Capítulo 4

Suffolk, 2011

As irmãs Nicolson abandonaram o hospital no automóvel de Iris. Embora fosse a mais velha e, por tradição, obsequiada com o privilégio de ir sentada à frente, Laurel optou por ir atrás, juntamente com os pêlos do cão. A sua fama era um obstáculo à sua antiguidade e não ficava bem deixar que as outras pensassem que gostava de se fazer de importante. E, fosse como fosse, preferia ir atrás. Absolvida dos deveres da conversação, ficava livre para ter os seus pensamentos como companhia.

A chuva amainara e agora o sol brilhava. Laurel estava ansiosa por perguntar a Rose acerca da Vivien — já anteriormente ouvira mencionar aquele nome, disso tinha a certeza; mais do que isso, sabia que se relacionava de alguma forma com aquele terrível dia de 1961 —, mas conteve-se. A curiosidade de Iris, uma vez despertada, podia ser asfixiante, e Laurel não estava disposta a enfrentar a inquisição. Enquanto as irmãs tagarelavam à frente, ela observava os campos a deslizar do lado de fora das janelas. Apesar de estarem fechadas, quase lhe parecia cheirar a erva recém-cortada e ouvir os gritos das gralhas. A paisagem da infância era mais vibrante do que qualquer outra. Não importava onde fosse ou que aspecto tomassem, as vistas e os sons deixavam uma impressão diferente dos que se encontrassem mais tarde. Tornavam-se parte de uma pessoa, inevitavelmente.

Os últimos cinquenta anos evaporaram-se e Laurel avistou uma visão fantasmagórica de si própria a voar ao longo das sebes na sua bicicleta Malvern Star, uma das irmãs escarranchada nos guiadores. Pele tostada do sol, pêlos das pernas alourados, joelhos esfolados. Fora havia muito tempo. Fora ontem.

— É para a televisão?

Laurel olhou em frente e viu Iris a pestanejar na direcção dela pelo espelho retrovisor.

— Desculpa? — disse ela.

— A entrevista, aquela com que tens andado tão ocupada.

— Ah, isso. Na verdade, trata-se de uma série de entrevistas. Ainda me falta gravar uma na segunda-feira.

— Sim, a Rose disse que tu ias voltar para Londres logo de manhã. É para a televisão?

Laurel emitiu um leve som de assentimento.

— Uma daquelas coisas biográficas, com cerca de uma hora de duração. Vai incluir também entrevistas de outras pessoas: realizadores, actores, com quem trabalhei, à mistura com sequências antigas, coisas da infância...

— Ouviste isto, Rose? — comentou Iris em tom sarcástico. — Coisas da infância. — Ergueu-se do assento do automóvel para que Laurel pudesse ter uma visão mais completa do seu sobrolho franzido através do espelho. — Agradecia-te que não mostrasses nenhuma fotografia de família em que apareço em estado de nudez, seja total ou parcial.

— Mas que pena — retorquiu Laurel, arrancando um pêlo branco das calças. — Lá se vai o meu melhor material. Do que haverei eu agora de falar?

— Aponta a câmara a ti própria e tenho a certeza de que arranjarás assunto.

Laurel disfarçou um sorriso. As pessoas tratavam-na de forma tão respeitosa ultimamente; era reconfortante discutir com uma especialista na matéria.

Rose, porém, que era uma pacifista nata, começava a afligir-se.

— Olhem, olhem — disse ela, agitando as duas mãos na direcção de um edifício à entrada da cidade. — O local do novo supermercado. Já imaginaram? Como se os outros três não bastassem.

— Mas que ridículo, sinceramente!...

Com a irritação de Iris graciosamente direccionada, Laurel ficou livre para se voltar a recostar e olhar pela janela. Atravessaram a cidade, seguiram pela High Street até esta desembocar numa estrada campestre e depois percorreram as suas curvas suaves. A sequência era tão familiar que Laurel poderia fechar os olhos e saber exactamente onde estava. A conversa à frente foi esmorecendo à medida que a estrada afunilava e as árvores sobranceiras se adensavam, até finalmente Iris ligar o pisca e virar para o acesso que assinalava a Quinta Greenacres.

*

A quinta achava-se no mesmo sítio de sempre, empoleirada na colina, com a fachada virada para o prado. Como era natural, as casas tinham o hábito de ficar onde as punham. Iris estacionou o automóvel no sítio plano onde o velho Morris Minor do pai tinha assentado arraiais até a mãe finalmente as autorizar a vendê-lo.

— Aqueles beirais estão em muito mau estado — comentou ela.

Rose concordou.

— Dão um aspecto triste à casa, não acham? Venham que eu mostro-vos as últimas infiltrações.

Laurel fechou a porta do automóvel, mas não transpôs o portão da quinta atrás das irmãs. Enfiou as mãos nos bolsos e manteve-se onde estava, abarcando o cenário na sua totalidade: desde o jardim até aos tubos rachados da chaminé, passando por tudo de permeio. O peitoril por onde costumavam descer Daphne dentro do cesto, a varanda onde tinha pendurado os cortinados velhos do quarto para formar um arco de proscénio, o sótão onde Laurel aprendera a fumar sozinha.

A ideia ocorreu-lhe repentinamente: a casa recordava-se dela.

Laurel não se considerava uma romântica, mas a sensação foi tão forte que, por um instante, não teve qualquer dificuldade em acreditar que a combinação de tábuas de madeira e tijolos vermelhos da chaminé, de telhas manchadas e janelas de empena tortas que se apresentava diante dos seus olhos era dotada de memória. Olhava para ela agora, sentia isso claramente através de cada vidraça; recuando no tempo para casar aquela mulher idosa trajada com um fato de alta-costura com a jovem que contemplava extasiada as fotografias de James Dean. O que pensaria ela, perguntava-se, da pessoa em que se transformara?

Um disparate, claro — a casa não pensava nada. As casas não se lembravam das pessoas, não se lembravam de coisíssima nenhuma. Era ela que se lembrava da casa e não o contrário. E porque não haveria de se lembrar? Fora o seu lar desde os dois anos; morara lá até aos dezassete. Admitia que estivera bastantes anos sem a visitar — mesmo com as suas visitas semi-regulares ao hospital, parecia que nunca arranjava tempo para voltar a Greenacres —, mas levava uma vida ocupada. Laurel deitou uma olhadela à casa da árvore. Fizera todo o possível por se manter ocupada.

— Não pode ter sido assim há tanto tempo ao ponto de te teres esquecido de onde fica a porta — chamou-a Iris do hall de entrada. Desaparecera para dentro de casa, mas a sua voz flutuava atrás dela. — Não me digas... Estás à espera de que o mordomo te vá buscar as malas!

Laurel revirou os olhos como uma adolescente, pegou na mala e dirigiu-se a casa. Seguiu pelo mesmo caminho empedrado que a mãe descobrira cerca de sessenta anos antes num dia soalheiro de Verão...

*

Dorothy Nicolson reconheceu em Greenacres o local para criar a sua família, mal a viu. Não era suposto andar à procura de uma casa. A guerra acabara havia poucos anos, não tinham capital que se visse, e a sogra tinha acedido graciosamente a arrendar-lhes um quarto no seu próprio estabelecimento (em troca de tarefas quotidianas, naturalmente — a pousada não era nenhuma obra de caridade!). Dorothy e Stephen só tinham saído para fazer um piquenique.

Era um raro dia de folga em meados de Julho; mais raro ainda, a mãe de Stephen oferecera-se para tomar conta da bebé Laurel. Acordaram ao romper do dia, enfiaram uma cesta e uma manta no banco traseiro e dirigiram o Morris Minor para ocidente, sem outros planos para além de seguir pela primeira estrada campestre que lhes agradasse. E foi o que fizeram durante algum tempo: a mão dela na perna dele, o braço dele em volta dos ombros dela, o ar ameno a correr através das janelas abertas... E assim poderiam ter continuado, não fosse terem tido um furo.

Mas tiveram e, por conseguinte, abrandaram a velocidade, estacionando o automóvel na berma da estrada, a fim de avaliar os estragos. Ali estava ele, mais claro do que água: um malvado prego espetado na borracha do pneu, um furo enorme.

Mas eles eram jovens e estavam apaixonados, e não era todos os dias que passavam tempo livre juntos, e, como tal, o dia não ficou estragado como teria ficado noutras circunstâncias. Enquanto o marido remendava o pneu, Dorothy deambulou pela colina verdejante, à procura de um sítio plano onde pudesse estender a manta do piquenique. E foi então que alcançou o cimo da colina, deparando-se com a Quinta Greenacres.

Nada disto era uma suposição da parte de Laurel. Todos os irmãos Nicolson conheciam a história da aquisição de Greenacres de cor e salteado. O velho proprietário da quinta, céptico a coçar a cabeça quando Dorothy lhe batera à porta, os pássaros a fazer ninho na lareira da sala de estar enquanto o homem lhes servia um chá, os buracos no chão com tábuas a tapá-los como pontes estreitas. E, acima de tudo, ninguém tinha qualquer dúvida quanto à certeza imediata da mãe de que tinha de ir morar para aquele sítio.

A casa, explicara-lhe ela vezes sem conta, falara com ela, ela ouvira-a, e dera-se o caso de as duas se terem entendido às mil maravilhas. Greenacres era uma velha senhora imperiosa, um tanto ou quanto decadente, sem dúvida, rabugenta à sua maneira; mas quem não seria nas suas circunstâncias? A deterioração, Dorothy constatava, escondia uma imensa e vetusta dignidade. A casa era orgulhosa e era solitária, o género de sítio que se alimentava das gargalhadas das crianças e do amor de uma família e do aroma a cordeiro com alecrim a assar no forno. Tinha uns bons e íntegros ossos e estava disposta a olhar para o futuro ao invés do passado, a acolher uma nova família e a crescer com ela, a abraçar as suas tradições recém-chegadas. Ocorria agora a Laurel, de uma forma como nunca até aí ocorrera, que a descrição que a mãe fazia da casa poderia ter sido um auto-retrato.

*

Laurel limpou os pés no tapete e entrou em casa. As tábuas do soalho rangeram num tom familiar, o mobiliário continuava todo no sítio do costume e, não obstante, a casa parecia-lhe diferente. O ar cheirava a mofo, apercebeu-se, e era compreensível: a casa estava fechada desde que Dorothy fora internada no hospital. Rose vinha olhar por ela sempre que a sua tarefa de tomar conta dos netos lhe permitia, e o marido dela, Phil, fazia o que podia, mas nada que se comparasse a uma casa permanentemente habitada. Era constrangedor, pensou Laurel, reprimindo um arrepio, a rapidez com que a presença de uma pessoa podia desaparecer, a facilidade com que a civilização dava lugar ao ermo e ao abandono.

Libertou-se de pensamentos depressivos e, por uma questão de hábito, juntou as suas malas às que já se achavam amontoadas por debaixo da mesa do hall. Em seguida, sem pensar, dirigiu-se à cozinha. Era o sítio onde costumavam fazer os trabalhos de casa, aplicar pensos rápidos nas feridas e verter lágrimas por corações partidos; o primeiro sítio aonde todos se dirigiam mal chegavam a casa. Rose e Iris já lá estavam.

Rose ligou o interruptor junto ao frigorífico e a instalação eléctrica zuniu. Esfregou as mãos uma na outra com ar animado.

— E que tal se eu preparasse um chá para nós?

— Nada me saberia melhor — respondeu-lhe Iris, descalçando os sapatos decotados e esticando e encolhendo os dedos dos pés dentro das meias pretas, qual bailarina impaciente.

— Eu trouxe vinho — anunciou Laurel.

— A não ser isso. Esquece o chá.

Enquanto Laurel ia buscar a garrafa à mala, Iris retirou os copos do armário da cozinha.

— Rose? — susteve um copo ao alto, pestanejando ostensivamente por cima dos seus óculos em forma de olhos felinos. Os olhos dela eram do mesmo tom cinzento-chumbo que o cabelo à la garçonne.

— Ah! — Rose dando voltas ao mostrador do relógio. — Ah, não sei, ainda agora são cinco horas.

— Vá lá, minha querida maninha Rosie — insistiu Laurel, vasculhando uma gaveta de talheres um tanto ou quanto pegajosos, à procura de um saca-rolhas. — É rico em antioxidantes, sabias? — Encontrou o saca-rolhas e pressionou as pontas dos dedos peganhentas umas contra as outras. — Pouco lhe falta para ser um alimento saudável.

— Bom... está bem.

Laurel tirou a rolha e começou a servir o vinho. Por hábito, alinhou os copos para garantir que distribuía o vinho irmamente entre as três. Sorriu quando deu por isso; ali estava um bom exemplo de regressão à infância. Fosse como fosse, Iris ficaria satisfeita. A justiça poderia ser considerada o grande ponto de fricção entre todos os irmãos, mas era uma autêntica obsessão para os do meio. «Pára de contar, minha florzinha», costumava dizer-lhes a mãe. «Ninguém gosta das meninas que esperam receber mais do que os outros.»

— Só um nadinha, Lol — disse-lhe Rose à cautela. — Não quero estar zonza quando a Daphne aqui chegar.

— Então, já soubeste alguma coisa dela? — Laurel ofereceu o copo mais cheio a Iris.

— Mesmo antes de sairmos do hospital... Não vos disse? Que cabeça a minha, francamente! Vai chegar cá por volta das seis, assim o trânsito permita.

— Se ela está assim tão perto, calculo que seria melhor pensar em fazer qualquer coisa para o jantar — sugeriu Iris, abrindo o armário e apoiando-se de joelhos num banco para verificar os prazos de validade. — Se deixar o caso entregue nas vossas mãos, vamos ficar a chá e torradas.

— Eu ajudo — prontificou-se Rose.

— Nem pensar. — Iris enxotou-a sem se virar. — Não é preciso.

Rose olhou de relance para Laurel, que lhe estendeu um copo com vinho e apontou para a porta. Não valia a pena argumentar. Estava consagrado na tradição familiar: Iris era quem cozinhava sempre, quem andava sempre sobrecarregada, e as outras deixavam-na desfrutar do seu martírio porque era uma espécie de pequena amabilidade acordada entre as irmãs.

— Bom, já que insistes — respondeu-lhe Laurel, vertendo um pouco mais de pinot no seu copo.

*

Enquanto Rose ia lá acima verificar se o quarto de Daphne estava em ordem, Laurel pegou no vinho e foi para o jardim. A chuva que caíra nessa manhã tinha limpado o ar e ela respirou fundo. O baloiço chamou a sua atenção e ela foi sentar-se no seu banco, oscilando lentamente para a frente e para trás, fazendo pressão com os calcanhares. O baloiço fora um presente de todos os irmãos para a mãe pelo seu octogésimo aniversário, e Dorothy declarara de imediato que iria ficar à sombra do grande e velho carvalho. Ninguém tivera coragem de lhe lembrar que havia outros locais no jardim com vistas mais bonitas. Aos olhos de um estranho, o panorama seria bem capaz de não passar de um prado despido, mas todos os Nicolson compreendiam que a sua simplicidade era meramente ilusória. Algures naquele prado, por entre a erva, ficava o sítio onde o pai desfalecera e acabara por morrer.

A memória era insidiosa. A memória de Laurel conduziu-a precisamente ali, àquela tarde, de mão erguida para escudar do sol os seus olhos de adolescente ansiosa à medida que estes varriam o prado, à espera de vislumbrar o pai de regresso do seu dia de trabalho; à espera de largar numa corrida, lhe dar o braço e voltar com ele para casa. A sua memória dizia-lhe que o vira à medida que ele avançava pela erva; quando ele se deteve para contemplar o pôr do Sol, reparar no contorno rosado das nuvens, e dizer, como sempre dizia: «Céu rosado ao sol-pôr é a alegria do pastor»; à medida que o seu corpo se retesava, e ele começava a arquejar; à medida que levava a mão ao peito; que cambaleava e caía.

Mas não fora assim. Quando este acontecimento se dera, ela estava do outro lado do mundo, tinha cinquenta e seis anos ao invés de dezasseis, e estava a vestir-se para uma cerimónia de atribuição de prémios em Los Angeles, a perguntar-se se seria a única pessoa ali cujo rosto não havia sido alisado à custa de enchimentos e uma valente dose da velha toxina do botulismo. Só soubera da morte do pai quando Iris lhe ligara e lhe deixara uma mensagem no telemóvel.

Não, era outro o homem que ela vira cair e morrer numa tarde soalheira quando tinha dezasseis anos.

Laurel acendeu um cigarro com um fósforo, de sobrolho franzido a contemplar o horizonte, enquanto tornava a guardar a caixa no bolso. A casa e o jardim estavam iluminados pelo sol, mas os campos distantes, além do prado e mais próximos do bosque, começavam a escurecer. Deitou uma olhadela ao céu, para lá do varão de ferro forjado do banco do baloiço, onde se vislumbrava o chão da casa da árvore por entre a folhagem. O escadote continuava no mesmo sítio de sempre, bocados de madeira pregados ao tronco, alguns deles agora tortos. Alguém pendurara um colar de contas brilhantes cor-de-rosa e roxas num dos degraus; uma das netas de Rose, calculou Laurel.

Naquele dia, descera muito devagar.

Puxou uma longa fumaça do cigarro, perdida nas suas recordações. Voltara a si, ofegante, na casa da árvore e lembrara-se de imediato do homem, da faca, do rosto aterrorizado da mãe, e, em seguida, arrastara-se até ao escadote.

Quando chegara ao chão, deixara-se ficar com ambas as mãos agarradas ao degrau à sua frente, a cabeça apoiada no tronco rugoso da árvore, abrigada na calmaria silenciosa do momento, sem saber para onde ir ou o que fazer a seguir. Por absurdo que pudesse parecer, ocorreu-lhe que seria melhor dirigir-se para o regato, juntar-se às irmãs e ao irmão bebé, ao pai com o seu clarinete e o seu sorriso folgazão...

Talvez tenha sido nessa altura que reparara que já não os ouvia.

Encaminhou-se então para casa, a cabeça baixa, os pés descalços a saltitar pelo empedrado quente do carreiro. Houve um instante em que o olhar dela se desviou para o lado, e Laurel teve a impressão de vislumbrar um objecto grande e branco junto ao canteiro das flores, algo que não pertencia ali, mas tornou a baixar a cabeça e a desviar o olhar e estugou o passo, impulsionada pela esperança totalmente infantil de que talvez, se ela não olhasse e não visse, pudesse chegar a casa, transpor a soleira, e tudo continuaria como até aí.

Estava em estado de choque, obviamente, mas não tinha noção disso. Achava-se sob a protecção de uma calma sobrenatural, como se envergasse um manto, um manto mágico que lhe permitia evadir-se da vida real, como as personagens dos contos de fadas que existem para lá da página e, quando chegam ao castelo, encontram todos os seus ocupantes adormecidos. Antes de entrar em casa, parou, a fim de levantar o hula hoop caído no chão.

A casa estava estranhamente silenciosa. O Sol já se escondera por detrás do telhado e o hall estava às escuras. Laurel aguardou junto à porta da rua aberta até os seus olhos se acostumarem à penumbra. Ouviu um estampido vindo dos canos de esgoto de ferro a arrefecer, um barulho que significava Verão, as férias e os longos crepúsculos amenos com borboletas nocturnas a esvoaçar em redor dos candeeiros acesos.

Dirigiu o olhar para a escada alcatifada e, sem saber precisar o motivo, percebeu que as irmãs não estavam em casa. O tiquetaque do relógio da entrada assinalava a passagem dos segundos e, momentaneamente, Laurel perguntou-se se se teriam ido todos embora (a mãe, o pai e o bebé também), deixando-a sozinha com o que quer que fosse que se achava debaixo do lençol branco lá fora. A ideia provocou-lhe um arrepio na espinha. Foi então que ouviu uma pancada surda vinda da sala de estar e virou a cabeça, deparando-se com o pai de pé junto à lareira apagada. Estava curiosamente rígido, uma mão caída de lado, a outra de punho fechado em cima da consola de madeira, e disse:

— Pelo amor de Deus, a minha mulher tem muita sorte em estar viva.

Uma voz masculina chegou de fora do palco, algures para lá da porta, onde Laurel não o conseguia ver:

— Eu compreendo isso, Sr. Nicolson, tal como espero que o senhor compreenda que nós estamos apenas a fazer o nosso trabalho.

Laurel aproximou-se em bicos dos pés, detendo-se antes de chegar à luz que se projectava através da porta aberta. A mãe estava sentada na poltrona, a embalar o bebé no colo. Este dormia; Laurel via-lhe o perfil de querubim, a bochecha rechonchuda achatada contra o ombro da mãe.

Havia outros dois homens na sala, um indivíduo calvo no sofá e um jovem que tomava apontamentos ao pé da janela. Polícias, constatou ela. Era óbvio que eram polícias. Sucedera uma coisa terrível. O lençol branco no jardim inundado de sol.

O mais velho inquiriu:

— A senhora reconheceu-o, Sr.ª Nicolson? É alguém que já tenha encontrado? Alguém que tenha visto, mesmo ao longe?

A mãe de Laurel não lhe respondeu, pelo menos não de forma audível. Estava a sussurrar junto à cabeça do bebé, os lábios a movimentarem-se suavemente contra o seu cabelo fino. O pai falava em voz alta por ela.

— Claro que não — declarou ele. — Tal como a minha esposa já lhe disse, ela nunca lhe tinha posto a vista em cima. Se quer saber a minha opinião, o senhor deveria estar agora a comparar a descrição dele com a daquele indivíduo que tem saído nos jornais, o que anda a molestar as pessoas nos piqueniques.

— Nós iremos seguir todas as pistas, Sr. Nicolson, disso pode ter a certeza. Neste momento, porém, há um cadáver no seu jardim e apenas a palavra da sua esposa a respeito de como lá foi parar.

O pai irritou-se.

— Aquele homem atacou a minha mulher. Tratou-se de um gesto de autodefesa.

— O senhor assistiu a isso, Sr. Nicolson?

A voz do polícia mais velho deixou transparecer um laivo de impaciência que amedrontou Laurel. Recuou um passo. Eles não sabiam que ela ali estava. E não havia necessidade de descobrirem. Poderia esgueirar-se sorrateiramente, continuar escada acima, com cuidado para não pisar as tábuas que rangiam, ir meter-se, bem aconchegada, na cama. Poderia deixá-los entregues às misteriosas maquinações do mundo adulto e esperar que dessem com ela quanto tivessem acabado; que lhe viessem dizer que estava tudo resolvido...

— Eu perguntei-lhe se o senhor esteve presente, Sr. Nicolson? Se assistiu ao sucedido?

... Laurel, porém, sentiu-se atraída pela sala, o contraste entre a luz do candeeiro aceso e o corredor às escuras, o seu estranho quadro vivo, a aura de importância na voz tensa do pai, a sua postura, projectada para a frente. Lá no fundo, tinha uma veia, sempre tivera, que exigia inclusão, que se prontificava a ajudar quando a ajuda era dispensável, que abominava a ideia de adormecer com receio de ficar de fora dos acontecimentos.

Estava em estado de choque. Precisava de companhia. Não havia nada que pudesse fazer contra isso. Fosse como fosse, Laurel abandonou os bastidores e entrou em cena.

— Eu estava lá — anunciou ela. — Eu vi-o.

O pai olhou para ela, surpreso. Olhou de relance para a mulher e depois novamente para Laurel. A voz dele tinha um tom diferente quando falou, áspera e apressada, quase como um assobio.

— Laurel, já chega.

Todos os olhares se concentravam nela: os da mãe, do pai, dos dois polícias. As frases seguintes, Laurel bem sabia, seriam cruciais. Evitou o olhar do pai e começou:

— O homem chegou vindo das traseiras. Tentou agarrar no bebé. — Tinha sido assim, não tinha? Estava segura quanto ao que vira.

O pai franziu o sobrolho.

— Laurel...

Falava agora mais depressa, determinada. (E porque não? Já não era nenhuma criança, sempre pronta a escapulir-se para o quarto à espera de que os adultos pusessem as coisas nos eixos; agora era como eles; tinha um papel a desempenhar; era importante.) As luzes dos projectores intensificaram-se e Laurel encarou o olhar do polícia mais velho.

— Houve uma briga. Eu vi. O homem atacou a minha mãe e depois... e depois, ele caiu no chão.

Ninguém se pronunciou durante uns instantes. Laurel olhou para a mãe, que, entretanto, já deixara de sussurrar ao bebé, e tinha agora o olhar fixo num ponto algures atrás do ombro da filha. Alguém fizera chá. Laurel haveria de guardar aquele pormenor na memória durante anos e anos. Alguém fizera chá, mas ninguém o provou. As chávenas ficaram por tocar nas mesas espalhadas pela sala, uma delas em cima do parapeito da janela. O relógio do hall continuava a fazer tiquetaque.

Por fim, o polícia calvo ajeitou-se no sofá e clareou a voz.

— Laurel, é assim que te chamas?

— É sim, senhor.

O pai expirou, uma grande lufada de ar, o som de um balão a esvaziar. A sua mão apontou na direcção de Laurel e ele afirmou:

— A minha filha. — Parecia dar-se por vencido. — A mais velha.

O indivíduo no sofá olhou para ela e, em seguida, os seus lábios rasgaram-se num sorriso que lhe chegou aos olhos. Disse-lhe:

— Creio que será melhor entrares, Laurel. Senta-te e começa desde o princípio. Conta-nos tudo o que viste.