Maria
A lebre e o javali

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Depois das emoções do cavalo cinza e dos furacões ofensivos, a vida na granja retomara seu ritmo campestre repleto de caçadas, queijos salgados e corridas pelos bosques. Agora que o fato das belas estações fora validado pelas granjas e pelo campanário, todos podiam apoiar-se nisso mais tranquilamente, contemplando a neve macia que, naquele inverno, cobriu as terras no exato instante em que se pensava no corte de lenha nos bosques, saboreando inúmeras manhãzinhas que estalavam como biscoitos lançando traços rosa nos céus mais transparentes que o amor, salgando e pondo em conserva os belos pedaços de uma caça que parecia jamais se esgotar e, considerando tudo isso, não deixavam de balançar a cabeça ou trocar um olhar, e depois todos voltavam ao trabalho, sem outros comentários.

 

 

A respeito da caça, o pai fez um dia uma observação que levou Maria a franzir o cenho. Estavam jantando toucinho e beterrabas cozidas sob as cinzas, servidas com uma colher de creme misturado com sal grosso.

Os bichos estão mais fornidos mas a caça é mais reduzida ele disse.

Maria sorriu e depois tornou a afundar o nariz em seus vapores de beterraba. O pai era um homem dos campos, rude e pouco falante, que andava devagarzinho e nunca se apressava. Quando rachava os troncos, era num tal ritmo que toda a aldeia conseguiria passar à sua frente, mas como viam que a regularidade mesclada de tenacidade era mais notável ainda que a velocidade, era ele que as viúvas da terra solicitavam para cuidar de seus próprios cortes de lenha, e em troca ele pedia uma quantia módica, quando na verdade elas gostariam de lhe dar o quíntuplo. Ele cultivava a mesma cadência em todos os seus negócios, inclusive os da intimidade. Não manifestava grande tristeza diante dos sofrimentos e dos lutos que, no entanto, tinham sido terríveis, pois sua mulher e ele haviam perdido em tenra idade os dois filhos. E o sofrimento se mantivera cruel durante mais anos que o necessário. Felizmente, também era a mesma coisa com as alegrias, e Maria era a bênção de sua vida de homem maduro, embora isso nunca se traduzisse por demonstrações em que seu amor se concentrasse; em vez disso ele o dividia igualmente, da mesma maneira que capinava sua horta e lavorava sem pressa nem pausas, e assim desfrutava de tudo isso como de um presente que banhava uniformemente seus anos. Quando falava também tomava cuidado para que suas palavras não rompessem o equilíbrio das emoções mas desposassem naturalmente seus contornos. Tudo isso Maria sabia, e portanto respondeu apenas com um sorriso à observação de seu pai, a qual passou sobre o jantar como um voo de jovens tordos.

 

 

Mas ele estava certo: a caça se tornara mais reduzida. Para quem pudesse ter pensado que a abundância dos animais levaria ao júbilo de matar à vontade, os fatos tinham respondido com um surpreendente desmentido. Dessa generosidade que inundava seus bosques e lhes oferecia mais belas presas que a seus ancestrais, os homens da aldeia haviam concebido uma moderação que os levava a escolhê-las com cuidado. Nestes últimos invernos, tinham dado fim a certos festins em torno de javalis que desenterravam as batatas, enchido os porões com embutidos de reserva e recolhido seu dízimo de boa carne, mas não mais do que o necessário para reconstituir o corpo pelo custo de sua labuta. Mais ainda, tiveram a sensação de enviar os encarregados dos cães de caça mais como emissários do que como batedores e de mandá-los arrumar as posições com uma suavidade inabitual, que fazia da caça uma nova arte do intercâmbio. Ah, é claro que os homens não iam desentocar os bichos nas matas agitando uma bandeira branca e pedindo educadamente aos coelhos que se postassem diante das espingardas, mas mesmo assim: eles os desemboscavam com respeito e não enfrentavam mais bichos do que seria razoável. Na verdade, a observação do pai vinha do fato de que, naquela manhã mesmo, fora preciso expulsar do território comunal caçadores do cantão vizinho que, em escassez de caça, tinham ido de contrabando zanzar pelos flancos de nossas colinas. Lá haviam encontrado uma abundância de lebres e faisões, e até mesmo algumas camurças nas quais atiraram de emboscada, como uns selvagens, em meio a gargalhadas que deixaram os da aldeia repugnados e prontos para responder com uma chuva de chumbo. Mas o pior foi que desta vez o jogo não provocara a gloríola viril que é seu verdadeiro objetivo, porque nossos homens tiveram a sensação de uma profanação resumida muito bem por um deles (o Marcelot, como era de esperar) quando voltaram para as granjas, depois de terem expulsado todos os mercenários e controlado cada canto do menor bosque: hereges desgraçados, nenhum respeito pelo trabalho. Donde a observação do pai; mas Maria podia perceber que dos acontecimentos do dia ele tirara conclusões que iam além da indignação.

 

 

Pensando bem, em matéria de demonstrações de afeto Maria não sofria de carência, as mulheres do lugar eram tão pródigas nisso quanto nos padres-nossos e nas doses de leite com que tentavam incansavelmente fortalecer aquela menina muito magricela (mas tão bonita) que não se lembrava de um retorno à granja que não tivesse sido acompanhado de carne de porco desfiada e frita. Mas Maria adorava, sobretudo, os queijos de nossas vacas, e para grande desespero de Jeannette, a melhor cozinheira dos seis cantões, embirrava com os guisados de caça, os ensopados, e em geral com os pratos misturados. Ia até o forno e pegava sua parte da janta na forma de produtos separados: beliscava uma cenoura e grelhavam para ela um pedacinho de carne, que ela comia à parte, com uma pitada de sal e um pinguinho de segurelha. A única exceção que abria para esse regime de coelho selvagem vinha dos prodígios de Eugénie, que naquele recinto era dona das geleias e das decocções das belas flores. Mas quem seria capaz de resistir às suas obras? Levavam sua compota de marmelos para as comunhões solenes e até para os casamentos; todas as suas infusões pareciam infiltradas de magia; e isso era mesmo necessário para explicar os suspiros de satisfação que todos se permitiam dar no final da refeição. De resto, Eugénie era versada, acima de tudo, no conhecimento das plantas medicinais, e o padre costumava consultá-la e a respeitava muito pois ela possuía um saber sobre um número impressionante de símplices e de usos terapêuticos, cuja origem datava das antiguidades que lhe eram esplendidamente desconhecidas. Privilegiava, porém, em primeiro lugar, o que havia em abundância na região e comprovara sua eficácia no correr dos anos, e por isso se fixara numa tríade vitoriosa que parecia, pelo menos na granja, ter demonstrado suas virtudes: tomilho, alho e espinheiro (que ela chamava de nobre-espinho ou arranha-gato, nomes que o padre verificara e que eram, de fato, os mais populares para designar o arbusto). Maria gostava apaixonadamente do espinheiro. Gostava de sua casca cinza prateada que só fica marrom e granulosa com a idade e das flores leves de um branco tão delicadamente tingido de rosa que qualquer um soluçaria, e gostava de colhê-las com Eugénie nos primeiros dias de maio, tomando cuidado para não amassá-las e pondo-as logo em seguida para secar à sombra de um celeiro enfeitado como uma noiva. Gostava, por fim, das infusões que toda noite eram preparadas despejando uma colher de flores numa xícara de água fervendo. Eugénie jurava que isso fortificava a alma e o coração (o que foi provado pela farmacopeia moderna) e também proporcionava um suplemento de juventude (o que não ficou demonstrado nos livros). Em suma, se Eugénie não tinha a idade nem o olho de Angèle, era mesmo assim uma velhinha com quem tampouco se podia contar impunemente. E se Angèle desconfiara muito cedo que Maria tinha um estofo mágico, Eugénie também percebia isso com uma intensidade crescente desde os acontecimentos da mata. Certa manhã, cedinho, quando ela descia para a cozinha depois de suas primeiras orações, parou de chofre diante da grande mesa de madeira onde se faziam as refeições. A sala estava em silêncio. As outras velhinhas alimentavam as galinhas e ordenhavam as vacas, o pai fora inspecionar seus pomares e Maria ainda dormia sob o grosso edredom vermelho. Eugénie ficou sozinha diante da mesa sobre a qual só havia um bule de café de barro, um copo de água para quem sentisse sede de noite e três dentes de alho destinados ao jantar. Fez um esforço de concentração que produziu apenas a visão presente da qual queria se livrar, depois relaxou e se concentrou em esquecer o que estava vendo.

 

* * *

 

Agora ela revê a mesa tal como na véspera, quando é a última a ir embora depois de abafar a lamparina; saboreia a quietude da sala ainda morna onde uma família feliz jantou um pouco mais cedo; demora-se nos recantos escuros que a iluminação fraca ornamenta com algumas pérolas de luz; e seu olhar volta para a mesa onde agora só há um copo de água ao lado de um bule de café e de três dentes de alho esquecidos. Então compreende que Maria, que às vezes atravessa a sala nas horas sombrias do sono, veio durante a noite e mudou de lugar os dentes de alho alguns centímetros e o copo de água também milímetros talvez , e que essa translação ínfima de cinco elementos triviais modificou inteiramente o espaço e, a partir de uma mesa de cozinha, gerou uma pintura viva. Eugénie sabe que não possui as palavras, porque nasceu camponesa; nunca viu um quadro a não ser os que enfeitam a igreja e contam a História Sagrada, e não conhece outra beleza além da dos voos de pássaros e das auroras primaveris, das trilhas dos bosques claros e dos risos das crianças amadas. Mas sabe com uma certeza de aço que aquilo que Maria realizou com seus três dentes de alho e seu copo é um arranjo do olhar que corteja o divino, e então observa que, além das mudanças na disposição das coisas, há algo mais, que a rotação do sol lhe revela neste instante: um pedacinho de hera posto ao lado do copo. Está perfeito. Eugénie talvez não tenha as palavras mas tem o talento. Pode ver, da mesma maneira que vê a ação dos símplices no corpo e a dimensão dos gestos da cura, o equilíbrio em que a menina pôs os elementos, a tensão esplêndida que neste momento os habita e a sucessão de vazios e cheios contra um fundo de escuridão sedosa por onde se esculpe um espaço agora sublimado por uma moldura. Então, ainda sem palavras, mas pela graça da inocência e do dom, Eugénie, sozinha em sua cozinha sob as fitas que cobrem oitenta e seis anos de chás de espinheiro, recebe em pleno coração a magnificência da arte.

 

 

Naquela manhã, Maria desceu cedo para cortar sua lasquinha de queijo no celeiro. Mas em vez de ir passar um tempo nas árvores, antes da aula, voltou para a cozinha onde, em seu posto de combate, Eugénie mexia, numa panela de cobre, uma mistura de talos secos de aipo, flores de pervinca e folhas de hortelã que destinaria a um cataplasma para uma jovem mãe agoniada com uma obstrução leitosa. Maria se aboletou na grande mesa onde os dentes de alho não tinham mudado de lugar.

Você pôs o aipo? perguntou.

Aipo, pervinca e hortelã respondeu Eugénie.

Aipo que se planta? perguntou Maria.

Aipo que se planta respondeu Eugénie.

Que você pegou na horta?

Que peguei na horta.

Que tem cheiro menos ruim que o selvagem?

Que tem cheiro bem melhor que o selvagem.

Mas que não é tão eficaz?

Depende, meu anjo, depende do vento.

E a pervinca, ela não é melancólica?

Se madura, é melancólica.

Não a oferecem para expressar a tristeza?

Também a oferecem para expressar educadamente a tristeza.

São mesmo pervincas de nossos bosques?

São pervincas da rampa atrás das coelheiras.

Que não são tão eficazes como as dos bosques?

Depende, minha menina, depende do vento.

E esta hortelã, titia?

Esta hortelã, minha menina?

De onde ela vem a essa hora?

Vem do vento, meu anjo, como todo o resto, vem do vento que a deposita ali onde Deus pede e onde a colhemos em reconhecimento a Seus favores.

Maria gostava desses diálogos cujos responsórios lhe eram infinitamente mais queridos que os da igreja e que ela provocava por uma razão que se esclarecerá à luz do novo acontecimento que, naquele dia, inundou o mundinho da granja com seus exóticos eflúvios. Lá pelas onze horas, o Jeannot bateu à porta da cozinha onde estavam reunidas as vovozinhas, que oficiavam na mesma tarefa hercúlea, pois o final da Quaresma se aproximava e breve iam dar o grande jantar que recompensaria as privações consentidas. A cozinha cheirava a alho e a caça, e a mesa transbordava de cestas suntuosas, das quais a mais imponente vomitava os primeiros agáricos comestíveis do ano, colhidos em tal profusão que caíam em volta da palha e dariam para um decênio de ensopados perfumados e vidros de conserva cheirosos. Tudo isso já no fim de abril.

Viram de imediato que o Jeannot estava de volta de alguma coisa que tinha a ver com a sua função, já que usava o boné de carteiro e segurava com as duas mãos a sacola de couro de seus trajetos. Mandaram-no entrar para o quentinho e, embora morrendo de curiosidade, o instalaram primeiro diante de uma porção de patê e de um copinho de vinho da região, pois o acontecimento merecia as honras prestadas na nossa terra com um pouco de banha de porco e um bom gole de tinto. Ele mal tocou naquilo. Bem que deu um gole, por cortesia, mas via-se que se concentrava num drama maior cuja responsabilidade agora lhe cabia. O silêncio se estendeu sobre uma sala que apenas embalava o crepitar do fogo sob a panela onde um coelho era cozido. As mulheres enxugaram as mãos, dobraram os panos de prato, ajeitaram as toucas e, sempre em silêncio, puxaram para si as cadeiras e se sentaram ao mesmo tempo.

Passou-se um instante, fervente como o leite.

Lá fora começou a chover, uma bela pancada, palavra de honra, que vinha de uma nuvem preta que estourara de repente e ia dar de beber o dia todo às violetas e aos bichos, e a sala estava cheia do barulho da água e do cochicho do fogo submersos nesse silêncio grande demais para os cinco humanos sentados à mesa, que ali tomavam o pulso do destino. Porque ninguém duvidava: era de fato o destino que dava ao Jeannot aquele semblante solene que nele só se via quando falava da guerra, que ele fizera como mensageiro, mas que lhe valera, tal como aos outros, farejar a pólvora e sofrer a miséria dos combates. Olhavam-no tomando mais um gole de vinho, mas desta vez para dar coragem, e sabia-se que ele devia recuperar as forças antes de começar. Assim, esperavam.

Pois então disse enfim o Jeannot, enxugando a boca com a lapela do casaco , tenho uma carta para entregar.

E abriu a sacola para pegar um envelope, que pôs no centro da mesa a fim de que todo mundo pudesse olhá-lo à vontade. As velhinhas se levantaram e se debruçaram. Voltou o silêncio, tão vasto e sagrado quanto uma gruta primitiva. O envelope abria na escuridão do temporal um pequeno poço de luz, mas por ora as vovozinhas só se interessavam pelas letras de tinta preta que diziam simplesmente:

 

Maria

Granja dos Vales

 

A isso se acrescentava um selo, nunca se tinha visto nada igual.

É um selo italiano disse o Jeannot quebrando o silêncio, porque via que as senhorinhas cansavam os olhos em cima do quadradinho misterioso.

Elas caíram com um mesmo corpo sobre a palha das cadeiras. Lá fora a chuva redobrava o vigor e agora estava mais escuro do que às seis horas. O cheirinho do coelho que cozinhava lentamente no vinho misturava-se com o som da água, e o interior da granja era um único salmo cheiroso que envolvia a turminha debruçada sobre o envelope da Itália. Mais um instante se passou nos limbos da circunspecção, e depois o Jeannot pigarreou e retomou a palavra, pois lhe parecia que tinham deixado à observação um lapso decente.

Pois então, não vamos abri-lo? ele perguntou com uma voz a um só tempo neutra e encorajadora.

As velhinhas se olharam sob suas toucas de fitas, pensando a mesma coisa, isto é, que um acontecimento desses requeria o conselho de família completo, o qual só poderia se reunir quando o pai tivesse voltado dos labores e a mãe, da cidade, onde estava fazia três dias perto da irmã, cuja filha caçula sofria de doença do peito (ela fora até lá com uma sacola lotada dos unguentos de Eugénie que eram esperados com impaciência, no desespero das medicinas oficiais que tinham pouco efeito, e num momento em que as forças da moça declinavam a olhos vistos). Ou seja, e era o cálculo feito no espírito todo envolto de Itália de nossas quatro velhinhas, dali a dois dias e duas noites. Uma tortura.

O Jeannot, que assistia, como se pudesse ouvi-las, às hesitações dessas senhoras, pigarreou de novo e, num tom que desta vez ele queria que fosse firme e paternal, sugeriu:

É que talvez haja urgência.

As vias postais que vão da Itália para as terras baixas são enigmáticas, mas pelo menos pode-se dizer que provavelmente não são percorridas em três horas e, portanto, não são privilegiadas nas épocas de perigo. Ainda mais, sem endereço nem sobrenome. Ora, além da chuva e do coelho à caçadora, a sala se matizou de repente de uma inquietante coloração de urgência. Angèle olhou para Eugénie que olhou para Jeannette que olhou para Marie, e assim se cruzaram os olhares até que os queixos, por sua vez, entrassem na dança e começassem a balançar devagarinho com um sentido de ritmo canônico de maravilhar um tarimbado chefe de coro. Sacudiram a cabeça por mais dois ou três minutos, com uma determinação tão crescente que arrastaram o Jeannot, o qual se sentia subitamente em forma para uma porçãozinha de patê mas não queria romper a concórdia daquele admirável ordenamento de queixos. Depois se decidiram.

Podemos ao menos abri-lo disse Angèle , isso não transgride nada.

De fato disse Eugénie.

Apenas o abriremos disse Marie.

E Jeannette não disse nada mas pensou o mesmo.

Angèle se levantou, foi buscar na gaveta do bufê a faca fina que antigamente abrira tantas cartas de soldados, pegou com a mão esquerda o envelope italiano, com a direita inseriu a ponta afiada e começou a cortar a aba.

Então tudo explodiu; de repente a porta se abriu e a silhueta de Maria se perfilou na moldura contra um fundo de campo sob o temporal; e a chuva, que caía a cântaros já fazia meia hora, se transformou num dilúvio tão poderoso que não se ouvia mais do que o choque das pancadas no pátio. Já tinham visto esses temporais diluvianos que afogam num piscar de olhos uma terra que se tornou submersível mas aquilo! Aquilo era outra coisa, pois a água não permanecia no chão, mas ali se jogava com uma violência que fazia roncar todo um território transformado num gigantesco tambor, e depois retornava ao céu na forma de gêiseres fumegantes inflados e retumbantes com o estrondo dos impactos. Maria ainda ficou um instante na porta, em meio à perplexidade geral e à barulheira assustadora das águas. Depois fechou o batente, caminhou até as velhinhas e estendeu a mão para Angèle, que, sem entender o que fazia, nela depositou a carta. O mundo se revulsou e de chofre se repôs na direção certa, a chuva parou e, no silêncio reencontrado, um crepitar do coelho que boiava em seu molho fez todos estremecerem. Angèle olhou para Maria que olhou para Angèle. Calavam-se e desfrutavam como nunca da incomparável alegria de estar no silêncio de uma cozinha que cheirava a coelho na panela, e olhavam para Maria que imprimira ao rosto uma gravidade nova, sentindo que algo nela se metabolizara num arcabouço desconhecido da alma.

E então, minha menina? Angèle acabou dizendo com voz meio tremelicante.

Maria murmurou:

Não sei.

E como ninguém dizia uma palavra, acrescentou:

Soube que a carta era para mim e aqui estou.

 

 

Que fazer quando o pulso do destino se acelera desse jeito? O que é bonito com a candura tal como concentrada naquela sala de granja gluglutante de ensopado ao vinho branco é que ela aceita o que não sabe governar. As palavras de Maria convinham à crença secular de que o mundo era mais velho que os homens e, por conseguinte, rebelde ao esgotamento de suas explicações. Tudo o que se queria era que a pequerrucha estivesse bem, e enquanto Eugénie preparava um chá de espinheiro, sentaram-se de novo nas cadeiras de que tinham se levantado de repente na hora do grande ímpeto, e esperaram comportadamente que a própria Maria abrisse uma missiva que, desta vez, não disse uma palavra sob o ultraje da faca. Do envelope aberto Maria retirou uma folha de papel dobrada em quatro, de uma textura tão frágil que a tinta a perpassara e na qual só se viam escritas de um lado as seguintes linhas:

 

la lepre et il cinghiale vegliano su di voi quando camminate sotto gli alberi

i vostri padri attraversano il ponte per abbracciarvi quando dormite

 

Maria não sabia italiano mas, assim como gostava das respostas de Eugénie, porque traziam um condensado do mundo que o tornava mais lírico e mais puro, conseguia sentir o sopro de linhas que produziam ao ouvido, só de olhá-las, sem rigorosamente entendê-las, uma vibração de cântico. Até então os mais belos cânticos eram os da violeta e do espinheiro cantados por Eugénie em seus ofícios de colheita, e caso a eles se misturassem coelheiras e aipos da horta ela achava que isso não os desviava do divino mas dava à fé uma forma bem mais intensa que o latim da igreja. Mas aquelas palavras que ela não sabia nem sequer como revirá-las na boca desenhavam uma nova terra de poesia e abriam em seu coração uma fome inédita.

 

 

Porém, Maria convivia diariamente com a religião da poesia, quando subia nas árvores e escutava o canto dos galhos e folhas. Compreendera muito cedo que os outros se moviam no campo como cegos e surdos para quem as sinfonias que ela ouvia e os quadros que contemplava não passavam de ruídos da natureza e paisagens mudas. Quando percorria seus campos e bosques, estava em contato permanente com fluxos materiais na forma de traçados impalpáveis mas visíveis que a levavam a conhecer os movimentos e as radiações das coisas, e se gostava de ir no inverno até os carvalhos dos vales do campo vizinho, era porque as três árvores também amavam o inverno e ali faziam esboços de estampas vibrantes cujas pinceladas e curvas ela via à maneira de uma gravura de mestre encarnada nos ares. Além disso, Maria não dialogava apenas com a matéria mas também falava com os animais dessas terras. Nem sempre soubera disso com tanta facilidade. A capacidade de ver o passado em imagens, a de distinguir a disposição adequada das coisas, a de ser avisada de um acontecimento notável como a chegada de uma carta e a iminência de um perigo se não a abrisse pessoalmente, a capacidade, enfim, de conversar com os animais das pastagens, dos buracos e das sombras das árvores, tinham crescido depois da aventura da clareira do leste. Se sempre vira os grandes jorros magnéticos do universo, nunca fora com tamanha nitidez, e não sabia se isso vinha da revelação do javali fantástico ou de algo que ele transformara dentro dela naquela noite. Talvez o impacto de se inteirar do segredo de sua chegada à aldeia lhe permitira reconhecer em si mesma a existência desses dons, ou talvez a magia desse ser sobrenatural a houvesse abençoado com novos talentos e a transformado numa Maria inédita cujo sangue se irrigava de outra forma. O certo é que podia falar com os animais com uma facilidade que aumentava a cada dia, e igualmente com as árvores, e isso passava pela captura das vibrações e dos fluxos que deles emanavam, que ela lia como relatórios topológicos e deformava ligeiramente para fazer ouvir seus próprios pensamentos. É difícil descrever aquilo cuja experiência não se pode ter; é provável que Maria brincasse com as ondas assim como outros dobram, desdobram, juntam, atam e desatam cordas; assim, pela força de seu espírito ela pesava sobre a curvatura das linhas em que sua percepção do mundo era capturada, e isso produzia um viveiro de palavras mudas que autorizava toda a palheta dos diálogos possíveis.

 

 

De todos os animais, era com as lebres que preferia falar. O modesto brilho delas se moldava facilmente e suas conversas leves forneciam informações às quais outros bichos mais pretensiosos não prestavam atenção. Foi junto às lebres que ela se informou sobre o cavalo cinza depois do dia das flechas escuras, e junto a elas que começou a desconfiar que dali em diante uma forma de proteção terminara como e por quê, não saberia dizer, mas as lebres falavam de um refluxo das estações e de uma espécie de sombra que, de vez em quando, ia perambular pelos bosques. Mais que tudo, elas não conseguiram lhe dizer como o cavalo chegara, mas tinham percebido o desespero dele por não poder encontrá-la. E não tinham resposta para aquilo que ela lhe gritara qual é seu nome? mas pressentiam que ele fora impedido de revelar como se chamava por uma força que não era boa nem, infelizmente, ineficaz. Ora, Maria constatava cada vez mais os estigmas dessa força no belo campo. Uma noite em que estava de bruços na relva de um terreno baldio e deixava o pensamento vagar ao sabor dos cantos que, aqui e ali, explodiam na noite de março, deu um pulo de repente, com uma vivacidade de gato assustado, porque a música das árvores cessara de súbito e dera lugar, brevemente, a um grande silêncio glacial. Ela poderia ter morrido. Mais ainda, tinha certeza de que isso não era natural, de que um poder providenciara aquilo com determinação, de que esse poder estava louco para realizar um desígnio muito mórbido e muito negro e de que aquilo que durara três segundos apenas se reproduziria com mais vigor. Maria também sabia que era jovem demais para entender o jogo de rivalidades das grandes forças mas percebia as consequências de uma agitação que certamente se esperara que fosse mais distante. Não conseguia penetrar na substância dessa intuição que a jogava nos bosques em busca de uma lebre com quem dividir seu desespero, mas tinha a certeza de que um desconcerto no firmamento das potências provocava esses acontecimentos inéditos.

 

* * *

 

Foi nessa época, nessa primavera um pouco menos esplêndida que as anteriores (quando não choveu no exato momento em que se desejaria e quando gelou um pouco mais tarde que o necessário para os abricoteiros do pomar), que Maria teve um sonho do qual acordou com uma sensação mista de júbilo e pavor.

O poema italiano já havia provocado uma comoção considerável. Não havia ninguém que fosse capaz de traduzi-lo e o senhor padre o olhara com perplexidade, porque seu latim lhe permitia adivinhar as palavras mas não entender a intenção do conjunto, tampouco as circunstâncias de seu encaminhamento postal. Ele hesitou na decisão de apresentar às autoridades eclesiásticas um feixe de fatos que nem a razão nem a fé permitiam esclarecer satisfatoriamente, mas in fine resolveu não lhes escrever e guardar para si, por ora, a lista das coisas surpreendentes destes tempos. Em vez disso, mandou vir da cidade um belo dicionário de italiano cuja capa vermelha de granulado de pétala iluminou a austeridade clerical de sua velha pasta já surrada. A beleza que ele descobria nas sonoridades dessa língua superava em beatitude todos os transes verbais conhecidos, inclusive os do latim que, porém, ele amava ternamente. Qualquer que fosse a maneira de pronunciá-la, havia na boca um idêntico gosto de água clara e violetas molhadas, e diante dos olhos uma idêntica visão de marolas alegres na superfície de um lago verde. Bem depois de ter traduzido o poema e meditado sobre sua chegada à granja, continuou a ler as palavras do dicionário e formou em poucos meses uma base que lhe permitia entender as citações que às vezes acompanhavam as definições tanto mais que, no final da obra, havia um compêndio das conjugações que, embora lhe dessem uma trabalheira, não conseguiram desencorajar seus ardores. Em suma, em seis meses nosso padre falava um italiano hesitante com expressões talvez inabituais em Roma e um sotaque que a fonética indicada não conseguia garantir de todo, mas também com essa solidez de conhecimento que se adquire quando se estuda bem o que não se pode praticar de outro jeito. Partilhara o resultado de sua tradução e não se conseguira ir muito mais longe que certas conjecturas e meneios de cabeça: acreditavam que a carta não fora parar lá por acaso e que era mesmo destinada a Maria, e perguntavam-se o que aquela lebre e aquele javali tinham a ver com a paisagem, e se alguém passeava sob as árvores, meu santo… suspiraram. Mas impotência não é quietude, e tudo isso prosseguiu em silêncio nos corações que indagavam qual seria o próximo transtorno e se a menina continuava em segurança. Assim, Maria, que sabia tudo isso, não disse uma palavra sobre seu sonho. Um grande cavalo branco avançava pela bruma, depois ia embora e ela andava sob o arco de árvores desconhecidas ao longo de um caminho de pedras chatas. Então começava a música. Quantos cantores, ela não saberia dizer, nem se eram homens, mulheres, ou até crianças, mas ouvia nitidamente suas palavras, que ela repetiu com fervor na escuridão daquela madrugada. Uma lágrima rolou em sua face.

 

o renascimento das brumas

sem raízes a última aliança

 

No final, quando os coristas se calaram, ouviu uma voz que repetia a última aliança, depois acordou, no deslumbramento das músicas e na tristeza daquela voz que não era jovem nem velha e trazia em si todas as alegrias e todas as tristezas. Maria ignorava por que antes quisera saber o nome do cavalo de prata, mas por alguns minutos isso lhe parecera a única coisa importante neste mundo. Da mesma maneira, não havia nada que contasse mais naquela manhã do que ouvir de novo essa voz de prata pura. E se a perspectiva de ter um dia de deixar a aldeia a enchia de uma aflição tanto maior na medida em que pressentia que isso aconteceria antes da hora em que as crianças deixam normalmente os lugares onde foram protegidas e amadas, o que essa voz causava em seu desejo lhe ensinava também que ela partiria sem titubear, fossem quais fossem os dilaceramentos e as lágrimas.

Ela esperava.