Gustavo
Uma voz de morte

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

No início de setembro, dois meses antes dos acontecimentos da granja francesa, Clara chegou a Roma sob a escolta de Pietro.

 

 

Ir embora de suas montanhas foi uma dor que a glória das paisagens cruzadas não conseguiu apaziguar. Até onde iam suas lembranças, ela sempre sofrera quando tinha de voltar para a casa da paróquia; toda vez passava pela horta fechada, antes de empurrar a porta da cozinha; e como aquele cantinho plantado de belas árvores lhe era tão necessário como o ar, temia os muros da cidade mais que qualquer outro flagelo de seus sonhos. Na verdade, era evidente que, até ali, nenhum humano soubera tocar sua alma como a montanha, de modo que a neve e as tempestades viviam dentro de um coração ainda igualmente aberto à felicidade e aos sortilégios da desgraça. Ora, à medida que eles iam avançando rumo à cidade, esse coração sangrava. Ela não descobria apenas uma terra que capitulara sob o sepultamento das pedras, mas também o que tinham feito com aquelas próprias pedras, que subiam rumo ao céu como massas lisas e retilíneas e tinham parado de respirar sob a investida que as mutilara para sempre. Assim, na escuridão nascente que punha para fora uma humanidade alegre inebriada com o retorno das brisas mornas, Clara contemplava apenas um amontoado de pedras mortas e um cemitério onde se enterravam voluntariamente os vivos.

 

 

O comboio ia avançando para o alto de uma colina onde se cruzava pouca gente e onde ela podia respirar um pouco melhor. Ao longo de toda a estrada, Pietro cuidara de seu conforto mas não procurara lhe falar de outra maneira, e ela se calara, como assim fazia todos os dias, com o espírito concentrado nas encostas, pautas de música e notas. Fizeram enfim uma parada diante de uma grande residência de muros marrons muito altos, depois de pinheiros esguios que brotavam das alamedas de um pátio interno e ultrapassavam o muro, como uma fonte imóvel. No alto dos muros havia madressilvas, que caíam em crepitações perfumadas sobre os paralelepípedos da rua, e as janelas lançavam ao crepúsculo suas longas cortinas transparentes. Fizeram-nos entrar num imenso vestíbulo onde Pietro a deixou, antes que a guiassem por aposentos gigantescos de paredes e superfícies submersas por quadros e esculturas, para os quais ela olhou com um espanto logo transformado em esperança, quando ela compreendeu que aquela estranheza a consolaria talvez do luto de suas montanhas. Finalmente, abriram uma porta que dava para um quarto branco e nu, com um único quadro na parede. Deixaram-na sozinha dizendo-lhe que logo iriam preparar seu banho e trazer seu jantar, que todos dormiriam cedo por causa do cansaço da viagem e que iriam buscá-la bem cedinho para levá-la ao Maestro. Ela se aproximou do quadro, em meio a uma curiosa desordem de reverência e receio. Eu te conheço mas não sei como. Passou-se um longo momento. Depois, alguma coisa mudou no éter do quarto e um leve transe assaltou Clara, que se concentrava nos estratos da pintura que agora ela já não via nas duas dimensões do plano mas numa profundidade nova que lhe abria a porta das quadras do sonho. Já não sabia se dormia ou se estava acordada, enquanto o tempo passava no mesmo ritmo que as nuvens muito altas num azul de tinta preta e de prata. Talvez tenha dormido, pois a cena mudou e ela entreviu uma mulher rindo na noite de um jardim estival. Não conseguia distinguir seu rosto mas a mulher era jovem, certamente, e muito alegre depois desapareceu e Clara não viu mais que as ondas de tinta movente, até mergulhar num último sono sem visões.

 

 

Vamos ver o Maestro disse-lhe Pietro no dia seguinte. Não é um homem fácil mas você tocará e isso bastará.

O gabinete de ensaios do Maestro Gustavo Acciavatti ficava no último andar de um belo prédio com janelas grandes por onde se espalhava um dia que transformava o soalho em lago de luz líquida. O homem sentado diante do teclado do piano parecia a um só tempo muito jovem e muito velho, e Clara, cruzando seu olhar, pensou numa árvore até a qual ela ia quando se sentia triste. Suas raízes mergulhavam fundo na terra mas seus galhos eram tão vigorosos quanto ramos jovens, e a árvore era muito vigilante, observando e se refletindo nos arredores, a ponto de escutá-la sem que ela precisasse falar. Ela poderia descrever a forma de cada pedra de seus caminhos e desenhar de memória todos os galhos de suas árvores, mas os rostos passavam diante dela como num sonho, antes de se fundirem numa confusão universal. Ora, aquele homem que a olhava em silêncio era tão presente e intenso para ela quanto suas árvores, e ela conseguia distinguir o grão de sua pele e as irisações de seus olhos num deslumbramento que quase doeu. Ficou em pé diante dele. Eu te conheço mas não sei como. A revelação de que ele sabia quem ela era dilacerou o espaço de sua consciência e depois se dissipou, no mesmo instante. De repente, ela observou num canto da sala uma forma amassada numa cadeira. Seu olhar fora atraído por um gesto e ela teve a impressão de ver um homem, pequeno, e, pelo que podia julgar, levemente barrigudo. Ele tinha cabelos ruivos e roncava, com a cabeça inclinada sobre o ombro. Mas como ninguém prestava atenção nele, ela também o ignorou.

 

 

Depois o Maestro falou.

Quem te ensinou música? perguntou.

Alessandro ela respondeu.

Ele alega que você aprendeu sozinha ele disse. Mas ninguém aprende em um dia. Foi o padre que te deu aulas?

Ela fez que não com a cabeça.

Alguma outra pessoa da aldeia?

Não minto ela disse.

Os adultos mentem ele respondeu e as crianças acreditam neles.

Então o senhor também pode mentir ela disse.

Sabe quem eu sou?

O Maestro.

O que você quer tocar?

Não sei.

Ele lhe fez sinal para ocupar seu lugar, regulou o banquinho, sentou-se a seu lado e abriu a partitura no cavalete.

Vamos, toque disse , toque, agora. Virarei as páginas.

 

 

O olhar de Clara varreu depressa e intensamente as duas páginas abertas da partitura um piscar de olhos, dois, três e uma expressão indecifrável passou pelo rosto do Maestro. Depois ela tocou. Tocou tão lentamente, tão dolorosamente, tão perfeitamente, tocou com uma lentidão tão infinita, uma suavidade tão infinita e tamanha perfeição, que ninguém conseguiu falar. Parou de tocar e ninguém conseguiu falar. Não conheciam nenhum adulto que soubesse tocar assim aquele prelúdio, porque aquela criança tocava com uma tristeza e uma dor de criança mas uma lentidão e uma perfeição de homem maduro, quando ninguém, entre os adultos, conseguia mais alcançar o encantamento do que é jovem e velho ao mesmo tempo.

 

 

Depois de um longo silêncio, o Maestro lhe pediu para se sentar em seu lugar e tocou o primeiro movimento de uma sonata. No final, introduziu uma ínfima modificação. Ela fixava um ponto cego diante de todas as visões. Ele lhe pediu para tocar de novo o que tinha ouvido. Assim ela fez. Ele foi buscar a partitura. Ela seguiu o que estava escrito, não introduziu nenhuma modificação mas, no momento de atacar o compasso, levantou a cabeça e olhou para ele. Depois trouxeram uma profusão de outras partituras que exibiram para ela. Clara as abriu, umas depois das outras, com um piscar de olhos, dois, três, e todos morriam e renasciam a cada batida, numa avalanche de flocos escapados de um sonho esquecido. Finalmente, tudo pareceu se imobilizar num grande silêncio vibrante. Um único piscar, e Clara fixou as páginas de uma partitura vermelha e velha, tão fremente que todos fremiram com um frêmito que perfurava um abismo em si mesmo. Foi para o grande piano e tocou a sonata russa que a arrebatara na vertigem dos cumes; e souberam que era assim que os homens deviam viver e amar, nesse furor e nessa paz, com essa intensidade e essa fúria, num mundo varrido de cores de terra e de tempestade, num mundo que se torna azul com a aurora e escurece sob o temporal.

Passou-se um instante. Eu te conheço mas não sei como.

 

 

Bateram discretamente à porta.

Sim? disse o Maestro.

O Governador Santangelo responderam.

 

 

Clara ficou sozinha na sala, em companhia do gordinho de cabelo ruivo que não se mexera e não parecia dar sinal de acordar. Foram lhe levar chá e frutas desconhecidas com uma casca como um veludo alaranjado, e lhe deram outras partituras insistindo que o Maestro pedira para ela tocar só uma. A primeira lhe causou o efeito de uma profanação e ela logo a fechou, repugnada por pautas de música que pareciam as efusões roncantes do órgão nos ofícios dos mortos. Nenhuma outra lhe causou o mesmo efeito mortífero, mas ela abriu muitas sem encontrar o que a transtornara tanto como a sonata russa e, em Santo Stefano, como o último trecho que Sandro colocara diante dela na igreja. Afinal, chegou a um libreto fino cuja primeira página rodopiou no ar arabescos de um gênero desconhecido. Ali podia seguir curvas que voavam como plumas e tinham a mesma textura da casca aveludada das belas frutas. Antes, quando tocara a sonata russa, tinha sido um fausto de árvores com folhas de prata, a que se haviam misturado grandes pradarias secas cruzadas por rios e, bem no final, ela tivera a visão de uma ventania num campo de trigo cujos colmos eram esmagados sob as borrascas antes de renascerem num movimento que gritava como um animal. Mas essa música nova fazia entrar na equação das paisagens uma amabilidade de cintilação idêntica à dos relatos de Alessandro, e ela sentia que só mesmo raízes profundas para que tamanha leveza fosse possível, perguntando-se se algum dia conheceria os alpendres sorridentes em que aquela afabilidade nascera pelo menos agora sabia que existiam terras onde a beleza nascia em meio à doçura, quando na verdade sempre conhecera apenas a aspereza e a grandeza, e amou tudo isso no momento em que descobria o gosto da fruta desconhecida pelo encontro de uma música que contava a terra dessa fruta. Quando terminou a peça, ficou um instante a sonhar com continentes estranhos e viu-se sorrindo na solidão de meio-dia.

 

 

Uma hora se passara nesse devaneio luminoso quando sons abafados lhe chegaram da sala ao lado. Houve uma efervescência na qual reconheceu a voz do Maestro que acompanhava o visitante, depois ouviu uma voz estrangeira e, embora suas palavras fossem inaudíveis, ela se levantou com o coração disparado, pois era uma voz de morte fazendo advertências que ela entendeu como dobres e para onde quer que olhasse nesse quadro de desordem, ficava paralisada diante da visão de uma sombra em forma de biombo sobre uma extensão de terror e de caos. Em suma, aquela voz era duplamente assustadora porque também era bela, e aquela beleza vinha de uma energia antiga atualmente extraviada. Eu te conheço mas não sei como.

 

 

É preciso reconhecer que você não é maneta disse uma voz atrás dela.

O ruivinho se levantara, pelo visto a duras penas, pois cambaleava ao se aproximar e passava uma mão insegura pelos cabelos. Tinha o rosto redondo, um queixo duplo que lhe dava um ar infantil, além de olhos vivos e brilhantes que, naquele momento, pareciam meio estrábicos.

Eu me chamo Petrus disse inclinando-se diante dela e, em seguida, se largando no soalho.

Ela o olhou, estarrecida, enquanto ele se levantava com dificuldade e, ato contínuo, reiterava a saudação.

O Maestro não é fácil, mas essa corja é maléfica ele disse quando se recompôs.

Ela entendeu que ele falava da voz de morte.

Conhece o Governador? ela perguntou.

Todo mundo conhece o Governador ele respondeu perplexo.

Depois, sorrindo para ela:

Sinto muito por estar tão pouco apresentável. Nós não toleramos muito bem o álcool, é uma questão de constituição. Mas o moscatel do jantar estava divino.

Quem é você? ela perguntou.

Ah, é verdade ele disse , não nos apresentaram.

E inclinou-se pela terceira vez.

Petrus, para servi-la disse. Sou uma espécie de secretário do Maestro. Mas desde hoje de manhã sou, sobretudo, seu acompanhante.

Depois, sorrindo contrito:

Concordo com você que estar de ressaca não traz o melhor augúrio para um primeiro encontro. Mas farei o possível para me tornar agradável, tanto mais que você toca muito bem.

 

 

Assim passaram-se os primeiros dias em Roma. Ela não esqueceu a voz de morte, embora estudasse sem descanso e sem se preocupar com o exterior. Acciavatti lhe dissera para ir de manhã cedinho ao gabinete deserto para que ninguém ficasse sabendo da existência de uma menina prodígio que ele pegara como aluna.

Roma gosta dos monstros dissera-lhe e não quero que faça um de você.

Todo amanhecer, Petrus ia buscá-la em seu quarto e a levava pelas ruas silenciosas. Em seguida, ia embora para a Vila Volpe, onde ela o encontrava no almoço: depois, a deixava na sala do pátio onde havia um piano para o estudo e onde ela se exercitava até o jantar, que se dava em sua companhia e na de Pietro. Às vezes o Maestro ia encontrá-los depois da ceia e estudavam mais ainda, antes de se deitarem. Clara estava surpresa com a indulgência que Acciavatti e Pietro demonstravam com Petrus. Eles o cumprimentavam com amizade e não prestavam atenção em seu comportamento estranho. No entanto, não se podia dizer que ele desse provas de muita correção; quando ia acordá-la de manhã, estava sem fôlego, de cabelo desgrenhado e olhos embaçados; ela já não acreditava que o moscatel do primeiro dia tivesse sido uma exceção, pois era comum ele tropeçar nos tapetes, e nas horas de estudo se afundava numa poltrona e dormia babando ligeiramente; de vez em quando soltava uns grunhidos indistintos; quando acordava, parecia surpreso de estar ali. Depois, tentava repor o mundo nos trilhos, puxando com convicção o paletó ou as calças, mas em geral não conseguia nada de conclusivo e acabava desistindo, com o nariz pendendo para o chão. Por fim, quando se lembrava de que ela estava ali e queria lhe falar, devia recomeçar duas vezes pois o que saía primeiro vinha sem vogais. Ainda assim, ela gostava bastante dele, sem entender realmente o que ele fazia a seu lado, mas a nova vida de pianista absorvia tão completamente sua energia que pouco sobrava para os outros aspectos de sua existência romana.

 

 

As aulas com o Maestro não lembravam nada do que ela imaginara. Quase o tempo todo, ele falava com ela. Se dava partituras, nunca lhe dizia como tocá-las. Mas em seguida lhe fazia perguntas às quais ela sempre sabia responder, pois ele não queria saber o que ela pensara, mas o que tinha visto. Como ela havia dito a ele que a sonata russa lhe despertara imagens de planícies secas e rios de prata, ele lhe falara das estepes do Norte e da imensidão daquelas paragens de salgueiros e gelo.

Mas a energia de um gigante desses é tão grande quanto sua lentidão, e é por isso que você tocou tão lentamente.

Também a interrogava sobre sua aldeia natal, e ela descrevia as escapadas entre dois tetos de telhas por onde se viam os cumes que ela conhecia de cor, em cada recorte e cada pico. Gostava dessas horas com ele, a tal ponto que, no início de novembro, dois meses depois de sua chegada a Roma, o sofrimento por suas montanhas perdidas já não era insuportável. No entanto, o Maestro não lhe manifestava nenhum afeto especial, e ela tinha a sensação de que suas perguntas não visavam o aprendizado, mas a preparavam para algo cuja compreensão só ele possuía, assim como ela formava por intermitência a intuição de que ele já a conhecia, embora só tivessem se encontrado naquele setembro. Um dia, quando estudavam uma partitura terrível de tão maçante e ela demonstrou seu estado de espírito acelerando absurdamente a interpretação, ele lhe disse, irritado:

Ah, agora te reconheço.

Ela perguntou o nome das frutas do primeiro dia e disse:

Então prefiro que me dê uns pêssegos.

Ele olhou para ela mais irritado ainda, mas pôs diante dela uma partitura dizendo estas palavras:

Para desgraça dele, este homem era alemão, mas ainda assim entendia de pêssegos.

Tocando e tocando de novo com as volutas aéreas do prazer, ela meditara sobre o que percebera por trás da irritação do Maestro, um ímpeto que se dirigia a alguém cuja silhueta vaporosa pairara brevemente na atmosfera da sala. E se os dias seguintes foram semelhantes aos precedentes, traziam a marca nova dessa interpelação a um fantasma.

 

 

Também era muito frequente que ele fosse encontrá-la junto a Pietro, depois do jantar. O piano ficava na grande sala do pátio e enquanto estudavam deixavam as janelas abertas para o ar fresco das noites. Pietro os ouvia, fumando e bebendo licores, mas não falava antes do fim da aula. Da mesma maneira, Petrus cochilava ou roncava numa grande bergère até que o piano se calasse e o silêncio o acordasse. Então, ela os ouvia conversando, lendo ou devaneando, e depois a levavam de volta para o quarto, enquanto ficavam confabulando na noite, e através do pátio adormecido o timbre de suas vozes ninava por muito tempo seu sono. Assim, numa noite de meados de novembro em que tinham deixado fechadas as portas-janelas, pois chovia muito, Clara os ouvia conversarem, enquanto folheava partituras que tinham levado para o estudo. Ela ouviu Acciavatti dizer: mas eles acabarão por tocá-la no ritmo certo, e depois ela abriu uma velha partitura amassada.

 

 

Com tinta preta alguém escrevera duas linhas na margem das primeiras pautas.

 

la lepre et il cinghiale vegliano su di voi quando camminate sotto gli alberi

i vostri padri attraversano il ponte per abbracciarvi quando dormite*

 

Passou-se um instante num grande vazio de sensações, e Clara viu uma bolha de silêncio propagar-se na velocidade das ondas antes de explodir numa apoteose muda. Releu o poema e já não se produziu deflagração, mas algo mudara, como se o espaço tivesse se multiplicado e além de uma fronteira invisível houvesse um país a que ela desejasse ir. Embora desconfiasse de que a partitura não tinha ligação nenhuma com essa magia, mesmo assim foi até o piano e tocou o trecho, que apenas lançou no ar um perfume de correntezas e terra molhada e um mistério em forma de rastros arborizados e emoções roubadas.

 

 

Quando levantou os olhos depois da última nota, viu diante de si um homem que não reconheceu.

De onde vem essa partitura? perguntou-lhe o Maestro.

Ela apontou para a coleção que tinham lhe trazido mais cedo, por ordem dele.

Por que você a tocou?

Li o poema ela disse.

Ele contornou o piano e foi olhar por cima de seu ombro. Ela sentiu o sopro de sua respiração e as ondas de emoções mescladas. Ao vê-lo na luz abrupta que essa surpresa jogava sobre o palco de seus sentimentos, foi atingida pelas imagens que desfilavam em transparência a partir de sua silhueta alta primeiro uma companhia de cavalos selvagens cujo rumor ela ouviu muito tempo depois que eles se afastaram, depois, nas sombras de um matagal rasteiro com alamedas douradas pelos raios de sol, uma grande pedra colocada sobre o musgo, cujos ângulos e concavidades e todas as fissuras nobres tinham nascido da obra conjunta dos dilúvios e dos séculos, e ela sabia que aquela pedra magnífica e viva era o próprio Maestro, pois o homem e a rocha, numa inexplicável alquimia, se sobrepunham perfeitamente. Por fim, as imagens se esvaneceram e ela se viu de novo diante de um homem de carne e de sangue, que olhava para ela com gravidade.

Sabe o que é a guerra? ele perguntou. Sim, claro, sabe… Infelizmente, há uma guerra chegando, uma guerra mais longa e ainda mais terrível que as anteriores, desejada por homens mais fortes e mais terríveis ainda que no passado.

O Governador disse Clara.

O Governador ele disse e outros mais.

É o diabo? ela perguntou.

De certa forma, sim ele disse , você pode dizer que é o diabo, mas o nome não é o mais importante.

Uma órfã que fora criada na casa da paróquia de uma aldeia de montanha já tinha ouvido falar do diabo, e não havia ninguém em todos os Apeninos que não conhecesse as batalhas que ali tinham sido travadas e não fizesse o sinal da cruz diante da evocação dos que lá morreram. Mas além dos relatos de sua infância, Clara acreditava entender de onde vinha o desejo de guerra do diabo. Que se vivesse em túmulos enfileirados uns ao lado dos outros lhe parecia suficiente para explicar as manobras da voz de morte, e ela cogitava se a pedra viva que era o Maestro pensava o mesmo.

As guerras se passam nos campos de batalha, mas se decidem nas salas dos governadores, que são homens especialistas no manejo das ficções. Entretanto, há também outros lugares, e outras ficções… Quero que você me fale do que vê e do que ouve, dos poemas que lê e dos sonhos que tem.

Mesmo se eu não sei por quê? ela perguntou.

É preciso ter confiança nas músicas e nos poemas ele respondeu.

Quem escreveu o poema? ela também perguntou.

Um membro da nossa aliança.

E, depois de um longo silêncio:

Posso apenas te dizer que ele está destinado a você. Mas eu não pensava que você pudesse lê-lo tão cedo.

Nesse instante, ela viu que Pietro procurava o poema na partitura, e pela maneira como ele os olhou, entendeu que não tinha encontrado.

Então Gustavo Acciavatti, à sua frente, sorriu para ela.

 

 

Logo Petrus a levou de novo para o quarto, cujas janelas tinham sido fechadas pois as lanças de água continuavam a fazer um concerto com sua barulheira obstinada.

Não me deixam fazer meu trabalho ele lhe disse na hora de se despedir.

Seu trabalho? ela perguntou.

Meu trabalho disse Petrus. Eles todos são tão sérios e tão frios. Estou aqui porque sou sentimental e tagarela. Simplesmente te fazem tocar o dia inteiro e à noite te chateiam com guerras e alianças.

Coçou graciosamente o crânio.

Eu sou dado à bebida e talvez não seja muito esperto. Mas eu, pelo menos, sei contar uma história.

Foi-se embora e ela dormiu, ou pelo menos pensou que tinha dormido, até que, com uma clareza que não se preocupava com as paredes e as persianas fechadas, ouviu Pietro dizer do outro lado do pátio:

A menina tem razão, é o diabo.

E a voz do Maestro que lhe respondeu:

Mas o próprio diabo, quem então o enganou?

Depois ela pegou no sono, de vez.

 

 

Foi uma noite estranha e um sono estranho. Os sonhos tinham uma acuidade desconhecida que os tornava visões mais do que quimeras da noite. Ela conseguia percorrer as paisagens com o olhar, assim como abarcamos uma terra que está diante de nós, e se viu explorando os caminhos de um campo desconhecido como se estivesse seguindo pelas passagens de suas ladeiras. Embora não se vissem montanhas, havia naquela região um encanto penetrante; ela sentia a força de terrenos prósperos e saboreava a diversidade de suas árvores. Se sua amenidade não lembrava a dos belos pêssegos, tinha uma forma de leveza que se ignora na montanha, e isso dava, no final, um equilíbrio que transtornava Clara, um vigor sem aspereza, uma exigência que, bem no fundo, sorria, tanto assim que em dois meses ela vira todo o espectro das geografias, as belas terras de lavoura, os pêssegos aveludados do prazer e, no extremo oposto, suas montanhas rudes e altivamente erguidas. Mais ainda, ao admirar o arranjo cuidado dos terrenos cercados, tomou consciência de um encantamento invisível e poderoso, que superava os dotes das regiões de opulência e transformava a paisagem de árvores vigorosas e trilhas sombreadas numa aventura de folhagem e amor. Viu também uma aldeia a meia encosta de uma colina, com uma igreja e casas cujas paredes grossas expressavam a severidade dos invernos. Porém, sentia-se que na primavera começava uma bela estação que durava até as geadas do outono, e talvez fosse a ausência de montanhas, ou a profusão das árvores, mas se sabia que sempre chegava uma hora em que era possível descansar das labutas. Por fim, avistou sombras fugazes; nem silhuetas nem rostos; e elas passavam na indiferença, quando na verdade ela gostaria de ter perguntado qual era aquela aldeia e que frutas carregavam seus pomares.

 

 

Foi como uma flecha. Ela não sabia nem de onde surgira nem para onde fora, mas a viu disparar na sua frente e desaparecer na curva do caminho. Por mais fugaz que tivesse sido a aparição, cada traço se gravara nela com uma exatidão dolorosa que a fazia rever o rosto de íris escuras e feições magras e distintas, retesadas por uma pele dourada em que a boca despejava uma mancha de sangue. Procurou o rastro disso e descobriu a menininha na entrada de uma mata por onde avançava um grande cavalo cinza. O panorama inteiro se iluminou e ao campo gelado se sobrepôs uma paisagem de montanhas e brumas. Elas não se intercalavam mas se entrelaçavam como nuvens: viu panoramas que se enrolavam mas também climas que se fundiam, e fez um belo tempo e nevou sob uma tempestade lançada de cima de um céu claro. Então, um furacão abateu-se sobre a cena. Numa visão fulgurante que condensava as ações e os tempos, Clara avistou as grandes deformações da tempestade, os turbilhões perversos e as flechas pretas subindo ao céu no furor, enquanto uma velhinha brandia um cajado por cima de seu crânio descabelado. No instante em que o sonho resvalou para a vigília, viu também outra cena, em que a menina jantava na companhia de seis adultos que a cercavam com um halo furta-cor e sereno, no qual, pela primeira vez em sua vida, se encarnava a materialidade do amor. Por fim, tudo desapareceu e Clara ficou acordada no silêncio do quarto escuro. De manhã, contou ao Maestro o que vira no sonho. No final do relato, acrescentou o nome da pequena estrangeira pois ele lhe vinha num jato de evidência.

Gustavo Acciavatti, pela segunda vez, sorriu para ela.

Mas seu sorriso, desta vez, era triste.

Todas as guerras têm seus traidores ele lhe disse. Desde ontem, Maria não está mais em segurança.


* a lebre e o javali cuidam de vocês enquanto vocês andam sob as árvores/ seus pais atravessam a ponte para beijar vocês enquanto vocês dormem.