as coisas estavam destinadas a mudar para melhor. Na Primavera de 1938, o antigo director do seu colégio, o Sr. Jonathan Carlyon, convidou Jenkins a regressar à Escola Nordstrom e a discursar perante os alunos do último ano acerca das agruras da vida literária. Foi aí, enquanto dava um passeio pela propriedade ao entardecer, que Jenkins conheceu a sobrinha do director, Vivien Longmeyer, então com dezassete anos e uma autêntica beleza. Jenkins escreveu sobre este encontro em A Musa Relutante, um dos seus romances de maior êxito e que representa um afastamento claro dos temas cruentos das suas primeiras obras.
O que terá Vivien Jenkins sentido ao ver os pormenores do seu namoro e primeiros tempos de casada relatados de uma forma tão pública permanece envolto em mistério, tal como, aliás, a própria mulher. A jovem Sr.ª Jenkins mal começara a deixar a sua marca no mundo quando a sua vida foi tragicamente ceifada durante os bombardeamentos aéreos a Londres. O que se sabe, graças à clara adoração do marido pela sua «musa relutante», é que ela era uma mulher de extraordinária beleza e encanto, a respeito de quem os sentimentos de Jenkins ficaram desde logo claros.
Em seguida, surgia um excerto letárgico, retirado d’A Musa Relutante, no qual Henry Jenkins descrevia em termos arrebatadores o encontro e o namoro com a sua jovem noiva. Uma vez que ainda recentemente sofrera ao longo de todo o livro, Laurel passou à frente, recuperando o fio à meada no momento em que o biógrafo voltava a concentrar a sua atenção nos factos da vida de Vivien:
Vivien Longmeyer era filha da única irmã de Jonathan Carlyon, Isabel, que fugira de Inglaterra com um soldado australiano após a Primeira Guerra Mundial. Neil e Isabel Longmeyer instalaram-se numa pequena comunidade de Tamborine Mountain, no Sudeste de Queensland, cuja sobrevivência tinha por base a madeira de cedro, e Vivien foi a terceira dos quatro filhos do casal. Durante os primeiros oito anos da sua vida, Vivien Longmeyer levou uma modesta existência colonial até ser enviada para Inglaterra, a fim de ser educada pelo tio materno na escola que ele fundara nas grandes propriedades ancestrais da família.
O primeiro relato sobre Vivien Longmeyer chega-nos por intermédio da Menina Katy Ellis, uma conceituada educadora, que foi encarregue de acompanhar a criança durante a travessia entre a Austrália e a Inglaterra, em 1929. Katy Ellis faz menção à criança nas suas memórias, Nascida para Ensinar, sugerindo que foi este encontro com a criança a centelha que instigou nela o interesse de toda uma vida pela educação dos jovens que passavam por situações traumáticas.
«Quando me pediu que acompanhasse a menina, a tia australiana avisou-me desde logo de que a criança era simplória e que eu não deveria ficar surpreendida se ela decidisse não comunicar comigo durante a viagem. Eu era jovem e, por conseguinte, ainda não estava preparada para censurar a senhora por uma falta de compaixão que raiava a insensibilidade, mas tinha confiança suficiente nas minhas impressões para não me deixar intimidar pela avaliação dela. Vivien Longmeyer não era simplória, bastava-me olhar para ela para perceber isso; todavia, eu também compreendia o que fora que levara a tia a descrevê-la assim. A Vivien tinha um hábito, que chegava a ser perturbador, de passar muito tempo sentada, o rosto — não inexpressivo, longe disso — radiante de pensamentos eléctricos, mas virados para o seu íntimo e de uma forma que fazia que quem a estivesse a observar se sentisse excluído.
«Eu própria fora uma criança imaginativa, muitas vezes repreendida pelo meu pai, um ministro protestante severo, por sonhar acordada e escrever nos meus diários — um hábito que mantenho até hoje —, e, a mim, parecia-me muito claro que a Vivien possuía uma vida interior animada na qual desaparecia. Mais, parecia-me natural e compreensível que uma criança que sofrera a perda simultânea da sua família, do seu lar e do país onde nascera se esforçasse necessariamente por salvaguardar as certezas da identidade que lhe restassem, por mais pequenas que estas fossem, interiorizando-as.
«No decorrer da longa viagem marítima, consegui ganhar a confiança da Vivien, ao ponto de estabelecer com ela uma relação que se manteve por muitos anos. Correspondemo-nos por carta com afectuosa regularidade até à sua morte trágica e prematura durante a Segunda Guerra Mundial, e, não obstante eu nunca a ter ensinado ou aconselhado em qualquer competência oficial, apraz-me dizer que ficámos amigas. A Vivien não tinha muitos amigos: era o género de pessoa por cujo amor os outros ansiavam, mas que não estabelecia relações com ligeireza ou facilidade. Olhando em retrospectiva, considero um ponto alto da minha carreira ter conseguido que ela se abrisse comigo em pormenor a respeito do mundo privado que construíra para si própria. Era um local ‘seguro’ onde ela se recolhia sempre que se sentia assustada ou sozinha, e eu tive a honra de poder espreitar para lá do véu.»
A descrição de Katy Ellis do recolhimento de Vivien num «mundo privado» enquadra-se em relatos da Vivien adulta: «Era atraente, o tipo de pessoa para quem dava gosto olhar, mas de quem nunca se chegava a poder dizer que se conhecia a fundo»; «Ela dava-nos a sensação de que era de longe mais profunda do que poderia parecer à primeira vista»; «Sob um dado aspecto, era a sua própria auto-suficiência que a tornava magnética — ela dava a impressão de não precisar das outras pessoas». Talvez tivesse sido o «ar estranho, quase etérico» de Vivien a atrair Henry Jenkins naquela noite na Escola Nordstrom. Ou talvez tivesse sido antes o facto de ela, tal como ele, ter sobrevivido a uma infância marcada pela violência trágica e de, pouco depois, ter sido enviada para um mundo habitado por pessoas provenientes de meios completamente alheios ao dela. «Nós somos ambos intrusos, cada um a seu modo», disse Henry Jenkins à BBC. «O nosso lugar é ao lado um do outro. Eu tive esta certeza mal a vi pela primeira vez. Vê-la avançar pela nave na igreja em direcção a mim, sublime com o seu vestido de renda branca, foi, de certa forma, a conclusão de uma viagem que começou com a minha chegada à Escola Nordstrom.»
Surgia então uma fotografia pouco nítida do casal, tirada no dia do casamento à saída da capela do colégio. Vivien tinha o olhar fixo em Henry, o véu de renda a ondular à brisa, enquanto ele, de braço dado com a noiva, fitava directamente a objectiva. Os convidados reunidos à volta de ambos nos degraus da capela a abençoá-los com arroz tinham uma aparência feliz, todavia, a fotografia despertou tristeza em Laurel. As fotografias antigas costumavam produzir esse efeito nela; afinal de contas, era filha da sua mãe e havia qualquer coisa que dava seriamente que pensar nos rostos sorridentes de pessoas que ainda não faziam ideia do que o destino lhes reservava. Ainda para mais num caso como este, em que Laurel sabia exactamente os horrores que se escondiam ao virar da esquina. Testemunhara em primeira mão a morte violenta que Henry Jenkins haveria de sofrer, tal como sabia que a jovem Vivien Jenkins, tão esperançosa na fotografia do seu casamento, haveria de morrer três escassos anos após esta ter sido tirada.
Não restava dúvida de que Henry Jenkins adorava a esposa ao ponto da adulação. Ele não fazia segredo do quanto ela significava para ele, chamando-lhe alternadamente a sua «graça» e a sua «salvação», expressando o sentimento, em mais do que uma ocasião, de que, sem ela, a sua vida não seria digna de ser vivida. Estas suas alegações acabariam por se revelar tristemente premonitórias, uma vez que, após a morte de Vivien num bombardeamento aéreo ocorrido a 23 de Maio de 1941, o mundo de Henry Jenkins entrou em colapso. Apesar de estar ao serviço do Ministério da Informação e de ter informações pormenorizadas a respeito da elevada mortalidade entre os civis em resultado dos bombardeamentos, Jenkins sentiu-se incapaz de aceitar que a morte da mulher pudesse advir de uma causa tão mundana. Em retrospectiva, as alegações algo extravagantes de Jenkins — de que houvera jogo sujo na morte de Vivien, de que ela fora aliciada por vigaristas suspeitos, que de outro modo nunca teria visitado o local atingido pelos bombardeamentos aéreos — foram os primeiros indícios de uma loucura que acabaria por levar a melhor sobre ele. Recusou-se a aceitar a morte da esposa como um simples acidente de guerra, jurando «apanhar os responsáveis e levá-los perante a justiça». Jenkins foi hospitalizado na sequência de um esgotamento nervoso em meados da década de 1940, mas, infelizmente, a mania haveria de se manter até ao fim da vida, fazendo-o regressar às franjas da sociedade civilizada e, por fim, à sua morte solitária, em 1961, um homem empobrecido e desfeito.
Laurel fechou abruptamente o livro como se quisesse encurralar o assunto entre as capas. Recusava-se a continuar a ler a respeito da certeza de Henry Jenkins de que as causas da morte da mulher não eram tão simples quanto pareciam, e muito menos sobre a sua jura de encontrar o responsável. Tinha a sensação bastante premente e desagradável de que ele acabara por fazer isso mesmo e que ela, Laurel, testemunhara o resultado. Porque a mãe, com o seu «plano perfeito», era a pessoa que Henry Jenkins culpava pela morte da mulher, não era? A «vigarista suspeita» que tinha tentado tirar qualquer coisa a Vivien, que havia sido responsável por atrair Vivien ao local da sua morte, um sítio onde, de outro modo, ela jamais teria posto os pés.
Com um arrepio involuntário, Laurel espreitou por cima do ombro. Subitamente, sentia-se exposta, como se houvesse olhos ocultos a observá-la. E o estômago, também, era como se se tivesse desfeito em líquido. Era culpa, apercebeu-se ela, culpa por associação. Pensou na mãe no hospital, o arrependimento que expressara, a conversa de «tirar» qualquer coisa, de estar grata por ter tido uma «segunda oportunidade» — eram estrelas, todas elas, que surgiam no céu nocturno; Laurel não gostava dos padrões que começava a discernir, mas não podia negar que lá estavam.
Baixou o olhar para a capa aparentemente inócua da biografia. A mãe tinha todas as respostas, mas não fora a única; Vivien também as tivera. Até àquele momento, Vivien fora um simples murmúrio — um rosto sorridente numa fotografia, um nome na capa de um velho livro, uma fantasia que escorregara através das frestas da história e caíra no esquecimento.
Mas ela era importante.
Laurel teve a súbita convicção ardente de que fosse o que fosse que tivesse corrido mal no plano de Dorothy se prendia directamente com Vivien. Que algo intrínseco ao carácter da outra mulher fazia dela a pior pessoa com quem alguém se podia envolver.
O relato de Katy Ellis sobre a infância de Vivien era bastante benévolo, mas Kitty Barker descrevera-lhe uma mulher «arrogante», uma «péssima influência», uma pessoa superior e fria. Teria o sofrimento na infância de Vivien quebrado alguma coisa dentro dela, endurecido o seu carácter e acabado por a transformar no género de mulher — bonita e rica — cujo poder residia precisamente na sua frieza, na sua interiorização, na sua inacessibilidade? As informações na biografia de Henry Jenkins, a incapacidade de ele conviver com a morte dela e de ter passado décadas à procura dos responsáveis, sugeriam, indubitavelmente, uma mulher cuja natureza demonstrava ser muito sedutora para os outros.
Com um leve sorriso a despontar-lhe nos lábios, Laurel tornou a abrir a biografia e foi folheando as páginas até encontrar o que procurava. Ali estava. Atrapalhando-se um pouco com a caneta de tanto que era o seu entusiasmo, anotou o nome «Katy Ellis» e o título das memórias, Nascida para Ensinar. Vivien poderia não ter tido — ou mesmo precisar de — muito amigos, mas escrevera cartas a Katy Ellis, cartas em que (seria esperar de mais?) talvez lhe tivesse confessado as suas verdades mais profundas. Havia boas probabilidades de essas cartas ainda existirem algures; muitas pessoas não guardavam a correspondência, mas Laurel estava disposta a apostar que a Menina Katy Ellis, educadora conceituada e autora das suas próprias memórias, não se achava entre elas.
Porque, quanto mais voltas Laurel dava, mais clara a situação ficava: Vivien era a solução do enigma. Conhecer melhor esta figura evasiva era a única forma de deslindar o plano de Dorothy; mais crucial ainda, aquilo que falhara. E agora — Laurel sorriu — apanhara-a pela própria sombra.