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Talvez o Neal não possa entrar na plataforma sem bilhete. Talvez esteja à nossa espera do outro lado da barreira.

— Ei — diz o inspetor que está à saída da barreira. — Estes bilhetes já têm uma semana.

— Desculpe — digo-lhe. — Tivemos de interromper a viagem. Foi o bebé. Sabe como é.

Espero que saiba. Vejo umas manchas de baba desmaiadas no ombro dele, mas também podem ser dele próprio.

O inspetor olha severamente para a Anya e para a Ruby.

A Ruby gorgoleja e a Anya sorri amigavelmente.

— Se quiser prender alguém — diz o Gosling —, prenda-me a mim. Se tiver de ser.

O inspetor parece tentado, mas manda-nos a todos embora com um gesto da mão. E ali, do outro lado da barreira, está o Neal.

— Olá — diz ele.

Depois para e olha, arregalado.

— Esta é a Ruby — digo-lhe.

— Olá, Ruby — diz o Neal.

Eu tinha percebido ao telefone a preocupação dele com a Anya e a Ruby. Tinha-lhe dito para se focar nas coisas boas, mas ele nem me ouviu.

Agora parece bastante aliviado.

— Parabéns, Anya — diz ele. — As pessoas vão gostar muito de te conhecer e à pequena Ruby.

Uma senhora sorridente, de cabelo grisalho, aproxima-se e aperta a mão da Anya, depois a do Gosling e depois a minha.

— Que bom conhecer-vos — diz ela em polaco.

— Dona Prejenka — digo.

Às vezes podemos ter uma altura, uma forma e uma idade diferente, e mesmo assim parecermo-nos muito com alguém.

— Já ouvi muitas coisas sobre vocês todos — diz a D. Prejenka. — Ou melhor, já li muito.

Mostra vários exemplares de um jornal.

Disse a última parte em inglês. Acho que foi para o Neal perceber. O jornal deve ser aquele em que ele trabalha.

Meto a mão na camisa para sentir o envelope onde tenho a carta da Celeste.

— Devem estar esgotados — diz o Neal. — Vamos tomar um chá. Temos muita conversa para pôr em dia.

— E depois disso — diz a D. Prejenka —, vêm todos para minha casa. Para descansarem.

Olha para o Gosling.

— E para tomarem banho. Não é uma casa grande, mas espero que fiquem enquanto quiserem.

Agradecemos-lhe muito. Depois de uma semana a dormir no chão duro da sala de espera, uma casa a sério parece maravilhoso.

O Neal tem razão, estamos todos esgotados, por isso agrada-me a ideia do chá.

O que já não me agrada tanto é o olhar de relance que ele me deita quando nos dirigimos para a cafetaria da estação. Como se estivesse preocupado com algo que tem de me dizer.

A D. Prejenka pousa lentamente a carta da Celeste na mesa do café e olha-nos com lágrimas nos olhos.

— O Neal tinha-me dito que a minha filha estava viva — diz ela. — Mas agora tenho mesmo a certeza.

— A Celeste quer muito voltar a vê-la — digo-lhe.

A D. Prejenka inclina-se e dá-me um beijo na cara.

— Obrigada, Felix — sussurra.

— Ontem enviei um telegrama à Celeste — diz o Neal. — Ao cuidado do Piloto Tenente Aviador Wagstaff, da base aérea da Polónia. Dei-lhe o número do telefone do meu jornal e disse-lhe que ela pode ligar a cobrar.

Os olhos da D. Prejenka brilham.

— Obrigada — diz.

— Sendo mãe dela — diz o Neal —, deve ser a senhora a dar-lhe as boas notícias. Que ela poderá vir assim que os barcos dos migrantes começarem a navegar.

Fico a olhar para o Neal.

Ele deve estar a falar do Gabriek também.

— Ainda não é oficial — diz o Neal à D. Prejenka. — Mas o governo australiano está a planear uma nova política. Quer aumentar a população. Quer trazer muita gente para ajudar a desenvolver a Austrália do futuro. Gente qualificada, como a Celeste.

— E o Gabriek — digo.

— Se é a pessoa que te criou — diz o Neal, rindo-se para mim —, eu diria que ele é muito qualificado.

O Neal dá-me um dos jornais que a D. Prejenka tinha na mão. Está aberto numa página que tem um grande artigo. No meio do artigo está a fotografia do jornal local, comigo e o Gosling com as t-shirts de críquete.

— Publicámos isto há uns dias — diz o Neal.

— Lê — diz a Anya. — Está brilhante.

Ela e o Gosling estão a ler num dos outros exemplares da D. Prejenka. Enquanto eu falava com o Neal, ouvia o Gosling a ajudar a Anya com algumas palavas inglesas.

Estudo o artigo.

O Neal escreveu sobre tudo o que eu e a Anya lhe contámos. As nossas experiências de guerra e a nossa viagem para aqui e o meu sonho de estudar Medicina na Universidade de Melbourne e tudo o resto.

— Pensava que o governo australiano queria manter o acidente do avião secreto — digo ao Neal.

— E queria — diz o Neal. — Mas o meu editor decidiu publicar os pormenores, quer eles gostassem quer não. Por isso, o governo decidiu que havia um lado positivo nesta história. E esse lado positivo, Felix, és tu.

— Eu? — pergunto.

— Felix Salinger, o primeiro migrante pós-guerra na Austrália — diz o Neal. — Abrindo caminho para os milhares que vão seguir-se. Mostrando ao povo australiano como esta é uma grande ideia.

Estou estupefacto.

Enquanto ainda estou a absorver a ideia, fico um pouco preocupado que a Anya se sinta posta de lado.

Olho-a de relance.

Ela olha-me por trás da cabeça da pequena Ruby. Um daqueles olhares agradecidos que ainda me fazem corar, mas já não tanto.

Vou estar um bocado ocupada, diz-me o olhar dela. Não te importas de assumir?

Tenho muita sorte por ela ser minha amiga.

— Felix — diz o Neal —, amanhã vamos fazer uma sessão fotográfica especial. Na Faculdade de Medicina da Universidade de Melbourne. O meu editor quer um artigo de continuidade sobre os teus planos para seres médico. Com muitas fotografias.

O Neal faz uma pausa e eu percebo que há realmente qualquer coisa que ele está com dificuldade em dizer-me.

— Em particular — continua ele —, quer fotografias tuas numa aula com estudantes de Medicina. Com muita ciência médica a acontecer. E pode haver partes de corpos. Conseguirias aguentar isso?

O Gosling engasga-se a rir.

— O Felix aguenta, sim — diz ele. — Havia de vê-lo a dissecar um porco.

O que não estou a aguentar tão bem é que o Neal, depois de pagar o chá a toda a gente, me leve lá para fora para ver uma locomotiva especial.

Não me interesso especialmente por locomotivas. Mas interessa-me que o Neal tenha aquela expressão no rosto outra vez, como se houvesse mais alguma coisa que tem receio de me dizer.

Entrega-me um pedaço de papel rasgado de uma folha de jornal.

— Publicámos isto ontem — diz ele.

São só alguns parágrafos e parece ser do fundo da página do jornal.

Leio-o.

É sobre um guarda de uma base aérea próxima de Sydney ter sido encontrado, há dois dias, com a garganta cortada.

Leio-o mais duas ou três vezes, depois dobro-o e devolvo-o ao Neal.

— Pode não ser nada — diz ele. — Mas, para ter a certeza, contactei aqueles senhores Chase e Petrie de quem me falaste. Tipos difíceis de encontrar. Por isso, deixei uma mensagem. Ainda não responderam.

— Provavelmente não é nada — digo, sentindo-me agoniado.

— É uma coincidência — acrescenta o Neal.

— Com certeza — digo.

Digo a mim próprio para parar de ser tonto.

Guardas militares devem passar a vida metidos em zaragatas. A discutir sobre dinheiro ou álcool ou namoradas ou críquete. E provavelmente preferem lutar com navalhas do que com armas de fogo para não serem ouvidos pelos oficiais superiores.

De qualquer forma, Sydney fica a centenas de quilómetros de distância.

— Estás bem, Felix? — pergunta o Neal.

Aceno.

Não digo mais nada, porque, às vezes, ensinou-me o Gabriek, temos de nos concentrar na coisa mais importante.

E eu não quero que o Neal fique preocupado e cancele a sessão fotográfica de amanhã. Quero aparecer em muitas fotografias do governo australiano para garantir que o Gabriek e a Celeste têm lugar no primeiro barco disponível.

Depois disso, haverá muito tempo para preocupações.