Uma língua, muitas línguas

Lembra quando este livro abandonou o português europeu lá em 1572, dizendo que a partir dali a parte mais turbulenta da história dele estava, de certo modo, resolvida?

A segunda metade do século xix talvez seja o momento em que se possa dizer o mesmo do Brasil. A formação da nossa língua já tinha passado por suas etapas mais inovadoras, inéditas, transformadoras. Mas, como lá, aqui também isso não equivaleu a dizer que estava tudo pronto. Língua nenhuma, em momento nenhum, jamais esteve pronta. No nosso caso, ainda tínhamos (e temos) tarefas de casa importantes para resolver.

Só para começar, a narrativa desse embate entre o português brasileiro real e a norma escolar ainda está muito longe de ser resolvida e, nas últimas décadas, assumiu definitivamente o aspecto de um confronto entre os mundos rural e urbano.

A maior mudança demográfica, social, política e linguística que caracterizou o período pós-abolição da escravidão no Brasil foi precisamente a intensa urbanização de um país que, em finais do século xix, era quase todo rural e que migrou em massa para as cidades. Com isso, em termos linguísticos, passamos a ver, de um lado, o acirramento do confronto entre o português brasileiro desenvolvido no meio rural, onde a presença da população escravizada era ainda maior, e as formas urbanas, cosmopolitas e, em certo sentido, mais europeias do português brasileiro, que viriam a modelar a norma escolar impositiva.

Se antes desse grande afluxo de pessoas e de hábitos do campo as cidades podiam, até certo ponto, viver em sua bolha linguística, agora o confronto se tornava inescapável. E se essa migração serviu para tensionar as diferenças, serviu também (e serve cada vez mais) para provocar uma gradual permeabilização da norma culta, que aos poucos vai sendo tomada por padrões e registros antes excluídos. Mais uma vez, a força da multiplicidade.

Hoje, além de tudo, com a virada econômica e cultural (em que caipira virou sertanejo e a roça se transformou no agro ), algumas características associadas ao eixo não urbano deixaram de ser marcadas de maneira tão uniformemente negativa, atropelando, também elas, distinções de classe e de origem geográfica, e disputando com outras normas regionais uma futura posição de domínio. Nada ilustra melhor essa situação que a difusão do que os linguistas chamam de “rótico retroflexo”, normalmente descrito pelos falantes como “r caipira” e que pode ter surgido da dificuldade que tinham os falantes de línguas tupis para diferenciar os sons do l e do r .

Na minha infância ele era praticamente inexistente em Curitiba, e na grande mídia nacional só era admitido como caricatura ou em determinados ambientes típicos. Hoje, minha filha é usuária ocasional mas constante desse som, que não fazia parte da variedade falada nem por mim nem por sua mãe.

Claro que, como sempre, não cabe fazer previsões, mas de fato parece que o retroflexo (marca antiga das variedades rurais brasileiras) vem ganhando força. E pode se tornar cada vez mais comum e aceito à medida que figuras como o rapper Emicida, por exemplo, fazem com que ele seja ouvido nos contextos mais variados. Um fato curioso, e que demonstra o quanto podem ser velozes as mudanças que afetam os sons dos idiomas, é que esse mesmo som de r , que hoje é marca característica do inglês dos Estados Unidos e domina o país quase integralmente, começou a ganhar espaço por lá apenas depois da Segunda Guerra Mundial.

Em termos nacionais, além disso, esse movimento de grandes contingentes de trabalhadores (forçados ou não) continuou misturando as variedades do nosso português e fundindo, num todo um tanto mais coeso, o que de outra maneira poderia ter se estilhaçado num mosaico de dialetos cada vez mais isolados e diferentes uns dos outros. Isso ocorreu ao longo do século xx com os gaúchos (via de regra, habitantes do oeste dos três estados da região Sul) subindo rumo ao Pantanal e ao Norte; com os cearenses que no século xix repovoaram a Amazônia depois da violenta repressão à revolta da Cabanagem; e também com o êxodo mais recente de nordestinos para a região Sudeste, sobretudo São Paulo.

Esses movimentos não necessariamente apagam diferenças; o que eles podem fazer é gerar em cada local um convívio maior dessas diferenças. Até por isso, qualquer ideia de um padrão unificado para o português brasileiro ainda está em aberto.

Você já pode ter ouvido que determinada cidade do Brasil é onde se fala o melhor português . Não vale nem a pena entrar no mérito e discutir, de novo, o absurdo que é achar que uma variedade possa ser melhor que as outras. Mas vale lembrar que a lista de cidades que outorgam a si mesmas esse título é bem considerável, e que cada uma delas tem um português bem diferente das outras!

O Rio de Janeiro, capital do Estado do Brasil a partir de 1763 e capital federal até a inauguração de Brasília, em 1960, esteve em excelente posição para ocupar esse posto de cidade-centro, no que, até certo ponto, foi bem-sucedido, em muito por causa da centralização da mídia nacional na cidade. Tendo crescido no sul do Brasil nos anos 1970 e 1980, ainda recordo um mundo em que certo sotaque carioca era visto como marca segura de refinamento.

Mas essa pretensa segurança do padrão carioca também mascara fatos ainda facilmente perceptíveis em nossa história recente. Basta comparar entrevistas e gravações de músicas de cantores e cantoras cariocas anteriores, digamos, aos anos 1980, para perceber que em suas apresentações voltadas para o país inteiro eles atenuavam certas marcas de seu sotaque, a fim de se aproximar de uma pronúncia mais neutra. O desejo de definir uma tal forma de falar chegou a ser objeto de discussão e de encontros públicos realizados a partir dos anos 1940.

Por outro lado, a cidade de São Paulo, centro magnético do Brasil há séculos, passou boa parte do tempo resolvendo seus próprios problemas sociolinguísticos, diretamente marcados pela dinâmica rural-urbano, incapaz, portanto, até pouco tempo atrás, de apresentar uma alternativa clara ao predomínio do Rio de Janeiro.

Há quem pense, inclusive, que o processo de formação de uma identidade linguística paulistana foi em grande medida intermediado pelos migrantes europeus (especialmente italianos). Essas pessoas, que chegaram em grande número ao estado e à cidade de São Paulo a partir do final do século xix , gozavam de uma posição singular na sociedade: como migrantes brancos, sofriam muito menos preconceito dos brancos daqui; mas eram migrantes pobres, então conviviam mais de perto com negros e mestiços. Ao ascender socialmente, esses novos brasileiros podem ter ajudado a implementar no português “alto” da cidade as marcas da língua alterada pelos escravizados e utilizada pelos descendentes destes, companhia mais frequente desses migrantes em seus primeiros anos de Brasil.

Eis um processo típica e tragicamente nosso. Um elemento autenticamente negro e popular só passa a ser aceito pela elite “branca” (entre muitas aspas) quando trazido por um grupo de europeus capazes de levá-lo até as camadas mais altas da sociedade, cujo acesso lhes foi franqueado de maneira mais fácil graças à cor da pele.

Talvez tenha sido apenas na virada do século xxi que enfim se desenhou o potencial de uma “norma urbana culta” paulistana de alcance nacional; só a partir daí é que ela esboçou os primeiros passos para se infiltrar na televisão, e na cultura em geral, como uma possível “referência”. Mas tudo isso talvez tenha chegado tarde demais para que São Paulo se apresente como forte candidata ao posto de centro único de referência e de difusão da norma linguística do português brasileiro real. Afinal, talvez não estejamos mais no tempo dos centros.

Essa ideia, afinal, parte de uma leitura um tanto ingênua, antiquada e mal informada, que acredita se embasar em padrões europeus. A crença seria de que os idiomas do dito Primeiro Mundo são ensinados para estrangeiros, por exemplo, com base no uso típico de uma única cidade (ou, para sermos mais honestos, com base no uso típico da classe privilegiada de uma única cidade, em registro formal).

Isso nem é exatamente verdade. E mesmo quando é, ou quando tenta ser verdade para o ensino de língua estrangeira, não quer dizer que reflita a realidade daquele mundo.

O francês parisiense branco mais estereotípico, muito citado como exemplo, pode ser até estigmatizado na própria França por soar presunçoso. Imagine, então, o que acontece quando a gente coloca na roda o inglês, a língua mais falada do mundo e, possivelmente, a mais universal da história da humanidade. Seu centro estaria na velha Inglaterra (Londres seria a escolha óbvia) ou nos Estados Unidos, país bem mais populoso e há mais de um século também mais influente cultural, política e economicamente? E se o nosso pêndulo se inclinar para o Novo Mundo, qual seria a cidade de referência? Nova York tem mais de um sotaque, e todos eles são de alguma maneira estigmatizados fora de lá. Washington D.C., a capital, não é uma referência real.

De onde vem o inglês americano?

Esse aparente pluricentrismo está na verdade mais perto de ser a regra do mundo moderno do que a exceção. Pense nos estados brasileiros e na frequência com que a norma mais típica da capital de cada um deles só tem validade dentro daquela cidade, sem se estender por todo o território. Em se tratando, além de tudo, de um país com uma capital criada artificialmente há poucas décadas (ainda mal caracterizada em termos de “um” sotaque), qual seria o centro de referência do português brasileiro?

Aí sim.

Isso pode descrever muito bem a nossa realidade.

Somos um feixe variado de normas divergentes, e não apenas em termos de sotaque, elemento mais costumeiramente evocado para tratar da diversidade de normas regionais.Um bom exemplo: embora quase todo o país empregue o pronome você (já passou da hora de a gente assumir que é um pronome), ainda há grandes bolsões de uso de tu , com ou sem flexão do verbo na segunda pessoa. Dizemos você fez , tu fez , tu fizeste (e também tu fizesse , como no litoral catarinense). E isso acontece com um elemento central da gramática do idioma, do tipo que se aprende nas primeiras aulas de qualquer língua estrangeira.

E não para por aí.

O que dizer do fato de que a minha norma, por exemplo, diferencia graus de formalidade entre construções como “Você me trouxe o seu livro” (engravatada) e “Você me trouxe o teu livro” (de pijama)? Lembra quando vimos que toda variedade tem sua gramática? A minha geração de curitibanos lida não com um “erro” de concordância, mas com uma delicada regra de aplicação variável e determinação contextual. E isso, cara leitora, caro leitor, também é gramática.

O mesmo vale para os imperativos. Na minha norma, “Traga isso pra mim” é uma ordem e “Traz isso pra mim”, um pedido. Essa regra, aliás, parece estar penetrando, de maneiras às vezes atrapalhadas, no discurso da publicidade e das redes sociais.

E como lidar com a fronteira móvel que divide o país em dois quanto ao uso (ou não) de artigo definido diante de nome próprio em situação de informalidade (“Eu amo a Sandra” versus “Eu amo Sandra”)? Outra regra que parece estar em constante mudança.

São especificidades como essa (e tantas, tantas outras) que ainda nos fascinam e nos desorientam, neste nosso país que constantemente parece desafiar as tendências de regularização e centralização.

Se hoje os brasileiros, tão mais numerosos, transformaram o português na sexta língua com mais falantes nativos no mundo, é de se imaginar que um estrangeiro que pretenda aprender o idioma favoreça a nossa variedade, em detrimento, por exemplo, da europeia. Mas qual variedade brasileira ensinar, ao menos num primeiro momento?

Mesmo num cenário de respeito à variedade, de interesse por ela, pode ser proveitoso contar com uma versão aparentemente neutra do idioma para fins de ensino e, por vezes, de divulgação. Por outro lado, mesmo a centralizadora mídia televisiva brasileira parece estar se abrindo mais para pronúncias e normas regionais. Será que neste, como em outros campos, esperamos para saber se vamos tentar adotar um pretenso modelo europeu de escolha de um centro? Ou, ao contrário, caminhamos para algo como o “universal lateral” de que alguns filósofos andam falando, uma ideia de se chegar ao consenso via tradução, via aceitação da diferença? Quem sabe para a “unimultiplicidade” de Tom Zé, onde cada um de nós, sozinho, já é “a casa da humanidade”?

A ideia do escritor austríaco Stefan Zweig de que o Brasil seria “o país do futuro” talvez não signifique, necessariamente, que um dia vamos ser melhores do que o famoso Primeiro Mundo nas regras do jogo que eles mesmos inventaram. Quem sabe a interpretação mais adequada dessa frase não seja que o Velho Mundo é que se tornará mais parecido com o nosso? Alemães negros com sobrenomes turcos e olhos puxados; italianos magrebinos de olhos azuis casados com finlandesas de ascendência guatemalteca. Nada estranho para quem cresceu olhando bem para o Brasil.

Que tal voltar a uma ideia lá de trás, para sintetizar esses impasses?

Pois bem.

Durante um belo pedaço do século xix , e sempre que surgia alguém com suficiente tempo livre, a oposição Europa-América retomava proeminência nos debates do campo linguístico. Afinal, qual seria o melhor nome para a nossa língua? Deveríamos usar “brasileiro” de uma vez?

Não se trata, porém, de uma questão que possa ser respondida recorrendo-se apenas à ciência linguística. Como já vimos, a vontade política e a identificação cultural e histórica têm um peso muito maior em casos assim. E mesmo que quiséssemos recorrer à linguística… o que ela teria a dizer? Como medir a distância entre o português “deles” e o “nosso”, entre o lusitano e o brasileiro (fazendo de conta que existe estabilidade e uniformidade internas de cada lado do oceano)?

Pode parecer que uma eventual “diferença média” entre o lusitano e o português seja maior, por exemplo, do que a diferença entre o inglês dos Estados Unidos e o da Inglaterra. E essa distância ainda fica exacerbada pela assimetria da exposição dos falantes de cada lado à norma do outro: os portugueses estão saturados de brasileirismos (depois da pandemia de covid-19, houve gente reclamando que as crianças portuguesas tinham visto tantos desenhos dublados ou produzidos aqui que já estavam virando linguisticamente brasileiras), enquanto nós temos menos acesso à fala deles.

E isso significa o quê?

Falamos português, português brasileiro, brasileiro, brasileirês? Ou devemos ficar com a formulação que, talvez para evitar o problema, por décadas o nosso país adotou em documentos oficiais e até na Constituição, “idioma nacional”? Aliás, esse é mesmo o maior dos nossos problemas?

Será que não estamos, como no já mencionado confronto com o pensamento indígena, demonstrando o quanto mesmo o nosso raciocínio pró-diversidade acaba denunciando suas origens, suas bases em sistemas que precisam de um centro, de uma definição, de fronteiras e rótulos, de uma organização em algum sentido hierárquico?

Do meu ponto de vista, fico ainda com a ideia do cantor que me emprestou o nome.

A língua é minha pátria

E eu não tenho pátria, tenho mátria

E quero frátria

Numa história em que as mães parecem ter tido um papel tão central (por que aquelas palavras africanas ligadas à infância nos são tão caras?), e que acabou gerando essa nossa estranha e poderosa irmandade , uma nação e uma comunidade baseadas na maternidade e na fraternidade, na mátria e na frátria , me parecem mais sedutoras como potencial e mais definidoras do que possa existir de esperançoso no “modelo brasileiro” de formação linguística: uma história que parece ter muita ligação com os modelos ameríndio e africano, todos eles baseados em estruturas menos lineares, delimitadas e rígidas, mais interpenetráveis e flexíveis. Estruturas de uma língua que de fato criou uma coisa distinta aqui na lusamérica mencionada por Caetano Veloso: o convívio entre flor do Lácio e sambódromo . Um idioma que gerou inclusive essa coisa maravilhosa que é a palavra sambódromo , mistura de um radical grego que significa “correr” (hipódromo , lugar onde correm os cavalos) com uma palavra africana que, segundo Yeda Pessoa de Castro, originalmente queria dizer oração .

Estruturas coloridas, inventivas, populares e resistentes da nossa “inculta e bela” flor de qualquer canto, a “água” à nossa volta, que mal percebemos que existe, o nosso ambiente, o nosso mato.

Nosso latim em pó.