Capítulo 6

Laurel passou uma parte considerável do jantar a observar o rosto da irmã mais nova. Alguma coisa ela lhe teria feito, e bem feito, e o resultado era fascinante. «Um novo hidratante absolutamente fabuloso», diria Daphne a quem lhe perguntasse, o que, uma vez que Laurel não gostava que lhe mentissem, se coibiu de fazer. Assim, foi assentindo com a cabeça à medida que a irmã sacudia os caracóis louros e as deliciava a todas com histórias das gravações do programa Manhãs de Los Angeles, onde todos os dias debitava o boletim meteorológico e namoriscava com um locutor chamado Chip. Os intervalos no seu monólogo loquaz eram raros e, quando a ocasião finalmente surgiu, Rose e Laurel precipitaram-se para não a deixar escapar.

— Tu primeiro — disse Laurel, inclinando o copo de vinho (outra vez vazio, reparou) na direcção da irmã.

— Eu só queria sugerir que talvez fosse melhor conversarmos um bocadinho sobre a festa da mamã.

— Sou da mesma opinião — disse Iris.

— Eu tenho umas ideias — acrescentou Daphne.

— Com certeza...

— Obviamente...

— Nós...

— Eu...

— O que é que tu tens em mente, Rosie? — perguntou-lhe Laurel.

— Bom — Rose, sempre desconfortável sob a pressão das irmãs, começou com uma tossidela —, terá de ser no hospital, infelizmente, mas eu pensei que podíamos arranjar maneira de criar uma ocasião especial para ela. Vocês sabem a importância que ela dá aos aniversários.

— Tiraste-me as palavras da boca — disse Daphne, contendo um leve soluço por detrás das unhas pintadas de rosa-bebé. — E, seja como for, será o último que ela vai celebrar.

O silêncio instalou-se à mesa, com a indelicada excepção do relógio suíço, até Iris o interromper com uma fungadela.

— Tu agora andas muito... espevitada, não andas? — observou ela, acariciando as pontas afiladas do seu penteado à la garçonne cinzento-chumbo. — Desde que foste morar para os Estados Unidos.

— Eu só estava a dizer...

— Parece-me que todas percebemos o que estavas a dizer.

— Mas é verdade.

— Mais uma razão, alguém poderia argumentar, para tu não teres necessidade nenhuma de dizer isso.

Laurel olhou para as irmãs. Iris de ar carrancudo, Daphne a pestanejar os olhos azuis mortificados, Rose a torcer a trança com uma ansiedade que ameaçava arrancá-la. Bastar-lhe-ia semicerrar ligeiramente os olhos para as ver de volta à infância. Suspirou de olhar fixo no copo.

— Talvez pudéssemos levar-lhe alguns dos seus objectos preferidos — sugeriu então. — Pôr a tocar uns discos da colecção do pai. É a esse tipo de coisas que te referes, Rosie?

— Sim — confirmou a irmã, com uma gratidão enervante —, sim, isso seria perfeito. Lembrei-me até de que lhe podíamos contar algumas das histórias que ela costumava inventar para nós.

— Como aquela do portão ao fundo do jardim que conduzia ao reino das fadas.

— E os ovos de dragão que encontrou no bosque.

— E da ocasião em que ela fugiu de casa para se juntar ao circo.

— Ainda se lembram — perguntou Iris de repente — do circo que passou por aqui?

— O meu circo! — declarou Daphne com um sorriso radiante atrás do copo de vinho.

— Bom, é verdade — intrometeu-se Iris —, mas só porque...

— Porque eu apanhei o maldito do sarampo e não pude ir ao circo a sério quando ele veio à cidade. — Daphne riu-se com gosto perante aquela recordação. — Ela pediu ao papá que montasse uma tenda ao fundo do prado, lembram-se?, e vestiu-vos a vocês de palhaças. A Laurel era um leão e a mamã andava na corda bamba.

— E até tinha bastante jeito para isso — comentou Iris. — Praticamente, não caiu da corda. Deve ter andado semanas a treinar.

— Ou isso, ou então a história que ela nos contou era verdade, e ela passou mesmo uma temporada no circo — disse Rose. — Vindo da mamã, não me admiraria nada.

Daphne soltou um suspiro contido.

— Tivemos muita sorte em ter uma mãe como a nossa, não tivemos? Tão brincalhona, quase como se nunca tivesse chegado a adulta; completamente diferente de outras mães, velhas e maçadoras. Ainda me lembro de sentir uma certa petulância sempre que recebia colegas da escola em casa.

— Petulante? Tu?! — Iris fingiu surpresa. — Olha que ninguém diria...

— Voltando à festa da mamã — Rose agitou uma mão, ansiosa por evitar nova contenda —, lembrei-me de que podíamos fazer um bolo, um pão-de-ló com recheio de geleia, o prefer...

— Ainda se lembram — interrompeu-a Daphne com súbita vivacidade — da faca, daquela com a fita...

— A fita vermelha — disse Iris.

— ... e o cabo de osso. A mamã fazia questão de se servir dela em todos os aniversários.

— Ela dizia que era mágica, que era capaz de conceder desejos.

— Sabem, eu acreditei nisso durante tanto tempo. — Daphne apoiou o queixo nas costas da mão com um suspiro airoso. — O que terá sido feito dessa velha faca tão engraçada?

— Levou sumiço — comentou Iris. — Agora me lembro. Houve um ano em que não a encontrei no sítio dela, e, quando perguntei à mãe onde estava, ela respondeu-me que tinha desaparecido.

— Deve com certeza ter levado o mesmo destino das centenas de canetas e grampos de cabelo que levaram sumiço nesta casa — apressou-se Laurel a dizer. Pigarreou. — Tenho a garganta seca. Alguém quer mais vinho?

— Não seria maravilhoso se a conseguíssemos encontrar? — ouviu ela à medida que atravessava o hall de entrada.

— Mas que ideia esplêndida! Podíamos levá-la para lhe partir o bolo.

Laurel chegou à cozinha e, assim, foi poupada aos preparativos para a organização da equipa de busca. («Onde acham que ela se terá enfiado?» Daphne estava entusiasmada.)

Ligou o interruptor e a cozinha ganhou vida a custo, qual velho e fiel criado que por ali ficara muito depois de o seu prazo de validade caducar. Na ausência de outras pessoas e com o tubo fluorescente a emitir uma ténue meia-luz, a cozinha tinha um aspecto mais triste do que na memória de Laurel; as juntas dos azulejos estavam cinzentas e as tampas das latas cobertas por uma camada baça de pó peganhento. Teve a desconfortável sensação de que o que tinha diante de si era a prova da falta de vista da mãe. Deveria ter-lhe arranjado uma empregada de limpeza. Porque não se lembrara disso? E, aproveitando que estava virada para a autoflagelação (porquê ficar-se por ali?), deveria ter vindo visitá-la com maior frequência, ter ela própria limpado a casa.

O frigorífico, pelo menos, era novo; Laurel encarregara-se disso. Quando o velho Kelvinator fora à vida de vez, Laurel encomendara outro frigorífico pelo telefone em Londres: com um sistema de poupança de energia e uma máquina de fazer gelo de que a mãe nunca se servia.

Laurel encontrou a garrafa que trouxera consigo e fechou a porta do frigorífico com um empurrão. Com um nadinha de força a mais, talvez, porque um dos ímanes soltou-se e um papel foi para ao chão. Desapareceu por debaixo do frigorífico e ela praguejou. Pôs-se de gatas para apalpar o chão entre os bocados de cotão. O recorte de jornal era do Sudbury Chronicle e apresentava uma fotografia de Iris com um perfeito ar de directora, de fato de tweed e collants pretos diante da sua escola. O papel saíra ileso da aventura e Laurel procurou um espaço desimpedido onde tornar a afixá-lo. Foi mais difícil do que poderia parecer. O frigorífico dos Nicolson sempre fora um local concorrido, mesmo antes de alguém, algures, ter tido a ideia de vender ímanes com o propósito expresso de criar desarrumação: qualquer coisa digna de atenção era presa com fita-cola à grande porta branca, para notificação da família. Fotografias, louvores, postais e, como não poderia deixar de ser, qualquer menção nos jornais ou revistas.

Algures, não sabia de onde, chegou-lhe a recordação de uma manhã soalheira de Junho de 1961 — um mês antes da festa de anos de Gerry: os sete sentados em volta da mesa do pequeno-almoço a barrar geleia de morango em torradas com manteiga enquanto o pai recortava o artigo do jornal da localidade; a fotografia de Dorothy, toda sorridente a segurar ao alto o seu feijoeiro galardoado com um prémio; o pai a afixá-lo na porta do frigorífico depois, enquanto os restantes lavavam a louça.

— Está tudo bem contigo?

Laurel virou-se de repente e viu Rose à porta da cozinha.

— Óptimo. Porquê?

— Nunca mais te despachavas. — Franziu o nariz, a examinar Laurel atentamente. — E deixa-me que te diga que estás com um ar um tanto ou quanto adoentado.

— É desta luz — justificou-se Laurel. — Dá às pessoas um resplendor tísico deveras encantador. — Atarefou-se com o saca-rolhas, virando costas a Rose para que a irmã não lhe visse a expressão. — Imagino que os planos para a Grande Caçada à Faca já estejam em marcha?

— Ah, claro. Sinceramente, quando aquelas duas se juntam...

— Se ao menos conseguíssemos juntar forças e usá-las para um fim útil.

— Nem mais.

Uma lufada de vapor saiu do forno quando Rose abriu a porta para dar uma vista de olhos à tarte de framboesa, a especialidade da mãe. O aroma adocicado da fruta quente inundou o ar e Laurel fechou os olhos.

Levara meses até ganhar coragem para fazer perguntas acerca do episódio. Tamanha era a feroz determinação dos pais em olhar para a frente e para cima, negar o que se passara, que, não tivesse ela começado a sonhar com o homem, poderia nunca ter chegado a fazê-lo. Mas tinha, sonhava todas as noites o mesmo. O homem junto à casa, a chamar pelo nome da mãe...

— Está com bom aspecto — observou Rose, puxando o tabuleiro do forno. — Não tão bom quanto a dela, mas não devemos esperar milagres.

Laurel encontrara a mãe na cozinha, precisamente naquele sítio, uns dias antes da sua partida para Londres. Sem rodeios, perguntou-lhe: «Mãe, como é que aquele homem sabia o seu nome?» Sentiu um aperto no estômago quando estas palavras lhe saíram da boca, e uma parte dela, apercebeu-se enquanto esperava pela resposta, rezava para que a mãe lhe dissesse que estava enganada. Que ela tinha ouvido mal e que o homem não dissera nada daquilo.

Dorothy não lhe respondera de imediato. Ao invés, dirigiu-se ao frigorífico, abriu a porta e pôs-se a vasculhar no interior. Laurel ficara a olhar para ela de costas durante o que lhe parecera uma eternidade e já estava quase a perder a esperança quando a mãe, finalmente, começou a falar. «O jornal», disse ela. «A polícia acha que ele deve ter lido o artigo no jornal. Tinha um exemplar dentro da sacola. Foi assim que descobriu aonde se deveria dirigir.»

Fizera todo o sentido.

Isto é, Laurel queria que fizesse sentido e, por conseguinte, assim fora. O homem lera o jornal, vira a fotografia da mãe e, em seguida, lançara-se no seu encalço. E se uma vozinha lá bem no fundo de Laurel sussurrou: «Porquê?», ela fez por a ignorar. O homem era desequilibrado... Quem poderia apontar um motivo ao certo? E, fosse como fosse, que importância tinha isso? O caso estava arrumado. Desde que Laurel não começasse a puxar pelos fios delicados, a tapeçaria manter-se-ia coesa. A imagem continuaria intacta.

Pelo menos, assim fora, até agora. Custava a acreditar que, sinceramente, cinquenta anos decorridos, bastara Laurel tornar a olhar para uma velha fotografia e ouvir o nome de uma mulher para a trama da sua ficção se começar a desfiar.

O tabuleiro deslizou para o interior do forno com um ruído metálico e:

— Mais cinco minutos — disse Rose.

Laurel deitou vinho no seu copo e fez por aparentar descontracção.

— Rosie?

— Hum?

— Aquela fotografia de hoje, a do hospital. A mulher que ofereceu o livro à mãe...

— A Vivien.

— Isso. — Laurel sentiu um ligeiro arrepio ao pousar a garrafa. O nome tinha um efeito estranho nela. — A mãe já alguma vez te tinha falado nela?

— Por alto — respondeu-lhe a irmã. — Depois de eu encontrar a fotografia. Eram amigas.

Laurel recordava-se da data na fotografia, 1941.

— Durante a guerra.

Rose assentiu com a cabeça, dobrando o pano da loiça num rectângulo perfeito.

— Ela não se alongou muito. Disse apenas que a Vivien era australiana.

— Australiana?

— Veio para cá em miúda, não sei ao certo porquê.

— E como foi que elas se conheceram?

— Isso ela não me contou.

— E porque é que nós nunca a conhecemos?

— Não faço ideia.

— É curioso, não achas, que a mãe nunca nos tenha falado dela? — Laurel bebeu um gole de vinho. — Pergunto-me porquê.

O relógio do forno tocou.

— Talvez tenham tido alguma zanga. Se tenham afastado. Não sei. — Rose calçou as luvas. — Mas, afinal, a que se deve esse interesse todo?

— Não é interesse nenhum. A sério.

— Então, vamos comer — decidiu Rose, segurando a travessa da tarte em ambas as mãos. — Isto está com um óptimo aspec...

— Ela morreu — declarou Laurel com inesperada convicção. — A Vivien morreu.

— Como é que tu sabes?

— Isto é — Laurel engoliu em seco e apressou-se a recuar —, talvez tenha morrido. O país estava em guerra. É possível, não achas?

— Tudo é possível. — Rose experimentou a crosta com um garfo. — Vê, por exemplo, esta cobertura com um ar deveras apetitoso. Estás pronta a enfrentar as outras?

— Na verdade... — a necessidade de ir lá acima, verificar a sua súbita recordação, foi imediata e premente —, há bocado tu tinhas razão. Não estou lá muito bem-disposta.

— Não queres provar a tarte?

Laurel abanou a cabeça, a meio caminho da porta.

— Desculpa, mas vou deitar-me. Não quero correr o risco de estar doente amanhã.

— Queres que te leve alguma coisa... um paracetamol, uma chávena de chá?

— Não — respondeu-lhe Laurel. — Não, obrigada. A não ser, Rose...

— Sim?

— A peça.

— Que peça?

— O Peter Pan... o livro de onde a fotografia caiu. Está à mão?

— Tu és muito engraçada — comentou Rose com um sorriso de esguelha. — Vou ter de dar voltas à casa para o conseguir encontrar. — Inclinou a cabeça para a tarte. — Mais logo, não te importas?

— Com certeza, não tenhas pressa, eu vou só recostar-me. Saboreia a tua tarte com calma. E, Rosie?

— Sim?

— Desculpa deixar-te voltar para a refrega sozinha.

*

Fora a menção à Austrália que desencadeara tudo. À medida que Rose relatava o que ficara a saber por intermédio da mãe, uma luz acendera-se no espírito de Laurel e ela compreendera que Vivien era importante. E recordou-se também onde ouvira aquele nome pela primeira vez, há tantos anos.

Enquanto as irmãs comiam a sobremesa e se punham à caça de uma faca que jamais haveriam de encontrar, Laurel enfrentou o sótão à procura do seu malão. Cada um dos irmãos tinha um; Dorothy fora peremptória no que se referia a isso. Era por causa da guerra, confidenciara-lhes um dia o pai: a mãe perdera tudo quanto amava quando a casa onde a sua família morava, em Coventry, fora atingida num bombardeamento e desfizera o seu passado em escombros. Estava decidida a que os filhos nunca sofressem o mesmo destino. Poderia não ser capaz de os poupar a todos os desgostos, mas poderia muito bem assegurar-se de que saberiam onde encontrar as fotografias da escola quando bem entendessem. A paixão da mãe por coisas, por bens materiais — objectos que podia segurar entre as mãos e investir com significado profundo —, rasara a obsessão, o seu entusiasmo por coleccionar era tão grande que a família tinha dificuldade em não se deixar arrastar por ele. Tudo se guardava, nada se deitava fora, as tradições eram religiosamente observadas. E a faca era um bom exemplo disto mesmo.

O malão de Laurel estava encafuado debaixo de um radiador partido que o pai nunca chegara a consertar. Não precisou de ler o nome gravado com estêncil na tampa para saber que era o seu. As correias de cabedal castanho-claro e a fivela partida eram uma prova indesmentível. O seu coração acelerou ao vê-lo, na expectativa daquilo que sabia que acharia lá dentro. Era curioso como um objecto em que não pensava havia décadas era capaz de surgir com contornos tão bem definidos na sua mente. Sabia exactamente do que andava à procura, a sensação que lhe provocaria ao tocá-lo, as emoções que a sua descoberta faria vir à tona. Uma vaga imagem de si própria da última vez que ali estivera ajoelhou-se a seu lado à medida que desapertava as correias.

O malão cheirava a pó e humidade e a uma antiga água-de-colónia de cujo nome se esquecera, mas cuja fragrância a fazia sentir como se tivesse outra vez dezasseis anos. Estava cheio de papéis: diários, fotografias, cartas, cadernetas da escola, alguns moldes de costura de calças capri, mas Laurel não se demorou a folheá-los. Retirou pilha após pilha, deitando uma vista de olhos a cada uma.

Mais ou menos a meio, do lado esquerdo, encontrou aquilo de que vinha à procura. Um livro fino, completamente destituído de encantos e, não obstante, para Laurel, transbordante de recordações.

Há alguns anos, tinha-lhe sido oferecido o papel de Meg n’A Festa de Anos; seria uma oportunidade para se apresentar no Luttelton Theatre, mas Laurel recusara. Fora a única ocasião de que se lembrava em que tinha colocado a sua vida pessoal à frente da carreira. Justificou-se com as gravações de um filme, o que não era inteiramente improvável, mas que também não era verdade. Não teria sido capaz. A peça estava indissociavelmente ligada ao Verão de 1961; lera-a vezes sem conta depois de o rapaz — já nem sequer do nome dele se lembrava; que ridículo, tivera uma paixão avassaladora por ele — lha oferecer. Aprendera o texto de cor, impregnando as cenas com toda a revolta e frustração que sentia. E depois o homem aparecera no caminho para sua casa e criara-se uma confusão tal na sua mente e no seu coração que qualquer tentativa para se concentrar na peça era suficiente para se sentir fisicamente doente.

Mesmo agora, sentia a pele húmida, a pulsação acelerada. Era para ela um alívio não ser da peça que precisava, mas sim do que guardara lá dentro. Ainda lá estavam, apercebia-se pelas margens irregulares de papel a espreitar das suas páginas. Dois artigos de jornal; o primeiro, retirado do pasquim da zona, era um relato um tanto ou quanto vago acerca da morte de um homem durante o Verão em Suffolk; o segundo era um obituário do The Times arrancado sub-repticiamente do jornal que o pai da sua amiga todos os dias trazia de Londres para casa. «Vejam só isto», dissera ele certa tarde em que Laurel fora visitar Shirley. «Um artigo a respeito daquele indivíduo, aquele que morreu perto de vossa casa, Laurel.» Era um longo artigo, pois descobrira-se que o homem não era propriamente o suspeito do costume; houvera momentos, muito antes de aparecer à porta de Greenacres, em que se distinguira e chegara mesmo a ser enaltecido. Não deixava filhos, mas em tempos tivera uma esposa.

A lâmpada solitária a oscilar suavemente do tecto não dava luz suficiente para permitir a leitura e, assim, Laurel fechou o malão e levou o livro lá para baixo.

Tinha-lhe sido atribuído o quarto da sua meninice (outro dado adquirido na complexa escala de antiguidade entre as irmãs) e a cama tinha sido feita de lavado. Alguém — Rose, calculava ela — já lhe tinha trazido a mala para cima, mas Laurel não a desfez. Abriu a janela de par em par e sentou-se no peitoril.

Com um cigarro entre os dedos, Laurel retirou os artigos do interior do livro. Passou os olhos pelo artigo do jornal da localidade, preferindo concentrar-se no obituário. Foi percorrendo as linhas, à espera de que os seus olhos se detivessem no que sabia que lá estava.

A um terço do fim, o nome saltara-lhe à vista.

Vivien.

Laurel voltou atrás para ler a frase desde o início: «Jenkins casou-se em 1938 com a Menina Vivien Longmeyer, nascida em Queensland, Austrália, e criada por um tio no Oxfordshire.» Um pouco mais abaixo, lia-se: «Vivien Jenkins morreu em 1941, no decorrer de um violento bombardeamento aéreo em Notting Hill.»

Puxou uma grande fumaça do cigarro e reparou que os dedos lhe tremiam.

Era possível, claro, que existissem duas Vivien, ambas australianas. Era possível que a amiga dos tempos de guerra da mãe não tivesse nada que ver com a Vivien australiana cujo marido lhes morrera à porta de casa. Mas não era provável, pois não?

E se a mãe conhecia Vivien Jenkins, então conhecera também, seguramente, Henry Jenkins. «Ora viva, Dorothy. Há quanto tempo», dissera-lhe o homem, e, nessa altura, Laurel vira o medo assomar ao rosto da mãe.

A porta abriu-se para dar entrada a Rose.

— Está tudo bem? — perguntou ela à irmã, franzindo o nariz ao dar pelo cheiro a tabaco.

— É terapêutico — explicou-lhe Laurel, indicando o cigarro na mão trémula e colocando-a do lado de fora da janela. — Não digas nada aos pais... Não me apetece nada ficar de castigo.

— O teu segredo morre comigo. — Rose aproximou-se dela e estendeu-lhe um pequeno livro. — Está um bocado esfarrapado, receio bem.

Esfarrapado era um eufemismo. A capa do livro estava presa, literalmente, por fios, e o tecido verde-garrafa por baixo tão sujo de pó que perdera a cor; talvez até, a julgar pelo leve cheiro a fumo, fuligem. Laurel foi virando as páginas com todo o cuidado até chegar ao frontispício. Ali, escrita a preto, lia-se a seguinte dedicatória: «À Dorothy. Um verdadeiro amigo é uma luz na escuridão. Vivien.»

— Deve ter significado muito para ela — comentou Rose. — Não estava na estante juntamente com os outros; estava dentro do malão dela. Guardou-o lá dentro durante estes anos todos.

— Tu andaste a mexer dentro do malão dela? — A mãe tinha ideias bastante claras a respeito da privacidade e respectiva observação.

Rose corou.

— Não precisas de olhar assim para mim, Lol; não se pode dizer que tenha forçado um cadeado com uma lima das unhas. Há uns meses, pouco antes de ir para o hospital, a mãe pediu-me que lhe fosse buscar o livro.

— Ela deu-te a chave?

— A contragosto, e só depois de eu a apanhar a tentar subir ao sótão sozinha.

— Não posso crer.

— É a pura verdade.

— É incorrigível.

— É como tu, Lol.

A intenção de Rose era a melhor possível, mas as suas palavras deixaram a irmã arrepiada. Uma recordação atravessou-lhe o espírito: a noite em que comunicara aos pais que ia para Londres, para frequentar a Central School of Speech and Drama. Tinham ficado tristes e consternados, magoados por ela ter feito as audições sem lhes dizer nada, intransigentes por ela ser muito nova para sair de casa, preocupados por ela não concluir o secundário e obter o diploma. Haviam-se sentado com ela à mesa da cozinha, apresentando-lhe à vez argumentos razoáveis numa voz exageradamente calma. Laurel tentou mostrar o seu desagrado e, quando os pais por fim terminaram, disse-lhes:

— Mesmo assim, eu vou — com a toda a veemência amuada que se poderia esperar de uma adolescente ressentida. — Nada do que possam dizer me irá fazer mudar de ideias. É o que eu quero.

— Tu ainda não tens idade para saber o que na verdade queres — contrapôs a mãe. — As pessoas mudam, crescem, tomam decisões mais acertadas. Eu conheço-te, Laurel...

— Ah, isso é que não conhece.

— Eu sei que és teimosa. Sei que estás decidida a ser diferente, que tens a cabeça cheia de sonhos, tal como eu tinha...

— Eu não sou nada parecida consigo — protestara Laurel na altura, as suas palavras acutilantes trespassando a compostura já de si pouco segura da mãe.

— Já chega! — Stephen Nicolson envolveu a mulher nos seus braços. Ordenou a Laurel que fosse para o quarto, mas avisou-a de que o assunto estava longe de estar arrumado.

Laurel deixou-se ficar estendida na cama a fumegar durante horas a fio; não sabia ao certo onde estavam as irmãs, apenas que tinham sido levadas para um sítio qualquer a fim de não interromper a sua quarentena. Era a primeira vez que se lembrava de discutir com os pais e sentia-se exultante e arrasada em igual medida. Sentia que a vida nunca mais voltaria a ser como fora até aí.

Ainda continuava ali, deitada no escuro, quando a porta se abriu e alguém se aproximou devagarinho dela. Laurel sentiu a beira da cama a afundar quando a pessoa se sentou e em seguida ouviu a voz da mãe. Estivera a chorar, reparou ela, e essa percepção, o facto de saber que a responsabilidade era sua, deu-lhe vontade de enlaçar os braços em volta do pescoço da mãe e nunca mais a largar.

— Lamento a discussão que tivemos — disse Dorothy, no momento em que um raio de luar entrou pela janela e lhe iluminou o rosto. — É curiosa a maneira como as coisas acontecem. Nunca pensei que algum dia haveria de discutir com a minha filha. Eu costumava meter-me em sarilhos quando era miúda... Sempre me senti diferente dos meus pais. Amava-os, naturalmente, mas não estou segura de que eles soubessem exactamente o que pensar a meu respeito. Eu achava que era dona da razão e não dava ouvidos a uma palavra do que eles diziam.

Laurel esboçou um ténue sorriso, incerta quanto ao rumo que a conversa iria tomar, mas aliviada por já não sentir as entranhas a ferver como lava incandescente.

— Nós somos parecidas, tu e eu — continuou a mãe. — Creio que é por isso que me sinto tão ansiosa por que não cometas o mesmos erros que eu cometi.

— Só que eu não vou cometer erro nenhum. — Laurel sentara-se e recostara-se nas almofadas. — Será possível que não veja isso? Eu quero ser actriz... A escola de arte dramática é o sítio ideal para uma pessoa como eu.

— Laurel...

— Imagine que tem dezassete anos, mãe, e a vida toda pela frente. É capaz de imaginar outro sítio onde gostaria mais de estar do que em Londres? — Estas palavras não foram as mais felizes; a mãe nunca mostrara o mais pequeno interesse em ir a Londres.

Quedaram-se em silêncio e um melro chamou os amigos lá fora.

— Não — acabou Dorothy por dizer, em voz baixa e algo tristonha, enquanto estendia uma mão para acariciar as pontas do cabelo da filha. — Não, creio que não.

Nesse momento, Laurel apercebeu-se de que estivera demasiado absorvida em si própria para tentar imaginar ou perguntar-se como fora a mãe nos seus dezassete anos, que sonhos alimentara e que erros cometera que estava tão ansiosa por que a filha não os repetisse.

*

Laurel segurou o livro que Rose lhe trouxera e disse-lhe, com a voz mais trémula do que desejaria:

— É estranho ver qualquer coisa que lhe pertence há tanto tempo, não é?

— Há tanto tempo como?

— Antes de nós nascermos. Antes de virmos morar para esta casa. Antes de ela ser nossa mãe. Imagina só, quando lhe ofereceram este livro, quando aquela fotografia com a Vivien foi tirada, ela não fazia ideia de que nós estávamos algures à espera de existir.

— Não admira que tenha um ar radiante na fotografia.

Laurel não se riu.

— Tu costumas pensar nela, Rose?

— Na mamã? Claro...

— Não na mamã, eu refiro-me à jovem que ela foi. Naquela época, ela era uma pessoa diferente, com uma vida a respeito da qual não sabemos nada. Alguma vez deste por ti a imaginar como seria ela, quais seriam os seus sonhos, as suas ideias... — Laurel olhou de relance para a irmã — que género de segredos teria?

Rose esboçou um sorriso vago e Laurel abanou a cabeça.

— Não faças caso do que eu digo. Hoje estou um bocadinho piegas. É por estar outra vez aqui, creio eu. No nosso antigo quarto. — Forçou uma boa disposição que não sentia. — Ainda te lembras de como a Iris ressonava?

Rose soltou uma gargalhada.

— Ainda era pior do que o papá, não era? Pergunto-me se lhe terá passado...

— Não tarda, vamos descobrir. Vais já deitar-te?

— Pensei em tomar um banho antes de elas acabarem de comer e a Daphne açambarcar o espelho. — Baixou a voz e puxou a pele de uma pálpebra. — Achas que ela...?

— Tudo leva a crer que sim.

Rose fez uma cara que dizia: «As pessoas são tão estranhas, não são?», e fechou a porta ao sair.

O sorriso de Laurel foi-se desfazendo à medida que os passos da irmã se afastavam pelo corredor. Virou-se para contemplar o céu nocturno. A porta da casa de banho fechou-se com um estalido e os canos da água começaram a assobiar na parede atrás dela.

Há cinquenta anos, contou Laurel a uma constelação distante, a minha mãe matou um homem. Ela chamou-lhe autodefesa, mas eu vi. Ela empunhou a faca ao alto e enterrou-a no homem, e este caiu de costas na terra onde a erva estava comida e as violetas floresciam. Ela conhecia-o, estava assustada e eu não faço ideia do motivo.

Subitamente, Laurel teve a impressão de que todas as ausências na sua própria vida, cada perda e cada desgosto, cada pesadelo no escuro, cada melancolia inexplicável, assumiam a forma da mesma pergunta obscura que ficara por responder, algo que a atormentava desde os seus dezasseis anos: o segredo tácito da mãe.

— Quem és tu, Dorothy? — indagou ela com voz sumida. — Quem eras tu, antes de seres minha mãe?