A Constituição brasileira foi, no âmbito das relações entre os entes da Administração Pública e seus servidores, bastante alterada por via de Emendas Constitucionais. A primeira, no ano de 1993, de número 3; duas delas, promulgadas no ano de 1998, as de números 19 e 20; e, no ano de 2003, a de número 41, e ainda, a Emenda n. 47, de 2005, traçaram significativas mudanças, seja no tocante à própria natureza jurídica das relações de trabalho entre servidores públicos e entes públicos, seja no aspecto dos direitos dos servidores, particularmente no campo dos direitos previdenciários, tendo como principal deles a aposentadoria, caracterizando-se o conjunto de mudanças pela redução da proteção até então assegurada aos servidores públicos, ante os novos critérios de concessão e cálculo do valor dos proventos.
O Brasil, na condição de Estado Federal, constitui-se de três esferas governamentais que gozam de autonomia política, administrativa e financeira: a União Federal, vinte e seis Estados e um Distrito Federal1 e pouco mais de 5.500 Municípios.
A distinção entre a pessoa político-administrativa denominada União e a pessoa jurídica que se domina Republica Federativa do Brasil (o Estado Brasileiro) é assim explanada por Moraes:
A União é entidade federativa autônoma, constituindo pessoa jurídica de Direito Público Interno, cabendo-lhe exercer as atribuições da soberania do Estado brasileiro. Não se confundindo com o Estado Federal, este sim pessoa jurídica de Direito Internacional e formado pelo conjunto de União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios?2
Acerca dos Estados e Municípios, o constitucionalista já citado esclarece que a autonomia destes se caracteriza pela denominada “tríplice capacidade de auto-organização e normatização própria, autogoverno e autoadministração”.3
A auto-organização é identificada com a possibilidade de exercício do poder constituinte decorrente, ou seja, na promulgação de Constituições dos Estados e Leis Orgânicas Municipais, e após, de sua própria legislação, respeitados os princípios da Constituição da República (art. 25), os assim conhecidos como princípios constitucionais sensíveis.4
No que se refere às receitas tributárias, cada nível governamental tem o direito de instituir os tributos que lhe são constitucionalmente atribuídos e que pertençam à sua competência privativa. Isto é, a Constituição define claramente a atribuição das receitas tributárias a cada esfera de governo, não havendo possibilidade de sobreposição de competências em relação aos impostos e às contribuições sociais.
No entanto, é comum às três esferas a competência para instituir taxas (pelo exercício do poder de polícia e pela prestação de serviços públicos), contribuição de melhoria e contribuição para custeio da previdência e assistência social de seus servidores.5
Assim, dentro da capacidade de auto-organização, é fundamental ressaltar também que “na construção do sistema previdenciário brasileiro, afeto ao serviço público, os municípios e estados, por intermédio de seus respectivos legislativos, têm competência suplementar para estabelecer regras e normas próprias”.6
Sobre a capacidade para autogovernar-se, considera-se configurada “uma vez que é o próprio povo quem escolhe diretamente seus representantes nos Poderes Legislativo e Executivo locais, sem que haja qualquer vínculo de subordinação ou tutela por parte da União”,7 sendo previsto o Poder Judiciário, também, no âmbito dos Estados e Distrito Federal.
E, em relação à autoadministração, esta se delineia a partir da previsão de existência de um mínimo de recursos financeiros, obtidos diretamente através de sua própria receita tributária,8 com os quais cada Estado e cada Município é capaz de gerir os serviços públicos por estes mantidos, tendo, portanto, cada um, o seu regime administrativo, conceituado por Hauriou como aquele que
consiste em um poder político-jurídico, que é o poder executivo e administrativo, que se introduz como intermediário entre a lei e o juiz, a fim de assumir a aplicação das leis em todos os procedimentos que não sejam contenciosos, com a finalidade de facilitar e, se for necessário, impor aos cidadãos a execução das leis por meio de uma regulamentação própria, pela organização dos serviços públicos e por decisões executórias particulares.9
Conclui-se que cada esfera territorial de Poder tem sua organização administrativa própria,10 o que se revela como capacidade de possuir uma estrutura administrativa, bem como de legislar sobre essa mesma estrutura e manter financeiramente os serviços e o pessoal relacionados a essa estrutura. Tal estrutura é denominada Administração Pública.
Quanto à relação entre Estado, Governo e Administração, é clássica a distinção formulada por Meirelles: “A Administração é o instrumental de que dispõe o Estado para pôr em prática as opções políticas do Governo”.11
Concorda-se, pois, com Carvalho Filho, para quem a Administração Pública
não deve ser confundida com qualquer dos Poderes estruturais do Estado, sobretudo o Poder Executivo, ao qual se atribui usualmente a função administrativa. Para a perfeita noção de sua extensão é necessário pôr em relevo a função administrativa em si, e não o Poder em que ela é exercida. Embora seja o Poder Executivo o administrador por excelência, nos Poderes Legislativo e Judiciário há numerosas tarefas que constituem atividade administrativa, como é o caso, por exemplo, das que se referem à organização interna dos seus serviços e dos seus servidores. Desse modo, todos os órgãos e agentes que, em qualquer desses Poderes, estejam exercendo função administrativa serão integrantes da Administração Pública.12
No mesmo sentido, enfatizando os entes integrantes da Administração Pública, pontifica Hely Lopes Meirelles:
Na nossa Federação, portanto, as entidades estatais, ou seja, entidades com autonomia política (além da administrativa e financeira), são unicamente a União, os Estados-membros, os Municípios e o Distrito Federal (...) As demais pessoas jurídicas instituídas ou autorizadas a se constituírem por lei ou são autarquias, ou são fundações, ou são entidades paraestatais (...). Esse conjunto de entidades estatais, autárquicas, fundacionais e paraestatais constitui a Administração Pública em sentido instrumental amplo, ou seja, a Administração Pública centralizada e a descentralizada, atualmente denominada (sic) direta e indireta.13
Paulo Cruz aponta que a estruturação jurídica do Poder estatal implica estabelecer os órgãos pelos quais o Estado atua, sendo fundamental o conhecimento do conceito de órgão público. Prosseguindo, o autor catarinense busca estabelecer um conceito operacional para este:
Os órgãos do Estado aparecem como os instrumentos através dos quais se expressa a sua vontade, e é levada a cabo a ação estatal. Em última análise, os órgãos do Estado, como os ministérios, os tribunais, o Parlamento, entre outros, estão integrados num grande organismo, de modo que a ação de qualquer dos órgãos estatais se converte, desta forma, em atos do Estado.14
Conforme o entendimento de Meirelles, órgãos públicos “São centros de competência instituídos para o desempenho de funções estatais, através de seus agentes, cuja atuação é imputada à pessoa jurídica a que pertencem”.15
Os órgãos públicos não possuem personalidade jurídica16; cada órgão público pertence a uma entidade da Administração e a ela está vinculado.
As entidades públicas são aquelas dotadas de personalidade jurídica própria e autonomia administrativa e financeira,17 constituindo-se em entidades estatais, ou pessoas político-administrativas – a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios – e paraestatais – as autarquias, as fundações públicas, as empresas públicas e as sociedades de economia mista.18
Assim, as entidades da Administração são estruturadas de forma orgânica: suas atribuições são distribuídas por diversos órgãos públicos. Uma entidade da Administração é composta de órgãos públicos.
Do ponto de vista de nossa estrutura política, a Administração Pública pode ser federal, estadual e municipal.19
Ao conceito de entidade estatal (político-administrativa) corresponde o de Administração Direta: “No Brasil, como Estado Federal, cada pessoa político-administrativa constitucional territorial (União, Estado-membro, Município etc.) é considerada, separadamente, uma Administração Direta”.20
Já a Administração Indireta “corresponde à organização administrativa das pessoas jurídicas criadas pelo Estado para com ele comporem a Administração Pública, auxiliando-o no exercício da atividade administrativa”. Decorrem do processo de descentralização institucional,21 que se caracteriza por conferir a entes autônomos personalidade jurídica, porém “não se desprendem de seu criador: são satélites que permanecem vinculados, e sobre os quais a Administração Direta estatal exerce poderes de fiscalização, de correção de atos, e, até mesmo, de intervenção, que compõem, em seu conjunto, a chamada tutela ou supervisão administrativa”.22
São entidades da Administração Indireta da União, dos Estados-membros, do Distrito Federal e dos Municípios as respectivas autarquias, fundações públicas, empresas públicas e sociedades de economia mista.
Dentre estas entidades denominadas paraestatais, há uma distinção fundamental, que leva em conta a atividade a ser desempenhada.
Com efeito, as autarquias23 e as fundações públicas são conceituadas como pessoas jurídicas de direito público,24 e somente podem exercer atividade pública,25 ou seja, função típica da Administração Pública Direta, transferida por descentralização institucional.
Já as empresas públicas e sociedades de economia mista, embora sejam pessoas jurídicas criadas por força de autorização legal como instrumento de ação do Governo, possuem natureza jurídica de direito privado, podendo assumir a forma de empresa com capital totalmente pertencente a pessoas de direito público (empresas públicas), ou com predominância acionária destas (sociedades de economia mista).26
Tal distinção gera uma digressão necessária: por força de disposição constitucional, as empresas públicas e sociedades de economia mista são regidas em suas relações jurídicas pelos diplomas que regem as pessoas jurídicas de direito privado,27 não se aplicando, por exemplo, em matéria de relações de trabalho e previdenciárias, as disposições do Capítulo VII do Título III da Constituição da República, salvo aquelas que expressamente sejam aplicáveis.28
Vista a organização do Estado e da Administração Pública, é importante fixar, na sequência, quem são os agentes que atuam em nome de tais entidades, dos quais interessa identificar os chamados servidores públicos.
Para Di Pietro, os servidores públicos compreendem: 1) os servidores estatutários, ou doravante, servidores públicos em sentido estrito, ocupantes de cargos públicos; 2) os empregados públicos, contratados sob o regime da CLT e ocupantes de emprego público; e 3) os servidores temporários, contratados por tempo determinado (art. 37, IX, da Constituição), exercendo função, e não cargo ou emprego.29
Os servidores estatutários, ou servidores públicos em sentido estrito, são portanto os que possuem vínculo de trabalho regido por estatuto próprio. Ou, como explana Meirelles, os servidores públicos constituem subespécies dos agentes públicos administrativos, categoria que abrange a grande massa de prestadores de serviços à Administração e a ela vinculados por relações profissionais, em razão da investidura em cargos e funções.30
Para Carvalho Filho, “servidores públicos estatutários são aqueles cuja relação jurídica de trabalho é disciplinada por diplomas legais específicos, denominados de estatutos. Nos estatutos estão inscritas todas as regras que incidem sobre a relação jurídica, razão por que nelas se enumeram os direitos e deveres dos servidores e do Estado”.31
Um traço característico dessa espécie de agentes públicos é a forma não contratual32 como se dá a identificação de seus direitos e deveres, na relação laboral que mantém com a entidade pública, a partir de um diploma específico, denominado estatuto, que deverá ser editado por cada ente político-administrativo:33
Duas são as características do regime estatutário. A primeira é a da pluralidade normativa, indicando que os estatutos funcionais são múltiplos. Cada pessoa da federação, desde que adote o regime estatutário para os seus servidores, precisa ter a sua lei estatutária para que possa identificar a disciplina da relação jurídica funcional entre as partes. (...) A outra característica concerne à natureza da relação jurídica estatutária. Essa relação não tem natureza contratual, ou seja, inexiste contrato entre o Poder Público e o servidor estatutário. Tratando-se de relação própria do direito público, não pode ser enquadrada no sistema dos negócios jurídicos bilaterais de direito privado.34
O segundo aspecto que caracteriza os servidores públicos em sentido estrito é o fato de que todos, sem exceção, são titulares de cargos públicos na Administração Direta, nas autarquias e fundações de direito público da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, em qualquer dos Poderes constituídos – Executivo, Legislativo ou Judiciário, bem como no Ministério Público, entendendo-se este como ente autônomo em relação aos três Poderes constituídos.35
A Constituição vigente concede, como veremos, tratamento diferenciado aos servidores públicos ocupantes de cargos efetivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, bem como os das autarquias e fundações públicas, ao prever a instituição de regime previdenciário próprio, de caráter contributivo (art. 40, caput, com a redação conferida pela EC n. 41, de 2003), o qual também se aplica aos agentes públicos ocupantes de cargos vitalícios (magistrados, membros do Ministério Público e de Tribunais de Contas).
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1 O Distrito Federal possui status institucional similar ao dos Estados.
2 MORAES, Direito Constitucional, p. 271.
3 MORAES, Direito Constitucional, p. 272.
4 Princípios constitucionais sensíveis são assim denominados, pois a sua inobservância pelos Estados-membros no exercício de suas competências legislativas, administrativas ou tributárias, pode acarretar a sanção politicamente mais grave existente em um Estado Federal, a intervenção na autonomia política. Estão previstos no art. 34, VII, da Constituição Federal: forma republicana, sistema representativo e regime democrático; direitos da pessoa humana; autonomia municipal; prestação de contas da administração pública, direta e indireta; aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e no desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde. (MORAES, Direito Constitucional, p. 272)
5 O Sistema Tributário Brasileiro está definido na Constituição da República de 1988, Título VI, Capítulo I, artigos 145 a 162, com as alterações inseridas pelas Emendas Constitucionais nº 3/93 e 42/2003.
6 STEPHANES, Reinhold. Reforma da Previdência sem Segredos. Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 39.
7 MORAES, Direito Constitucional, p. 273.
8 MORAES, Direito Constitucional, p. 275.
9 Apud MORAES, Direito Constitucional, p. 314.
10 FERREIRA, Sérgio DAndréa. Direito Administrativo Didático. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 71.
11 MEIRELLES, Direito Administrativo Brasileiro, p. 61.
12 CARVALHO FILHO, Manual de Direito Administrativo, p. 7.
13 MEIRELLES, Direito Administrativo Brasileiro, p. 59.
14 CRUZ, Fundamentos do Direito Constitucional, p. 98.
15 MEIRELLES, Direito Administrativo Brasileiro, p. 63.
16 “Como círculo interno de poder, o órgão em si é despersonalizado; apenas integra a pessoa jurídica.” (CARVALHO FILHO, Manual de Direito Administrativo, p. 9)
17 “Dotadas de autonomia e, pois, da capacidade de autoadministração, as entidades federativas terão, por via de consequência, as suas próprias Administrações, ou seja, terão sua própria organização e seus próprios serviços, inconfundíveis com as de outras entidades.” (CARVALHO FILHO, Manual de Direito Administrativo, p. 6)
18 BRASIL. Decreto-lei n. 200. 25.2.67. Disponível em www.planalto.gov.br. Acesso em 6.9.2004.
19 SIMAS, Manual Elementar de Direito Administrativo, p. 84.
20 FERREIRA, Direito Administrativo Didático, p. 39.
21 “Não há, pois, como confundir descentralização administrativa com desconcentração. Nesta não se verifica a criação de pessoas. Naquela a personalidade é seu elemento definido, pois o organismo criado pode manifestar a sua vontade, agindo em nome próprio e não em nome de outrem.” (TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990, p. 95)
22 FERREIRA, Direito Administrativo Didático, p. 75.
23 As agências reguladoras e as agências executivas, previstas pela Emenda Constitucional nº 19/98, são autarquias em regime especial (conforme MELLO, Curso de Direito Administrativo, pp. 156-167).
24 BRASIL, Decreto-lei nº 200/67, art. 5º.
25 MELLO, Curso de Direito Administrativo, pp. 147-169.
26 MELLO, Curso de Direito Administrativo, p. 172.
27 BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil, art. 173, § 1º, inc. II.
28 O artigo 40 da Constituição não se aplica a indivíduos vinculados por relação de trabalho a empresas públicas e sociedades de economia mista.
29 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, p. 434.
30 MEIRELLES, Direito Administrativo Brasileiro, p. 363.
31 CARVALHO FILHO, Manual de Direito Administrativo, p. 403.
32 Nas relações contratuais, como se sabe, os direitos e obrigações recíprocos, constituídos nos termos e na ocasião da avença, são unilateralmente imutáveis e passam a integrar de imediato o patrimônio jurídico das partes, gerando, desde logo, direitos adquiridos em relação a eles. Diversamente, no liame de função pública, composto sob a égide estatutária, o Estado, ressalvadas as pertinentes disposições constitucionais impeditivas, deterá o poder de alterar legislativamente o regime jurídico de seus servidores, inexistindo a garantia de que continuarão sempre disciplinados pelas disposições vigentes quando de seu ingresso. Bem por isto, os direitos que deles derivem não se incorporam integralmente, de imediato, ao patrimônio jurídico do servidor (firmados como direitos adquiridos), do mesmo modo que nele se integrariam se a relação fosse contratual. (MELLO, Curso de Direito Administrativo, p. 235)
33 “Da entidade de que faz parte o serviço é a competência para organizar o funcionalismo. As normas estatutárias federais não se aplicam aos servidores estaduais ou municipais.” (SIMAS, Manual Elementar de Direito Administrativo, p. 462)
34 CARVALHO FILHO, Manual de Direito Administrativo, pp. 404-405.
35 MELLO, Curso de Direito Administrativo, p. 231.