Capítulo 25

Londres, Abril de 1941

Jimmy manteve o pé entalado na porta do sótão do hospital, a espreitar Vivien através da fresta. Estava desorientado. Aquilo não era a cena idílica de um encontro extraconjugal que ele esperava. Havia crianças por todo o lado, umas a brincar com puzzles no chão, outras a fazer a roda ou o pino. Estava no antigo quarto das crianças, apercebeu-se Jimmy; aqueles meninos seriam presumivelmente os doentes órfãos do Dr. Tomalin. Através de uma sorte de consciencialização tácita, a atenção colectiva foi atraída para Vivien, e todos os olhares se concentraram nela. Jimmy viu-os a correr em peso para ela, os braços abertos como aeroplanos. E ela também se mostrava radiante, um grande sorriso estampado no rosto enquanto se ajoelhava e estendia os braços para acolher o maior número possível de crianças.

Começaram então a falar todos ao mesmo tempo, de forma precipitada e com uma certa agitação, acerca de voar e navios e cordas e fadas, e Jimmy compreendeu que estava a testemunhar uma conversa com raízes num momento anterior. Vivien, porém, parecia perceber a que se referiam e assentia com a cabeça pensativamente e não com aquela atitude fingida que os adultos assumem quando interagem com as crianças — ela ouvia-os e ponderava o que diziam, e o seu sobrolho levemente franzido era um sinal claro de que estava à procura de soluções. Não parecia a mesma pessoa que falara com ele na rua; mais descontraída, não tão na defensiva. Depois de cada um ter dito de sua justiça e as crianças terem sossegado (como às vezes também acontece, todas de uma só vez), ela ergueu as mãos e disse:

— E se começássemos já e fôssemos resolvendo cada problema à medida que for surgindo?

As crianças concordaram ou, pelo menos, foi isso que Jimmy presumiu, pois, sem um único queixume, tornaram a dispersar, muito dinâmicas à medida que arrastavam cadeiras e outros objectos aparentemente aleatórios: cobertores, vassouras, bonecas com vendas nos olhos, para a zona desimpedida no centro do quarto e começavam a reuni-los numa espécie de estrutura construída com todo o cuidado. Foi então que percebeu do que se tratava, contendo uma gargalhada de prazer inesperado. Estava a ser construído um navio diante dos seus próprios olhos: lá estavam a proa e o mastro e uma prancha, com uma das extremidades apoiada num escabelo, a outra, num banco corrido de madeira. Jimmy viu então uma bandeira a ser hasteada, um lençol de cama dobrado em triângulo, com finas cordas a segurar os cantos com firmeza e orgulho.

Vivien sentara-se entretanto num caixote virado de pernas para o ar e desencantara um livro algures; da carteira, calculava Jimmy. Abriu-o, fez deslizar os dedos pelas margens internas, vincando-lhe a lombada, e em seguida disse:

— Vamos começar com o Capitão Gancho e os Meninos Perdidos... Então, e agora, onde é que está a Wendy?

— Estou aqui — anunciou uma menina dos seus onze anos, com um braço ao peito.

— Muito bem — disse Vivien. — Mantém-te atenta para quando for a tua vez de entrares em cena. Já não falta muito.

Um rapaz com um papagaio feito à mão empoleirado no ombro e um gancho feito de cartolina brilhante na mão dirigiu-se então a Vivien com uma atitude brincalhona que lhe deu vontade de rir.

Estavam a ensaiar uma peça de teatro, constatou Jimmy: Peter Pan. A mãe levara-o a vê-la uma vez, quando era pequeno. Tinham feito a viagem até Londres e depois tomado chá no Liberty’s, um chá todo chique, durante o qual Jimmy ficara sentado sem abrir a boca, sentindo-se deslocado, deitando olhadelas à expressão melancólica da mãe enquanto esta espreitava por cima do ombro para o cabide dos casacos. Mais tarde, os pais tinham tido uma discussão por causa de dinheiro (e por que outro motivo poderia ser?), e Jimmy, no seu quarto, ouvira qualquer coisa cair ao chão e partir-se. Fechara os olhos e recordara-se da peça, do seu momento preferido, quando Peter abria os braços de par em par e se dirigia a todos que, na assistência, pudessem estar a sonhar com a Terra do Nunca: «Vocês acreditam em fadas, meninos e meninas?», gritava ele. «Se acreditam, batam palmas; não deixem a Sininho morrer.» E Jimmy sentira-se impelido a levantar-se da cadeira, as pernas a tremer-lhe, todo esperançoso, enquanto juntava as mãos e gritava em resposta: «Sim!», com toda a confiança enfática de que, ao fazê-lo, estava a devolver a vida a Sininho e a salvar o que de mais mágico havia no mundo.

— Nathan, tens a lanterna?

Jimmy pestanejou ao dar por ele de volta ao presente.

— Nathan? — insistiu Vivien. — Estamos a precisar da lanterna.

— Já está acesa — disse um rapazinho de cabelo ruivo encaracolado e com um aparelho ortopédico num dos pés. Estava sentado no chão, a apontar a lanterna à vela.

— Ah, sim — disse Vivien. — Tens razão. Bom, então... está bem.

— Mas nós mal a vemos — disse outro rapaz que estava de pé, assentando as mãos nas ancas. Estava ocupado a içar a vela, semicerrando os olhos a tentar descortinar a luz mortiça.

— De pouco ou nada vale se não conseguirmos ver a Sininho — declarou o rapaz que fazia de Capitão Gancho. — Assim, não vai dar resultado.

— Ai isso é que vai — retorquiu Vivien com determinação. — Claro que vai. O poder da sugestão é uma coisa tremenda. Se todos dissermos que conseguimos ver a fada, a assistência também conseguirá.

— Mas nós não a conseguimos ver.

— Bom, pois não, mas se dissermos que conseguimos...

— Está a dizer-nos para mentirmos?

Vivien olhou de relance para o tecto, à procura de palavras com que se explicar, e as crianças começaram a implicar umas com as outras.

— Desculpem — disse Jimmy, ainda à porta. Ninguém parecia ouvi-lo e, por isso, repetiu, desta vez mais alto. — Desculpem!

Todos se viraram para ele. Vivien susteve a respiração quando o viu e em seguida franziu o sobrolho. Jimmy reconhecia que lhe dava um certo gozo fazê-la zangar-se, em mostrar-lhe que nem sempre podia levar a sua avante.

— Tenho estado aqui a pensar... — disse ele. — E se usassem uma luz de fotógrafo? É parecida com uma lanterna, mas mais forte.

As crianças, sendo crianças, não reagiram com qualquer espécie de desconfiança, ou mesmo surpresa, por um desconhecido se ter vindo juntar a elas no quarto do sótão e ter metido a sua colherada numa conversa tão específica como aquela. Ao invés, fez-se silêncio à medida que todos ponderavam a sugestão, leves ruídos sussurrados enquanto a discutiam e depois:

— Sim! — gritou um dos rapazes, levantando-se repentinamente todo entusiasmado.

— Perfeito! — adiantou outro.

— Mas nós não temos nenhuma — obstou o rapaz melancólico de óculos.

— Eu podia arranjar-vos uma — propôs Jimmy. — Trabalho num jornal; temos um estúdio cheio de luzes.

Mais palrice e aplausos entusiásticos por parte das crianças.

— Mas como é que fazemos para que se pareça com uma fada, a voar, e tudo o mais? — inquiriu o mesmo rapaz taciturno, a sua voz esganiçada fazendo-se ouvir acima dos outros.

Jimmy saiu da soleira e entrou no quarto. Todas as crianças tinham agora a atenção concentrada nele; Vivien fitava-o com ar furibundo, o exemplar de Peter Pan fechado no colo. Jimmy ignorou-a.

— Acho que terão de a projectar a partir de um sítio alto. Sim, acho que isso daria resultado e, se tivessem o cuidado de a fazer incidir sempre sobre o palco, o foco seria mais estreito e não daria uma luminosidade ampla, geral, e talvez se arranjassem uma espécie de funil...

— Mas nenhum de nós tem altura que chegue para a manejar. — Outra vez o miúdo dos óculos. — De lá de cima, não. — Órfão ou não, Jimmy começava a ganhar-lhe uma certa antipatia.

Vivien vinha a assistir à conversa com uma expressão firme no rosto, insistindo para que Jimmy, percebia este, se lembrasse do que ela lhe dissera (deixar a sugestão cair no esquecimento e ir-se embora), mas ele era simplesmente incapaz de fazer isso. Já estava a imaginar como a luz iria brilhar e tinha uma infinidade de ideias para que resultasse como devia ser. Se pusessem um escadote ao fundo ou, então, se a atassem a uma vassoura... pondo-lhe um reforço qualquer... e a segurassem como se fosse uma cana de pesca, ou então...

— Eu faço isso! — declarou ele de repente. — Eu manejo a luz.

— Não! — insurgiu-se Vivien, pondo-se de pé.

— Sim! — gritaram as crianças.

— Você não pode fazer isso. — Lançou-lhe um olhar duro como pedra. — Você não vai fazer isso!

— Pode, sim! E vai! Tem de ser ele! — gritaram as crianças em conjunto.

Foi então que Jimmy reparou em Nella, sentada no chão; ela acenou-lhe e em seguida deitou uma olhadela aos companheiros, um brilho de indisfarçável orgulho e sentido de posse no olhar. Como poderia ele dizer que não? Jimmy exibiu as palmas das mãos a Vivien num gesto de desculpa não inteiramente sincero e depois rasgou um sorriso às crianças.

— Então, fica resolvido — disse ele. — Podem contar comigo. Acabam de descobrir uma nova Sininho.

*

Mais tarde, custar-lhe-ia a acreditar que aquilo acontecera, no entanto, quando Jimmy se oferecera para fazer de Sininho na peça do hospital, não pensara, nem por sombras, no encontro que ficara de marcar com Vivien Jenkins. Deixara-se simplesmente arrastar pela sua visão grandiosa de como poderiam representar a fada com a sua luz de fotógrafo. Dolly também não se importou.

— Oh, Jimmy, és tão esperto — disse ela, puxando uma fumaça entusiástica do cigarro. — Eu sabia que tu acabarias por ter alguma ideia.

Jimmy aceitou o elogio e deixou-a acreditar que fazia tudo parte do seu plano. Ela andava feliz ultimamente e era um enorme alívio para ele ter a sua velha Doll de volta.

— Tenho andado a pensar na beira-mar — confessara-lhe ela umas noites antes, quando o deixara entrar furtivamente pela janela da despensa da Sr.ª White, e estavam os dois deitados na cama estreita dela, com o lavatório à frente. — Não estás já imaginar-nos, Jimmy? A envelhecermos juntos, os nossos filhos à nossa volta, um dia, os netos a visitar-nos nos seus automóveis voadores. Podíamos arranjar um daqueles baloiços para dois... Que tens a dizer a isto, meu belo rapaz?

Jimmy disse que sim, por favor. E, em seguida, tornou a beijá-la no pescoço à mostra, pondo-a rir, e agradeceu a Deus pela intimidade e o afecto de que agora desfrutavam. Sim, ele desejava o que ela lhe descrevera; desejava tanto que chegava a doer-lhe. Se lhe agradava pensar que ele e Vivien estavam a trabalhar juntos e a travar amizade, então era uma fantasia em que Jimmy não se importava nada de alinhar.

A realidade, como ele bem sabia, era bastante diferente. Ao longo das semanas seguintes, Jimmy apresentou-se a todos os ensaios marcados que pôde e a hostilidade de Vivien nunca deixou de o surpreender. Mal podia acreditar que se tratava da mesma pessoa que conhecera na cantina naquela noite, que reparara na sua fotografia de Nella e lhe falara do seu trabalho no hospital; agora, era como se fosse demasiado importante para trocar mais de meia dúzia de palavras com ele. Jimmy tinha a certeza absoluta de que, pudesse ela, e tê-lo-ia ignorado completamente. Já fora a contar com uma certa frieza — Dolly preparara-o de antemão para a crueldade de que Vivien Jenkins era capaz quando implicava com alguém; o que o apanhou de surpresa foi o facto de o seu ódio ser tão pessoal. Mal se conheciam e, além disso, ela não tinha maneira de saber do seu namoro com Dolly.

Um dia, estavam os dois a rir-se de qualquer coisa engraçada que uma das crianças fizera e Jimmy mirou-a de relance, como um adulto poderia mirar outro, sem outra intenção que partilhar o momento. Vivien pressentiu o olhar dele e encarou-o, todavia, logo que o viu a sorrir, deixou a sua expressão de felicidade esmorecer. Sob um dado aspecto, convinha-lhe que ela lhe tivesse aversão — a ideia de chantagem não caía bem a Jimmy, mas sentia-se mais à vontade e mais justificado no que se referia ao plano quando Vivien o tratava como se não existisse; não obstante, sem ganhar a confiança dela, já para não falar no afecto, não iria conseguir que o plano desse resultado.

Assim, Jimmy continuou a insistir. Forçou-se a pôr de lado o ressentimento que sentia perante a hostilidade de Vivien, a sua deslealdade para com Doll, a forma como ela se livrara da sua namorada tão cheia de vida e a deixara tão em baixo, e concentrou-se, ao invés, na maneira como ela tratava os órfãos do hospital; como ela criava um mundo em que eles podiam desaparecer ao transpor a porta do sótão, deixando os problemas para trás, lá em baixo, nos dormitórios e enfermarias do hospital. O modo como eles a contemplavam, presos de fascínio, quando o ensaio chegava ao fim e ela lhes entretecia histórias acerca de túneis que conduziam ao centro da Terra e regatos escuros e mágicos sem fundo e luzinhas debaixo de água que incentivavam as crianças a aproximarem-se só mais um bocadinho...

E, finalmente, à medida que os ensaios prosseguiam, Jimmy começou a suspeitar de que a antipatia de Vivien Jenkins por ele se começava a desvanecer; que ela já não lhe tinha tanta aversão como a princípio. Continuava a evitar dirigir-lhe a palavra, reconhecendo as suas contribuições com meros acenos de cabeça; todavia, por vezes Jimmy apanhava-a a olhar para ele quando o julgava distraído, e parecia-lhe que a expressão dela era não tanto zangada, mas sobretudo pensativa, curiosa até. Talvez tivesse sido isso que o levou a cometer um erro. Começara a aperceber-se de... bom, não propriamente de cordialidade, mas pelo menos de um crescente degelo entre ambos, e, certo dia, em meados de Abril, quando as crianças tinham saído de corrida para o almoço e ele e Vivien tinham ficado a arrumar o navio, Jimmy perguntou-lhe se tinha filhos.

Deveria ter sido o início de uma conversa amena, mas Vivien ficou petrificada dos pés à cabeça, e Jimmy percebeu de imediato que, mesmo sem saber como, cometera um erro e que era tarde de mais para voltar atrás.

— Não. — A palavra, quando saiu, foi tão aguçada como uma pedra no sapato. Vivien clareou a voz. — Eu não posso ter filhos.

Jimmy só queria um túnel muito fundo até ao centro da Terra por onde pudesse cair e cair e cair... Tartamudeou um «peço desculpa», que arrancou um ligeiro aceno de cabeça a Vivien, e depois acabou de dobrar a vela e saiu do quarto, deixando a porta fechar-se nas suas costas à laia de repreensão.

Ele sentira-se como um palerma insensível. Não que se tivesse esquecido do motivo por que ali estava — o tipo de pessoa que ela era, o que fizera a Doll —, apenas que, bom, Jimmy não gostava de magoar ninguém. Uma vez que lhe bastava lembrar-se de como ela se retesara quando lhe fizera aquela pergunta para se retrair também. Estava constantemente a dar voltas ao assunto, repreendendo-se por tamanha falta de tacto. Nessa noite, quando andava na rua a fotografar os últimos estragos causados pelos bombardeamentos, de máquina fotográfica apontada às mais recentes almas a ingressar nas fileiras dos desalojados e enlutados, metade do seu cérebro mantinha-se ocupado a tentar arranjar maneira de a compensar.

*

No dia seguinte, Jimmy chegou cedo ao hospital e esperou que Vivien atravessasse a rua, a fumar ansiosamente. Ter-se-ia sentado nos degraus da porta, mas a sua intuição dizia-lhe que, se o visse ali, ela daria meia-volta e seguiria por outro caminho.

Quando Vivien apareceu a descer apressadamente a rua, ele deitou o cigarro fora e foi ao encontro dela. Entregou-lhe uma fotografia.

— O que é isto? — interrogou-o ela.

— Nada de especial — respondeu-lhe ele, à medida que ela a virava entre as mãos. — Tirei-a a pensar em si... ontem à noite. Fez-me lembrar a sua história, sabe, o regato com as luzes lá muito no fundo e as pessoas... a família do outro lado do véu.

Vivien contemplou a fotografia.

Jimmy tirara-a ao romper do dia; a luz do Sol incidia nos vidros das ruínas, fazendo-os reluzir e cintilar, por detrás da coluna de fumo, distinguiam-se os vultos disformes da família que acabara de sair do abrigo Anderson que lhes salvara a vida. Jimmy não fora dormir depois de a tirar, seguira directamente para a redacção do jornal a fim de a revelar para ela.

Vivien não disse uma única palavra e a expressão dela levou-o a pensar que talvez estivesse prestes a chorar.

— Sinto-me muito culpado — confessou-lhe ele. — Por causa do que lhe disse ontem. Transtornei-a. Peço desculpa.

— Não podia adivinhar. — Guardou a fotografia com todo o cuidado dentro da carteira.

— Mesmo assim...

— Não podia adivinhar. — E então esboçou um ténue sorriso ou, pelo menos, foi o que lhe pareceu; era difícil de dizer, porque ela se apressou a virar-se para a porta e a entrar no hospital.

Nesse dia, o ensaio passou a correr. As crianças tomaram o quarto do sótão de assalto e encheram-no de luz e barulho, e depois a campainha para o almoço tocou e elas desapareceram tão depressa quanto tinham chegado; uma parte de Jimmy sentira-se tentada a ir atrás delas, a fim de evitar o embaraço de ficar a sós com Vivien, mas sabia que não teria perdoado tamanha fraqueza a si próprio e, por conseguinte, deixou-se ficar a ajudá-la a desmantelar o navio.

Sentiu-a a observá-lo à medida que empilhava as cadeiras, mas não olhou para ela; não sabia o que lhe veria no rosto e não se queria sentir pior do que já sentia. A voz dela, quando falou, soava diferente.

— O que é que estava a fazer na cantina naquela noite, Jimmy Metcalfe?

Ao ouvir isto, Jimmy olhou então de relance para ela; Vivien, entretanto, dirigira a atenção para o cenário que estava a pintar para a peça com palmeiras e areia. Havia uma estranha formalidade no facto de ela empregar o seu nome completo e, por alguma razão que não sabia explicar, provocou-lhe um arrepio não de todo desagradável ao longo da espinha. Não lhe podia falar de Dolly, disso sabia bem, mas também não era mentiroso. Respondeu-lhe:

— Fui encontrar-me com uma pessoa.

Vivien olhou para ele e o mais ténue dos sorrisos aflorou-lhe aos lábios.

Jimmy nunca sabia qual a melhor altura para se calar.

— Tínhamos combinado encontrar-nos noutro sítio — acrescentou ele —, mas eu antecipei-me e fui ter à cantina.

— Porquê?

— Porquê?

— Porque é que não se ateve ao plano original?

— Não sei. Pareceu-me que era o melhor a fazer.

Vivien continuava a perscrutá-lo, a sua expressão sem dar qualquer indício do que lhe ia no pensamento, e em seguida virou-se para a fronde em que estava a trabalhar.

— Fico contente — disse ela, com um certo nervosismo na voz de outro modo límpida. — Fico muito contente por ter decidido fazer isso.

*

Nesse dia, as coisas entre ambos mudaram. Não era tanto o que ela dizia, embora fosse tudo bastante amável, mas antes uma sensação inexplicável que se apoderava de Jimmy sempre que Vivien olhava para ele, um pressentimento de conexão entre os dois que o tornara a invadir quando posteriormente se recordou da conversa. Nada de especialmente significativo, todavia, no seu conjunto, alguma coisa significava. Jimmy percebera isso na altura, tal como percebera mais tarde, quando Dolly lhe pediu o habitual relatório dos progressos do dia, e ele omitiu essa parte. Doll teria ficado satisfeita, ele sabia que sim — veria ali uma prova de que ele estava mais próximo de ganhar a confiança de Vivien —, mas preferiu não lhe dizer nada. A conversa com Vivien era dele; parecia-lhe haver ali um certo progresso, mas não do género que Dolly tivesse apreciado. Não queria partilhá-la; não queria estragá-la.

No dia seguinte, Jimmy chegou ao hospital a passo ligeiro. Contudo, quando abriu a porta e ofereceu uma magnífica laranja madura a Myra (que fazia anos nesse dia), ela informou-o de que Vivien não estava lá.

— Ela não se sente bem. Telefonou esta manhã a dizer que não se conseguiu levantar da cama. Perguntou se o Jimmy não poderia encarregar-se do ensaio.

— Posso, com certeza — disse Jimmy, questionando-se, subitamente, se a ausência de Vivien estaria de algum modo relacionada com o que se passara entre ambos; se talvez estivesse arrependida de ter baixado a guarda. Olhou para o chão de sobrolho franzido e depois espreitou Myra por entre o cabelo. — Está doente, é isso?

— Não me pareceu nada bem, a pobre querida. Mas não é caso para fazer esse ar tão abatido... Ela há-de ficar boa. Fica sempre. — Myra segurou a laranja ao alto. — Eu guardo metade para ela, está bem? Dou-lha no próximo ensaio.

Só que Vivien também não compareceu ao ensaio seguinte.

— Continua de cama — disse Myra a Jimmy, quando ele vinha a entrar no hospital no fim dessa semana. — E é o melhor que tem a fazer.

— É grave?

— Creio que não. Ela tem pouca sorte, a pobre rapariga, mas não tarda, andará a pé outra vez... Não aguenta ficar muito tempo longe das suas crianças.

— Isto já alguma vez aconteceu?

Myra sorriu, mas o gesto foi contido por algo mais, um elemento de tomada de consciência e de gentil preocupação.

— Toda a gente se sente indisposta de vez em quando, Sr. Metcalfe. A Sr.ª Jenkins tem tido a sua dose de contrariedades, mas não temos todos? — Ela hesitou e, quando retomou a palavra, a sua voz denotava suavidade, mas também firmeza. — Ouça, meu caro Jimmy, eu já percebi que se interessa pelo bem-estar da Sr.ª Jenkins, e isso é muito simpático da sua parte. Deus sabe que ela é um anjo, por tudo o que ela faz pelas crianças. Mas estou certa de que não será nada de cuidado e que o marido será perfeitamente capaz de tratar dela. — Sorriu uma vez mais, de uma forma maternal. — Agora veja se a esquece, estamos entendidos?

Jimmy prometeu que sim e encaminhou-se escada acima. Todavia, o conselho de Myra deu-lhe que pensar. Vivien estava doente, por conseguinte, era natural que pensasse nela — porque estaria Myra tão empenhada em que Jimmy a esquecesse? E o tom em que dissera «o marido dela» também lhe parecera mordaz. Era o género de coisa que poderia ter dito a alguém como o Dr. Tomalin, um indivíduo que cobiçava a mulher do próximo.

*

Jimmy não tinha um exemplar da peça, mas dirigiu o ensaio o melhor que pôde. Os miúdos portaram-se bem com ele, debitando fluentemente os respectivos papéis, raras vezes discutindo, e estava tudo a correr bem. Já se começava mesmo a sentir bastante satisfeito consigo próprio, até que acabaram de arrumar o cenário e se reuniram no chão em volta do caixote virado ao contrário em que ele estava sentado a pedir-lhe que lhes contasse uma história. Jimmy disse-lhes que não sabia nenhuma e, quando se recusaram a acreditar nele, fez uma tentativa falhada de lhes contar uma de Vivien, até que se lembrou — mesmo a tempo de evitar uma revolta — do Estrela Rouxinol. As crianças ouviram-no de olhos arregalados e Jimmy apercebeu-se, como nunca até aí, do quanto tinha em comum com os doentes do hospital do Dr. Tomalin.

Com tanta actividade, acabou por se esquecer dos comentários de Myra, e só depois de se despedir das crianças, quando já ia a descer a escada, é que Jimmy se pôs a matutar qual a melhor maneira de a convencer de que estava a imaginar coisas. Quando chegou ao átrio, colocou-se diante da secretária dela. Contudo, antes de ter tempo de lhe dirigir uma palavra, tranquilizadora ou o que fosse, Myra disse-lhe:

— Ah, já aqui está, Jimmy. O Dr. Tomalin deseja cumprimentá-lo. — No mesmo tom de reverência de que poderia ter feito uso se o rei em pessoa tivesse decidido passar lá a tarde e expressado o desejo de o conhecer. Chegou-se a ele para lhe tirar um fiapo da gola.

Jimmy aguardou, consciente do amargor crescente na garganta, a mesma sensação que costumava ter em miúdo sempre que se imaginava a enfrentar o homem que lhes roubara a mãe. Os minutos pareceram-lhe intermináveis até que por fim a porta junto à secretária se abriu e um cavalheiro de ar solene saiu por ela. O antagonismo de Jimmy dissipou-se, deixando-o extremamente confuso. O outro homem tinha cabelo branco, cuidadosamente aparado, e uns óculos de lentes tão grossas que os olhos azul-claros pareciam pires por detrás delas; não teria menos de oitenta anos.

— Então, você é que é o Jimmy Metcalfe — declarou o médico, enquanto se aproximava para lhe apertar a mão. — Espero que esteja a dar-se bem no nosso hospital.

— Sim, obrigado, meu senhor. Muito bem. — Jimmy sentia-se atrapalhado, a tentar dar um sentido a tudo aquilo. A idade do indivíduo não o impedia de ter um caso amoroso com Vivien Jenkins, não inteiramente, mas, ainda assim...

— Com rédea curta, imagino eu — prosseguiu o médico —, entre a Myra e a Sr.ª Jenkins. Neta de um velho amigo meu, sabe, a jovem Vivien.

— Não sabia.

— Não? Bom, agora já sabe.

Jimmy assentiu com a cabeça e forçou um sorriso.

— Bom, adiante. Está a fazer um trabalho fantástico com as crianças. Muito gentil da sua parte. Fico-lhe muito grato. — E, dito isto, despediu-se dele com um aceno de cabeça rígido e regressou ao seu gabinete, a coxear ligeiramente da perna esquerda.

— O doutor gosta de si — observou Myra, arregalando os olhos à medida que ele fechava a porta.

Jimmy sentia a cabeça às voltas do esforço de tentar destrinçar as certezas das suspeitas.

— A sério?

— Ah, sem dúvida.

— Como é que sabe?

— Reconheceu a sua existência. Não tem tempo para a maioria dos adultos. Prefere as crianças, sempre preferiu.

— Há muito tempo que o conhece?

— Há trinta anos que trabalho para ele. — Enfunou-se de orgulho, ajeitando a cruz de modo a ficar direita no decote em vê da blusa. — Uma coisa lhe digo — acrescentou ela, mirando Jimmy por cima dos óculos de meia-lua —, o doutor não tolera a presença de muitos adultos neste hospital. Você é o único que até hoje o vi esforçar-se por aceitar.

— Excepto a Vivien, claro. — Jimmy estava a investigar. Myra seria seguramente capaz de o esclarecer. — A Sr.ª Jenkins, quero eu dizer.

— Ah, sim — Myra fez rodopiar uma mão —, claro. Mas também, ele conhece-a desde criança... Não tem nada que ver uma coisa com a outra. É como se fosse avô dela. Na verdade, seria capaz de apostar que você lhe tem a agradecer a ela por ele ainda agora ter vindo falar consigo. Ela deve ter intercedido por si. — Myra conteve-se então. — Seja como for, o doutor gosta de si. É maravilhoso. Bom... Não tem fotografias para tirar para o meu jornal de amanhã de manhã?

Jimmy fingiu que lhe fazia continência, arrancando-lhe um sorriso, e foi à sua vida.

Foi todo o caminho para casa a sentir a cabeça às voltas.

Dolly estava enganada: por muitas certezas que aparentasse, enganara-se redondamente. Não havia nenhum caso amoroso entre Vivien e o Dr. Tomalin; o velho senhor era «como se fosse avô dela». E ela — Jimmy abanou a cabeça, horrorizado com as coisas que pensara, o mau juízo que fizera dela — não era adúltera nenhuma, era apenas uma mulher, uma boa mulher, a propósito, que dispensava o seu tempo para proporcionar uns momentos de felicidade a um grupo de órfãos que tinham ficado sem nada.

Era estranho, talvez, quando tudo em que ele acreditara piamente tivesse acabado por se revelar mentira, mas Jimmy sentia uma estranha exuberância. Mal podia esperar por contar a Doll; agora já não precisavam de levar o plano em diante; Vivien não tinha culpa de nada.

— Só de ser desagradável para mim — ripostou Dolly quando ele lhe fez saber isto mesmo. — Mas parece-me que, agora que são tão bons amigos, isso já não te interessa para nada.

— Pára com isso, Doll — disse-lhe Jimmy. — Não é nada disso que julgas. Olha... — Estendeu os braços por cima da mesa para lhe pegar nas mãos, adoptando um tom ligeiro e amável que sugeria que tudo aquilo tivera a sua piada, mas que chegara a altura de arrumar o assunto. — Eu sei que ela te tratou mal e não me agrada nada que tenha feito isso. Mas este plano... não vai dar resultado. Ela não tem culpa de nada... Se lhe enviasses a carta, haveria de se fartar de rir. O mais provável seria mostrá-la ao marido e ele também se haveria de rir.

— Ai isso é que não vai! — Dolly afastou as mãos e cruzou os braços. Era teimosa, ou talvez estivesse simplesmente desesperada, por vezes, era difícil fazer a destrinça. — Nenhuma mulher quer que o marido suspeite sequer de que anda a ter um caso com outro homem. Ela dar-nos-ia o dinheiro de qualquer modo.

Jimmy tirou um cigarro do maço e acendeu-o, perscrutando Doll por detrás da chama. Em tempos que já lá iam, teria feito o possível por convencê-la. A adoração que sentia por ela cegava-o para os seus defeitos. Agora, porém, já não era a mesma coisa. Havia uma fissura que trespassava o coração de Jimmy, uma fina linha que surgira na noite em que Dolly lhe dissera que não se queria casar com ele e depois o deixara ajoelhado no restaurante. A ruptura fora sanada desde então e mantinha-se quase sempre invisível; contudo, tal como a jarra que a mãe deitara ao chão no dia em que tinham ido ao Liberty’s e que o pai tornara a colar, as falhas haveriam sempre de se notar a uma certa luz. Jimmy amava Dolly, isso nunca haveria de mudar — para Jimmy, a lealdade era tão natural como respirar —, porém, ao olhar para ela à sua frente, pensou que nesse momento não gostava lá muito dela.

*

Vivien regressou. Estivera menos de uma semana fora e, quando Jimmy voltou ao canto do sótão, abriu a porta e a viu rodeada por uma horda de crianças palradoras, algo completamente inesperado aconteceu. Ficou contente por vê-la. Contente, era pouco; o mundo parecia-lhe um sítio mais bonito do que fora há um instante atrás.

Deixou-se ficar onde estava.

— Vivien Jenkins — disse ele, levando-a a erguer o olhar e a encará-lo.

Ela sorriu-lhe e Jimmy retribuiu-lhe de forma idêntica. E foi então que percebeu que estava metido em sarilhos.