Capítulo 28

Vivien sentou-se na beira da cama e pegou na fotografia que Jimmy lhe dera, a que fora tirada durante os bombardeamentos, com o fumo, os vidros a brilhar e a família por detrás. Ela sorriu ao contemplá-la e, em seguida, estendeu-se na cama, fechando os olhos, desejosa de que a sua mente deslizasse pela margem, mergulhando na sua terra de sombras. O véu, as luzes cintilantes ao fundo do túnel cheio de água e, para lá dele, a sua família, à sua espera em casa.

Ficou deitada na cama e esforçou-se por os ver, e depois esforçou-se mais ainda.

Não valia a pena. Abriu os olhos. Ultimamente, tudo o que Vivien via de cada vez que fechava os olhos era Jimmy Metcalfe. A madeixa de cabelo escuro caída para a testa, o trejeito dos lábios quando se preparava para dizer qualquer coisa engraçada, a maneira como as sobrancelhas se uniam sempre que falava do pai...

Levantou-se repentinamente e foi até à janela, deixando a fotografia atrás de si, em cima da colcha. Passara uma semana desde a peça de teatro e Vivien andava inquieta. Sentia saudades dos ensaios com as crianças e não suportava os dias intermináveis divididos entre a cantina e a grande casa silenciosa. E era de facto silenciosa, demasiado silenciosa. Deveria haver crianças a correr pelas escadas, a escorregar pelos corrimões, aos pulos no sótão. Agora até Sarah, a empregada, se fora embora — depois do que acontecera, Henry fizera questão de que a despedissem, apesar de Vivien não se ter importado nada de que Sarah continuasse a trabalhar lá em casa. Não se dera conta de como estava habituada a ouvir o barulho do aspirador a bater contra os rodapés, os rangidos do velho soalho, a percepção intangível de que havia mais alguém a respirar, a movimentar-se e a observar no mesmo espaço que ela habitava.

Uma homem montado numa bicicleta velha e vacilante passou lá em baixo na rua, o cesto do guiador atafulhado de ferramentas de jardinagem sujas, e Vivien deixou as cortinas de dia transparentes cair sobre o vidro com fita adesiva entrecruzada. Sentou-se na beira de uma poltrona ali próxima e tentou pôr os pensamentos em ordem. Andava havia dias vai não vai para escrever a Katy; Vivien sentia um distanciamento entre ambas desde a vinda da amiga a Londres e estava empenhada em remediar a situação. Não de modo a fazer cedências — Vivien nunca fora pessoa para pedir desculpa quando sabia que a razão estava do seu lado —, mas antes para se explicar.

Queria fazer Katy compreender, como não conseguira aquando do encontro das duas, que a sua amizade com Jimmy era pura e verdadeira; acima de tudo, que era inocente. Que ela não fazia tenções de deixar o marido ou de pôr a sua saúde em perigo, nem tão-pouco nenhum dos outros cenários nefastos contra os quais Katy a prevenira. Queria falar-lhe no velho Sr. Metcalfe e de como era capaz de o pôr a rir, do à-vontade que sentia ao lado de Jimmy quando conversavam ou se punham a ver as suas fotografias, da credulidade dele na bondade das pessoas e na sensação que lhe transmitia de que seria incapaz de magoar alguém. Queria convencer Katy de que os seus sentimentos por Jimmy eram apenas e só de amizade.

Mesmo que isso não correspondesse exactamente à verdade.

Vivien lembrava-se do momento em que tomara consciência de que estava apaixonada por Jimmy Metcalfe. Fora num dia em que estava sentada à mesa do pequeno-almoço com Henry, e o marido lhe estava a falar de um trabalho qualquer que andava a fazer para o ministério, e ela ia assentindo com a cabeça, mas tinha o pensamento ocupado com um episódio ocorrido no hospital — qualquer coisa engraçada que Jimmy fizera enquanto tentava animar um novo doente — e ela se rira, a contragosto, e graças a Deus deveria ter sido num ponto da história de Henry a que ele também achava piada, porque lhe sorriu e se acercou dela para a beijar, dizendo-lhe: «Eu sabia que tu serias da mesma opinião que eu, querida.»

Vivien sabia também que a paixão era unilateral e não lhe passava pela cabeça algum dia confessar a Jimmy os seus sentimentos por ele. Mesmo que, por alguma casualidade, ele lhos retribuísse, Jimmy não tinha futuro ao lado de Vivien. Ela não tinha nada para lhe oferecer. O destino de Vivien estava selado. O seu estado de saúde não lhe causava transtorno ou angústia, agora já não; aceitara, havia já tempo, a vida que lhe restava e não precisava certamente de confissões ilícitas sussurradas ou manifestações físicas do amor para se sentir preenchida.

Muito pelo contrário. Vivien aprendera muito cedo, na infância, numa estação dos caminhos-de-ferro apinhada de gente, a preparar-se para embarcar num navio rumo a um país longínquo, que a única coisa sobre a qual tinha controlo era a vida que se desenrolava na sua mente. Quando estava na casa de Campden Grove, ouvir Henry assobiar na casa de banho, enquanto aparava o bigode e se admirava de perfil, era suficiente para saber que o que tinha no seu íntimo só a ela lhe pertencia.

Não obstante, ver Jimmy acompanhado por Dolly Smitham na peça fora para ela um choque. Já tinham falado numa ou noutra ocasião a respeito da noiva dele, mas Jimmy mostrava-se reservado sempre que o assunto vinha à baila e, por conseguinte, Vivien deixara de lhe fazer perguntas a respeito dela. Habituara-se a pensar nele como alguém que não tinha uma vida fora do hospital, ou família para além do pai. Ao vê-lo com Dolly, porém — a ternura com que ele lhe segurava na mão, o olhar dele sempre atento a ela —, fora obrigada a encarar a verdade. Vivien poderia amar Jimmy, mas Jimmy amava Dolly. Além disso, Vivien percebia porquê. Dolly era bonita e divertida e dotada de um entusiasmo e de uma audácia tais que cativava as pessoas. Jimmy descrevera-a uma vez como sendo cheia de vida, e Vivien compreendia o que ele queria dizer com isso. Era óbvio que estava apaixonado por ela; não admirava que estivesse tão empenhado em providenciar-lhe o mastro para a sua viagem gloriosa através de mares agitados — ela era precisamente o tipo de mulher capaz de inspirar devoção a um homem como Jimmy.

E era exactamente isto que Vivien tencionava dizer a Katy: que Jimmy estava noivo, que a noiva era uma mulher encantadora e que não havia motivo para que ele e Vivien não fossem...

O telefone tocou na mesinha a seu lado e Vivien lançou-lhe uma olhadela, surpreendida. Ninguém ligava para o número 25 de Campden Grove durante o dia; os colegas de Henry contactavam-no no emprego e Vivien não tinha muitos amigos, pelo menos não do género de fazer telefonemas. Levantou o auscultador, hesitante.

A voz do outro lado era masculina e desconhecida. Não apanhou o nome do cavalheiro, ele disse-o muito depressa.

— Está lá? — repetiu ela. — Quem fala, por favor?

— O Dr. Lionel Rufus.

Vivien não se lembrava de conhecer ninguém que desse por aquele nome e perguntou-se se não se trataria eventualmente de um colega do Dr. Tomalin.

— Em que posso ajudá-lo, Dr. Rufus? — Ocorria por vezes a Vivien que a sua voz era agora idêntica à da mãe, ali, naquela outra vida; a voz da mãe quando lhes lia histórias e se tornava sincopada, perfeita e distante, nada como a sua voz autêntica.

— Estou a falar com a Sr.ª Vivien Jenkins?

— Sim?

— Sr.ª Jenkins, gostaria de saber se me dá licença de que fale consigo a respeito de um assunto delicado. Trata-se de uma jovem com quem julgo que se terá cruzado uma vez por outra. Ela morou na casa em frente à sua durante algum tempo, trabalhava como acompanhante de Lady Gwendolyn.

— Refere-se à Dolly Smitham?

— Sim. Bom, o que eu tenho para lhe dizer não é algo que em circunstâncias normais discutiria com... há questões de confidencialidade a ter em consideração... todavia, neste caso, creio que será do seu interesse. Talvez seja melhor sentar-se, Sr.ª Jenkins.

Vivien já estava sentada e, por conseguinte, ajeitou-se ligeiramente na poltrona e, em seguida, ouviu com toda a atenção um médico que não conhecia de parte alguma contar-lhe uma história em que mal podia acreditar.

Ouviu, quase sem o interromper e, quando o Dr. Rufus finalmente se despediu, Vivien deixou-se ficar com o auscultador na mão durante muito tempo. Repetia mentalmente as palavras dele, a tentar entretecer os fios uns nos outros de modo a formar um padrão com sentido. Ele falara-lhe de Dolly («É boa rapariga, embora, por vezes, se deixe levar pelos caprichos de uma imaginação demasiado fértil») e do jovem namorado («Jimmy, creio eu... Nunca o conheci pessoalmente»); e falou-lhe do desejo que ambos tinham de ficar juntos, do dinheiro de que, no entendimento de ambos, precisavam para começar uma nova vida. E depois expusera-lhe o plano que os dois tinham maquinado, o papel que lhe iriam atribuir no mesmo, e quando Vivien se interrogou em voz alta porque a tinham escolhido a ela, ele mencionara-lhe o desespero de Dolly ao ver-se «repudiada» por alguém que tanto admirava.

Inicialmente, a conversa deixou Vivien atordoada — e ainda bem que assim fora, pois a mágoa que aquelas notícias lhe tinham causado, a revelação de mentiras que tomara por verdades puras, poderia de outro modo ter sido devastadora. Disse a si própria que o indivíduo estava enganado, que se tratava de uma partida de muito mau gosto ou, então, de um equívoco — mas depois recordara-se da amargura que detectara na expressão de Jimmy quando lhe perguntara porque era que ele e Dolly não se casavam e se iam embora de vez; a maneira como ele a repreendera, lembrando-lhe de que os ideais românticos eram um luxo reservado a quem os podia pagar; e então compreendera.

Deixou-se ficar sentada, quieta, à medida que todas as suas esperanças se desmoronavam ao seu redor. Vivien tinha muito jeito para desaparecer por detrás da tempestade das emoções — tinha grande experiência na matéria —, mas aquilo era diferente; fazia-lhe doer numa parte de si própria que havia muito tinha escondido à cautela. Vivien percebeu então com clareza, de uma forma que até aí lhe estivera vedada, que não era apenas por Jimmy que ela ansiava, era também pelo que ele representava. Uma vida diferente; liberdade e o futuro que desistira de imaginar, um futuro que se desenrolava à sua frente sem obstáculos. E ainda, de alguma estranha forma, o passado — não o passado dos seus pesadelos, mas antes a oportunidade de se reconciliar com os acontecimentos de então...

Só quando ouviu o relógio dar as horas lá em baixo é que Vivien se lembrou de onde estava. O quarto arrefecera e sentia as faces húmidas das lágrimas que não dera por ter chorado. Uma rajada de vento soprou vinda de algures e a fotografia de Jimmy voou da cama para o chão. Vivien olhou para ela, questionando-se se até mesmo aquele presente especial fizera parte do plano, uma artimanha para ganhar a sua confiança de modo a permitir a consecução do resto do estratagema: a fotografia, a carta — Vivien endireitou-se. Sentia uma cãibra no estômago. Subitamente, apercebeu-se de que havia mais em jogo para além da sua desilusão mortificante. Muito mais. Um comboio tenebroso estava prestes a entrar em movimento e ela era a única capaz de o deter. Tornou a pôr o auscultador no seu devido sítio e consultou o relógio de pulso. Duas da tarde. O que significava que dispunha de três horas até ter de estar em casa a fim de se arranjar para o jantar aonde ficara de ir com Henry.

Agora não havia tempo para lamentar as perdas; Vivien sentou-se à escrivaninha e fez o que tinha a fazer. Vacilou ligeiramente ao dirigir-se à porta, o único sinal visível no tormento que lhe ia na alma, o medo crescente, e depois foi a correr buscar o livro. Rabiscou uma dedicatória enviesada no frontispício, tornou a pôr a tampa na caneta e, por fim, sem um instante de hesitação, apressou-se escada abaixo e pôs-se a caminho.

*

A Sr.ª Hamblin, a senhora que vinha fazer companhia ao pai quando Jimmy estava a trabalhar, atendeu a porta. Sorriu ao ver Vivien e disse-lhe:

— Ah, é a menina, minha querida. Uma vez que fica a tomar conta dele, se não se importa, vou aproveitar para dar uma saltada à mercaria. — Enfiou um saco de rede debaixo do braço e coçou uma asa do nariz à medida que corria para a porta. — Ouvi dizer que o merceeiro tem bananas escondidas debaixo do balcão para quem lhe souber pedir com jeitinho.

Vivien ganhara enorme carinho ao pai de Jimmy. Havia alturas em que pensava que o seu próprio pai poderia ter sido tal qual como ele, se tivesse tido a oportunidade de atingir aquela idade provecta. O Sr. Metcalfe fora criado numa quinta, juntamente com uma enorme pandilha de irmãos, e muitas das histórias que contava diziam muito a Vivien; e tinham seguramente influenciado as ideias de Jimmy no que se referia à vida que pretendia levar. Hoje, porém, o pai não estava num dos seus melhores dias.

— O casamento — disse ele, agarrando-lhe uma mão, alarmado. — Não faltámos ao casamento, pois não?

— O senhor não faltou de certeza — tranquilizou-o ela com doçura. — Um casamento sem si? Mas que ideia é essa! Não passaria pela cabeça de ninguém. — O coração de Vivien compadeceu-se dele. Estar velho, confuso e assustado; quem lhe dera a ela poder fazer mais por lhe facilitar a vida. — Então e que tal uma chávena de chá?

— Sim — acedeu ele. — Ah, sim, por favor. — Tão grato como se ela lhe tivesse concedido o maior dos seus desejos. — Parece-me uma óptima ideia.

Quando Vivien estava a misturar a gota de leite condensado, tal qual como ele gostava, ouviu-se uma chave a rodar na fechadura. Jimmy entrou pela porta e se ficou surpreendido ao vê-la ali disfarçou bem. Sorriu-lhe calorosamente e Vivien retribuiu-lhe o sorriso, consciente da cinta de aço que se apertava em volta do seu peito.

Ficou lá mais algum tempo, a conversar com os dois, prolongando a visita tanto quanto se atrevia. Finalmente, porém, eram horas de se ir embora; Henry estaria à sua espera.

Jimmy acompanhou-a ao metropolitano, como sempre fazia, todavia, quando lá chegaram, Vivien não entrou de imediato na estação, como era seu hábito.

— Trouxe uma coisa para si — disse ela, metendo uma mão dentro da carteira. Retirou um exemplar de Peter Pan e entregou-lho.

— Quer que eu fique com isto?

Ela confirmou com um aceno de cabeça. Jimmy ficou comovido, mas também, reparou ela, perplexo.

— Eu escrevi-lhe uma dedicatória — acrescentou ela.

Jimmy abriu o livro e leu as palavras dela em voz alta.

— «Um verdadeiro amigo é uma luz na escuridão. Vivien.» — Ele sorriu a olhar para o livro e depois, por entre o cabelo, para ela. — Vivien Jenkins, este livro é o presente mais bonito que eu algum dia recebi.

— Ainda bem. — Doeu-lhe o peito. — Assim, ficamos quites. — Hesitou, ciente de que, depois de fazer o que se preparava para fazer, as coisas entre ambos nunca mais voltariam a ser como dantes. Lembrou-se então de que já não eram; o telefonema do Dr. Rufus garantira que assim fosse. A sua voz impassível continuava a ecoar-lhe na cabeça, as coisas que lhe dissera com a maior das naturalidades. — E tenho também outra coisa para si.

— Eu não faço anos. Sabe disso, não sabe?

Vivien entregou-lhe o papel.

Jimmy virou-o, leu o que lá vinha escrito, e depois olhou para ela, chocado.

— O que vem a ser isto?

— Eu acho que o papel fala por si.

Jimmy deitou uma olhadela por cima do ombro; baixou a voz.

— Quero dizer, porque é que me deu isto?

— É o pagamento. Pelo trabalho extraordinário que fez no hospital.

Ele devolveu-lhe o cheque como se fosse veneno.

— Eu não exigi dinheiro por isso; só quis ajudar. Eu não quero o seu dinheiro.

Por uma fracção de segundos, a dúvida deflagrou com uma centelha de esperança no peito de Vivien; contudo, ela aprendera a conhecê-lo bem e reparou na pressa com que ele desviou o olhar do seu. Vivien não se sentiu justificada com a vergonha dele, apenas mais triste.

— Eu sei que sim, Jimmy, e que nunca exigiu dinheiro por isso. Mas eu quero que fique com ele. Tenho a certeza de que terá destino a dar-lhe. Aproveite-o para ajudar o seu pai — sugeriu-lhe ela. — Ou a sua encantadora Dolly... Se isso o faz sentir mais tranquilo, encare isso como minha forma de a recompensar pela grande amabilidade dela ao devolver-me o medalhão. Aproveite-o para se casar, para ter um casamento perfeito, tal como é vosso desejo, para se irem embora e começarem uma nova vida... a beira-mar, as crianças, um lindo futuro à vossa frente.

A voz dele estava impávida.

— Julguei que me tinha dito que não pensava no futuro.

— Referia-me ao meu.

— O que é que a leva a fazer isto?

— O facto de gostar de si. — Pegou-lhe nas mãos, segurando-lhas com firmeza. Eram umas mãos quentes, inteligentes, carinhosas. — Eu acho que o Jimmy é um bom homem, Jimmy, um dos melhores que conheci até hoje, e quero que seja feliz na vida.

— Isso soa-me mesmo a despedida.

— A sério?

Ele assentiu com a cabeça.

— Então, se calhar, é porque é. — Ela aproximou-se então dele e, após uma muito breve hesitação, beijou-o, ali mesmo, no meio da rua; um beijo delicado, ao de leve, posto o que lhe agarrou a camisa e se deixou ficar com a testa encostada ao peito dele, confiando aquele momento à sua memória. — Adeus, Jimmy Metcalfe — disse por fim. — E desta vez... desta vez nunca mais nos haveremos de encontrar.

*

Jimmy ficou sentado na estação durante muito tempo a olhar para o cheque. Sentia-se atraiçoado, furioso com ela, mesmo sabendo que estava a ser extremamente injusto. Só que... porque haveria Vivien de lhe ter oferecido semelhante coisa? E porquê logo agora, quando o plano de Dolly já tinha sido abandonado e se estavam a tornar verdadeiros amigos? Teria algo que ver com a misteriosa doença dela? As palavras dela deixavam transparecer um certo tom conclusivo; Jimmy ficara preocupado.

Dia após dia, enquanto se esquivava às perguntas do pai sobre quando é que a sua encantadora namorada os viria visitar outra vez, Jimmy olhava para o cheque e interrogava-se que destino lhe haveria de dar. Havia uma parte dele que tinha vontade de rasgar aquela coisa nefanda em quantos bocadinhos conseguisse; mas não rasgou. Não era parvo; sabia que era a resposta a todas as suas preces, mesmo deixando-o a arder de vergonha e frustração, uma estranha mágoa inominável.

Na tarde em que combinara encontrar-se com Dolly para irem outra vez tomar chá ao Lyons, Jimmy ponderou se haveria ou não de levar o cheque com ele. Fartou-se de dar voltas e mais voltas ao assunto; tirava-o de dentro do Peter Pan, enfiava-o no bolso e depois tornava a guardá-lo dentro do livro, escondendo o maldito papel longe da vista. Via que horas eram. E depois voltava a fazer o mesmo. Começava a fazer-se tarde. Sabia que Dolly estaria já à sua espera; ela telefonara-lhe para a redacção do jornal e dissera-lhe que tinha uma coisa importante para lhe mostrar. Deveria estar naquele instante atenta à porta, os olhos grandes e brilhantes, e Jimmy nunca haveria de ser capaz de lhe explicar que perdera uma coisa rara e preciosa.

Sentindo-se como se as sombras do mundo se estivessem a fechar em volta dele, Jimmy guardou o Peter Pan no bolso e foi ao encontro da noiva.

*

Dolly estava à espera dele no mesmo lugar em que estivera quando lhe apresentara o plano. Reparou nela de imediato porque trazia aquele seu horrível casaco de peles vestido; já não estava frio para usar peles, mas Dolly recusava-se a largá-lo. Na ideia de Jimmy, o casaco estava a tal ponto associado àquele estratagema abominável que lhe bastava olhar para ele para sentir as náuseas a tomar conta dele.

— Desculpa lá o atraso, Doll. Eu...

— Jimmy. — Os olhos dela brilhavam. — Consegui.

— Conseguiste o quê?

— Olha. — Retirou uma fotografia quadrada de dentro de um envelope que segurava entre os dedos de ambas as mãos e fê-la deslizar pelo tampo da mesa até ele. — Até a revelei sozinha.

Jimmy pegou nela e, por breves instantes, antes de se conseguir conter, sentiu um arroubo de ternura. Fora tirada no hospital no dia da peça. Via-se Vivien nitidamente, e Jimmy também, ao lado dela, uma mão a tocar-lhe no braço. Estavam a olhar um para o outro; ele lembrava-se daquele momento, fora quando reparara na nódoa negra que ela tinha... E foi então que compreendeu para o que estava a olhar. — Doll...

— É perfeita, não é? — Exibia um sorriso rasgado, orgulhoso, como se lhe tivesse feito um grande favor; quase como se estivesse à espera de que ele lhe agradecesse.

Mais alto do que era sua intenção, Jimmy respondeu-lhe:

— Mas nós tínhamos decidido não fazer isso... Tu disseste que tinha sido um erro, que nunca me deverias ter pedido para fazer aquilo.

— A ti, Jimmy. Eu nunca te deveria ter pedido a ti.

Jimmy lançou nova olhadela à fotografia e, em seguida, fixou-se outra vez em Doll. O olhar dele era uma luz implacável que revelava todas as rachas no seu lindo vaso. Ela não lhe mentira; ele simplesmente percebera mal. Dolly nunca tivera qualquer interesse nas crianças, na peça ou tão-pouco em fazer as pazes com Vivien. Limitara-se a ver ali uma oportunidade.

— Eu faria melhor se... — A expressão dela perdeu o alento. — Mas porque é que estás com esse ar? Julguei que fosses ficar contente. Por acaso não mudaste de ideias, pois não? Eu tive tanto cuidado a escrever a carta, Jimmy, não a insulto, longe disso, e ela é a única pessoa que irá ver a fotog...

— Não. — Jimmy conseguiu recuperar a voz. — Ai isso é que não vai.

— Jimmy?

— Era sobre isso que eu te queria falar. — Encafuou a fotografia no envelope e devolveu-lho com brusquidão. — Livra-te disso, Doll. Nós agora já não precisamos disso para nada.

— Não precisamos como? — Os olhos dela semicerraram-se de desconfiança.

Jimmy tirou o Peter Pan do bolso, pegou no cheque e estendeu-lho por cima da mesa. Dolly virou-o cautelosamente.

O rubor subiu-lhe às faces.

— O que é isto?

— Foi ela que mo deu... para nós. Pela ajuda na peça do hospital e para te agradecer por lhe teres devolvido o medalhão.

— A sério? — Vieram-lhe lágrimas aos olhos, não de tristeza mas de alívio. — Mas, Jimmy... são dez mil libras.

— Pois são. — Ele acendeu um cigarro enquanto Dolly olhava embasbacada para o cheque.

— Mais do que eu jamais me teria atrevido a exigir-lhe.

— Pois é.

Dolly precipitou-se então para ele para o beijar, mas Jimmy não sentiu nada.

*

Nessa tarde, Jimmy deu um longo passeio por Londres. Doll ficara com o exemplar do Peter Pan — sentia-se avesso a separar-se dele, mas ela arrancara-lho da mão e suplicara-lhe que a deixasse levá-lo para casa. E que motivo lhe poderia ele adiantar que explicasse a sua relutância em entregá-lo nas mãos dela? O cheque, porém, ficara com ele, e pesava-lhe agora como um fardo dentro do bolso à medida que deambulava pelas ruas devastadas da cidade. Sem a máquina fotográfica, não conseguia descortinar as pequenas vinhetas poéticas da guerra, via simplesmente um caos terrível. De uma coisa ele tinha a certeza: seria incapaz de tocar num cêntimo que fosse daquele dinheiro e estava convencido de que, se Doll tocasse, nunca mais na vida seria capaz de olhar para ela.

Estava a chorar quando chegou ao quarto, lágrimas ardentes de frustração que limpou com as costas da mão, porque aquilo estava tudo errado, e ele não sabia por onde começar para pôr as coisas outra vez nos eixos. O pai reparou que ele vinha transtornado e perguntou-lhe se uma das crianças da vizinhança se tinha metido com ele na escola —quereria ele que o pai fosse lá metê-los na ordem? O coração de Jimmy teve um sobressalto, tal era o seu desejo impossível de voltar para trás, de ser criança outra vez. Deu um beijo no cocuruto ao pai e disse-lhe que ficasse descansado e, nesse momento, reparou na carta que estava em cima da mesa, dirigida ao Sr. J. Metcalfe com uma caligrafia miúda e regular.

O remetente era de uma mulher chamada Katy Ellis, e estava a escrever a Jimmy, explicava-lhe, por causa da Sr.ª Vivien Jenkins. À medida que Jimmy lia a carta, o seu coração começou a bater violentamente de fúria, de amor e, por fim, de determinação. Katy Ellis tinha alguns motivos bastante convincentes para desejar que ele se afastasse de Vivien, mas tudo o que Jimmy sentia era a necessidade desesperada que tinha de ir atrás dela. Por fim, compreendeu tudo o que anteriormente lhe causara confusão.

*

Quanto à carta que Dolly Smitham escreveu a Vivien Jenkins e à fotografia dentro do envelope: caíram no esquecimento. Uma vez que Dolly já não precisava nem de uma, nem de outra, não foi à procura do envelope e, por conseguinte, não deu por que tinha desaparecido. Mas desaparecera, de facto. Fora arrastado pela manga do grosso casaco branco quando ela agarrara o cheque e se inclinara entusiasticamente para beijar Jimmy. Detivera-se na beira da mesa, vacilara uns segundos, até que, por fim, caíra e fora enfiar-se bem fundo na estreita fresta entre o banco e a parede.

O envelope ficou completamente escondido da vista de quem passava, e talvez assim tivesse continuado, a apanhar pó, a servir de repasto às baratas, a desintegrar-se ao longo do constante fluxo e refluxo das estações, até muito depois de os nomes que continha não passarem de ecos de vidas em tempos vividas. Todavia, o destino tem coisas engraçadas, e não foi isso que aconteceu.

Nessa noite, enquanto Dolly dormia, enroscada na sua cama estreita em Rillington Place, a sonhar com a cara da Sr.ª White quando Dolly lhe anunciara que ia deixar a pensão, um Luftwaffe Heinkel 111 de regresso a Berlim lançou uma bomba-relógio que se despenhou silenciosamente através do ameno céu nocturno. O piloto teria preferido atingir Marble Arch, mas estava cansado e com fraca pontaria e, assim, a bomba aterrou no sítio onde antigamente se achava o gradeamento de ferro, mesmo em frente do Lyons Corner House. Explodiu às quatro horas da madrugada seguinte, no momento em que Dolly, que acordara cedo, demasiado excitada para conseguir dormir, estava sentada na cama, a folhear o exemplar do Peter Pan que trouxera para casa do restaurante, e a escrever o seu nome — Dorothy — com todo o cuidado no cimo da dedicatória. Fora amoroso da parte de Vivien oferecer-lho — Dolly ficava triste de pensar até que ponto a julgara mal, sobretudo quando a fotografia de Jimmy, os dois juntos depois da peça, escorregou de entre as páginas onde estava enfiada. Estava contente por agora serem amigas. A bomba arrasou o restaurante e metade da casa vizinha. Houve vítimas, mas não tantas como se chegou a recear, e a equipa de ambulâncias do Quartel 39 respondeu prontamente, passando as ruínas a pente fino à procura de sobreviventes. Uma bombeira prestável chamada Sue, cujo marido, Don, voltara traumatizado da batalha de Dunkirk e cujo filho único fora levado para uma localidade de Gales com um nome que ela era incapaz de pronunciar, estava a chegar ao fim do turno quando reparou em qualquer coisa a espreitar por entre os escombros.

Sue esfregou os olhos e bocejou, pensou em deixar ficar aquilo onde estava, mas depois acabou por se baixar para o apanhar. Era uma carta, constatou ela, endereçada e selada, mas que ficara por enviar. Como seria de prever, não a leu, mas o envelope não estava fechado e a fotografia escorregou-lhe para a palma da mão. Via agora com perfeita nitidez à medida que a aurora nascia luminosa na orgulhosa Londres a arder em fogo lento; a fotografia era de um homem e de uma mulher, amantes — bastou-lhe olhar para eles para perceber isso. A maneira como o rapaz tinha os olhos fixos na bonita jovem; não conseguia desviá-los dela. Ele não sorria como ela, mas tudo na sua expressão dizia a Sue que o homem da fotografia amava aquela mulher do fundo do coração.

Sorriu para consigo, um pouco triste, a recordar-se de como ela e Don em tempos costumavam olhar um para o outro, e em seguida fechou a carta e guardou-a no bolso. Enfiou-se no fiel Daimler castanho ao lado da colega de turno, Vera, e regressaram ao quartel. Sue acreditava no poder de manter o optimismo e de ajudar o próximo; meter a carta dos amantes no correio seria a sua primeira boa acção do novo dia que despontava. A caminho de casa, deitou o envelope no marco e, durante o resto da sua longa e, em grande parte, feliz vida, lembrou-se ocasionalmente daqueles dois amantes, esperando que as coisas lhes tivessem corrido bem.