Capítulo 27

Londres, Maio de 1941

Jimmy ficara um pouco envergonhado da primeira vez que levara Vivien a sua casa para conhecer o pai. O pequeno quarto onde moravam já era pobre quanto bastasse aos seus próprios olhos, todavia, visto através dos dela, as meias-medidas que ele tomara a fim de o tornar mais confortável revelavam-se-lhe completamente em vão. Estivera ele de facto convencido de que estender um pano da louça velho em cima da arca de madeira fazia dela uma mesa de jantar? Ao que parecia, sim. Vivien, no que lhe dizia respeito, saiu-se às mil maravilhas, fingindo que não havia nada de minimamente estranho em beber chá preto por chávenas desirmanadas, empoleirada aos pés da cama do velhote com um pássaro a seu lado e, não obstante uma ou outra coisa, o encontro tinha corrido bastante bem.

Uma dessas coisas fora a insistência do pai em estar constantemente a chamar a Vivien a «tua jovem senhora» e depois a perguntar a Jimmy — em voz bem nítida e estridente — quando é que os dois se tencionavam casar. Jimmy corrigira o pai pelo menos três vezes até que acabara por encolher os ombros à laia de pedido de desculpas a Vivien e decidir levar o assunto para a brincadeira. Que alternativa lhe restava? Era apenas a confusão de um velhote — ele só vira Doll uma vez, em Coventry, antes da guerra —, e não vinha daí mal algum ao mundo. Vivien não se mostrou incomodada e o pai de Jimmy ficou todo contente. Aliás, não cabia em si de contente. Divertiu-se à grande e à francesa com Vivien. Nela, ao que parecia, encontrara a assistência por que toda a vida ansiara.

Havia momentos em que Jimmy via os dois juntos na risota na sequência de alguma das anedotas do pai, a tentar ensinar um novo truque a Finchie ou em animada discussão acerca da melhor maneira de prender a isca no anzol, e sentia o coração a transbordar de gratidão. Havia muito tempo, reflectiu ele — anos —, que não via o pai sem a ruga da preocupação entre as sobrancelhas do esforço de se tentar lembrar de quem era e onde estava.

Ocasionalmente, Jimmy apanhava-se a tentar visualizar Doll no lugar de Vivien, a imaginar que era ela que ia encher a chávena de chá do pai, a misturar-lhe o leite condensado tal qual como ele gostava, a contar histórias que faziam o velhote abanar a cabeça de prazer e surpresa... contudo, sem saber ao certo porquê, não era capaz. Até se admoestou por ter essa veleidade. As comparações eram irrelevantes, estava farto de saber, e não faziam justiça a nenhuma das duas. Doll já o teria vindo visitar se pudesse. Não era uma senhora livre de obrigações; fazia longos turnos na fábrica de munições que a deixavam muito cansada e era perfeitamente natural que preferisse ocupar os raros serões que tinha livres a pôr a conversa em dia com as amigas.

Vivien, por outro lado, parecia apreciar genuinamente o tempo que passava no pequeno quarto de ambos. Jimmy cometera o erro de lhe agradecer uma vez, como se ela lhe tivesse feito um grande e especial favor. Vivien, porém, limitara-se a olhar para ele como se tivesse enlouquecido e a dizer-lhe: «Porquê?» Ele sentira-se um tolo diante da perplexidade dela e mudara de assunto com uma piada. No entanto, mais tarde, dera por ele a ponderar que talvez estivesse a ver a situação da perspectiva errada e que Vivien apenas se dava com ele para poder fazer companhia ao pai. Parecia-lhe uma explicação tão boa como outra qualquer.

Por vezes, ainda reflectia nisto, interrogando-se porque fora que ela aceitara quando lhe pedira se a podia acompanhar naquele dia, no hospital. Não precisava de se perguntar porque fora que lhe pedira aquilo: ter Vivien de volta depois de ela ter estado doente, a forma como tudo se iluminara à sua volta quando ela abrira a porta do quarto do sótão e ele a vira ali, inesperadamente. Apressara-se a ir atrás dela quando se fora embora, abrindo a porta da rua numa precipitação tal que ainda a apanhara no degrau, a apertar o lenço de pescoço. Não estava a contar que ela lhe dissesse que sim; só sabia que passara o ensaio todo a pensar nisso. Queria passar tempo com ela, não porque Dolly lhe tinha pedido que fizesse isso, mas porque apreciava a sua companhia.

— Tem filhos, Jimmy? — questionara-o Vivien enquanto caminhavam lado a lado. Andava agora mais devagar do que era seu costume, ainda fragilizada da doença que a obrigara a ficar em casa. Ele sentira-lhe uma certa reticência ao longo do dia: rira-se com as crianças, como sempre, mas via-se-lhe uma expressão no olhar, uma prudência ou reserva a que ele não estava acostumado. Jimmy sentiu-se triste por ela, embora não soubesse ao certo porquê.

Abanara a cabeça dizendo-lhe:

— Não. — E sentira o rubor subir-lhe às faces recordando-se do momento em que lhe fizera a mesma pergunta.

Desta feita, porém, quem tinha as rédeas da conversa era ela e insistiu.

— Mas um dia há-de querer tê-los.

— Sim.

— Só um ou dois?

— Para começar. E depois mais seis.

Vivien sorriu ao ouvir isto.

— Eu sou filho único — adiantou ele à laia de explicação. — Tive uma infância solitária.

— Nós éramos quatro irmãos. Tive uma infância barulhenta.

Jimmy soltou então uma gargalhada e ainda se estava a rir quando se apercebeu de algo em que até aí não reparara.

— As histórias que a Vivien conta no hospital — disse ele, à medida que viraram a esquina, a pensar na fotografia que tirara de propósito para lhe oferecer —, aquelas sobre a casa palustre de madeira, na floresta encantada, a família do outro lado do véu... é a sua família, não é?

Vivien confirmou com um aceno de cabeça.

Jimmy não sabia ao certo o que o levara a falar-lhe do pai naquele dia — qualquer coisa na expressão dela quando lhe falara na família, as histórias que a ouvira contar e que crepitavam de magia e desejo e faziam o tempo desaparecer; a necessidade que subitamente o assaltara de deixar alguém aproximar-se. Fosse qual fosse o motivo, o certo era que lhe contara, e Vivien fizera-lhe perguntas, e Jimmy recordou-se do primeiro dia em que a vira com as crianças, da atenção com que ela as ouvia. Quando ela lhe dissera que gostaria de conhecer o pai, Jimmy presumira que se tratara de uma daquelas coisas que as pessoas têm o hábito de dizer quando estão a pensar no comboio que têm de apanhar e sem saber se conseguirão chegar à estação a tempo. Contudo, no ensaio seguinte, ela insistiu no assunto.

— Trouxe uma coisa para ele — acrescentou ela. — Uma coisa de que ele é capaz de gostar.

E trouxera, de facto. E, na semana seguinte, quando Jimmy finalmente concordou levá-la a conhecer o pai, presenteara o velhote com uma bela lula:

— Para o Finchie. — Tinha-a encontrado na praia, explicou-lhes, durante uma visita que ela e Henry tinham feito à família do editor do marido.

— Ela é um encanto de rapariga, Jimmy — dissera o pai em voz alta. — Muito bonita... Parece que acabou de sair de uma pintura. E bondosa, ainda por cima. Tencionas esperar até irmos para a beira-mar para te casares, é isso?

— Não sei, pai — respondeu-lhe Jimmy, olhando de relance para Vivien, que fingia estar muito interessada nas fotografias afixadas na parede. — Vamos aguardar para ver, está bem?

— Vê lás se te apressas, Jimmy. Olha que eu e a tua mãe já não somos novos.

— Esteja descansado, pai. O senhor será o primeiro a saber... Está prometido.

Mais tarde, quando foi levar Vivien à estação do metropolitano, esclareceu-a a respeito da confusão do pai, na esperança de que não a tivesse deixado demasiado constrangida.

Vivien mostrou-se surpreendida.

— Não tem nada de pedir desculpa pelo seu pai, Jimmy.

— Pois não, eu sei. Eu só... só não queria que se sentisse pouco à vontade.

— Pelo contrário. Há muito tempo que não me sentia tão à vontade.

Avançaram mais uns metros em silêncio e, por fim, Vivien perguntou-lhe:

— Sempre vai morar para a beira-mar?

— É esse o meu plano. — Jimmy retraiu-se. Plano. A palavra saíra-lhe sem pensar e maldisse-se a si próprio. Descrever a Vivien precisamente o mesmo cenário futuro que, para ele, era indissociável do estratagema de Dolly causava-lhe uma enorme estranheza.

— E vai casar-se.

Jimmy assentiu com a cabeça.

— Isso é maravilhoso, Jimmy. Fico feliz por si. Ela é boa rapariga?... Ora, claro que é. Que pergunta tão tola a minha.

Jimmy esboçou um sorriso desmaiado, esperando que o assunto morresse ali, mas Vivien insistiu:

— E então?

— Então?

Ela riu-se.

— Fale-me dela.

— Que quer saber?

— Não sei ao certo... as coisas do costume, acho eu... Como foi que se conheceram?

Jimmy retrocedeu em pensamento até ao café em Coventry.

— Eu vinha carregado com um saco de farinha.

— E ela não teve forças para lhe resistir — Vivien provocou-o delicadamente. — Nesse caso, é óbvio que ela tem uma predilecção por farinha. E de que mais é que ela gosta? Como é que ela é?

— Brincalhona — disse Jimmy, com um nó na garganta. — Cheia de vida, cheia de sonhos. — A conversa não lhe estava a agradar rigorosamente nada, mas deu pelo seu pensamento invadido por imagens de Doll; a rapariga que ela fora, a mulher que era agora. — Perdeu a família durante o bombardeamento da cidade.

— Oh, Jimmy. — Vivien fez um ar abatido. — Pobre rapariga. Deve estar destroçada.

A simpatia dela era profunda e sincera e Jimmy não conseguia suportá-la. A vergonha de estar a enganá-la, o papel que ele vinha a desempenhar; a angústia de participar num jogo duplo; tudo isto o impelia agora a ser honesto com ela. Talvez, lá bem no fundo, tivesse até esperança de que a verdade fosse suficiente para sabotar o plano de Doll.

— Por acaso, eu acho que a Vivien a conhece.

— O quê?! — Ela lançou-lhe um olhar, aparentemente alarmada com a ideia. — De onde?

— Chama-se Dolly. — Jimmy susteve a respiração, lembrando-se de como as coisas tinham corrido mal entre ambas. — Dolly Smitham.

— Não. — O alívio de Vivien era notório. — Não, não creio que conheça ninguém com esse nome.

Agora Jimmy estava confuso. Sabia que as duas eram amigas... ou que tinham sido em tempos; Dolly falara-lhe nisso. — Vocês trabalharam as duas na cantina do Serviço Voluntário Feminino. Ela morou na casa em frente à sua, em Campden Grove. Era acompanhante de Lady Gwendolyn.

— Oh! — A expressão de Vivien acusou a lembrança e: — Oh, Jimmy! — exclamou ela, parando para lhe agarrar num braço, os olhos escuros arregalados de pânico. — Ela sabe que nós trabalhamos juntos no hospital?

— Não — mentiu ele, cheio de aversão a si próprio.

O alívio dela era palpável; um sorriso aflorou-lhe aos lábios, mas esmoreceu de imediato perante uma nova preocupação. Soltou um suspiro de pesar, pressionando os dedos ao de leve contra os lábios.

— Meu Deus, Jimmy, o ódio que ela não me deve ter! — Os olhos dela perscrutaram os dele. — Foi uma situação terrível... Não sei se lhe cheguei a falar nisso; ela em tempos fez-me um grande favor, devolveu-me um medalhão que eu tinha perdido, mas eu... receio bem que tenha sido bastante incorrecta com ela. Tinha tido um mau dia, acontecera um imprevisto; não me estava a sentir bem e fui indelicada com ela. Ainda tentei ir lá a casa, para lhe pedir desculpa e explicar-me; bati à porta do número 7, mas ninguém atendeu. Depois a velha senhora morreu e foram-se todos embora; sucedeu tudo muito depressa. — Entretanto, Vivien deixara cair os dedos para o medalhão; estava agora às voltas com ele, a revirá-lo na concavidade da garganta. — É capaz de lhe dizer isto por mim, Jimmy? De lhe dizer que eu não fiz por mal?

Jimmy prometeu que assim faria. Ouvir a explicação de Vivien deixara-o extremamente satisfeito. Confirmava a versão de Dolly; mas também provava que tudo aquilo, a aparente frieza de Vivien, fora um lamentável mal-entendido.

Prosseguiram um pouco mais em silêncio, cada um entregue aos seus pensamentos, até que Vivien por fim disse:

— Do que é que está à espera para se casar, Jimmy? Estão apaixonados, não estão? Você e a Dolly?

A satisfação dele desvaneceu-se. Só pedia a Deus que ela arrumasse o assunto de vez.

— Sim, estamos.

— Então, porque é que não se casam já?

As palavras que ele desencantou para disfarçar a mentira foram banais.

— Nós queremos que o nosso casamento seja perfeito.

Ela assentiu com a cabeça, reflectindo, e depois disse:

— O que poderia haver de mais perfeito do que casar com a pessoa que se ama?

Talvez tenha sido a vergonha que o aturdia a impeli-lo a justificar-se prontamente; talvez fossem as recordações latentes do pai à espera em vão do regresso da mãe, mas Jimmy ecoou a pergunta:

— O que poderá haver de mais perfeito do que o amor? — E em seguida soltou uma gargalhada amarga. — Saber que se ganha o suficiente para manter a esposa feliz, logo para começar. Ter um tecto debaixo do qual morar, comida na mesa, pagar o aquecimento. A quem, como eu, o dinheiro nunca sobra, já não é pouco. Não é tão romântico como a sua ideia, admito, mas a vida é assim, não é?

O rosto de Vivien empalidecera; ele magoara-a, via que sim, mas por esta altura já o temperamento de Jimmy estava ao rubro, e, apesar de estar zangado consigo próprio e não com ela, não lhe pediu desculpa.

— Tem razão — disse ela por fim. — Desculpe, Jimmy. Falei sem pensar; foi uma falta de consideração da minha parte. E, para além do mais, não é nada da minha conta. É que você pintou-me uma imagem tão vívida... a quinta, a beira-mar... é tudo tão maravilhoso. Eu acabei por me deixar contagiar pelos seus planos.

Jimmy escusou-se a responder-lhe; estivera atento a ela enquanto a ouvia, mas agora desviou o olhar. Algo na expressão dela inspirava à sua imaginação uma imagem nítida e focada dos dois, ele e Vivien, a correr em direcção ao mar, que lhe deu vontade de a interromper, ali mesmo, no meio da rua, segurar-lhe o rosto nas mãos em concha e pregar-lhe um beijo ardente e prolongado. Santo Deus! O que se passaria com ele?

Jimmy acendeu um cigarro e foi fumando enquanto caminhavam.

— Então, e a Vivien? — tartamudeou ele, envergonhado e a tentar fazer as pazes. — Qual vai ser o seu futuro? Quais são os seus sonhos?

— Oh... — Ela acenou com uma mão. — Eu não perco muito tempo a pensar no futuro.

Chegaram à estação de metropolitano e ensaiaram uma despedida constrangida. Jimmy sentia-se desconfortável, para não dizer culpado, sobretudo porque teria de estugar o passo para ir ter com Dolly ao Lyons, como ficara combinado. Em todo o caso...

— Deixe-me ir consigo até Kensington — gritou ele a Vivien. — Para poder ficar descansado de que chega a casa sã e salva.

Ela lançou-lhe uma olhadela por cima do ombro.

— Vai apanhar a bomba que traz o meu número escrito?

— Farei o possível por isso.

— Não — respondeu-lhe ela. — Não, obrigada. Prefiro ir sozinha. — E, ao ouvir isto, teve um vislumbre da velha Vivien, a mesma que se adiantara a ele na rua e nem sequer se dignara a oferecer-lhe um sorriso.

*

Dolly ficou sentada a fumar enquanto tentava avistar Jimmy através da vitrina do restaurante. De quando em vez, desviava o olhar do vidro, sacudindo o pêlo branco da manga do casaco. Estava demasiado calor lá dentro, admitia, para estar de casaco de peles, mas Dolly não gostava de o despir. Fazia-a sentir-se importante — poderosa, mesmo —, algo de que ela precisava mais do que nunca. Ultimamente, andava com a terrível sensação de que as coisas lhe escorregavam por entre os dedos e que começava a perder o domínio da situação. O medo chegava a provocar-lhe náuseas — mas o pior de tudo era a incerteza crescente que todas as noites a assaltava.

O plano, quando o concebera, parecera-lhe infalível — uma maneira simples de dar uma lição a Vivien Jenkins e, em simultâneo, assegurar o seu futuro ao lado de Jimmy —, todavia, à medida que o tempo passara e se fora aproximando o momento de Jimmy marcar um encontro com Vivien para ela lhes tirar uma fotografia, à medida que Dolly se apercebia da distância que se vinha a instalar entre ambos, o esforço que ele fazia para a conseguir olhar de frente, começava a perceber que cometera um erro trágico; que jamais deveria ter pedido a Jimmy para fazer aquilo. Nos seus momentos de maior desânimo, Dolly chegava mesmo a questionar-se se ele ainda a amaria da mesma maneira, se a acharia tão excepcional como antes. E esta dúvida deixava-a genuinamente assustada.

Tinham tido uma discussão tremenda numa daquelas noites. Começara por uma coisa sem importância, um comentário que ela fizera a respeito da sua amiga Caitlin, da maneira como ela se comportara quando recentemente tinham ido dançar com Kitty e as colegas. Era o género de coisa que ela costumava dizer com frequência, mas, por algum motivo, desta vez dera azo a uma autêntica discussão. Dolly mostrara-se chocada com a rispidez com que Jimmy falara com ela, as coisas que lhe dissera — que, se as amigas a desiludiam assim tanto, talvez devesse escolher melhor as companhias, que, quem sabe, pudesse até pensar em ir visitá-lo a ele e ao pai ao invés de sair com pessoas que obviamente não lhe agradavam — e aquilo parecera-lhe tão descabido, tão indelicado, que desatara a chorar em plena rua. Em geral, quando Dolly chorava, Jimmy apercebia-se do quanto ela estava magoada e apressava-se a remediar a situação, desta vez, porém, não. Limitara-se a gritar: «Santo Deus!» e virara-lhe as costas, os braços descaídos ao longo do corpo e os punhos cerrados.

Dolly conteve então os soluços, à escuta e à espera no escuro, e, durante alguns instantes, não ouviu nada, julgou que estava de facto sozinha, que se calhar daquela vez o tinha feito perder as estribeiras e que Jimmy a deixara definitivamente.

Não deixou, acabou por voltar, todavia, em lugar de lhe pedir desculpa, como ela esperava, disse-lhe, com uma voz praticamente irreconhecível:

— Tu terias feito melhor se te tivesses casado comigo. Terias feito bem melhor se te tivesses casado comigo quando te pedi.

Ao ouvir isto, Dolly sentiu um gemido assomar-lhe aflitivamente à boca e deu por ela a gritar:

— Não, Jimmy, tu é que devias ter-me pedido mais cedo!

Acabaram por fazer as pazes à porta da pensão da Sr.ª White. Despediram-se com um beijo de boas-noites, comedido, educado, e concordaram que se tinham deixado levar pelas emoções, apenas e só. Dolly, porém, sabia que era mais do que isso. Nessa noite, passou horas acordada, a pensar nas últimas semanas, a recordar cada vez que se tinham encontrado, as coisas que Jimmy lhe dissera, a forma como se comportara, e, entretanto, à medida que os acontecimentos se desenrolavam na sua mente, percebera o que se passava. A culpa era do plano, daquilo que lhe pedira para fazer. Em vez de remediar as coisas entre ambos, como ela esperava, o seu plano sagaz corria o risco de estragar tudo...

Agora, no restaurante, Dolly apagou o cigarro e retirou a carta da carteira. Puxou-a do envelope e tornou a lê-la. Uma oferta de emprego de uma pousada chamada Mar Azul. Fora Jimmy quem descobrira o anúncio no jornal e o recortara para ela. «Parece ser óptimo», dissera-lhe. «Um local deslumbrante à beira-mar... gaivotas, ar salgado, gelados... E eu posso procurar um emprego de... Bom, haveremos de arranjar uma solução.» Dolly não se estava bem a imaginar a varrer a areia que os veraneantes pálidos deixavam atrás de si, mas Jimmy não a largara enquanto ela não respondera ao anúncio, e havia uma parte dela que gostava de o ver assim tão enérgico. Por fim, acabara por pensar: e porque não? Servia para manter Jimmy manso e, se lhe oferecessem o emprego, podia sempre enviar uma resposta confidencial a dizer que já não estava interessada. Na altura, Dolly julgara que não iria precisar de se sujeitar a um emprego assim, não quando finalmente tivesse a fotografia de Vivien...

A porta do restaurante abriu-se e Jimmy entrou. Viera a correr, percebeu logo — ansioso por a ver, esperava. Dolly acenou-lhe e observou-o à medida que atravessava a sala até à mesa; o cabelo escuro caído para a cara, dando-lhe um aspecto atraente e desleixado de uma forma um tanto ou quanto perigosa.

— Olá, Doll — disse ele, cumprimentando-a com um beijo na cara. — Não achas que está calor de mais para andares de casaco de peles?

Dolly sorriu-lhe e abanou a cabeça.

— Estou bem assim. — Chegou-se para o lado no banco do reservado, mas ele preferiu sentar-se de frente para ela, levantando a mão para chamar a empregada.

Dolly aguardou até que mandassem vir chá, mas depois já não aguentou mais.

— Tive uma ideia. — A expressão de Jimmy retesou-se e ela sentiu uma pontada de auto-recriminação, apercebendo-se do quanto ele se tornara desconfiado. Chegou-se a ele para lhe acariciar uma mão. — Oh, Jimmy, não é nada do que estás a pensar... — Calou-se, mordendo o lábio. — Na verdade — baixou a voz —, tenho andado a pensar naquela outra coisa, no plano.

Jimmy empertigou o queixo, na defensiva, e Dolly apressou-se a continuar:

— Só pensei que talvez fosse melhor esquecermos o assunto... marcar o encontro, tirar a fotografia.

— A sério?

Ela assentiu com a cabeça e, pela expressão de Jimmy, percebeu que tomara a decisão correcta.

— Eu nunca te deveria ter pedido para fazeres isso — as palavras atropelavam-se-lhe agora umas atrás das outras —, não estava a pensar como deve ser. Tudo o que se passou com Lady Gwendolyn, a minha família... deixou-me um pouco desnorteada, acho eu.

Jimmy veio sentar-se ao lado dela e tomou-lhe o rosto entre as mãos. Os seus olhos escuros indagaram os dela.

— É óbvio que sim, minha pobre querida.

— Eu nunca te deveria ter pedido para fazeres aquilo — repetiu ela à medida que ele a beijava. — Não foi justo. Descul...

— Chiu — interrompeu-a ele, o alívio a aquecer-lhe a voz. — Deixa lá isso agora. Pertence ao passado. O melhor que temos a fazer é pôr isso para trás das costas e seguir em diante.

— Também acho.

Jimmy afastou-se para olhar bem para ela, em seguida abanou a cabeça e soltou uma gargalhada de surpresa e prazer em simultâneo. Era um som delicioso que vibrou ao longo da coluna de Dolly.

— Eu também acho — disse ele. — Vamos começar pela tua ideia. Ias dizer-me qualquer coisa quando eu cheguei, não ias?

— Ah, sim — confirmou Dolly, entusiasmada. — O espectáculo que vocês andam a ensaiar... Eu fiquei de ir trabalhar nesse dia, mas acho que vou fazer gazeta para ir assistir.

— A sério?

— Claro. Adorava conhecer a Nella e as outras crianças, e, afinal de contas, quando é que voltarei a ter a oportunidade de ver o meu namorado a fazer de Fada Sininho?

*

A primeira e única representação de Peter Pan pelos jovens actores do Hospital do Dr. Tomalin para Órfãos de Guerra foi um êxito retumbante. As crianças voaram e lutaram e fizeram magia a partir de um sótão poeirento e de meia dúzia de lençóis velhos; os que estavam demasiado doentes para poder participar foram levados para a assistência, de onde gritaram, aplaudiram e aclamaram; e Sininho, sob a mão firme de Jimmy, saiu-se admiravelmente. Depois da peça, os miúdos fizeram uma surpresa a Jimmy, tirando o cartaz pintado com uma bandeira do barco pirata e substituindo-o por outro que dizia Estrela Rouxinol, e, em seguida, representaram uma versão da história que ele lhes contara, um acto que vinham a ensaiar havia semanas em segredo. Depois de o elenco ter sido chamado mais uma vez (entre muitas) ao palco, o Dr. Tomalin fez um discurso e indicou a Vivien e a Jimmy que fizessem também uma vénia. Jimmy reparou em Dolly na assistência, a acenar-lhe; ele retribuiu-lhe o sorriso e lançou-lhe uma piscadela de olho.

Estivera apreensivo ao levá-la a ver a peça, embora agora não soubesse bem porquê. Calculava que, quando ela lhe sugerira aquilo, sentira a culpa a invadi-lo dada a sua proximidade com Vivien, um receio de que as coisas corressem mal entre as duas. Logo que ficou claro que não seria capaz de a demover de ir, Jimmy entrara em modalidade de controlo de danos. Não lhe confessara a sua amizade com Vivien; em lugar disso, concentrara-se em explicar-lhe que lhe chamara a atenção por ela ter sido tão incorrecta com Dolly quando esta lhe fora devolver o medalhão.

— Tu falaste-lhe em mim?

— Claro! — disse Jimmy, chegando-se a Dolly para lhe pegar nas mãos quando estavam a sair do restaurante e mergulhar no blackout. — Tu és minha namorada. Como poderia deixar de lhe falar em ti?

— E o que foi que ela te respondeu? Admitiu o que fez? Ela confessou-te que me tratou pessimamente mal?

— Sim. — Jimmy deteve-se enquanto Dolly acendia um cigarro. — Diz que se sentiu muito mal com o que fez, mas que tinha apanhado um choque nesse dia, embora isso não sirva de desculpa.

Ao luar, ele viu o lábio inferior de Dolly tremer de emoção.

— Foi horrível, Jimmy — lastimou-se ela num sussurro. — As coisas que ela me disse. A maneira como me fez sentir.

Ele prendeu-lhe o cabelo atrás da orelha.

— Ela quis pedir-te desculpa; ao que parece, tentou fazer isso, mas quando foi bater à porta de Lady Gwendolyn, ninguém atendeu.

— Ela foi lá falar comigo?

Jimmy confirmou com um aceno de cabeça e reparou que a expressão suavizava. Assim, sem mais nem menos, toda a amargura desaparecera. A transição foi de tirar o fôlego e, no entanto, ele não deveria ter ficado surpreendido. As emoções de Dolly eram papagaios de fios compridos; mal um afundava, já outra cor brilhante estava a apanhar a brisa.

Mais tarde, foram dançar e, pela primeira vez em semanas, sem aquele maldito plano a pairar-lhes por cima da cabeça, Jimmy e Dolly passaram um bom momento juntos, tal como nos velhos tempos. Riram-se, brincaram um com o outro e, quando chegou a altura de lhe dar as boas-noites e se escapulir pela janela da despensa da Sr.ª White, Jimmy começava a pensar que, afinal, não seria tão má ideia quanto isso levar Dolly a ver a peça.

*

E tivera razão. Após um início vacilante, o dia correra de longe melhor do que ele sonhara. Quando os dois chegaram, Vivien estava a acabar de prender a bandeira no navio. Jimmy reparara-lhe na expressão de surpresa quando se virara e deparara com Dolly, a forma como o sorriso lhe começara a descair antes de ela o compor, e sentiu uma pontada inicial de apreensão. Descera com todo o cuidado enquanto Jimmy pendurava o casaco branco de Doll. E quando as duas se cumprimentaram, Jimmy susteve a respiração. Todavia, a saudação correra bem. Ficou satisfeito e orgulhoso com a maneira como Dolly se comportou. Fez o possível por pôr o passado para trás das costas e mostrar-se amistosa com Vivien. Reparou que Vivien também estava aliviada, embora mais reservada do que o habitual e talvez menos calorosa. Quando lhe perguntou se Henry vinha assistir ao espectáculo, ela olhou para ele como se tivesse acabado de receber um insulto, lembrando-lhe de seguida que o marido tinha um cargo muito importante no ministério.

Graças a Deus, estava lá Dolly, que sempre tivera jeito para desanuviar o ambiente.

— Olha, Jimmy — disse-lhe ela, dando o braço a Vivien à medida que as crianças iam chegando. — E se nos tirasses uma fotografia às duas? Para ficarmos com uma recordação deste dia.

Vivien começara por objectar, alegando que não gostava de ser fotografada, mas Doll insistiu tanto, e Jimmy não queria ver o seu empenho ir por água abaixo.

— Prometo que não vai doer — disse ele com um sorriso, e, por fim, Vivien cedeu com um aceno de cabeça relutante...

Os aplausos chegaram finalmente ao fim e o Dr. Tomalin anunciou às crianças que Jimmy tinha uma coisa para elas. As suas palavras foram recebidas com outra rodada de aplausos. Jimmy acenou-lhes e começou a distribuir cópias de uma fotografia. Tirara-a quando Vivien estivera doente: mostrava o elenco completo vestido a rigor para a peça, reunido no convés do navio.

Jimmy imprimira uma também para Vivien. Avistou-a a um canto ao fundo do sótão, a arrumar o vestuário usado na peça dentro de um cesto de verga. Uma vez que o Dr. Tomalin e Myra estavam entretidos a conversar com Dolly, ele encarregou-se de lha levar.

— Então — disse-lhe ao chegar a seu lado.

— Então.

— Críticas entusiásticas nos jornais de amanhã, diria eu.

Ela riu-se.

— Sem dúvida.

Entregou-lhe uma fotografia.

— Isto é para si.

Vivien pegou nela, sorrindo ao ver as caras das crianças. Inclinou-se para pousar o cesto no chão e, ao fazê-lo, a blusa abriu-se ligeiramente e Jimmy reparou numa nódoa negra que se estendia do ombro à clavícula.

— Não é nada — apressou-se ela a dizer, reparando na direcção do olhar dele, os dedos a movimentarem-se ligeiramente para ajeitar o tecido. — Caí, no blackout, quando ia a caminho do abrigo. Apareceu-me um marco do correio pela frente... e ainda dizem que aquela tinta se vê no escuro.

— Tem a certeza? Está com um aspecto feio.

— Eu faço nódoas negras com facilidade. — Os olhares de ambos encontraram-se e, por uma fracção de segundos, Jimmy teve a impressão de detectar lá qualquer coisa, mas depois ela sorriu. — Para não mencionar que ando muito depressa. Estou constantemente a ir contra as coisas... às vezes, até contra as pessoas.

Jimmy retribuiu-lhe o sorriso, recordando-se do dia em que se tinham encontrado; todavia, à medida que uma das crianças pegava em Vivien pela mão e a levava consigo, os seus pensamentos deslocaram-se para as suas doenças frequentes, a sua impossibilidade de ter filhos e o que ele sabia acerca das pessoas que tinham tendência para fazer nódoas negras, e Jimmy sentiu um nó de preocupação a apertar-se no seu estômago.