Greenacres, 2011
Outro dia estival em pleno Outono e uma neblina dourada de calor pairava por cima dos campos. Depois de passar toda a manhã sentada com a mãe, Laurel foi substituída por Rose e deixou as duas com a ventoinha de pé alto a girar devagarinho em cima da cómoda enquanto se aventurava fora de portas. A sua ideia inicial fora dar uma saltada até ao regato para desentorpecer as pernas, mas a casa da árvore chamara-lhe a atenção e, ao invés, decidira subir até lá. Seria a primeira vez em cinquenta anos que entrava na casa da árvore.
Santo Deus, mas a porta era muito mais baixa do que ela tinha memória. Laurel trepou pela escada, o traseiro espetado numa posição pouco feliz, e depois sentou-se de pernas cruzadas, a inspeccionar o interior da casa. Sorriu ao reparar no espelho de Daphne ainda pousado de lado na trave-mestra. A acção do tempo provocara rupturas e lascas na superfície de mercúrio, de modo que, quando Laurel contemplou o seu reflexo, a imagem apareceu-lhe em furta-cores, como se se visse através de água. Estar naquele lugar de recordações da infância e ver o seu rosto adulto enrugado a devolver-lhe o olhar causava-lhe uma sensação deveras estranha. Como Alice a cair pela toca do coelho; ou melhor, a cair outra vez, cinquenta anos volvidos, descobrindo que a única coisa que mudara fora ela própria.
Laurel tornou a pôr o espelho onde estava e permitiu-se deitar uma olhadela pela janela, tal como fizera naquele dia; pouco lhe faltava para ouvir Barnabé a ladrar, ver a galinha de uma asa só às voltas na terra, a luz ofuscante do Verão prolongado a reflectir-se nas pedras do acesso. Estava praticamente convencida de que, se desse uma espreitadela à casa, iria ver o hula hoop de Iris a bambolear-se ao sabor da brisa contra a parede em que estava apoiado. E, por conseguinte, escusou-se a olhar. Por vezes, a distância dos anos — tudo o que estava contido no fole da sua concertina — causava dores físicas. Laurel preferiu afastar-se da janela.
Levara a fotografia de Dorothy e Vivien consigo para a casa da árvore, a que Rose descobrira dentro do Peter Pan, e tirou-a do bolso. Juntamente com o guião da própria peça, de que nunca se separara desde o seu regresso de Oxford; tornara-se uma espécie de talismã, o ponto de partida para aquele mistério que se empenhava em deslindar e — esperava ela —, com um pouco de sorte, a chave para a sua solução. As duas mulheres não tinham sido amigas, dissera-lhe Gerry, e, no entanto, alguma relação de amizade deveria ter existido entre ambas, pois que outra explicação haveria para aquela fotografia?
Decidida a encontrar uma pista, Laurel perscrutou-as com toda a atenção. Estavam de braço dado enquanto sorriam ao fotógrafo. Onde fora tirada?, interrogou-se ela. Numa sala algures, isso era óbvio; uma sala com um telhado inclinado — um sótão, talvez? Não se via mais ninguém na fotografia, contudo, uma pequena sombra escura e desfocada atrás das duas mulheres poderia ser outra pessoa a passar de fugida — Laurel chegou a fotografia mais perto do rosto —, uma pessoa baixa, a menos que a perspectiva lhe estivesse a pregar alguma partida. Uma criança? Talvez. Embora isso não fosse de grande ajuda, havia crianças por todo o lado. (Ou não houvera, na Londres dos tempos da guerra? Muitas tinham sido dali levadas, sobretudo nos primeiros anos, durante o período dos bombardeamentos aéreos.)
Laurel soltou um suspiro de frustração. Não valia a pena; por muito que se esforçasse, nunca passaria de conjecturas e suposições — cada alternativa era tão plausível como outra, e nada do que descobrira até ao momento lhe dava um indício concreto quanto às circunstâncias em que aquela fotografia fora tirada. Talvez excepto o livro em que estivera todas aquelas décadas aconchegada. Significaria isso alguma coisa? Teriam os dois objectos formado sempre um par? Teriam a mãe e Vivien ido assistir a uma peça juntas? Ou tudo não passaria de mais uma coincidência exasperante?
Concentrou a sua atenção em Dorothy, pondo os óculos e dirigindo a fotografia para a luz que entrava pela janela aberta, a fim de conseguir descortinar melhor cada pormenor granuloso. Ocorreu a Laurel que havia qualquer coisa na expressão da mãe que não batia certo; estava tensa, como se a extrema boa disposição que exibia ao fotógrafo não fosse de todo genuína. Não que fosse antipatia — isso não; não se ficava com a impressão de que não gostasse da pessoa que estava atrás da objectiva —, mas antes que a felicidade fazia parte da actuação. Que era motivada por outra emoção para além de simples alegria.
— Ei!
Laurel sobressaltou-se e soltou um grito a fazer lembrar o pio de uma coruja. Olhou para a entrada da casa. Gerry achava-se ao cimo da escada, a rir-se.
— Oh, Lol! — disse ele, abanando a cabeça. — Tu devias ver a tua cara.
— Pois. Muito engraçada, tenho a certeza.
— Era mesmo.
Laurel ainda tinha o coração aos pulos.
— Para uma criança, admito que sim. — Dirigiu o olhar para o caminho de acesso vazio. — Como foi que aqui chegaste? Não ouvi nenhum carro.
— Temos andado a trabalhar num sistema de teletransporte... Sabes como é, dissolver a matéria em nada e em seguida transmiti-la. Até agora as coisas têm-me corrido bastante bem, embora receie que me possa ter esquecido de metade do cérebro em Cambridge.
Laurel sorriu com paciência exagerada. Por muito encantada que estivesse por ver o irmão, não se sentia com disposição para brincadeiras.
— Não? Pronto, está bem. Apanhei o autocarro e vim a pé desde a aldeia. — Gerry entrou na casa e sentou-se ao lado da irmã. Parecia um gigante trinca-espinhas e desgrenhado, esticando o pescoço comprido para abarcar cada canto da casa. — Meu Deus, há quanto tempo eu não vinha cá acima. Agrada-me imenso o jeito que deste à casa.
— Gerry...
— Quero eu dizer, é como o teu apartamento de Londres, só que é menos pretensioso, não achas? Mais natural.
— Já acabaste?
O irmão fingiu ponderar, batendo com a ponta do indicador ao de leve no queixo, e, por fim, afastou o cabelo rebelde da testa.
— Sou capaz disso.
— Óptimo. Nesse caso, és capaz de ter a delicadeza de me contar o que foi que descobriste em Londres? Não pretendo ser inoportuna, mas estou a tentar resolver um mistério de família bastante importante.
— Então, está bem. Se pões as coisas nesses termos... — Gerry trazia uma sacola de lona verde a tiracolo e passou a correia por cima da cabeça, os seus dedos compridos a vasculharem o seu interior até encontrarem um pequeno caderno de apontamentos. Laurel sentiu uma súbita consternação ao vê-lo, mas mordeu a língua e escusou-se a fazer comentários acerca do seu estado lastimoso: bocados de papel a sair por todos os lados, post-its enrolados em cima e em baixo, uma nódoa circular de café na capa. O homem tinha um doutoramento e muito mais, presumia-se que soubesse tirar apontamentos como devia ser, oxalá fosse um ás a encontrá-los quando voltasse a precisar deles.
— Enquanto estás aí a folhear... — disse ela, decidida a manter a boa disposição. — Tenho andado a pensar naquilo que me disseste no outro dia, ao telefone.
— Hum? — O irmão continuou a procurar entre a papelada.
— Tu disseste que a Dorothy e a Vivien não eram amigas, que mal se conheciam.
— É verdade.
— Eu só... Lamento, mas não compreendo como isso seja possível. Achas que se poderá dar o caso de teres percebido mal? Olha... — mostrou-lhe a fotografia, as duas mulheres de braço dado, a sorrir para a objectiva — ... o que tens a dizer a isto?
Gerry tirou-lha da mão.
— Eu tenho a dizer que eram duas jovens muito bonitas. A qualidade da película sofreu grandes progressos desde então. O preto e branco tem um acabamento muito mais problemático do que a cor...
— Gerry — admoestou-o Laurel.
— E — ele devolveu-lhe — eu tenho a dizer que tudo o que esta fotografia me diz é que, por um instante, há setenta anos, a nossa mãe deu o braço a outra mulher e sorriu para uma objectiva.
Maldita lógica científica enfadonha. Laurel fez uma careta.
— Então, e que me dizes a isto? — Foi buscar o velho exemplar do Peter Pan e abriu-o no frontispício. — Tem uma dedicatória, apontando um dedo às linhas manuscritas. — Olha.
Gerry pousou os papéis no colo e pegou no livro. Leu a dedicatória.
— «À Dorothy. Um verdadeiro amigo é uma luz na escuridão. Vivien.»
Foi mesquinho da sua parte, reconhecia, mas, nesse momento, Laurel não pôde conter uma ligeira sensação de triunfo.
— Isso já é um pouco mais difícil de refutar, não é?
Ele enfiou a almofada do polegar na cova do queixo e franziu a testa, ainda a olhar fixamente para a página.
— Isso, admito, é um pouco mais espinhoso. — Chegou o livro mais perto, arqueou as sobrancelhas num esforço de concentração e, em seguida, inclinou o livro para a luz. Nesse momento, Laurel viu um sorriso rasgar-se na cara do irmão.
— O que foi? — indagou ela. — Que se passa?
— Bom, eu não estava à espera de que tu reparasses, claro... Vocês, os das humanidades, nunca têm bom olho para os pormenores.
— E então, Gerry?
O irmão devolveu-lhe o livro.
— Vê bem com atenção. A mim, parece-me que o texto da dedicatória não foi escrito com a mesma caneta que o nome por cima.
Laurel aproximou-se da janela da casa da árvore e deixou que a luz do Sol incidisse directamente na página. Ajeitou os óculos de ver ao perto e fixou o olhar na inscrição.
Bom, mas que detective de trazer por casa que ela saíra. Laurel mal podia acreditar que só agora desse por aquilo. O texto sobre a amizade fora escrito com uma caneta e as palavras «À Dorothy», em cima, embora também a tinta preta, haviam sido escritas com outra, ligeiramente mais fina. Era possível que Vivien tivesse começado a escrever com uma e que depois mudasse para outra (a tinta da primeira poderia ter falhado), mas não era provável, pois não?
Laurel teve a sensação desencorajante de que estava a agarrar o vazio, sobretudo quando, à medida que continuou a observar, começou a aperceber-se de ligeiras variações de estilo nas caligrafias. A voz saiu-lhe sumida e entrecortada.
— Não estás a sugerir que a mãe foi capaz de ter escrito o seu próprio nome no livro, pois não? Para fingir que tinha sido uma prenda da Vivien?
— Eu não estou a sugerir nada. Estou simplesmente a dizer que foram usadas duas canetas diferentes. Mas sim, é uma possibilidade a ter em conta, sobretudo à luz do que o Dr. Rufus observou.
— Pois — disse Laurel, fechando o livro. — O Dr. Rufus... Conta-me tudo o que descobriste, Gerry. Tudo o que ele escreveu acerca desta... — ela agitou os dedos — doença obsessiva da mãe.
— Logo para começar, não se tratava de uma doença obsessiva, apenas de uma vulgar obsessão.
— E faz alguma diferença?
— Bom, faz. A primeira é uma definição clínica, a outra é um mero traço de personalidade. Não há dúvida de que o Dr. Rufus considerava que ela tinha lá os seus problemas... já lá chego... mas nunca foi doente dele. O Dr. Rufus conheceu-a em miúda... A mãe e a filha dele eram amigas de infância em Coventry. Ele simpatizava com ela, pareceu-me a mim, e interessava-se muito pela sua vida.
Laurel olhou de relance para a fotografia que tinha na mão, a sua jovem e linda mãe.
— Não me admiro nada de que simpatizasse.
— Encontravam-se regularmente para almoçar...
— ... e ele, por um mero acaso, deu-lhe para apontar quase tudo quanto ela lhe dizia? Mas que amigo que ele me saiu.
— O que para nós, veio mesmo a propósito.
Laurel teve de admitir que assim era.
Gerry fechou o seu caderno de apontamentos e lançou uma olhadela ao post-it colado na capa.
— Assim, de acordo com o Dr. Rufus, ela sempre foi uma rapariga extrovertida, brincalhona, divertida e com uma imaginação muito fértil... Tudo o que nós sabemos que a mãe é. As origens dela foram bastante modestas, mas estava ansiosa por levar uma vida deslumbrante. O Dr. Rufus começou a interessar-se por ela quando andava a fazer uma investigação sobre o narcisismo...
— Narcisismo!?
— ... em particular, sobre o papel da imaginação como mecanismo de defesa. Reparou que algumas das coisas que a mãe dizia e fazia em adolescente correspondiam à lista de traços em que andava a trabalhar. Nada de muito problemático, apenas um certo nível de egocentrismo, necessidade de ser admirada, uma tendência para se considerar excepcional, sonhos de ser bem-sucedida e popular...
— Isso condiz tal e qual com todos os adolescentes que tenho conhecido...
— Exactamente, e é uma escala móvel. Alguns traços narcísicos são vulgares e normais, outras pessoas aproveitam esses mesmos traços de formas que são generosamente recompensadas pela sociedade.
— Como, por exemplo?
— Ah, agora, assim de repente, não sei... os actores... — Ofereceu-lhe um sorriso irónico. — Agora a sério, apesar do que Caravaggio gostaria de nos fazer crer, não se trata de passar o dia inteiro a olhar para o espelho.
— Também me parece que não. Caso contrário, a Daphne estaria com um grande problema.
— Mas é um facto que as pessoas com tendência para tipos de personalidade narcísica são susceptíveis a alimentar ideias obsessivas e fantasias.
— Como amizades imaginárias com pessoas por quem têm admiração?
— Sim, precisamente. Em muitos casos, é apenas uma ilusão inofensiva que acaba por passar, sem que o objecto da paixão se aperceba disso sequer; noutros, porém, se a pessoa é obrigada a enfrentar o facto de que a fantasia não corresponde à realidade... se por acaso há alguma coisa que parte o espelho, por assim dizer... bom, digamos apenas que são o tipo de pessoa que leva as rejeições muito a peito.
— E que tentam vingar-se?
— Não iria tão longe. Embora o mais provável é que vissem nisso um acto de justiça e não de vingança.
Laurel acendeu um cigarro.
— Os apontamentos do Rufus não entram em grandes pormenores, mas parece que, no início dos anos 40, quando a mãe tinha os seus dezanove anos, desenvolveu duas grandes fantasias: a primeira dizia respeito à patroa... Estava convencida de que a velha aristocrata a considerava como se fosse sua filha e lhe iria deixar a maior parte das propriedades ancestrais...
— E ela fez isso?
Gerry inclinou a cabeça e aguardou pacientemente que Laurel dissesse:
— Não, claro que não. Continua...
— A segunda era a sua amizade imaginária com Vivien. Elas conheciam-se, sem dúvida, mas não eram nem de perto nem de longe tão chegadas como a mãe julgava.
— E depois aconteceu qualquer coisa que veio estragar a fantasia?
Gerry confirmou com um aceno de cabeça.
— Não consegui descobrir muitos pormenores, mas o Rufus escreveu que a mãe se sentiu «menosprezada» pela Vivien Jenkins; as circunstâncias não ficaram claras, mas eu creio que a Vivien negou abertamente que a conhecia. A mãe ficou magoada e constrangida, para não falar em zangada, mas... — reflectiu por momentos — ... pronto, até que, um mês depois, mais coisa menos coisa, o Rufus foi avisado de que ela tinha maquinado um plano para «pôr as coisas outra vez nos eixos».
— A mãe disse-lhe isso?
— Não, acho que não... — Gerry deu uma vista de olhos ao post-it. — Ele não especifica como foi que descobriu, mas eu fiquei com a impressão de que... qualquer coisa na maneira como se exprimia... que a informação não lhe chegou directamente através da mãe.
Laurel retraiu o canto da boca, a ponderar. A expressão «pôr as coisas outra vez nos eixos» trouxe-lhe à memória a sua visita a Kitty Barker, em especial o relato da velha senhora da noite em que ela e a mãe tinham saído para dançar. O comportamento extravagante de Dolly, o «plano» de que não se cansava de falar, a amiga que tinha trazido com ela... uma rapariga com quem fora criada em Coventry. Laurel puxou uma fumaça pensativa. A filha do Dr. Rufus, só podia ser, que depois foi contar ao pai o que ouvira.
Nesse momento, Laurel teve pena da mãe: rejeitada por uma amiga, denunciada por outra. Ainda se lembrava bem da intensidade voraz dos seus próprios sonhos acordados e das suas fantasias de adolescente; fora um autêntico alívio para ela quando enveredara pela carreira de actriz e as pudera canalizar para as suas criações artísticas. Dorothy, porém, não tivera essa oportunidade...
— Então, e o que foi que aconteceu, Gerry? — inquiriu ela. — A mãe limitou-se a esquecer a fantasia, voltar a ser o que era, assim, como por artes mágicas? — A expressão «artes mágicas» trouxe à memória de Laurel a história do crocodilo que a mãe lhe contara. Não era exactamente aquele género de mudança que ela pretendera sugerir com a história, pois não? Uma transição da jovem Dolly das recordações londrinas de Kitty Barker para a Dorothy Nicolson de Greenacres.
— Sim.
— Isso pode acontecer?
O irmão encolheu os ombros.
— Pode acontecer porque aconteceu de facto. A mãe é a prova disso mesmo.
Laurel abanou a cabeça, a olhar para o irmão, presa de espanto.
— Vocês, os cientistas, acreditam cegamente no que as provas vos dizem.
— Com certeza. É por isso que se lhes chama provas.
— Mas como, Gerry... — Laurel não se contentava com tão pouco. — Como foi que ela se libertou desses... traços?
— Bom, se consultares as teorias do nosso fiel amigo Lionel Rufus, tudo leva a crer que, embora haja pessoas que acabem por desenvolver um distúrbio de personalidade genuíno, a maioria acaba simplesmente por ultrapassar os traços da adolescência quando atinge a idade adulta. O que mais importa destacar na situação da mãe, no entanto, é a teoria dele, segundo a qual um acontecimento traumático grave... sabes, um choque, perda ou luto... algo alheio à esfera pessoal imediata do narcisista pode, nalguns casos, «curá-lo».
— Trazê-los novamente à realidade, é isso que queres dizer? Obrigá-los a olhar para fora ao invés de para dentro?
— Precisamente.
Fora o que haviam conjecturado quando se tinham encontrado naquela noite em Cambridge: que a mãe se envolvera em qualquer coisa que correra pessimamente mal e que se tornara uma pessoa melhor por causa disso.
— Calculo que o mesmo se passe com todos nós — disse Gerry. — Vamos crescendo e mudando consoante as experiências com que a vida nos presenteia.
Laurel assentiu pensativamente com a cabeça e acabou de fumar o cigarro. Gerry estava a arrumar o caderno e tudo indicava que tinham chegado ao fim do caminho, mas foi então que algo lhe ocorreu.
— Tu há bocado disseste que o Dr. Rufus andava a estudar a imaginação enquanto mecanismo de defesa. Defesa contra o quê, Gerry?
— Imensas coisas, embora o Dr. Rufus se mostrasse particularmente convencido de que as crianças que se sentem deslocadas no seio da família... sabes, as crianças que os pais mantêm à distância ou consideram esquisitas ou diferentes... são susceptíveis de desenvolver traços narcísicos como forma de autodefesa.
Laurel ponderou na relutância da mãe em contar pormenores à família a respeito do seu passado em Coventry. Sempre partira do princípio de que essa atitude materna se prendesse com o desgosto da perda; agora, porém, questionava-se se o seu silêncio não se devia em parte a outra coisa. «Eu costumava meter-me em sarilhos quando era miúda...», recordava-se Laurel de ouvir a mãe dizer (habitualmente, quando a própria Laurel se portava mal). «Sempre me senti diferente dos meus pais.» E se a jovem Dorothy Smitham nunca tivesse sido feliz em casa? E se ela toda a vida se tivesse sentido uma intrusa e a solidão a tivesse motivado a criar fantasias grandiosas, numa tentativa desesperada por preencher o vazio afectivo que ia no seu íntimo? E se tudo tivesse dado para o torto e os sonhos dela se tivessem desmoronado e ela tivesse sido obrigada a conviver com esse facto, até finalmente lhe ter sido oferecida uma segunda oportunidade, uma oportunidade para pôr o passado para trás das costas e começar de novo, para ser, desta feita, a pessoa que sempre quisera ser, rodeada por uma família que a adorava?
Não admirava que tivesse ficado tão transtornada quando Henry Jenkins, ao fim de todo aquele tempo, lhe aparecera à frente. Deveria ter visto nele o autor da morte dos seus sonhos. E a sua chegada levara o passado a entrar em rota de colisão com o presente como num autêntico pesadelo. Talvez tivesse sido o pânico a impeli-la a empunhar a faca. Pânico misturado com o medo de perder a família que criara e que adorava. Nada disto deixava Laurel mais descansada a respeito do que vira, mas contribuía seguramente para ajudar a explicar o sucedido.
Mas, então, qual fora o «acontecimento traumático grave» que a mudara àquele ponto? Fora algo relacionado com Vivien, com o plano da mãe, Laurel seria capaz de apostar a vida por isso. Mas o quê, exactamente? Haveria alguma forma de descobrir mais para além do que Laurel já sabia? Mais algum lugar onde pudesse procurar?
Laurel lembrou-se uma vez mais do malão trancado no sótão, o sítio onde a mãe escondera o livro da peça e a fotografia. Pouco mais havia lá dentro, apenas o velho casaco branco, a estatueta de madeira do Senhor Punch e o cartão de agradecimento. O casaco fazia parte da história — o bilhete com data de 1941 deveria seguramente ter sido o mesmo que a mãe comprara quando fugira de Londres —, enquanto a proveniência da estatueta era impossível de averiguar... Mas o que dizer do cartão com o selo da Coroação da Rainha no envelope? Algo naquele cartão despertara em Laurel uma leve sensação de déjà-vu quando o encontrara — perguntou-se se não valeria a pena lançar-lhe outra olhadela.
*
Mais tarde, quando o calor do dia começava a amainar e anoitecia lá fora, Laurel deixou os irmãos entretidos com os álbuns de fotografias e escapuliu-se para o sótão. Retirara a chave da gaveta da mesa-de-cabeceira da mãe sem a mais leve pontada de remorso. Talvez o facto de saber exactamente o que a esperava dentro do malão atenuasse a bisbilhotice. Isso, ou então a sua bússola moral estava irremediavelmente moribunda. Fosse qual fosse o caso, não se demorou, limitando-se a pegar no que fora buscar e a descer apressadamente a escada.
Dorothy ainda estava a dormir quando Laurel foi devolver a chave, o lençol a cobrir-lhe completamente o corpo e o rosto pálido em contraste com a almofada. A enfermeira estivera lá em casa e já se fora embora havia uma hora e Laurel ajudara-a a dar banho à mãe. Enquanto lhe vestia a manga do pijama, pensara: «Estes são os braços que me embalaram»; ao segurar-lhe na mão velha, muito velha, dera por ela a tentar lembrar-se da sensação inversa, dos seus dedos miúdos resguardados na palma da mãe. Até o tempo, aquele calor extemporâneo, as lufadas de ar matizadas de sol que desciam pela chaminé lhe provocavam uma nostalgia inexplicável. «Não há nada de inexplicável nisso», dizia uma voz na cabeça de Laurel. «A tua mãe está a morrer... é mais do que natural que te sintas nostálgica.» Laurel não gostava daquela voz e enxotou-a.
Rose espreitou pela porta e disse, baixinho:
— A Daphne acabou de telefonar. O avião dela chega a Heathrow amanhã ao meio-dia.
Laurel assentiu com a cabeça. Ainda bem que assim era. Quando a enfermeira se preparava para se ir embora, dissera-lhes, com uma gentileza que Laurel apreciara, que era altura de chamar a família a casa. «Já não lhe resta muito caminho a percorrer», afirmara ela. «A sua longa viagem está quase no fim.» E se fora longa, a sua viagem... Dorothy vivera toda uma vida antes de Laurel nascer; uma vida que a filha só agora começava a vislumbrar.
— Precisas de alguma coisa? — perguntou-lhe Rose, inclinando a cabeça e fazendo com que as ondas prateadas do cabelo lhe caíssem sobre um dos ombros. — Apetece-te um chá?
— Não, obrigada — respondeu. E a irmã foi-se embora. Começou a ouvir sinais de movimento lá em baixo, na cozinha: o murmúrio da chaleira, chávenas dispostas em cima da bancada, os talheres a chocalhar dentro da gaveta. Eram barulhos reconfortantes da vida em família e Laurel sentiu-se agradecida por a mãe estar em casa para os poder ouvir. Aproximou-se da sua cama e sentou-se numa cadeira, acariciando o rosto de Dorothy ao de leve com as pontas dos dedos.
Ver as suaves oscilações do peito da mãe provocava-lhe uma certa tranquilidade. Laurel interrogou-se se, mesmo a dormir, ela seria capaz de ouvir o que se passava; se estaria nesse instante a pensar: «Os meus filhos estão lá em baixo, os meus filhos crescidos, felizes, saudáveis e a desfrutar da companhia uns dos outros.» Era difícil de saber. O sono da mãe era agora sem dúvida mais descansado; desde a outra noite que não tivera mais pesadelos. Apesar de os seus momentos de lucidez desperta serem raros, quando aconteciam, eram radiosos. Parecia ter superado a inquietação — a culpa, supunha Laurel — que viera atormentá-la nas últimas semanas e ultrapassado o lugar onde reinava a contrição.
Laurel sentiu-se grata por ela; independentemente do que tivesse acontecido no passado, era-lhe insuportável pensar na mãe, que vivera grande parte da vida na bondade e no amor (remorsos, quem sabe?), tragada pela culpa nos seus derradeiros momentos. Não obstante, havia uma parte egoísta de Laurel que desejava saber mais; tinha de falar com a mãe antes de esta falecer. Não aguentava pensar que Dorothy Nicolson pudesse morrer sem ambas terem conversado a respeito do que sucedera naquele dia de 1961, e no que sucedera antes disso, em 1941, «o acontecimento traumático» que a transformara. Mais do que certo, numa altura daquelas, seria apenas perguntando-lhe directamente que Laurel conseguiria obter as respostas que tanto desejava. «Torna a perguntar-me um destes dias. Quando fores mais velha», dissera-lhe a mãe em resposta à pergunta de Laurel sobre como se transfigurara de crocodilo em pessoa; bom, Laurel queria perguntar-lhe agora. Por ela própria, mas, acima de tudo, para poder oferecer à mãe o consolo e o genuíno perdão por que ela seguramente ansiava.
— Fale-me da sua amiga, mãe — pediu-lhe Laurel baixinho no quarto tranquilo e escuro.
Dorothy mexeu-se e Laurel repetiu, um pouco mais alto.
— Fale-me da Vivien.
Não contava com uma resposta (a enfermeira dera-lhe morfina antes de se ir embora) e não a obteve. Laurel recostou-se na cadeira e, ao invés, retirou o velho cartão do envelope.
A mensagem não mudara; continuava a dizer: «Obrigada.» Não tinham aparecido novas palavras desde a última vez que o vira, nenhuma pista quanto à identidade do remetente, nenhuma solução para o enigma que ela se empenhava em resolver.
Laurel virou e revirou o cartão, interrogando-se se seria apenas por falta de melhores alternativas que estava convicta de que era importante. Tornou a guardá-lo dentro do envelope e, ao fazê-lo, o selo chamou-lhe a atenção.
Sentiu a mesma lembrança a arrepiá-la, como da última vez.
Havia indubitavelmente qualquer coisa que lhe escapava, qualquer coisa relacionada com o selo... Era difícil acreditar que já lá iam quase sessenta anos. Sacudiu o envelope, pensativa. Talvez a sua certeza quanto à importância do cartão se prendesse não tanto com o mistério da mãe, mas sobretudo com o facto de representar um acontecimento que se avultara de forma tão preponderante na sua mente de oito anos. Ainda se recordava de assistir pelo televisor que os pais tinham alugado propositadamente para a ocasião; toda a família se reunira...
— Laurel? — A voz anciã era fina como um penacho de fumo.
Laurel pôs o cartão de lado e apoiou os cotovelos no colchão enquanto pegava na mão da mãe.
— Estou aqui, mãezinha.
Dorothy esboçou um sorriso ténue. Fitou a filha mais velha com olhos vidrados.
— Estás aqui — ecoou ela. — Pareceu-me ouvir... Pareceu-me que disseste...
«Torna a perguntar-me um destes dias. Quando fores mais velha.» Laurel sentiu-se à beira de um precipício; sempre acreditara nas encruzilhadas da vida: esta, sabia ela, seria uma delas.
— Perguntei-lhe a respeito daquela pessoa sua amiga, mãe — disse ela. — Em Londres, durante a guerra.
— O Jimmy. — O nome saiu-lhe de repente, acompanhado por uma expressão de pânico e perda. — Ele... ele não...
O rosto da mãe era uma máscara de angústia e Laurel apressou-se a aquietá-la.
— Não é o Jimmy, mãe... Eu referia-me à Vivien...
Dorothy não proferiu uma única palavra. Laurel ouvia-lhe o maxilar a contrair-se de coisas por dizer.
— Mãe, por favor.
E talvez Dorothy tenha dado pelo tom de desespero na voz da filha mais velha, porque soltou um suspiro de mágoa antiga, as pestanas tremularam-lhe, e ela balbuciou:
— A Vivien... era fraca. Uma vítima.
Todos os cabelos da nuca de Laurel se eriçaram em alerta. Vivien era uma vítima, era a vítima de Dorothy; aquilo soava-lhe a confissão.
— O que foi que aconteceu à Vivien, mãe?
— O Henry era um bruto...
— Henry Jenkins?
— Um homem violento... batia-lhe... — A velha mão de Dorothy agarrou a de Laurel, os dedos nodosos a tremer.
Laurel sentiu o rubor subir-lhe ao rosto à medida que a percepção a atingia. Lembrou-se das perguntas levantadas nos diários de Katy Ellis. Vivien não era doente nem infértil; era casada com um homem violento. Uma besta sedutora que agredia a mulher atrás de portas fechadas e depois exibia um sorriso ao mundo; que a maltratava ao ponto de a obrigar a ficar dias de cama enquanto ele se mantinha de vigília à sua cabeceira.
— Era segredo. Ninguém sabia...
Isto não era propriamente verdade, pois não? Katy Ellis soubera: as referências eufemísticas à saúde e ao bem-estar de Vivien; a preocupação excessiva por causa da amizade entre Vivien e Jimmy; a carta que tencionava escrever a comunicar-lhe o motivo porque tinha de se afastar. Katy ansiava desesperadamente por que Vivien não despertasse a cólera do marido. Fora por isso que aconselhara a sua jovem amiga a afastar-se do hospital do Dr. Tomalin? Teria Henry ciúmes do lugar que o médico ocupava no coração de Vivien?
— O Henry... Eu tinha medo...
Laurel olhou de relance para o rosto pálido da mãe. Katy fora amiga e confidente de Vivien... era compreensível que tivesse conhecimento daquele sórdido segredo conjugal; mas como fora que a mãe descobrira? Teria a violência de Henry extravasado? Fora isso que frustrara o plano dos jovens namorados?
E foi então que uma ideia súbita, terrível, se apoderou de Laurel. Henry matara Jimmy. Ele descobrira a amizade entre Vivien e Jimmy e matara-o. Fora por isso que a mãe não se casara com o homem que amava. As respostas precipitaram-se com uma cascata de dominós: fora assim que ela ficara a saber do carácter violento de Henry, fora essa a razão do seu medo.
— Então, foi isso — apressou-se Laurel a dizer. — A mãe matou o Henry por causa do que ele fez ao Jimmy.
A resposta chegou-lhe com uma suavidade tal, que poderia ter sido a correnteza das asas da borboleta branca ao voar através da janela aberta e a elevar-se em direcção à luz. Laurel, porém, ouviu-a.
— Sim.
Uma simples palavra, mas, para Laurel, era música. Encerrada entre três simples letras achava-se a resposta para a pergunta de uma vida.
— A mãe teve medo quando ele chegou aqui, a Greenacres, que lhe viesse fazer mal, porque tinha corrido tudo mal e a Vivien morrera.
— Sim.
— Receou que ele também fizesse mal ao Gerry.
— Ele disse... — Os olhos da mãe abriram-se de repente; a sua mão agarrou com mais força a da filha. — Ele disse que ia destruir tudo quanto eu amava...
— Oh, mãe!
— Tal como eu... tal como eu lhe fizera a ele.
Quando a mãe lhe largou a mão, exausta, Laurel sentiu-se à beira das lágrimas; foi dominada por uma sensação quase esmagadora de alívio. Finalmente, após semanas de busca, após anos e anos de dúvidas, tudo fora esclarecido: o que ela vira; a ameaça que sentira quando avistara o homem de chapéu preto a subir o caminho de acesso a sua casa; o sigilo posterior para o qual não encontrava explicação.
Dorothy Nicolson matara Henry Jenkins quando este viera a Greenacres em 1961 porque ele era um monstro violento que tinha o hábito de bater na mulher; matara o namorado de Dorothy e passara duas décadas a tentar encontrar-lhe o rasto. Quando descobrira onde ela morava, ameaçara destruir a família que ela amava.
— Laurel...
— Sim, mãezinha?
Mas Dorothy não disse mais nada. Os seus lábios movimentaram-se silenciosamente enquanto vasculhava os recantos poeirentos da sua mente, tentando deitar a mão a fios perdidos que talvez nunca chegasse a conseguir agarrar.
— Pronto, mãe. — Laurel acariciou-lhe a testa. — Está tudo bem. Agora já está tudo bem.
Laurel ajeitou-lhe os lençóis e deixou-se ficar algum tempo a contemplar o rosto da mãe, agora tranquilo, adormecido. Durante todo aquele tempo, apercebeu-se ela, a busca em que se empenhara fora motivada por uma necessidade imperiosa de saber que a sua família feliz, toda a sua infância, os olhares de amor raro e duradouro que o pai e a mãe trocavam, não eram uma mentira. E agora, por fim, sabia.
Doía-lhe o peito com uma mistura intrincada de amor, respeito e, sim, finalmente, aceitação.
— Amo-a, mãe — sussurrou ela ao ouvido de Dorothy, sentindo, ao fazê-lo, que a busca chegara ao fim. — E também a perdoo.
Na cozinha, a voz de Iris começava a ganhar a exaltação do costume e Laurel sentiu um ânsia súbita por se reunir aos irmãos. Aconchegou delicadamente os cobertores à mãe e pregou-lhe um beijo na testa.
O cartão de agradecimento estava pousado no assento da cadeira atrás dela e Laurel pegou nele, com a intenção de o guardar no seu quarto. O seu pensamento já estava lá em baixo, a preparar uma chávena de chá e, por conseguinte, mais tarde não soube dizer o que foi que a levou a reparar nas leves marcas pretas no envelope.
Mas reparou, de facto. Os seus passos vacilaram a meio caminho da porta do quarto da mãe e ela deteve-se. Aproximou-se do candeeiro aceso, pôs os óculos de ver ao perto e chegou o envelope para junto de si. E em seguida sorriu, devagar, estupefacta.
Estivera tão absorta no selo que, por um triz, não deixara escapar a verdadeira pista que se revelava os seus olhos. A carta fora carimbada. A marca do carimbo postal era velha, de há décadas, e não era de leitura fácil, mas, ainda assim, estava suficientemente nítida para se perceber a data — 3 de Junho de 1953 — e, melhor ainda, de onde fora enviada: Kensington, Londres.
Laurel lançou uma olhadela à silhueta da mãe adormecida. Era o mesmo sítio onde a mãe morara durante a guerra, uma casa em Campden Grove. Mas quem lhe enviara um cartão de agradecimento, mais de uma década decorrida, e porquê?