Uma vez estabelecida a noção majoritária de que a Previdência Social é um direito subjetivo do indivíduo, exercitado em face da sociedade a que pertence, personificada na figura do Estado-Providência, impõe-se que esta sociedade participe do regime de seguro social, por meio de aportes que garantam recursos financeiros suficientes à aplicação da política de segurança social.
Não existe um modo único de se prover aos indivíduos a proteção social quanto a infortúnios que afetem sua capacidade de labor e subsistência. Assim, têm-se no âmbito mundial vários sistemas em funcionamento, estando muitos deles em fase de transição, e outros, em que o modelo originário já foi substituído. Cabe, nesta oportunidade, distinguir os vários modelos de previdência social e, por último, responder à indagação se os regimes privatizados são, ou não, modelos de previdência social.
O fato de que o desenvolvimento do arcabouço de técnicas de proteção social é fenômeno típico do século XX, e não de antes disso, revela um outro, o de que na verdade há, no presente, diversos modelos de sistemas de previdência e seguridade social, quando feito o estudo do Direito Comparado.
Vista a questão sob o ponto de vista político-ideológico, como o faz Gosta Esping-Andersen,1 são identificados três modelos de regimes.
O primeiro, denominado regime social-democrata, típico dos países nórdicos, cuja ênfase é a universalidade da cobertura a todos os cidadãos, é marcado por benefícios de montante consideravelmente elevado em comparação a outros países, mesclando-se benefícios baseados em contribuições e não contributivos, além de uma vasta malha de serviços públicos, gratuitos.
O segundo, chamado conservador-corporativo, tem por nascedouro a Europa ocidental, cuja tendência é priorizar o seguro social compulsório voltado à proteção dos riscos sociais, com foco na população que exerce trabalho remunerado, cujo custeio tem por base principal a contribuição destes trabalhadores e de seus tomadores de serviços, com benefícios proporcionais às contribuições. Há também benefícios não contributivos para atender demandas assistenciais.
O terceiro, identificado como liberal, garante uma proteção residual, com benefícios contributivos e não contributivos que visam o combate à pobreza e a garantia de um patamar mínimo de renda, com limitada rede de serviços públicos gratuitos. Este modelo é adotado, entre outros países, no Reino Unido, Irlanda, Canadá e Estados Unidos.
Um quarto modelo, segundo alguns estudiosos, seria denominado mediterrâneo, por ser típico dos países do sul da Europa (Espanha, Portugal, Itália, Grécia) e diferenciar-se do regime dito conservador-corporativo por haver um sistema de saúde pública universal e, dada a grande quantidade de pessoas trabalhando na informalidade ou em regime de economia familiar, haver uma preocupação específica, além da proteção à população assalariada.2
Separam-se os sistemas previdenciários em relação ao custeio, entre outros modos, de acordo com a fonte de arrecadação da receita necessária ao desempenho da política de proteção social.
Há, assim, sistemas que adotam, em seus regramentos, que a arrecadação dos recursos financeiros para a ação na esfera do seguro social dar-se-á por meio de aportes diferenciados dos tributos em geral, de modo que as pessoas especificadas na legislação própria ficam obrigadas a contribuir para o regime. Entre as pessoas legalmente obrigadas a contribuir estão aqueles que serão os potenciais beneficiários do sistema – os segurados –, bem como outras pessoas – naturais ou jurídicas – pertencentes à sociedade a quem a lei cometa o ônus de também participar no custeio do regime. É o sistema dito contributivo, embasado nas contribuições sociais.
Contribuições sociais são aquelas destinadas exclusivamente a servir de base financeira para as prestações previdenciárias,3 e, no sistema brasileiro, também para as áreas de atuação assistencial e de saúde pública.
Noutros sistemas de financiamento, a arrecadação provém não de um tributo específico, mas sim da destinação de parcela da arrecadação tributária geral, de modo que os contribuintes do regime não são identificáveis, já que qualquer pessoa que tenha pago tributo ao Estado estará, indiretamente, contribuindo para o custeio da Previdência. São os sistemas ditos não contributivos. A Austrália e alguns países da Europa – a Dinamarca, por exemplo – adotam o sistema não contributivo.
A Previdência Social brasileira, como será melhor explicitado no capítulo 8, é composta por mais de um regime jurídico. O Regime Geral de Previdência Social, que abarca a maior parte dos indivíduos, sempre foi de natureza contributiva, tal como indica o art. 201 da Constituição, já que os trabalhadores, desde a criação do sistema, sempre contribuíram de forma compulsória para o custeio deste regime. Além do Regime Geral, há os regimes previdenciários instituídos pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, para proteção, quanto aos riscos sociais, dos agentes públicos titulares de cargos efetivos e vitalícios, conforme previsão contida nos artigos 40 e 149 da Constituição. Quanto a esses últimos, durante muito tempo houve a concessão de benefícios de aposentadorias (e em alguns casos, de outros benefícios) sem a exigência de contribuição por parte dos servidores, apresentando-se, até a promulgação da Emenda Constitucional n. 20/98, como regimes tipicamente não contributivos. Com a exigência de contribuição, que passou a constar expressamente do texto do caput do art. 40 da Carta a partir de 16.12.1998, também os chamados “regimes próprios” passaram a ter caráter contributivo.
No sistema contributivo, os recursos orçamentários do Estado para o custeio do regime previdenciário também concorrem para este, mas não com a importância que os mesmos possuem no modelo não contributivo. Cumpre ao Estado garantir a sustentação do regime previdenciário, com uma participação que pode variar, já que eventuais insuficiências financeiras deverão ser cobertas pelo Poder Público (art. 16, parágrafo único, da Lei n. 8.212/91).
Entre os sistemas baseados em contribuições sociais, encontramos nova divisão, no que tange à forma como os recursos obtidos são utilizados.
Alguns sistemas adotam regras que estabelecem, como contribuição social, a cotização de cada indivíduo segurado pelo regime durante certo lapso de tempo, para que se tenha direito a benefícios. Assim, somente o próprio segurado – ou uma coletividade deles – contribui para a criação de um fundo – individual ou coletivo – com lastro suficiente para cobrir as necessidades previdenciárias dos seus integrantes. O modelo de capitalização, como é chamado, é aquele adotado nos planos individuais de previdência privada, bem como nos “fundos de pensão”, as entidades fechadas de previdência complementar.
Nesse sistema, a participação do Estado é mínima, e a do empregador vai variar conforme a normatização de cada sistema (vide art. 202 da Constituição, com a redação conferida pela Emenda Constitucional n. 20/98). Primordial no sistema de capitalização é a contribuição do próprio segurado, potencial beneficiário, que deverá cumprir o número de cotas ou o valor estabelecido para garantir a proteção pelo sistema para si e seus dependentes.
Já no sistema de repartição, as contribuições sociais vertem para um fundo único, do qual saem os recursos para a concessão de benefícios a qualquer beneficiário que atenda aos requisitos previstos na norma previdenciária. A participação do segurado continua sendo importante, mas a ausência de contribuição em determinado patamar não lhe retira o direito a benefícios e serviços, salvo nas hipóteses em que se lhe exige alguma carência. Como salienta Feijó Coimbra, este modelo repousa no ideal de solidariedade,4 no pacto entre gerações – já que cabe à atual geração de trabalhadores em atividade pagar as contribuições que garantem os benefícios dos atuais inativos, e assim sucessivamente, no passar dos tempos –, ideia lançada no Plano Beveridge inglês, e que até hoje norteia a maior parte dos sistemas previdenciários no mundo.
No ano de 1981, o Chile, então sob a ditadura de Augusto Pinochet, inaugurou uma nova forma de gerir a questão previdenciária, na qual as contribuições dos trabalhadores não mais seriam vertidas para um fundo público, mas para entidades privadas, denominadas Administradoras de Fundos de Pensões – AFPs, de forma compulsória. Caberia ao Estado o estabelecimento de regras de funcionamento e fiscalização. Para os que não conseguissem cotizar o suficiente para ter direito a uma aposentadoria, foi previsto um benefício assistencial mínimo. Houve, ainda, a assunção pelo Estado das despesas com o passivo das aposentadorias e pensões que então era extinto.
Pelo sistema estabelecido, os trabalhadores chilenos devem destinar entre 10 e 12% de seu ganho mensal às AFPs, que investem estes recursos em ações e bônus, tanto no Chile quanto no exterior – sujeitando o capital investido, portanto, às incertezas do mercado e da economia interna e mundial.
O modelo chileno, totalmente privatizante da previdência – mantida pelo Estado apenas a assistência social – foi daí para frente paradigma para diversos estudos, ganhando adeptos no campo doutrinário e, na década seguinte, sendo implantado, com algumas alterações, em outros países latino-americanos, como México, Argentina e Peru. Transformou-se, assim, no modelo preconizado pelo Banco Mundial (no estudo Averting the Old Age Crisis: Policies to Protect the Old and Promote Growth, 2004).
Diga-se, de plano, que não se considera tal modelo um verdadeiro sistema de previdência social. É que a concepção de seguro social fica totalmente comprometida pelo fato de não haver, na verdade, participação da sociedade no custeio (quebrando-se o fundamento da solidariedade).
O que se nota, todavia, é que o modelo privatizante parece ter atingido o seu ocaso. O Chile, precursor da privatização, decidiu modificar substancialmente o sistema, passando a vigorar novas regras a partir de julho de 2008. Nestas, ainda que não se observe um retorno ao modelo estatal, podem ser notadas mudanças de caráter social, como a instituição de um aporte previsional solidário a qualquer pessoa que tenha cotizado valores insuficientes, para assegurar um complemento de renda – custeado pelo Estado – a partir destes aportes, o que assegura uma proteção social pouco maior que a assistencial.
A doutrina e os organismos ligados à pesquisa em matéria de seguridade social têm lançado suas luzes sobre a formação de modelos mais recentes de financiamento e distribuição de benefícios, superando a noção de uma só forma de custeio (baseada em contribuições exclusivamente, ou não) e de níveis de cobertura aos beneficiários, com o fito de atingir o objetivo da universalidade do atendimento àqueles que necessitam de proteção.
A isto se costuma denominar de modelos construídos sobre mais de um “pilar”. Segundo o Relatório sobre a Seguridade Social de 2009 da Conferência Interamericana de Seguridade Social, a literatura sobre o tema sugere a formação de três pilares: o primeiro seria uma rede de seguridade ou pensão mínima para todos os cidadãos, financiada por impostos gerais; o segundo, um sistema de benefícios contributivo, voltado à atividade laborativa, financiado por contribuições sobre salários; e o terceiro, baseado na economia voluntária individual. O modelo brasileiro atual vai ao encontro a esta tendência, se observarmos que ao chamado “primeiro pilar” podemos associar as políticas de assistência social e saúde, ao “segundo pilar” os Regimes de Previdência Social – atualmente todos contributivos e em modelo de repartição simples –, e ao “terceiro pilar”, a Previdência Complementar Privada, em forma de capitalização. No Chile, paradigma de muitos estudiosos, o segundo pilar foi entregue a administradoras de fundos de pensão, como visto.
O Banco Mundial, em estudo de 2005, denominado Old Age Income Support in the 21st Century, tem defendido não mais o modelo de três pilares, o qual sustentou até 2004, no já lembrado texto Averting the Old Age Crisis: Policies to Protect the Old and Promote Growth. A proposta mais recente englobaria cinco níveis de proteção:
Estes são: pilar “zero” ou não contributivo, “um”- o qual é contributivo em função dos ingressos; “dois” – o qual é obrigatório e baseia-se na criação de contas individuais; “três” – que consiste em acordos voluntários flexíveis (financiados pelo empregador, de tipo contribuição definida ou benefício definido); e “quatro”– que consiste em transferências adicionais em espécie ou monetárias (inter ou intrageracionais, incluindo seguro de saúde, transferências familiares, etc.).
No âmbito das reformas previdenciárias em outros países, pode-se identificar também a questão da existência de um ou mais sistemas, de acordo com o estudo de Mercedes Hoces Quinteros: nos países de “sistema único”, a filiação a este é de caráter obrigatório; nos países de “sistema misto integrado”, como o do Uruguai, “o regime de capitalização individual e o de repartição coexistem”, sendo obrigatória a filiação a um dos dois regimes, ou a ambos; e nos de “sistema misto em concorrência”, como o da Colômbia, o regime de capitalização e o de repartição são concorrentes, cabendo aos trabalhadores escolher, obrigatoriamente, um dos regimes, sendo a contribuição destinada integralmente ao regime escolhido.5
O modelo brasileiro, segundo esta linha de pensamento, se divide da seguinte forma:
Pilar 1 – Previdência Social Básica: pública, compulsória em forma de repartição, com financiamento misto (trabalhadores, tomadores de serviços e poder público), dividida em múltiplos regimes: o Regime Geral, administrado pela União, cuja atribuição é descentralizada à autarquia INSS; e os Regimes Próprios de Previdência dos Servidores, administrados pelos entes da Federação, baseados no princípio da solidariedade e com o objetivo de oferecer proteção à classe trabalhadora em geral (empregados de qualquer espécie, trabalhadores avulsos, por conta própria e empresários dos meios urbano e rural, servidores públicos).
Pilar 2 – Previdência Complementar: privada, em regime de capitalização, na modalidade contribuição definida, facultativa à classe trabalhadora na modalidade fechada (financiada, neste caso, com contribuições dos trabalhadores e tomadores de serviços), e a todos os indivíduos, na modalidade aberta (com contribuição somente do indivíduo), administrada por entidades de previdência complementar.
Pilar 3 – Assistência Social: para idosos e portadores de necessidades ou cuidados especiais, abrangendo as pessoas que estejam carentes de condições de subsistência, segundo critérios estabelecidos em lei financiada pelos contribuintes da Seguridade Social e pelos entes da Federação.
Há múltiplos regimes, mas todos são de filiação obrigatória, porque “únicos” em relação a cada um dos grupos de indivíduos protegidos: trabalhadores da iniciativa privada, agentes públicos federais, estaduais e municipais.
Para um aprofundamento de ideias acerca das perspectivas da Seguridade Social brasileira e mundial, sugerimos ao leitor a leitura da Parte VI desta obra.
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1 ESPING-ANDERSEN, Gosta. The Three Worlds of Welfare Capitalism. Princeton: Princeton University Press, 1990.
2 BATISTA, Analía Soria et alii. Envelhecimento e Dependência: desafios para a organização da proteção social. Brasília: MPS, SPPS, 2008, pp. 21-22.
3 COIMBRA, J. R. Feijó. Direito previdenciário brasileiro. 7. ed., Rio de Janeiro: Edições Trabalhistas, 1997, p. 240.
4 COIMBRA, op. cit., p. 233.
5 QUINTEROS, Mercedes Hoces. Portabilidade dos fundos previdenciários: uma nova alternativa para os trabalhadores migrantes. In: BRASIL. MINISTÉRIO DA PREVIDÊNCIA SOCIAL. Migrações Internacionais e a Previdência Social. Brasília: MPAS, SPS, CGEP, 2006, p. 93.