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Talvez não aconteça.

Talvez fique tudo bem.

Talvez eu devesse parar de pensar nas coisas más e concentrar-me nas coisas boas.

Como esta bela paisagem campestre por onde caminhamos. Pássaros a chilrear e borboletas a esvoaçar, sem que sejam atingidos por nenhuma explosão.

E esta poeira na estrada. É uma excelente poeira. É macia sob as nossas botas. Suaviza o caminho às rodas da nossa carroça. Esta é a melhor coisa que se pode pedir quando se tem uma mulher grávida dentro da carroça. E outra pessoa a caminhar ao nosso lado que já tem quase 40 anos e pés magoados.

Mas a minha coisa preferida é esta brisa de primavera, morna e perfumada. De todos os anos em que estive vivo, 1946 é sem dúvida o melhor ano de brisas perfumadas. Acho que é por não haver tantos cadáveres espalhados.

Por enquanto.

— Felix — pergunta o Gabriek —, doem-te as pernas?

Mesmo com os óculos empoeirados, consigo perceber o seu olhar preocupado. Ele sabe que por vezes tenho problemas com as minhas pernas, e já estamos a caminhar há vários dias.

— Estão bem, obrigado — respondo.

Na verdade, estão um pouco doridas, mas aposto que as do Gabriek também estão, e as do Henk, o nosso burro, também. Por isso não vou queixar-me das minhas.

— Ótimo — diz o Gabriek. — Nesse caso, deixa lá essa cara de enterro e anima-te.

Faço-lhe um olhar indignado.

Será que não se nota o esforço que estou a fazer para não parecer preocupado?

— Alegra-te, Felix — diz a Anya, da carroça. — Estás com uma cara carrancuda de nazi.

Também olho indignado para ela. Abro a boca para lhes falar da brisa perfumada e da poeira macia. Mas, por alguma razão, as palavras ficam presas e não me saem.

— Estás a fazê-lo outra vez, não estás? — pergunta o Gabriek. — A pensar numa certa pessoa.

Abano a cabeça. Aponto para uma borboleta.

— Felix — diz o Gabriek, baixinho. — Combinámos não pensar nele.

Ele tem razão. Combinámos.

— Estou a tentar — respondo. — Mas é difícil.

— Eu sei — diz o Gabriek. — Mas ele nunca nos encontrará. Nunca. Muito menos no sítio para onde vamos.

— É isso mesmo — diz a Anya. — O Zliv não faz ideia da existência da quinta do Gabriek. Ninguém na cidade faz. Nem eu sabia antes de me terem contado, e vocês sabem como sou coscuvilheira.

— Portanto — diz-me o Gabriek —, chega de caras de enterro e de preocupações. Prometes?

Faço-lhe outro olhar daqueles. Ele é um amigo querido e bondoso, mas está a tratar-me como se eu tivesse 6 anos. O que não se deve fazer a alguém que tem 14 e que sabe quantas coisas há no mundo com as quais temos de nos preocupar.

— Vá lá, Felix — diz a Anya. — Todos temos de fazer um esforço. Se as borboletas o fazem, tu também o podes fazer.

Faço outro olhar à Anya. Adoro tê-la na nossa família. E estou-lhe muito agradecido por muitas coisas. Mas às vezes ela esquece-se de que só é dois anos mais velha do que eu. Bem, mas terá de parar de me tratar como um miúdo se por acaso as coisas não correrem bem e tiver de ser eu a fazer-lhe o parto.

Sinto-me a corar e desvio a cara.

Não devia pensar nestas coisas. Ainda não. Ainda nem sequer acabei de ler o livro dos bebés.

— Fizemos um acordo — diz o Gabriek. — Todos passámos demasiados anos a olhar por cima do ombro por causa de bandidos assassinos. Especialmente tu, Felix. Portanto, vimos para aqui para termos uma vida sem medo. Certo?

Aceno.

— Ótimo — conclui o Gabriek.

Mas continuo ansioso.

Tenho tentado não o estar durante toda a viagem, mas não sou capaz.

Sabem quando vivemos numa cidade violenta, depois de uma guerra, e um bandido assassino chamado Gogol é morto e por isso nós pensamos que a vida agora vai ser mais segura e feliz mas depois ouvimos dizer que o irmão do Gogol, chamado Zliv, regressou da Croácia onde matava pessoas por dinheiro e culpa-nos a nós pela morte do irmão e começa a dizer a toda a gente que não vai descansar enquanto não nos arrancar o coração e por isso nós e o Gabriek e a Anya partimos às escondidas para ir viver na quinta do Gabriek mas durante a maior parte da viagem preocupamo-nos com que a quinta não seja suficientemente longe e além disso começamos a desejar não ter trocado os nossos livros médicos por um burro?

É o que está a acontecer-me.

— Estamos quase lá — diz o Gabriek. — Falta menos de uma hora.

Dá um puxão nas rédeas.

Atrás de nós, o burro Henk acelera o passo. A carroça geme e guincha ainda mais do que nos últimos 19 dias.

Faço um esforço ainda maior para me concentrar nas coisas boas. Para não pensar no que toda a gente na cidade diz do Zliv. Que é um assassino ainda mais impiedoso do que o irmão. Que, quando ele decide que temos de morrer, nunca desiste.

Nunca.

Tiro as rédeas ao Gabriek.

— É a minha vez — digo.

Dou-lhes outro puxão. Temos de chegar à quinta o mais depressa possível e começar a nossa nova vida pacífica.

O ano passado, antes de a guerra ter acabado, os nazis incendiaram a casa da quinta do Gabriek, por isso vamos ter muito trabalho para a reconstruir.

A parteira local provavelmente não virá ajudar a Anya no parto se não tivermos uma casa como deve ser com um teto como deve ser. E também uma cozinha com um fogão para o caso de a parteira, ao saber que o pai do bebé é um soldado russo já morto, ficar enojada e querer ir embora e nós tivermos de a convencer a ficar com chá e bolinhos.

O Henk não está a andar mais depressa. Assobio-lhe e puxo as rédeas com mais força.

Ele continua sem acelerar.

Vai mais devagar. Muito mais devagar.

E para.

Ficamos todos tensos. Sabemos o que isto significa.

Os burros têm um ouvido muito bom. O Henk ouve sempre os camiões antes de nós.

— Escondam-se — murmura o Gabriek.

Agora já todos ouvimos o camião à distância. Já sabemos o que fazer. Depois de andarmos na estrada há tanto tempo, aprendemos algumas coisas, incluindo que os camiões são por vezes conduzidos por bandidos perversos e por desertores criminosos.

Ou pior.

O Gabriek agarra nas rédeas do Henk e puxa a carroça para fora da estrada, para trás das árvores.

Eu salto para a carroça para ajudar a Anya.

— Desculpa aquilo de há bocado — diz ela. — Tens razão, há coisas com que temos de nos preocupar.

Olhamos um para o outro e depois ajudo-a a esconder-se debaixo de um cobertor.

Outra coisa que aprendemos na estrada é que muita gente tem uma ideia errada sobre as mulheres grávidas. Acham que as grávidas são fracas e fáceis de assaltar.

Essa gente não conhece a Anya.

Vindo de debaixo do cobertor, ouço um som familiar. A patilha de segurança de uma arma a ser destravada.

O Gabriek para a carroça atrás de uns arbustos. Salto para o chão e agacho-me ao lado dele. Espreitamos através dos arbustos para a estrada.

O camião parece mais próximo.

Por favor, digo silenciosamente. Que sejam só uns bandidos perversos ou uns criminosos desertores.

Ouço um zumbido alto. Uma libelinha enorme esvoaça ao pé da minha cara. Enxoto-a. Ela aterra no pescoço do Henk, num sítio onde o pelo é mais curto.

Apercebo-me do que acabei de fazer.

Não, imploro em silêncio. Não piques o Henk.

Ela pica.

O Henk zurra alto e desata aos saltos.

As rédeas fogem das mãos do Gabriek. Agarro-as quando passam por mim, o que me impulsiona para a frente, torcendo-me os óculos e arrastando-me pelo matagal. Sou picado por espinhos e chicoteado por trepadeiras. Mais valia ter deixado a libelinha picar-me.

Henk. — Ouço uma voz a gritar. — Para.

Não é a voz do Gabriek, mas a da Anya.

Parece que abrandamos um pouco. Vejo um tronco de árvore meio turvo a aproximar-se de mim. Rolo para um lado e prendo as pernas em volta do tronco com força. Os meus braços e pernas esticam-se dolorosamente, mas não largo as rédeas.

Paramos.

— Muito bem, Henk — diz a Anya.

Olho para cima, estreitando os olhos.

A Anya está montada no Henk, com a barriga enorme encostada ao pescoço dele. Deve ter saltado para cima dele.

— Anya — exclamo. — Não devias…

O Gabriek puxa-me para o chão e passa-me os óculos para a mão.

— Depressa — diz. — Todos. Escondam-se.

Tarde demais. Ponho os óculos mesmo a tempo de ver o camião passar na estrada. Quando passa, abranda. Estamos totalmente à vista. As caras dentro da cabina veem-nos claramente.

— Que treta — murmura a Anya. — A minha arma está na carroça.

Ficamos paralisados.

Olho fixamente para as caras do camião. Um homem e uma mulher, ambos mais novos do que o Gabriek.

Tal como o Zliv.

O homem veste um uniforme militar. A mulher não. Ambos nos olham fixamente.

O camião abranda e detém-se.

— Não é ele — murmura o Gabriek, apertando-me o ombro.

Está a dizer-me para não fugir. Fugir faz-nos sempre parecer culpados. Os soldados atiram quando fugimos.

O homem e a mulher saem do camião.

Espreito em volta à procura de uma arma qualquer.

Não podemos ter a certeza de que não é o Zliv. Nunca o vimos. Qualquer pessoa pode roubar um camião do exército. E se uma mulher tiver muita fome, é bem capaz de viajar com um assassino impiedoso pelo tempo que ele quiser.

Lembro-me de outra história sobre o Zliv que ouvi. Sobre uma namorada que ele tinha na Croácia. Um dia, ela brincou com o facto de ele ser muito mais magro do que o irmão. O Zliv ficou furioso. E fê-la também muito mais magra. Com uma faca.

— Vou buscar a arma — murmura a Anya.

— Quieta — sibila o Gabriek.

A mulher vem na nossa direção. O homem vem atrás dela, apressando-se para a acompanhar.

Por um segundo, parece-me que a mulher está a tentar afastar-se dele. Depois, percebo o que ela está a fazer.

Olha-me diretamente. Com uma expressão estranha. Como se me reconhecesse. Como se me conhecesse.

O que é muito estranho, porque acho que nunca a vi antes. Seria uma das freiras do orfanato onde estive escondido há muito tempo? Ou uma das resistentes com quem vivi na floresta?

Não me parece.

A mulher já está bem perto.

De repente, para. A sua cara transforma-se com a desilusão. Faz uns movimentos de desculpa com as mãos, vira-se e apressa-se em sentido contrário, para o camião.

O homem hesita, olhando para nós.

Não é o Zliv. Um assassino impiedoso não teria uma expressão tão preocupada.

— Engano — diz ele. — Ela pensou… desculpem, o meu polaco é mau.

O seu uniforme parece meio inglês.

— Eu falo inglês — digo.

Isto é um pouco exagerado. Tenho andado a aprender, mas ainda não o utilizei em situações militares perigosas.

O homem olha para mim, surpreendido. Depois muda para o inglês, mas com um sotaque esquisito.

— A minha amiga fez confusão — diz ele. — Pensava que eras alguém de quem ela cuidou no hospital. Desculpem ter-vos assustado. Adeus.

Enquanto eu tento perceber o que aquelas palavras querem dizer, o homem vira-se e dirige-se para o camião. A mulher já está lá dentro. O homem entra e continuam o seu caminho.

Apercebo-me de que estou a tremer. Doem-me os músculos. Isto acontece quando nos mantemos prontos para fugir. Ou para lutar.

Olho para o Gabriek e para a Anya. Vejo que estão a sentir o mesmo.

— Tivemos sorte — diz o Gabriek.

— Eles é que tiveram — responde a Anya.

Tem a arma na mão.

Concordo com o Gabriek. Foi uma sorte. Desta vez não era o Zliv, mas podia ter sido. Mesmo com a arma da Anya, se ele tivesse conduzido a acelerar na nossa direção com uma metralhadora na janela…

O Gabriek está a olhar para mim.

Provavelmente percebe no que estou a pensar.

— Gabriek — digo. — Acho que temos de fazer um novo plano para a nossa vida futura.

Não sabia que ia dizer aquilo. Saiu-me. Mas, depois de o dizer, era o que eu queria.

— Um novo plano? — pergunta o Gabriek. — Que tipo de novo plano?

— O Zliv anda atrás é de mim — digo. — Por isso, será mais seguro se eu viver sozinho. Vou procurar um lugar aqui na região. Assim, se o Zliv me encontrar, pelo menos tu e a Anya não estarão lá.

Vejo que o Gabriek não gosta da ideia. E da forma como a Anya me fixa, também não.

Eu próprio não gosto muito dela.

Faz-me sentir agoniado.

Mas é o melhor a fazer.

— Podemos continuar a ver-nos — prossigo. — Podemos marcar encontros secretos na floresta. Várias vezes por semana, se quisermos.

A minha voz fraqueja, o que não é a melhor forma de convencer seja quem for acerca de um novo plano, desagradável mas necessário.

— Felix — murmura a Anya. — Para com isso.

O Gabriek só me olha.

Vejo que está muito comovido. E chateado.

Quando finalmente fala, a sua voz não fraqueja nada.

— És uma pessoa notável, Felix — diz ele. — Corajoso e generoso. Mas esqueces-te de algumas coisas. Foi a Anya que rebentou com o camião do Gogol e fui eu que o matei.

— Exatamente — concorda a Anya. — Por isso, o Zliv quer tanto apanhar-nos como a ti, Felix.

— Não, não quer — respondo. — Vocês ouviram o que as pessoas diziam na cidade. O Zliv culpa-me a mim pela morte do irmão. Grandes conversas e discussões sobre como, se eu não tivesse metido o nariz onde não era chamado, o Gogol ainda hoje estaria vivo.

O Gabriek fecha os olhos.

Quando ele o faz, exceto quando é para dormir, é porque ouviu alguma coisa com que discorda tanto que o seu sistema cardiovascular e o seu trato digestivo começam a doer-lhe.

— É o melhor — balbucio.

O Gabriek abre os olhos e encara-me.

— Estamos juntos nisto — diz.

Quero contrapor.

Quero dizer-lhe que estarmos juntos nisto significa tentarmos manter-nos seguros uns aos outros. Protegermo-nos uns aos outros.

Mesmo que isso signifique não estarmos literalmente juntos.

Mas não digo nada. A expressão no rosto do Gabriek diz-me que seria uma perda de tempo.

O Gabriek dá-me outro apertão no ombro.

— Anda daí — diz. — Vamos para a quinta.