Passamos, a seguir, à análise do surgimento do ramo autônomo do Direito que visa ao estudo dos princípios, dos institutos jurídicos e das normas de previdência social, a que se denomina Direito Previdenciário.
Em que pese atualmente se observar não mais restarem dúvidas a respeito da possibilidade de se considerar o conjunto de princípios, institutos jurídicos e normas relativas à Previdência Social como uma disciplina autônoma, ramo próprio do Direito, entendemos conveniente reforçar tais convicções.
Antes de adentrar no mérito do exame de todos os princípios e normas de Direito Previdenciário, é adequado estabelecer-se o conceito deste ramo, bem como seu objeto de estudo.
Diferencia-se o Direito Previdenciário do que habitualmente se chama de Previdência Social, bem como do que se denomina Seguridade Social.
Previdência Social é o sistema pelo qual, mediante contribuição, as pessoas vinculadas a algum tipo de atividade laborativa e seus dependentes ficam resguardadas quanto a eventos de infortunística (morte, invalidez, idade avançada, doença, acidente de trabalho, desemprego involuntário), ou outros que a lei considera que exijam um amparo financeiro ao indivíduo (maternidade, prole, reclusão), mediante prestações pecuniárias (benefícios previdenciários) ou serviços. Desde a inserção das normas relativas ao acidente de trabalho na CLPS/84, e, mais atualmente, com a isonomia de tratamento dos beneficiários por incapacidade não decorrente de acidente em serviço ou doença ocupacional, entende-se incorporada à Previdência a questão acidentária. É, pois, uma política governamental.
A Seguridade Social abrange tanto a Previdência Social como a Assistência Social (prestações pecuniárias ou serviços prestados a pessoas alijadas de qualquer atividade laborativa), e a Saúde Pública (fornecimento de assistência médico-hospitalar, tratamento e medicação), estes dois últimos sendo prestações do Estado devidas independentemente de contribuições.
Ponderar-se-ia, talvez, ser mais adequado utilizar-se o termo “Direito da Seguridade Social” do que o por nós utilizado, “Direito Previdenciário”, como o fez Sergio Pinto Martins1 Contudo, há que se considerar que as normas de Saúde e Assistência Social escapam ao estudo ao qual dedicamos esta obra, estando apenas citadas para demonstrar a delimitação da atuação estatal em termos de Previdência – por exclusão, em relação aos que são beneficiários da Assistência Social e das ações no campo da Saúde Pública. Logo, reputamos correta a denominação Direito Previdenciário ao conjunto de princípios e das regras de custeio e benefícios do regime de seguro social, fixando o conteúdo deste ramo do Direito.
O Direito Previdenciário, ramo do Direito Público, tem por objeto estudar, analisar e interpretar os princípios e as normas constitucionais, legais e regulamentares que se referem ao custeio da Previdência Social – que, no caso do ordenamento estatal vigente, também serve como financiamento das demais vertentes da Seguridade Social, ou seja, Assistência Social e Saúde –, bem como os princípios e normas que tratam das prestações previdenciárias devidas a seus beneficiários.
Fogem ao estudo do Direito Previdenciário as normas que tratam da atuação estatal no campo da Saúde e da Assistência Social, pois envolvem outros princípios e regras, guardando identidade apenas em relação às fontes de custeio.
Por fim, registra-se o entendimento que, em razão das significativas alterações introduzidas na ordem jurídica vigente pelas Emendas ns. 3/93, 20/98 e 41/2003, a relação jurídica envolvendo os ocupantes de cargos públicos efetivos e vitalícios e seus dependentes, no que tange às aposentadorias e pensões, e os entes públicos mantenedores dos regimes previdenciários de que trata o art. 40 da Constituição é de natureza eminentemente previdenciária, guardando cada vez mais similaridade com os benefícios do Regime Geral, razão pela qual pertence, desde então, ao campo de estudo do Direito Previdenciário, e não mais do Direito Administrativo, como tradicionalmente ocorria. Nesse diapasão, esta obra também faz menção aos direitos estampados no art. 40 da Carta Magna.
A fixação da autonomia do Direito Previdenciário reveste-se de importância, uma vez que é necessário estabelecer critérios de análise das relações jurídicas específicas que ocorrem neste campo tão complexo de atuação estatal que é a segurança social. Para tanto, há que se reconhecerem seus princípios, diferenciados dos demais ramos do Direito, bem como a tipicidade das relações jurídicas a serem normatizadas, únicas no espectro da ordem jurídica: a relação jurídica de custeio, entre o contribuinte ou responsável e o ente arrecadador; e a relação jurídica de seguro social, entre o beneficiário e o ente previdenciário.
Deve-se ressaltar, inicialmente, que a autonomia de que tratam os doutrinadores, segundo uma concepção mais recente, não significa, em momento algum, deixar de reconhecer a vinculação que um ramo do Direito tenha com os demais, por fazerem parte do mesmo ordenamento jurídico. Dizer-se autônomo o Direito Previdenciário, como o queremos adiante concluir, traz a ideia de uma disciplina que merece estudo à parte, calcado em princípios e normas singulares.
A autonomia científica de um ramo do Direito, segundo critérios pacificamente aceitos pela doutrina, e creditados a Alfredo Rocco, é observada quando a matéria a ser disciplinada contém: um conteúdo vasto de estudo e pesquisa; princípios gerais ou institutos peculiares; e método ou processo próprio.2
No que tange ao primeiro aspecto, de muito tempo se pode afirmar que o estudo do Direito Previdenciário não é simples, tampouco carece de conteúdo. Seja em função da evolução histórica de seus institutos, seja pela complexidade e especificidade das normas e das relações tuteladas, com objetivo próprio, qual seja, ditar as normas pelas quais se estabelecem direitos e obrigações no âmbito do custeio do sistema, como no de prestações previdenciárias, é inevitável aceitar-se a vastidão de material de estudo e pesquisa, no âmbito do direito interno, bem como no do direito comparado.
A doutrina previdenciária conta com obras em quantidade suficiente para o cotejo de sua natureza, evolução e tendências, devendo ser ressaltado, além do trabalho de pesquisa dos estudiosos do ramo em vários países, o trabalho de compilação de dados e de estudos realizados pela Associação Internacional de Seguridade Social – AISS e pela Organização Internacional do Trabalho – OIT.
A peculiaridade das relações jurídicas que se traduzem no Direito Previdenciário impõe o reconhecimento de princípios também próprios, em muito diferenciados de outras relações normadas pela ordem positiva. Assim, não mais se admite confundir-se o Direito Previdenciário com o Direito do Trabalho, uma vez que tratam de relações entre partes totalmente distintas: no primeiro, o indivíduo é parte numa relação com o ente previdenciário, regida por normas de direito público; no segundo, é parte numa relação contratual com uma pessoa de direito privado (em regra), regida por normas de direito privado, em que pese a quantidade de regras de ordem pública, garantes dos direitos mínimos do trabalhador perante seu empregador. Também não merece acolhida a tese de que se trata de parcela do Direito Administrativo, essa já com bem menos defensores.
O método de realização deste Direito Previdenciário também se observa diferenciado em vista dos demais ramos da ciência jurídica. Basta observar-se que, diferentemente de outras relações obrigacionais, a relação jurídica previdenciária se dá em caráter compulsório para ambas as partes – para o indivíduo, pelo mero exercício de atividade que o enquadre como segurado; para o ente previdenciário, pela assunção das atribuições que a lei lhe impõe. Neste ponto, semelhança existe com o Direito Tributário, em matéria de custeio; só que, nesse outro ramo do Direito, o único credor é o ente arrecadador, e nunca o contribuinte, o que não ocorre no ramo do Direito que é objeto desta obra.
Por fim, o Direito Previdenciário há bom tempo se encontra estabelecido nos currículos das nossas universidades, tanto quanto no exterior, como disciplina autônoma. Como salienta Ruprecht, ainda que se referindo à seguridade social, esta é ensinada como disciplina autônoma na maioria dos países desenvolvidos.3
Cumpre aqui fixar se o Direito Previdenciário, ramo da ordem jurídico-positiva em exame, se enquadra, na clássica divisão do Direito, na sua vertente pública, no campo da ordem privada, ou se pertence a uma terceira classe, por alguns denominada Direito Social.
De início, registramos que a classificação em comento tem efeito puramente didático-científico, uma vez que, diante do reconhecimento da ordem jurídica como una, logo, incapaz de ser formada por compartimentos legais estanques, não se pode falar em divisão do Direito com outra intenção.
Afastemos, de plano, a possibilidade de enquadramento na esfera do Direito Privado. As normas de Direito Previdenciário envolvem a atuação da norma sem possibilidade de alteração por particulares. Vale dizer, não há discricionariedade na atuação do indivíduo, em se tratando de previdência social. Sua filiação é compulsória; a fixação dos contribuintes e das contribuições se dá por lei, sem possibilidade de convenção entre as partes envolvidas. Do mesmo modo, o direito ao benefício é irrenunciável; os beneficiários do regime são taxativamente enumerados pela norma legal.
Assim, em se considerando apenas a divisão entre Direito Privado e Público, prevaleceria a classificação das normas de Direito Previdenciário neste último, já que se verifica a regulação total do mesmo por meio das normas legais, não restando aos particulares o exercício de autonomia da vontade. Alfredo J. Ruprecht, embora mantendo a denominação de Direito da Seguridade Social, comunga deste entendimento, justificando a tese a partir da regra geral de que a gestão dos fundos é ônus do Estado, e suas fontes decorrem das leis e atos normativos de organismos públicos.4
Resta saber se podemos reconhecer a existência de uma terceira ramificação, como defendida por alguns estudiosos.
Relata a doutrina pátria ser de Cesarino Júnior a paternidade da expressão “Direito Social”, para estabelecer um tertium genus entre o Direito Privado e o Público. Segundo o ilustre professor, existiria uma zona cinzenta, fronteiriça, entre os dois principais ramos do Direito, no qual estariam inseridos: o Direito do Trabalho e o Direito Previdenciário.
A principal crítica a tal concepção vem no sentido de que todo direito, em última análise, é social.5 A nosso ver, a terceira vertente sustentada pelo Professor Cesarino Júnior não encontra fundamentos razoáveis para sua existência. Façamos breve análise, apenas comparando o Direito Previdenciário com o Direito do Trabalho. Ambos contêm, é fato, normas de ordem pública, cogentes. Porém, o conteúdo normativo do Direito do Trabalho é suficiente apenas para fixar os direitos mínimos dos trabalhadores, de modo que, acima destes direitos, há prevalência da autonomia da vontade, desde que respeitados os princípios norteadores deste ramo (CLT, arts. 9º e 444). Já no campo do Direito Previdenciário, as normas estabelecem, de maneira taxativa, o modus operandi da realização do direito. Diga-se, ainda, que a relação de emprego – objeto principal de estudo do Direito Laboral – é de índole contratual, enquanto o Direito Previdenciário estuda a relação contribuinte/ ente arrecadador, ou beneficiário/ente pagador, ambos de natureza não contratual, ou seja, institucional.
Por tais razões, mantemo-nos reconhecendo ao Direito Previdenciário o enquadramento como ramo do Direito Público.
Como já asseverado, o Direito não pode ser visto como um conjunto de ramos estanques, como um todo fragmentado em partes. A coerência do ordenamento jurídico, de que nos fala Bobbio, não permite que tenhamos normas que sejam incompatíveis entre si.6 Importa, pois, demonstrar de forma exemplificativa a relação do Direito Previdenciário com alguns ramos do Direito.
O primeiro ramo com o qual há íntima relação é o Direito Constitucional. Dada a fixação de diversos princípios e normas no texto constitucional, resulta que o Direito Previdenciário tem sofrido grande influência deste ramo, principalmente no tópico referente à concessão de benefícios: requisitos, cálculo dos proventos, fixação de limites mínimo e máximo, entre outros. No que tange ao custeio da Previdência Social, interferem diretamente os princípios e normas relativos ao sistema tributário nacional. No mesmo sentido, a fixação da competência dos entes públicos para a criação de contribuições sociais. Com a alteração promovida pela Emenda Constitucional n. 19, servidores públicos contratados sob o regime da Consolidação das Leis do Trabalho podem ser abrangidos pelo Regime Geral de Previdência Social – RGPS.
Identifica-se também grande relação com o Direito do Trabalho. Sendo a grande maioria dos segurados da Previdência de empregados, as alterações no campo do Direito Laboral trazem repercussões efetivas no Direito Previdenciário, e vice-versa. Questões que sempre envolvem a análise destes dois ramos são facilmente verificáveis. Veja-se, a propósito, a questão da idade mínima para o trabalho – embora prevista no texto constitucional; o salário-maternidade (benefício previdenciário) e a licença à gestante (instituto de Direito do Trabalho); o afastamento do trabalho por motivo de doença, que nos primeiros quinze dias gera a obrigação ao empregador de pagar o salário, e, após isso, o direito ao benefício auxílio-doença; a sempre atual discussão sobre os efeitos da aposentadoria sobre o contrato de trabalho; o acidente de trabalho e o direito à estabilidade provisória do acidentado.
Com o Direito Civil, a relação do Direito Previdenciário se dá a partir de vários aspectos. O principal deles, a nosso ver, é a conceituação da responsabilidade civil, da qual vai se socorrer o Direito Previdenciário, nas questões envolvendo acidentes de trabalho e doenças ocupacionais, para revelar a responsabilidade do tomador dos serviços. Também se verifica a necessidade de interação com o Direito Civil na caracterização do estado das pessoas – filiação, casamento e sua dissolução; ainda cabe salientar a aplicação dos conceitos de capacidade e incapacidade civil, emancipação, ausência e morte presumida, todos obtidos das normas do Código Civil.
Em relação ao Direito Tributário, vale-se o Direito Previdenciário de um sem-número de princípios e normas para o suprimento de lacunas na legislação de custeio, trazendo daí os conceitos de contribuinte, responsabilidade por substituição, sub-rogação, solidariedade, moratória. Naturalmente, a utilização de institutos do Direito Tributário pressupõe a ausência de norma específica na legislação própria do Direito Previdenciário.
Do Direito Comercial vai-se extrair toda a matéria relativa à classificação dos empresários como segurados obrigatórios, bem como a responsabilidade dos sócios gestores pelo inadimplemento de obrigações perante a legislação de custeio, a conceituação de cotas de participação nos lucros e dividendos. A escrituração contábil, objeto de estudo do Direito Comercial, é de extrema relevância para a ação fiscal, que deverá observar sua regularidade, conforme as normas deste ramo do Direito Privado.
O Direito Administrativo guarda correlação com o Direito Previdenciário em função da atividade estatal desenvolvida pela autarquia gestora – entidade da Administração Indireta. Assim, a organização da Previdência Social na estrutura do Poder Executivo, a expedição dos atos administrativos – normativos ou não –, os direitos, deveres e obrigações dos servidores que atuam na autarquia previdenciária em relação aos beneficiários e contribuintes com que se relacionam, merecem especial atenção no estudo do Direito Previdenciário. Assim, os atos de concessão de benefícios, o exercício do poder de polícia pela fiscalização do INSS, o procedimento contencioso administrativo, estarão diretamente jungidos aos seus princípios e normas.
Na ocorrência de prática de infração à legislação previdenciária, há que se observar se a conduta do agente caracteriza delito ou contravenção penal. Daí a importância da relação com o Direito Penal. Desse ramo obter-se-á a tipificação de condutas reprováveis sob o ponto de vista criminal, sujeitas à sanção penal, cabendo ao estudioso do Direito Previdenciário ter delas noção.
O Direito Processual tem recebido diversas alterações com base em normas inseridas na legislação da Previdência Social. Desse modo, tem-se na Lei de Custeio diversos privilégios ao ente autárquico previdenciário, na execução fiscal; no que tange a prestações, o Instituto goza de prazo especial para embargar a execução contra si movida, bem como para impugnar cálculos de liquidação como exequente, perante a Justiça do Trabalho. Em contrapartida, o processo contencioso administrativo, de interesse de contribuinte ou beneficiário, se abastece de vários princípios processuais, para a consecução do princípio-mor, do devido processo legal.
Fonte do direito, na concepção majoritária dos estudiosos, é todo fato social. Contudo, deve-se estudar quais os fatos sociais geradores de normas jurídicas no campo do Direito Previdenciário, vale dizer, de onde se originam os princípios e regras aplicáveis a este ramo do Direito. Seguindo a melhor doutrina, Délio Maranhão, citando Du Pasquier e Coviello, indica que as fontes do Direito se classificam em fontes materiais e formais. “As primeiras são as fontes potenciais do direito e compreendem o conjunto dos fenômenos sociais, que contribuem para a formação da substância, da matéria do direito. As fontes formais são os meios pelos quais se estabelece a norma jurídica”.7 Não é diferente a concepção tirada por Ruiz Moreno, doutrinador mexicano: “Las fuentes de derecho o fuentes jurídicas, para Eduardo Pallares, es todo aquello que da nacimiento al derecho objetivo o sea, a las normas jurídicas. En nuestra opinión, por tal concepto debemos entender: las instituciones, los hechos y las formas por medio de las cuales la sociedad determina y formula la norma jurídica, como derecho positivo obligatorio, tratándose entonces del origen del ordenamiento jurídico que nos rige”.8
–Fontes Materiais
Por fontes materiais deve-se ter em mente as variáveis sociais, econômicas e políticas que, em determinado momento, ou durante a evolução histórica de uma sociedade, informam a produção das normas jurídicas. Como afirma Délio Maranhão, “em cada sociedade, em cada ‘cultura’, vários serão os fatores sociais que, em cada momento histórico, contribuirão para fornecer a matéria, a substância de determinada norma ou de determinado sistema de normas do direito. Esses fatores são as fontes materiais do direito”.9 Concordamos com este conceito, não seguindo, assim, o estabelecido por Kelsen e Recaséns Siches, de que a única fonte material do direito seja a vontade do Estado, ou a vontade do legislador.10
Assim sendo, fontes materiais do Direito Previdenciário são os fatores que interferem na produção de suas normas jurídicas. Pode-se apontar, destarte, que por fontes materiais deste ramo se encontram os fundamentos do surgimento e da manutenção dos seguros sociais, já devidamente elencados no Capítulo 2, retro.
–Fontes Formais
Segundo Marcelo Leonardo Tavares, “fonte de direito é uma estrutura de poder capaz de criar normas. Miguel Reale expõe que é indispensável empregarmos o termo fonte do direito apenas para indicar os processos de produção das normas jurídicas”.11
Sendo o Direito Previdenciário composto por normas de Direito Público, deve-se afirmar, de plano, que todas as suas fontes formais – as normas que regem as relações em questão – emanam do Estado. É dizer, embora movido por inúmeros fatores sociais, econômicos e políticos, o conjunto de normas do Direito Previdenciário contempla, tão somente, regras decorrentes da atividade legiferante: constitucional, legal ou regulamentar. Não há lugar para se entender como fonte formal do Direito Previdenciário, por exemplo, o costume.
A Constituição, ou seja, os princípios e preceitos insculpidos no texto constitucional, são as fontes de maior hierarquia. É do texto da Lei Magna que se retira o fundamento de validade das normas infraconstitucionais. No atual texto constitucional se estabelecem, taxativamente, os eventos cobertos pela Previdência Social, limites mínimos de benefícios substitutivos dos salários, e, no art. 7º, até mesmo, alguns benefícios em espécie. Assim, a constitucionalização do Direito Previdenciário tem trazido à tona, constantemente, discussões sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de normas, como ocorreu, recentemente, com a tentativa de fixação de um valor máximo para o pagamento do salário-maternidade pela Previdência Social, inserto no texto da Emenda Constitucional n. 20/98, matéria que mereceu análise do Supremo Tribunal Federal em Ação Direta de Inconstitucionalidade, para declarar, em caráter liminar, a suspensão da eficácia de tal limitação.
As emendas à Constituição, por seu turno, são espécies legislativas decorrentes do exercício do chamado Poder Constituinte derivado, detentor de poderes inferiores ao Poder Constituinte dito originário, uma vez que, ao emendar o texto constitucional, o legislador não pode invadir matérias consideradas intocáveis pela própria Constituição – as cláusulas pétreas, previstas no art. 60, § 4º, da Constituição vigente. As emendas, uma vez que transformadas em parte do texto constitucional, adquirem o status de norma constitucional, salvo se contrariarem cláusula pétrea – a exemplo do que aconteceu com relação ao valor do salário-maternidade, na promulgação da Emenda n. 20/98, já comentada.
Seguem-se as leis – complementares, ordinárias e delegadas –, bem como as medidas provisórias. Sendo tanto o Regime Geral de Previdência Social quanto o custeio da Seguridade Social matérias que envolvem a fixação de obrigações, impõe-se sua regulamentação pela via legal, em obediência ao princípio da legalidade (art. 5º, II, da Constituição), estando atualmente regidas pelas Leis n. 8.212 e 8.213, de 24.7.91, e suas inúmeras alterações promovidas por leis posteriores. Há, todavia, preceitos que dependem de promulgação por lei complementar – como nos casos de criação de novas contribuições sociais, conforme o art. 195, § 4º, da Carta Magna. Não se tem notícia de leis delegadas utilizadas para dispor sobre matéria previdenciária. É conveniente salientar que a Constituição veda a delegação ao Presidente da República para expedir leis cuja matéria seja reservada à lei complementar.
De outro lado, o Poder Executivo vinha se utilizando, com desaconselhável constância, do instituto das medidas provisórias para disciplinar regras do Direito Previdenciário. Observa-se, desde logo, que muitos dos preceitos assim estabelecidos não se revestiam de caráter de relevância e urgência, exigido pelo art. 62 da Constituição.
Frise-se que importante alteração se deu com a promulgação da Emenda Constitucional n. 32, de 11.9.2001, reduzindo-se a possibilidade de edição de medidas provisórias, embora mantendo-se intocada a questão relativa ao conceito de “relevância e urgência”, dispositivo que veio a reduzir sensivelmente a desmesurada profusão de atos emanados do Poder Executivo com esta finalidade normativa.
Ainda há, no âmbito legislativo, os decretos legislativos, com os quais são colocados em vigor no território nacional os tratados, convenções e acordos internacionais, integrando, a partir de então, a ordem jurídica in-terna.12 Discordamos, assim, do entendimento de Wladimir Martinez, que assegura existirem fontes internacionais de Direito Previdenciário.13
Sobre as mencionadas fontes de direito, o art. 85-A da Lei n. 8.212/91, acrescentado pela Lei n. 9.876/99, dispõe que: “Os tratados, convenções e outros acordos internacionais de que Estado estrangeiro ou organismo internacional e o Brasil sejam partes, e que versem sobre matéria previdenciária, serão interpretados como lei especial”.
Nessa matéria, merece destaque o Decreto Legislativo n. 269, de 18.9.2008, que ratificou a Convenção n. 102 da Organização Internacional do Trabalho, com o que o Brasil se tornou o 44º país do mundo a aderir a seus termos, assumindo o compromisso, perante a comunidade internacional, de seguir os princípios e padrões consagrados pela OIT para a organização dos sistemas de seguridade social.
A Convenção n. 102 define níveis mínimos de cobertura populacional, além de estabelecer parâmetros para as condições de elegibilidades nas nove contingências clássicas amparadas por políticas de seguridade: auxílio-doença, assistência médica, amparo ao desemprego, acidentes do trabalho e doenças ocupacionais, velhice, invalidez, morte, maternidade e subsídios familiares (conforme Nota Informativa da OIT, divulgada na Conferência Interamericana de Seguridade Social, em Salvador, em novembro de 2008, publicada em www.oitbrasil.org.br/download/trab_dec_protsocial_novem-bro2008.pdf, acesso em 4.1.2009).
No que concerne aos atos administrativos, são fontes formais do Direito Previdenciário: o decreto regulamentador das Leis de Custeio e Benefícios – atualmente, Decreto n. 3.048/99; as portarias, instruções normativas e ordens de serviço do Ministério da Previdência Social; as resoluções do Conselho Nacional de Previdência Social e do Conselho de Recursos da Previdência Social; as instruções normativas, ordens de serviço e resoluções expedidas pelo INSS; os pareceres normativos emitidos pelos órgãos internos. Há que se dizer, por relevante, que tais atos são fontes formais na medida em que não contrariem dispositivos constitucionais ou legais, ou seja, desde que se limitem a efetivamente regulamentar, em forma mais minudente, os preceitos preexistentes. Quanto muito, naquilo que não se contraponha à norma legal, os atos administrativos normativos podem criar efeito vinculante exclusivamente para os órgãos e entidades partícipes da Administração.
Não podem ser consideradas fontes formais do Direito Previdenciário os costumes, como já mencionado, pois, em se tratando de ramo do Direito Público, apenas as normas emanadas do Estado se aplicam às relações contribuinte/ente da arrecadação, ou beneficiário/ente concedente do benefício.
Tampouco se aplicam no âmbito interno as normas de direito estrangeiro; quando muito, servem como critério de interpretação da norma jurídica pátria, pela análise do direito comparado.
A jurisprudência – aplicação do Direito por meio das decisões judiciais – não se caracteriza, em regra, como fonte formal do direito. No sistema de civil law, a fonte primordial é a norma legislada,14 de modo que os órgãos judiciais, ainda que atuando na lacuna da lei, não criam direito, apenas suprindo a ausência de norma específica, ou seja, não gerando qualquer precedente vinculativo, nem mesmo quando da edição de enunciados de súmula de jurisprudência dominante dos Tribunais. O efeito vinculante das decisões judiciais se dá, exclusivamente, no que tange às decisões definitivas do Supremo Tribunal Federal nas ações diretas de inconstitucionalidade ou nas ações declaratórias de constitucionalidade – arts. 102 e 103 da Constituição e, a partir da publicação da Emenda Constitucional n. 45, de 2004, que inseriu o art. 103-A, à súmula de efeito vinculante, quando aprovada por voto de dois terços dos membros do STF, conforme se nota da redação da norma: “Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei”.
Bobbio, a respeito do tema, comenta: “Quando se diz que o juiz deve aplicar a Lei, diz-se, em outras palavras, que a atividade do juiz está limitada pela Lei, no sentido de que o conteúdo da sentença deve corresponder ao conteúdo de uma lei. Se essa correspondência não ocorre, a sentença do juiz pode ser declarada inválida, tal como uma lei ordinária não conforme à Constituição”.15 Logo, se a decisão judicial não pode contrariar a lei, salvo a lei contrária à Constituição e a seus princípios, já que, neste caso, a lei seria nula, por não poder pertencer à mesma ordem jurídica que outra norma de hierarquia superior, que dispõe de maneira que não se admita a regra legal em sentido diverso, não poderia daí surgir, a nosso ver, nova fonte formal do direito.
Como salienta Caio Mário da Silva Pereira, “nos regimes de separação de poderes, ao Judiciário cabe aplicar contenciosamente a lei aos casos particulares, e, não competindo aos Tribunais formular regras jurídicas, senão aplicá-las, a manifestação jurisprudencial não se pode qualificar como fonte criadora da norma de direito, porque não passa de um processo de aplicação da lei”.16 A jurisprudência é, portanto, critério – importante, muitas vezes fundamental – de integração das normas jurídicas, observando-se qual tenha sido a conclusão a que chegaram os órgãos julgadores. Excepcionem-se, no âmbito extrajudicial, as decisões sumuladas do CRPS, que têm caráter vinculante para os órgãos e entidades da Administração, sendo então, apenas no âmbito interno da Previdência Social, fontes formais de Direito Previdenciário.
Da mesma forma, a doutrina – composta pelo conteúdo científico das obras escritas pelos estudiosos da matéria – não caracteriza fonte formal do direito. A opinião dos autores pátrios, por mais respeitada que seja, não tem o condão de alterar a ordem jurídica vigente. Serve, tanto quanto a jurisprudência, para eliminar dúvidas quanto à integração da norma.
Os princípios de direito não escritos (ou adstritos) vêm sendo considerados fontes de Direito, por corrente respeitável da doutrina em Hermenêutica Jurídica, principalmente quando se verifica a colisão de regras com princípios reconhecidamente existentes, ainda que não positivados, como o da proporcionalidade e o da razoabilidade. Como bem salienta Lênio Streck, com base nas lições de Robert Alexy, “os direitos fundamentais constituem-se de princípios donde se retiram regras adstritas que, como mandados de otimização, valem, num juízo de ponderação, quando fática e juridicamente realizáveis”.17 Se escritos, são normas jurídicas, e nesta condição se fixam como fontes formais.18
A equidade – a noção do que é justo, de acordo com o bem comum, a moral, a distinção entre o certo e o errado – também não é fonte formal do direito. Na medida em que somente possa ser utilizada na ausência da norma escrita, é critério de integração da ordem jurídica. Diga-se o mesmo da aplicação dos critérios de analogia a casos omissos da lei.
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1 MARTINS, Sergio Pinto. Direito da seguridade social. 8. ed., São Paulo: Atlas, 1997.
2 RUSSOMANO, Mozart Victor. Curso de direito do trabalho. 6. ed., Curitiba: Juruá, 1997.
3 RUPRECHT, Alfredo J. Direito da seguridade social. São Paulo: LTr, 1996, p. 53.
4 Ibidem, p. 51.
5 MARTINS, Sergio Pinto. Op. cit., p. 37.
6 BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Trad. de Maria Celeste C. J. Santos, 10. ed., Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997, p. 81.
7 SÜSSEKIND, Arnaldo et alii. Instituições de direito do trabalho. 14. ed., São Paulo: LTr, 1993, v. 1, p. 148.
8 MORENO, Angel Guillermo Ruiz. Nuevo derecho de la seguridad social. México: Porrúa, 1997, p. 19.
9 SÜSSEKIND, Arnaldo et alii. Op. cit., p. 149.
10 MORENO, Ruiz. Op. cit., p. 20.
11 TAVARES, Marcelo Leonardo. Direito previdenciário. 4. ed. rev., atual. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, pp. 27-28.
12 SÜSSEKIND, Arnaldo. Tratados ratificados pelo Brasil. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1981, p. 20.
13 MARTINEZ, Wladimir Novaes. Curso de direito previdenciário. Tomo I – Noções de direito previdenciário. São Paulo: LTr, 1997, p. 35.
14 Cf. TAVARES, Marcelo Leonardo. Op. cit., p. 28.
15 BOBBIO, Norberto. Op. cit., p. 56.
16 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 1966, v. 1, p. 46.
17 STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise. 5. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 246.
18 BOBBIO, Norberto. Op. cit., p 160.