Capítulo 5

Laurel contou a verdade ao polícia. Sentou-se acanhadamente na extremidade oposta do sofá, esperou pelo encorajamento relutante do pai e depois começou a relatar a sua tarde. Tudo o que vira, tal e qual acontecera. Estivera a ler na casa da árvore, até que interrompera a leitura para assistir à chegada do homem.

— Porque é que o estavas a observar? Havia algo de invulgar nele? — O tom e a expressão do polícia não davam qualquer indício quanto às suas expectativas.

Laurel franziu o sobrolho, ansiosa por se lembrar de cada pormenor e provar ser uma testemunha fidedigna. Sim, ela achava que talvez houvesse. Não que ele corresse, gritasse ou se comportasse de alguma outra forma óbvia, mas, não obstante, ele era — olhou de relance para o tecto, a tentar desencantar a palavra certa —, ele era sinistro. Satisfeita com a adequação da palavra, repetiu-a. Ele era sinistro e ela estava assustada. Não, não sabia precisar porquê, mas a verdade é que estava.

Achava ela que o que se passou depois poderia ter influenciado a sua primeira impressão? Fazer que uma coisa vulgar parecesse mais perigosa do que de facto era?

Não, ela tinha a certeza. Não havia dúvida de que ele tinha qualquer coisa de assustador.

O polícia mais jovem ia tomando apontamentos no seu bloco. Laurel expirou. Não se atrevia a olhar para os pais com receio de que lhe faltasse a coragem.

— E quando ele chegou a vossa casa? O que foi que aconteceu?

— Ele contornou a esquina, com muito mais cuidado do que uma visita normal faria... sorrateiramente... e depois a minha mãe saiu de casa com o bebé.

— Ela trazia-o ao colo?

— Sim.

— E trazia mais alguma coisa?

— Sim.

— O que era?

Laurel mordeu o interior da bochecha, recordando-se do clarão prateado.

— Trazia a faca do bolo de anos.

— Tu reconheceste a faca?

— Nós usamo-la nas ocasiões especiais. Tem uma fita vermelha atada em volta do cabo.

A atitude do polícia continuava inalterada, embora ele tivesse feito uma pausa antes de prosseguir.

— E o que foi que se passou então?

Laurel estava atenta.

— Então, o homem atacou-os.

Laurel sentiu uma leve dúvida maçadora vir à tona, como um reflexo de sol a obscurecer um pormenor de uma fotografia, à medida que descrevia o homem a precipitar-se para o bebé. Hesitou um momento, fixando o olhar nos joelhos enquanto se esforçava por recriar a acção na sua mente. Depois, prosseguiu. O homem fizera menção de pegar em Gerry, disso lembrava-se, e tinha a certeza de lhe ver as duas mãos estendidas, a preparar-se para arrancar o irmão dos braços da mãe. Fora então que a mãe pousara Gerry atrás dela para o deixar em segurança. E depois o homem agarrara a faca, tentara apoderar-se dela, e os dois tinham lutado...

— E depois?

A caneta do polícia mais novo ia riscando o bloco de apontamentos à medida que ele anotava tudo quanto ela dissera até aí. A caneta fazia barulho e Laurel estava cheia de calor, a sala entretanto fora aquecendo, disso não havia dúvida. Estava admirada por o pai não abrir a janela.

— E depois?

Laurel engoliu em seco. Tinha a boca áspera.

— E depois a minha mãe cravou-lhe a faca.

A sala ficou em silêncio. Só se ouvia era a caneta a deslizar sobre o papel. Laurel via a cena com enorme clareza na sua mente: o homem, o homem horrível com a sua expressão sombria e umas grandes manápulas a agarrar a mãe, a tentar magoá-la, com intenções de, a seguir, fazer mal ao bebé...

— E o homem caiu no chão de imediato?

A caneta parara de escrever. Junto à janela, o polícia mais jovem olhava para ela por cima do bloco de apontamentos.

— O homem caiu imediatamente no chão?

Laurel assentiu com a cabeça com uma certa hesitação.

— Acho que sim.

— Achas que sim?

— Não me lembro de mais nada. Foi nesse momento que desmaiei, acho eu. Quando acordei, ainda estava na casa da árvore.

— E quando foi isso?

— Agora mesmo. E a seguir vim para cá.

O polícia mais velho inspirou de forma lenta, não de todo silenciosa, e depois soltou o ar.

— Há mais alguma coisa de que te lembres que nós devêssemos saber? Algo que tenhas visto ou ouvido? — Deslizou a mão pela calva. Os seus olhos eram azuis muito claros, quase cinzentos. — Leva o tempo que precisares; os pormenores mais ínfimos podem revelar-se importantes.

Haveria alguma coisa de que se tivesse esquecido? Teria visto ou ouvido mais alguma coisa? Laurel ponderou aturadamente antes de responder. Achava que não. Não, tinha a certeza de que era tudo.

— Nada de nada?

Insistiu que não. O pai tinha as mãos enfiadas nos bolsos e lançou um olhar fulminante ao polícia.

Os dois polícias trocaram um olhar, o mais velho baixou ligeiramente a cabeça e o mais novo fechou o bloco de apontamentos com um piparote. A entrevista chegara ao fim.

*

Depois, Laurel foi sentar-se no peitoril da janela do seu quarto, a roer a unha do polegar e a ver os três homens lá fora, junto ao portão. Não estiveram com grandes conversas, contudo, ocasionalmente, o polícia mais velho dizia qualquer coisa e o pai respondia-lhe, apontando para vários objectos no horizonte cada vez mais escuro. A conversa poderia ter versado métodos agrícolas ou o calor da estação ou os usos das terras de Suffolk ao longo da história, embora Laurel duvidasse de que estivessem a discutir qualquer um destes assuntos.

Uma carrinha avançou pesadamente pelo carreiro de acesso a casa e o polícia mais jovem foi ao seu encontro, percorrendo a erva alta a passos largos e apontando para a casa atrás de si. Laurel viu um homem sair pela porta do condutor à medida que uma maca era retirada pela traseira, e o lençol (que afinal não era tão branco como isso, reparava agora; estava cheio de manchas vermelhas que eram agora quase negras) ondulava enquanto arrepiava caminho pelo jardim fora. Enfiaram a maca na carrinha e de seguida arrancaram. Os polícias foram-se embora e o pai voltou para casa. A porta da rua fechou-se, Laurel ouviu-a através do soalho. Tal como o ouviu descalçar as botas (uma, depois a outra) e depois passos suaves de peúgas que se dirigiam à mãe na sala de estar.

Laurel correu as cortinas e voltou costas à janela. Os polícias tinham-se ido embora. Ela contara a verdade; descrevera exactamente o que se lembrava, tudo o que acontecera. Então, porque seria que se sentia assim? Estranha e insegura.

Deitou-se na cama, enroscou-se bem enroscada, com as mãos entre os joelhos, unidas em posição de prece. Fechou os olhos, mas tornou a abri-los para deixar de ver o clarão prateado, o lençol branco, a cara da mãe quando o homem dissera o nome dela...

Laurel retesou-se. O homem dissera o nome da mãe.

Ela não contara isso ao polícia. Ele perguntara-lhe se havia mais alguma coisa de que se lembrasse, qualquer coisa que tivesse visto ou ouvido, e ela respondera que não, que não havia mais nada. Mas havia, houvera.

A porta abriu-se e Laurel apressou-se a sentar, quase à espera de deparar com o polícia mais velho. Mas era apenas o pai, que lhe vinha dizer que ia buscar as irmãs a casa do vizinho. O bebé já estava a dormir e a mãe estava a descansar. O pai hesitou junto à porta, batendo com a mão ao de leve na ombreira. Quando por fim falou, a voz saiu-lhe rouca.

— Mas que grande choque que tivemos esta tarde, um choque terrível.

Laurel mordeu o lábio. Lá muito no fundo, um soluço de que não se apercebera ameaçou irromper.

— A tua mãe é uma mulher corajosa.

Laurel assentiu com a cabeça.

— É uma sobrevivente, e o mesmo se pode dizer de ti. Portaste-te muito bem com aqueles polícias.

— Obrigada, paizinho — murmurou, sentindo as lágrimas a arder-lhe nos olhos..

— A polícia diz que é provável que seja o homem dos jornais, aquele que anda a dar problemas na zona do regato. A descrição condiz e não há mais ninguém que pudesse ter vindo intimidar a tua mãe.

Era como ela pensava. Quando avistara o homem pela primeira vez, não se perguntara se não seria o mesmo dos jornais? Laurel sentiu-se subitamente mais leve.

— Agora ouve o que te digo, Lol. — O pai enfiou as mãos nos bolsos, remexendo-as ligeiramente antes de prosseguir. — Eu e a tua mãe estivemos a conversar e parece-nos boa ideia não contar às tuas irmãs tudo o que se passou. Não há necessidade e é de mais para o entendimento delas. Se dependesse de mim, preferia que tu também tivesses estado a quilómetros dali, mas não estavas e, quanto a isso, não há nada a fazer.

— Peço desculpa.

— Não tens nada por que pedir desculpa. A culpa não foi tua. Tu ajudaste a polícia, a tua mãe também, e o caso está arrumado. Um homem mal-intencionado veio a nossa casa, mas agora já está tudo bem. Vai ficar tudo bem.

Não era uma pergunta, não propriamente, mas soou como tal e, por conseguinte, Laurel respondeu:

— Sim, paizinho. Vai ficar tudo bem.

Ele esboçou um sorriso de esguelha.

— És uma boa rapariga, Laurel. Agora vou buscar as tuas irmãs. Vamos guardar o que aconteceu só para nós, hem? Assim é que é, linda menina.

*

E assim fora. Tornou-se o grande acontecimento tácito na história da família. As irmãs não souberam de nada e Gerry não tinha seguramente idade para se recordar, embora, quanto a isto, o futuro haveria de demonstrar que estavam redondamente enganados.

As outras irmãs perceberam, obviamente, que qualquer coisa estanha se passara — tinham sido despachadas sem cerimónias da festa de anos e depositadas diante do televisor Decca, novinho em folha, do vizinho; os pais andaram semanas invulgarmente cabisbaixos; e dois polícias começaram a fazer visitas regulares que implicavam portas fechadas e vozes baixas e sérias —, contudo, tudo fez sentido quando o pai lhes falou a respeito do pobre sem-abrigo que morrera no prado no aniversário de Gerry. Era triste, mas, tal como o pai salientou, eram coisas que aconteciam.

Laurel, entretanto, foi ganhando cada vez mais o hábito de roer as unhas. A investigação da polícia ficou concluída numa questão de semanas: a idade e a descrição do homem condiziam com as do intruso dos piqueniques, a polícia afirmou que não era raro, em casos como aquele, a violência agravar-se com o tempo, e o testemunho de Laurel deixara claro que a mãe agira em autodefesa. Um assalto que acabara mal; uma escapatória oportuna; não havia vantagem nenhuma em escarrapachar os pormenores nos jornais. Felizmente, viviam numa época em que a discrição era regra e um acordo de cavalheiros era capaz de transferir uma manchete para a terceira página. O pano caiu, a história acabou.

Ou quase. Enquanto as vidas dos seus familiares tinham retomado a sua programação regular, a de Laurel manteve-se numa indistinção estática. A sensação de que estava isolada dos outros intensificou-se e ela começou a andar estranhamente agitada. O acontecimento não lhe saía do pensamento, bem como o papel que ela desempenhara na investigação policial, as coisas que contara aos agentes (pior ainda, as coisas que lhes omitira) deixavam-na por vezes num estado de pânico tal que mal conseguia respirar. Fosse para onde fosse em Greenacres (para dentro de casa ou lá para fora, para o jardim), sentia-se presa ao que vira e fizera. As recordações achavam-se por todo o lado; eram inevitáveis; agravadas pelo facto de o acontecimento que lhes dera origem ser completamente inexplicável.

Quando fez audições para a Central School of Speech and Drama e foi admitida, Laurel ignorou as súplicas dos pais para ficar em casa, para adiar a decisão por um ano e concluir os exames do secundário, para pensar nas irmãs, no irmão bebé, que a adorava mais do que a qualquer das outras. Em lugar disso, fez as malas, o mais leves possível, e virou as costas à família. O rumo da sua vida mudara repentinamente, tal e qual como um cata-vento se põe a andar às voltas quando há uma tempestade inesperada.

*

Laurel bebeu o que restava do vinho e deixou-se ficar a ver um casal de gralhas sobrevoar o prado do pai. Alguém tinha mexido no regulador de intensidade do projector gigante e o mundo lançava-se na escuridão. Todas as actrizes têm palavras predilectas e «entardecer» era uma das de Laurel. Era um prazer articulá-la, a sensação de chegada da noite e de cerco indefeso inerente ao som da palavra, e, no entanto, era tão próxima de «resplandecer» que um pouco do brilho desta última acabava também por a contagiar.

Era o momento do dia que ela associava especialmente à infância, à vida que levara antes da sua partida para Londres: o regresso do pai a casa ao fim de um dia de trabalho na quinta, a mãe a secar Gerry com uma toalha junto ao fogão, as irmãs lá em cima na risota a ver Iris desfiar o seu repertório de imitações (não deixava de ser uma ironia que, em adulta, Iris se tivesse tornado, de longe, a mais imitada de todas as personagens da infância, a directora de uma escola), o momento de transição, quando as luzes se acendiam no interior e a casa cheirava a sabonete e a grande mesa de carvalho era posta para o jantar. Mesmo agora, Laurel sentia de forma quase inconsciente a mudança natural do dia. Para ela, era o que mais se assemelhava a ter saudades de casa no seu próprio lar.

Deu por qualquer coisa a mexer-se no prado, no caminho que o pai costumava percorrer todos os dias, e retesou-se; mas era apenas um automóvel, um automóvel branco — via-o agora com maior nitidez — a serpentear pelas curvas da estrada. Levantou-se, sacudindo as últimas gotas de vinho do copo. O ar arrefecera e Laurel aconchegou os braços em redor da cintura, dirigindo-se lentamente para o portão. O condutor fez piscar os faróis com uma energia que só poderia vir de Daphne, e Laurel ergueu uma mão para lhe acenar.