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A GLOBALIZAÇÃO E O ESTADO CONTEMPORÂNEO

Muito se discute, há tempos, sobre a razão de existir do Estado perante a sociedade. Quando uma comunidade de pessoas delega, expressa ou tacitamente, a um grupo de pessoas a incumbência de dirigir os seus destinos, estabelecido sob certo território e insubmisso a qualquer poder externo, o faz com algum fundamento. É este fundamento, esta razão que, nos tempos atuais, volta a ser discutida.

A queda dos regimes absolutistas e a ascensão dos regimes liberalburgueses trouxeram a concepção de Estado moderno, até hoje presente em seus princípios básicos – a democracia representativa, a temporariedade do mandato dos governantes, a divisão funcional do poder.

Paulo Bonavides, lecionando sobre a matéria, ensina que “a transição do mercantilismo ao liberalismo assinala o apogeu do individualismo e a elevação da liberdade individual a alturas nunca antes atingidas”.1 A finalidade do Estado na época da mencionada ruptura era, tão somente, a consecução do Direito enquanto ordem jurídica, segundo Kant. Era o Estado liberal mero espectador das relações sociais, em contraposição ao Estado absolutista, extremamente disciplinador das condutas. Laissez-faire, laissez-passer é a expressão que cunhou este modelo estatal deflagrado a partir da Revolução Francesa. Nessa época, seria inconcebível falar em intervenção do Poder constituído a fim de compelir alguém se filiar a um regime previdenciário, ou verter contribuições para este fim.

Ressaltando, porém, como o fez Jhering, que “o fim é o criador de todo o direito”,2 resta rejeitada a tese kantiana. Então, deve-se concordar com Marcel de la Bigne de Villeneuve, para quem “o fim é um dos elementos rigorosamente necessários, talvez o elemento primordial, à compreensão da verdadeira natureza do Estado”.3 É com Hegel que se vai chegar à concepção de que o Estado é mais do que a vontade do racionalismo rousseauniano, é a expressão unificada da vontade individual e da vontade social, vale dizer, o fim do Estado é o interesse coletivo, o interesse social.4

Foi somente com o Estado Contemporâneo que se entendeu possível a ingerência do Poder na questão da proteção do trabalhador, seja na sua relação com o empregador, seja na área da infortunística, para atender a esse interesse social.

Como relata Cláudia Pereira, de acordo com uma doutrina (denominada neoliberal) que visa “readequar” o Estado em sua condição de interventor e patrocinador de políticas sociais mediante dispêndio de verbas orçamentárias, houve um exacerbamento do papel do Estado Contemporâneo no campo das relações particulares, gerando despesas insustentáveis, devendo portanto retroceder em alguns de seus postulados.5

Uma fase de “crise” ou de redefinição do papel do Estado Contemporâneo (como preferimos identificar a fase atual) é tida como iniciada com “a decisão dos Estados Unidos de não manter a convertibilidade do dólar em ouro, tomada em virtude da quantidade da moeda norteamericana (sic) em circulação em outros países”.6 Assim, embora o Estado Contemporâneo tenha evoluído, até mesmo em maior escala que no período entre guerras, na dicção e proteção dos direitos sociais no período que se estende do fim da Segunda Guerra Mundial até a década de setenta do Século XX, nos anos que se seguiram, as políticas sociais, em velocidades e escalas de grandeza diversas, de modo geral, sofreram retrações do ponto de vista protetivo ou promocional. As razões que têm sido indicadas para esse processo são: o fim do ciclo de prosperidade econômica iniciado na década de cinquenta e o crescimento acentuado dos gastos públicos,7 aliado a fatores de diminuição dos postos de trabalho (automação) e demográficos.8

Entretanto, em países – tais como o Brasil – que não atingiram o mesmo nível de proteção social que os dos continentes precursores de tais ideias – Europa, América do Norte, Oceania –, o período atual gera problemas de outra ordem: a redução de gastos públicos com políticas sociais, o que, em verdade, significa o não atingimento do prometido Bem-Estar Social.

Em que pese ser notório o problema do endividamento estatal em face da extensa gama de atribuições e responsabilidades com as quais se cometeu, não devemos, a nosso ver, limitar o problema à questão da dívida pública, o que será analisado oportunamente.

É inegável que as sociedades contemporâneas estão vivendo um processo de modificação das políticas estatais. A internacionalização da economia, derrubando fronteiras até então mais ou menos respeitadas tanto pelo capital produtivo como pelo meramente especulativo, hoje impera com largueza, colocando em xeque vários conceitos antes intocáveis, como a soberania estatal, o valor social do trabalho e a intervenção do Estado com vistas à redução das desigualdades sociais.

O final do século XX e o início do século XXI são identificados como um período de alto nível de desemprego9, de grande instabilidade econômica10, culminando com uma suposta crise das políticas de bem-estar social.11

Como ressalta Dowbor,

O segmento que mais aumentou os (sic) gastos do Estado dos países desenvolvidos é o das aposentadorias, e resulta simplesmente do aumento do tempo de vida do ser humano e da mudança da pirâmide etária. Grande parte do que se nos apresenta como o odioso gigante estatal resulta do fato de que, como sociedade, temos que sustentar uma juventude que estuda mais tempo, e idosos que vivem mais tempo. O novo equilíbrio social entre ativos e inativos é simplesmente uma questão de custo para a sociedade, que resulta de uma evolução positiva. Culpar o Estado representa aqui uma solene bobagem, que só adquire respeitabilidade nos meios de comunicação pelo interesse natural dos grupos financeiros privados de se apropriarem de mais esta fatia de intermediação.12

No bojo destas mudanças, ante o risco de uma eventual derrocada das políticas sociais13, há doutrinas que pregam a saída de cena dos atores político-governamentais em várias das suas atuais atribuições, para que ocorra a prevalência da liberdade individual, da luta de cada um por seu “lugar ao sol”, da competitividade das empresas regulada pura e simplesmente pelo “livre mercado”, está sendo posta à prova, também, a rede de segurança social, e mais especificamente, a Seguridade Social tal como concebida no século XX.

A nosso ver, no que diz respeito às nações, a globalização14 não gerou a melhoria das condições dos países economicamente débeis; pelo contrário, os mantém no estado em que se encontram, pois não se estabelece qualquer amparo a estes, não se podendo chamar assim os empréstimos das instituições financeiras (FMI e Banco Mundial) – pois estes, ao contrário, criam maior dependência, pelo endividamento progressivo e impagável. A debilidade das economias dos países periféricos é vítima constante dos ataques especulativos, demonstrando a fragilidade das políticas internas neste particular. O desemprego e a precarização do trabalho também têm sido uma constante, a partir da onda globalizante. Michel Chossudovsky, professor de economia da Universidade de Ottawa, faz a síntese da política monetarista hoje aplicada aos países periféricos: “A reestruturação da economia mundial sob a orientação das instituições financeiras sediadas em Washington nega cada vez mais aos países em desenvolvimento a possibilidade de construir uma economia nacional: a internacionalização da política macroeconômica transforma países em territórios econômicos abertos e economias nacionais em ‘reservas’ de mão de obra barata e de recursos naturais”.15

Para os trabalhadores, como se há de ver, também não há motivos para comemorações.

A mesma Grã-Bretanha que viu nascer a concepção de previdência social predominante até o final deste século também foi a mãe das políticas de flexibilização (leia-se de cortes) dos direitos sociais. A partir do Governo Thatcher, demonstra-se a tendência de reduzir o campo da proteção estatal aos indivíduos menos afortunados. Apontava o historiador contemporâneo Eric Hobsbawn que tal mudança não se deu senão com apoio de uma parte do proletariado, que ele chama de “a ponta de cima” da classe operária. Foi desta forma, segundo ele, que o socialismo de redistribuição e seu aspecto capitalista mais próximo, o Estado do Bem-Estar, foram duramente atingidos com a crise econômica dos anos 70, a partir da constatação de que considerável parte da classe média “emprestou” seu voto a propostas de governos conservadores.16 Rompeu-se, assim, o consenso sobre a solidariedade social, o “pacto entre gerações”, alicerce das políticas públicas no campo da segurança social, e principal lema de William Beverigde. O povo inglês, sufragando as ideias de Thatcher, deu-lhe condições de implementar alterações substanciais no regime de seguridade.

Sobre o tema, Reinhold Stephanes discorreu em seu livro sobre as mudanças na previdência brasileira:

A crise que afetou o mundo inteiro na década de 1980 evidenciou o esgotamento das fontes tradicionais de financiamento. Houve uma generalização da elevação do déficit público da maioria das nações e, em consequência, uma busca por saídas que não fossem o aumento dos impostos ou o endividamento. São desta época as primeiras iniciativas de privatização de empresas estatais e de reformulação dos sistemas previdenciários e de saúde, que são interligados em muitos países. Antes mesmo, em 1977, o Governo Jimmy Carter promoveu algumas alterações na legislação previdenciária dos Estados Unidos, para diminuir os efeitos da ampliação da cobertura dos programas previdenciários e do aumento dos benefícios. As medidas de Carter consistiram em aumento das taxas de contribuição e redução de benefícios. O Governo seguinte, de Ronald Reagan, em 1981, deu continuidade ao programa de reforma. As propostas aprovadas pelo Congresso previam o aumento gradativo das contribuições de empregados e empregadores (até 1990) e a elevação da idade mínima para a obtenção de aposentadoria a partir de 2003. O patamar definitivo será o de 67 anos para os nascidos desde 1960.

Também na década de 1980, o Governo da primeira-ministra Margaret Thatcher introduziu uma reforma no sistema previdenciário inglês, que começou efetivamente em 1988. Os acordos políticos permitiram apenas uma reforma gradual do sistema público e a criação de incentivos aos contribuintes para optar por seguros privados. O objetivo era reduzir os encargos e obrigações de longo prazo do sistema de seguridade social. O valor das aposentadorias passou a ser calculado pela média dos salários ganhos durante a vida ativa do trabalhador e não mais pelos vinte melhores anos.17

Veja-se, a respeito, a explanação de Echart Orús:

A mediados de los años setenta, los gobiernos de Margaret Thatcher e Ronald Reagan, los abanderados de la new right, hicieron el primer cuestionamiento global del welfare state, más en concreto, del papel que el Estado debía desempeñar en la economía; de ello se derivó una reacción monetarista contraria a las políticas keynesianas de regulación de la demanda y una ofensiva antiestatalista que se propuso disminuir el sector público a través de privatizaciones. Los periodos de crisis económica han ido poniendo de manifiesto los problemas profundos que, lenta y silenciosamente, estaba alimentando el Estado de bienestar, orgullo de los socialdemócratas europeos. En los periodos de prosperidad económica, el Estado providencia no ha incentivado el ahorro y, por tanto, tampoco la inversión, a pesar del crecimiento incesante de los salarios. El Estado benefactor ha traído consigo el descenso de la natalidad y ha alargado la esperanza de vida, con lo que, por una parte, se ha aumentado la base de las personas que deben cobrar la jubilación o el desempleo y, por otra, ha disminuido sensiblemente el número de ciudadanos que cotizan.18

O liberalismo clássico, adormecido durante os tempos áureos da social de mocracia, pretende reconquistar seu lugar como ideologia predominante, sucedendo ao Estado social. Em texto que bem explica esta mudança conceitual, José Alberto Couto Maciel diz: “Assim, a doutrina liberal repousa na crença de uma harmonia natural decorrente da atividade econômica espontânea na procura do maior ganho. O interesse individual coincide com o interesse geral sendo que a ideia central é a de que o Estado deve abster-se de intervir na vida econômica, prevalecendo a lei da concorrência. O trabalho, para os neoliberais, não difere de outras mercadorias, estando essa filosofia baseada nas doutrinas da autonomia da vontade e da liberdade contratual”.19

O colapso do financiamento, além de ser consequência do envelhecimento médio da população, ocorre também atualmente pelo fenômeno da precarização da mão de obra, da informalidade dos mercados, minando a fonte básica dos recursos, ou seja, as contribuições vertentes sobre a folha de pagamentos de empregados. Com a expansão do capital industrial pelos países subdesenvolvidos, em busca de mão de obra mais barata, o desemprego nestes mesmos países ganhou novo fator de agravamento. O resultado é a diminuição gradual de recursos vertidos aos cofres do sistema de segurança social. De forma clara, Ladislau Dowbor aponta a relação de causa e efeito da globalização dos mercados de trabalho e desemprego/precarização das relações de trabalho:

Abaixo do setor de ponta, desenvolve-se rapidamente um setor de emprego precário, para traduzir a fórmula americana de “precarious jobs”. Antigamente os empregados da cantina da General Motors faziam parte do movimento organizado dos trabalhadores metalúrgicos, e se beneficiavam do fato de pertencer à empresa. Hoje, terceirizados, constituem uma mão de obra eminentemente intercambiável, a serviço de uma ou outra empresa local fornecedora de serviços de alimentação. Gradualmente, terceirizou-se as cantinas, a segurança, os transportes, a gestão das garagens, os serviços informáticos, e crescentemente para a própria produção. Empresas como a Nike e tantas outras subcontratam simplesmente os seus produtos na Ásia, com salários ínfimos, para que o setor de ponta, o chamado “core personnel” da empresa, apenas gere o conjunto. A grande empresa passa a trabalhar com espaço múltiplo. Contrata as pesquisas com os baratíssimos e bem formados engenheiros russos, transfere a digitação e programação para a Índia, subcontrata a produção com a Indonésia ou a Tailândia onde pagará 15 centavos de dólar por hora, e manterá nos Estados Unidos os serviços de organização geral do sistema, coordenação de serviços de “marketing” e semelhantes. Onde antigamente havia vantagens comparadas entre nações, hoje as empresas trabalham no espaço global captando a nata das vantagens de cada uma, e se tornam relativamente imbatíveis. O produto chega a preços que desestruturam os sistemas produtivos da Argentina, do Brasil e de tantos outros. E o emprego que a Nike gera na Indonésia vai se traduzir em termos práticos em desemprego em Franca, SP, e em outras cidades do Terceiro Mundo.

Com isso, reduz-se o espaço do emprego formal, e explode o setor informal, resultante direto do enxugamento empresarial frente à teimosia das pessoas em querer sobreviver. Aparecem assim cifras fantásticas de países com 50% de emprego no setor informal, colocando-nos o problema de repensar afinal o que é formal e o que é informal.20

Os efeitos da chamada globalização da economia parecem, pois, afetar de forma direta não apenas o tratamento das questões de proteção social, mas o próprio amálgama formador do Estado Contemporâneo:

Face a um sistema económico que destrói o trabalho e produz desemprego, parece estar a quebrar-se, nesta era de capitalismo global, a aliança histórica entre a sociedade de mercado, o Estado-Providência e a democracia que fundou o projecto de modernidade do Estado nacional. E convém lembrar, como faz Beck, que “a estreita relação, no Ocidente, entre o capitalismo e os direitos fundamentais políticos, sociais e económicos não constitui uma ‘obra de benemerência que, quando não temos dinheiro, podemos deixar de praticar. O capitalismo socialmente ‘amortecido’ foi conseguido, em vez disso, como resposta à experiência do fascismo e ao desafio do comunismo” (Beck, 1998:97).21

Ademais, com a expansão do capital industrial pelos países subdesenvolvidos, em busca de mão de obra mais barata, o desemprego nestes mesmos países ganhou novo fator de agravamento, o que resulta, também, em redução do número de contribuintes para os sistemas de proteção social.

Como ressalta Giovanni Olsson, ao identificar os fatores que caracterizam o processo de globalização e suas consequências:

As práticas econômicas transnacionais, nessa linha, produzem efeitos para além das fronteiras nacionais, e sua importância veicula-se pelas corporações transnacionais, uma forma altamente reelaborada da então empresa multinacional. Essas práticas modulam e definem em grande extensão as vocações das economias nacionais e a divisão internacional do trabalho; com seu poder expressivo, criam ou extinguem milhares de empregos em determinado local e em específica atividade produtiva, com efeitos extensos sobre as economias locais diretamente – instituindo novas demandas por matéria-prima, tecnologia e maquinários, novas ofertas e novos mercados – ou indiretamente – definindo a quantidade de pessoas com atividade remunerada e sua extensão, e, pois, os seus efeitos sobre outras atividades locais pelo poder aquisitivo geral disponibilizado.22

O resultado de tal cenário também é a diminuição gradual de recursos vertidos aos sistemas de segurança social de países periféricos, abaixo dos níveis propostos pela Organização Internacional do Trabalho.23

Em razão desse conjunto de fatores tem-se assistido, particularmente na América Latina, a uma sequência de reformas estruturais em sistemas de proteção social, iniciado tal processo com a total privatização do sistema existente no Chile, na década de 1980, no período ditatorial de Augusto Pinochet – que passaria a ser moldado como uma poupança individual compulsória em entidades do sistema financeiro, autorizadas a operar no ramo de seguros (a exemplo das entidades abertas de previdência complementar privada, no Brasil), com recursos vertidos somente pelos trabalhadores.24

No contexto latino-americano, a aprovação de reformas desse gênero envolve um processo político importante, pois, como explicam Mesa-Lago e Müller, reformar as normas definidoras de Direitos Sociais “implica uma revisão substancial do contrato social subjacente e desafia o senso comum nas pesquisas sobre o Estado de bem-estar”.25

A Seguridade Social, nesse contexto de globalização, é justamente o oposto do que pregam os liberais, como se nota do pensamento de Friedman, um dos maiores opositores à doutrina keynesiana:

O programa de “seguro social” é uma dessas coisas em que a tirania do status quo está começando a exercer a sua mágica. A despeito da controvérsia que envolveu sua instituição, passou a ser tomado como fato consumado – e de tal forma que sua desejabilidade é muito dificilmente questionada nos dias que correm. No entanto, é uma invasão em larga escala da vida pessoal de enorme fração da nação (sic), sem – até onde posso julgar – qualquer justificação realmente persuasiva, não só em termos de princípios liberais, mas em termos de quaisquer outros. Proponho que se examine sua fase mais importante, a que envolve o pagamento a pessoas idosas.26

Caracterizando-se, sempre, por uma indelével intervenção no mercado, a exigência de contribuições sociais impõe um ônus, é certo, a trabalhadores e empresas, como de resto, a toda a população economicamente ativa. Além disso, para a salvaguarda do regime de segurança social, há que se ter uma legislação reguladora, o que faz com que os agentes econômicos tenham de se curvar às normas impostas. E contra isso se insurgem, naturalmente, os defensores do livre mercado, como se vê no discurso de Friedman: “É difícil para mim, como liberal, encontrar alguma justificativa para a taxação gradual em termos de pura redistribuição de renda. Parece-me um caso claro de coerção, em que se tira de uns para dar a outros, e assim se entra em conflito frontal com a liberdade individual”.27

Contudo, impõe-se salientar, seja em contraponto à teoria liberal, seja como ponderação sobre a ideia de Direitos Fundamentais como rol de direitos mínimos de Alexy, que “o nível de proteção social só pode ser avaliado dentro de um cenário específico, cuja compreensão é essencial quando se deseja alterar de maneira responsável uma instituição do quilate da previdência social”.28 E, assim sendo, qualquer mudança que vise ao alcance da proteção social deve ter em conta não apenas os antecedentes históricos, mas principalmente os fundamentos que regem as políticas de bem-estar social e, acima de tudo, deve se caracterizar por uma ampliação na gama de indivíduos e situações protegidas, tomando-se por diretriz uma política de Segurança Social global.

Não discrepa dessa ideia o pensamento de Hespanha:

Perante a actual situação de agravamento das desigualdades e da exclusão e de crise e perante a incapacidade de as políticas nacionais de protecção social enfrentarem esses problemas, aumentam as expectativas e multiplicam-se as propostas para a constituição de um sistema de protecção social global capaz de garantir a estabilidade, a segurança, a identidade e a coesão social, mesmo no quadro da economia capitalista. Ou, dito de outra maneira, de ajustar a globalização económica à globalização dos padrões sociais (Mishra, 1998) ou, mesmo, de fazer evoluir a globalização económica para uma globalização socialmente responsável (Deacon, 1998).29

O Estado-Providência foi criado, segundo seus precursores, para a redução das desigualdades sociais. Assim, o sistema se sustenta e se legitima pelo fato de que a sociedade – e o Governo eleito por esta – tem um compromisso moral com os menos favorecidos. No momento histórico em que a sociedade quebra tal paradigma, adotando definitivamente a noção de que cada um deve buscar os próprios meios de sustento, e que os bemsucedidos economicamente não possuem nenhuma “dívida social” a quitar, desaparece a integração social, e o individualismo materialista poderá ser declarado como doutrina predominante, em flagrante prejuízo aos indivíduos das camadas mais pobres da sociedade.

Diagnóstico importante sobre os efeitos da Globalização vem da Conferência Internacional do Trabalho, 100ª Sessão, 2011, que emitiu o Relatório VI – “Segurança social para a justiça social e uma globalização justa: Debate recorrente sobre proteção social (segurança social) no quadro do seguimento da Declaração da OIT sobre a Justiça Social para uma Globalização Justa, 2011”30. Desse relatório constou, entre outras conclusões, que:

Uma primeira conclusão

78. As mulheres e os homens, bem como as crianças, têm direito à segurança social. Simultaneamente, as instituições de segurança social fazem parte da governança e das instituições de economias de mercado eficientes. O crescimento acelerado da interligação entre os mercados financeiros, de produtos e de trabalho mundiais torna a segurança social ainda mais necessária. Num mundo em que as flutuações financeiras e econômicas rapidamente se propagam, com um efeito imediato nos mercados de trabalho e no bem-estar social, a capacidade dos indivíduos para lidarem sozinhos com os riscos econômicos é ainda mais limitada do que era. Os riscos sociais globais associados a pandemias e as repercussões expectáveis das alterações climatéricas têm um impacto semelhante nos níveis de segurança social individual. Com vista a fomentar o desenvolvimento econômico, fortalecer a capacidade de recuperação econômica e eliminar adicionais riscos econômicos sistemáticos globais, os sistemas de segurança social nacionais baseados na solidariedade têm de ser mais fortes do que nunca. É necessária uma segurança social eficaz, que permita às sociedades lidarem com os riscos da globalização, aproveitarem plenamente as oportunidades que proporciona e ajustarem-se à constante mudança. Isto exige uma política nacional e enquadramentos institucionais abrangentes e integrados – abarcando o emprego, a segurança social e outras políticas sociais – que permitam melhores respostas às mudanças estruturais e aos choques. Para que o direito à segurança social seja coerente, desempenhe eficazmente o seu papel de reforço da produtividade e funcione como um estabilizador social e econômico num mundo de incerteza, tem de estar integrado nas leis nacionais, na governança e nas estruturas institucionais, bem como em mecanismos internacionais eficazes. Somente uma combinação de instrumentos desta natureza pode definir os limites sociais necessários ao funcionamento dos mercados mundiais. (...)

Uma segunda conclusão

115. Todos os desafios fundamentais previamente identificados, com que se deparam os regimes de segurança social nacionais – cobertura, adequação econômica e social e financiamento – são influenciados, de forma crítica, pela governança. Com uma boa governança podem ser criados regimes, alocados recursos (mesmo se de dimensões modestas, numa fase inicial) e assegurado um nível mínimo de adequação. Tem de ser criado um espaço fiscal e um espaço de políticas por meio da vontade política e do investimento em instituições eficazes. Estas políticas econômicas e sociais devem centrar-se nos objetivos do emprego produtivo e do trabalho digno, apoiados por uma boa governança, baseada num diálogo social bem informado.

Uma terceira conclusão

210. Embora se tenha verificado um progresso significativo nos últimos anos, a extensão da segurança social continuará a ser um dos maiores desafios para um crescimento econômico equilibrado e para a coesão social, durante a próxima década. Atualmente, a primeira prioridade é proporcionar a uma percentagem de indivíduos excluídos, situada entre 75 a 80 por cento, alguma forma de segurança social que lhes permita viver sem medo de perder os seus meios de vida. Nos últimos anos, surgiu uma série de inovações políticas promissoras, principalmente em países de rendimento baixo e intermédio. (...)

Esse mesmo relatório, ao tratar das principais questões para o futuro da segurança social, adverte que “Os principais desafios para o futuro que se avizinha serão o desenvolvimento, através do diálogo nacional, de políticas de desenvolvimento econômico e social coerentes que permitam a extensão da cobertura da segurança social, mantenham e ampliem o necessário espaço fiscal e assegurem uma concepção, governança e gestão eficazes, eficientes e equitativas dos regimes de segurança social.”

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1     BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. 3. ed., São Paulo: Malheiros, 1995, p. 40.

2     Idem, ibidem, p. 22.

3     Idem, ibidem.

4     Idem, ibidem, p. 51.

5     PEREIRA, Cláudia Fernanda de Oliveira. Reforma da Previdência. 1. ed. Brasília: Brasília Jurídica, 1999, p. 23.

6     CRUZ, Paulo Márcio. Política, Poder, Ideologia e Estado Contemporâneo, Florianópolis: Diploma Legal, 2001, p. 239.

7     CRUZ, Política, Poder, Ideologia... cit., p. 240.

8     ROCHA, Daniel Machado da. Op. cit. p. 40.

9     “Nos países ricos o mercado de massa fora estabilizado pela transferência de mão de obra da indústria para ocupações terciárias, que tinham, em geral, um emprego muito mais estável, e pelo enorme crescimento nas transferências sociais (sobretudo seguridade social e previdência). (...) Contudo precisamente esses dois estabilizadores estavam sendo solapados. Ao acabar-se o Breve Século XX, os governos e a ortodoxia ocidentais concordavam em que o custo da seguridade social e da previdência social públicas (sic) estava demasiado alto e tinha de ser reduzido, e a redução em massa de empregos, até nos então mais estáveis setores de ocupações terciárias – emprego público, bancos e finanças, o tecnologicamente redundante trabalho de escritório de massa – tornou-se comum” (HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos: o breve século XX: 1914 – 1991. Trad. Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 280).

10    Como relata Borges: “Com o recrudescimento da crise do petróleo, a partir de 1972, o mundo conheceu uma forte desaceleração econômica. Com isso alguns governos começaram a perceber o desequilíbrio de seus sistemas de previdência, que, atingindo certa maturidade, eram, até então, baseados quase que exclusivamente no regime de repartição. A partir daí os sistemas de previdência, em todo o mundo, têm passado por um amplo processo de crítica e reflexão” (BORGES, Op. cit., p. 55).

11    PALME, Joakim. Fundamentos y Garantias del Derecho a la Seguridad Social a Comienzos del Siglo XXI. Iniciativa de la AISS – Investigaciones y Puntos de Vista – jan. 2003. Disponível em www.issa.int. Acesso em 21 jul. 2004.

12    DOWBOR, Ladislau (Org.) et alii. “Globalização e Tendências Institucionais”. In Desafios da Globalização. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 361.

13    “Os anos 70 mostraram a vulnerabilidade do crescimento, sendo incorreta a suposição de que o Estado social corrigiria injustiças e baixaria os seus custos sociais, conduzindo ao dilema de reconhecer reivindicações, sem poder contê-las” (ARRUDA JÚNIOR, Edmundo Lima de. Direito, Marxismo e Liberalismo. Florianópolis: CESUSC, 2001, p. 142).

14    Globalização “significa a experiência cotidiana da ação sem fronteiras nas dimensões da economia, da informação, da ecologia, da técnica, dos conflitos transculturais e da sociedade civil, (...) que transforma o cotidiano com uma violência inegável e obriga todos a se acomodarem a sua presença e a fornecer respostas.” In BECK, Ulrich. O que é globalização? Equívocos de globalismo e respostas à globalização. Tradução de André Carone. São Paulo: Paz e Terra, 1999, p. 47. Título original: Was ist globalisierung?: Irrtümer des globalismus: Antworten auf globalisierung.

15    CHOSSUDOVSKY, Michel. A globalização da pobreza: impactos das reformas do FMI e do Banco Mundial. Trad. Marylene Pinto Michael. São Paulo: Moderna, 1999.

16    HOBSBAWN, Eric. Op. cit. p. 302.

17    Reforma da previdência sem segredos. Rio de Janeiro: Record, 1998, p. 9.

18    ECHART ORÚS, Nazareth. Revista Nuestro Tiempo, jan./fev.1994, Barcelona, p. 47.

19    MACIEL: José Alberto Couto. Desempregado ou supérfluo? Globalização. São Paulo: LTr, 1998.

20    DOWBOR, Ladislau (Org.). Op. cit., p. 14.

21    HESPANHA, Pedro. “Mal-estar e risco social num mundo globalizado: novos problemas e novos desafios para a teoria social”. In: SANTOS (Org.). Op. cit., p. 169.

22    OLSSON, Giovanni. Relações Internacionais e seus Atores na Era da Globalização. Curitiba: Juruá, 2003, p. 171.

23    SANTOS (Org.). Op. cit., p. 178.

24    JERALDO, Julio Bustamante (Coord.). Reforma a los Sistemas de Pensiones. Trad. Tânia Marques Cardoso e Paulo Castanheira. São Paulo: Geração Editorial, 1998, pp. 19-23.

25    MESA-LAGO, Carmelo; MÜLLER, Katharina. “Política e Reforma da Previdência na América Latina”. In: COELHO, Vera Schattan P. (Org.). A Reforma da Previdência Social na América Latina. Rio de Janeiro: FGV, 2003, p. 29.

26    FRIEDMAN, Milton. Capitalismo e Liberdade. Trad. Luciana Carli. 3. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988, p. 169.

27    FRIEDMAN. Op. cit., pp. 158-159.

28    ROCHA. Op. cit., p. 77. No mesmo sentido, JAGUARIBE, Hélio. Introdução ao desenvolvimento social. São Paulo: Paz e Terra, 1978, p. 78.

29    In: SANTOS (org.), Op. cit., p. 169.

30    Disponível em <http://www.ilo.org/public/portugue/region/eurpro/lisbon/pdf/relatoriosegurancasocial_2011.pdf> Acesso em 28.11.2012