O secretário Isak Reinhold Blom detesta todas as partes de Estocolmo que cometeram o erro de se espalhar para além de Stadsholmen. Ladugårdslandet acima de todas. A chuva ao início da manhã limpou as ruas da lama. Miúdos de rua, pedintes e famintos dobram as esquinas a correr, a fugir do homem da foice, que se aproxima. O grupo desaparece no meio dos marinheiros e soldados de uniformes sujos.
Devia ter pensado duas vezes antes de decidir ir a pé para a quinta de Spenska. A água que se acumulou nas poças infiltra-se nas costuras das botas até cada passo fazer parecer que está a pisar manteiga. Blom encontra constantemente razões para amaldiçoar a sua sorte. Apesar de estar há sete anos ao serviço da polícia, não chega a ganhar cento e vinte Riksdaler por ano.
Quando foi promovido do cargo de notário para substituir o velho Hallquist como secretário da polícia, esperava receber um aumento. Em vez disso, a carga de trabalho multiplicou sem receber mais um tostão.
Ouve alguém tossir ao longe. Aquilo acalma um pouco o seu mau-humor. Há quem esteja pior do que ele. Cecil Winge chegara muito mais longe do que ele, mas teria sorte se ainda visse o novo ano.
A tosse pára quando Blom bate à porta. Quando esta se abre, um momento mais tarde, Winge parece completamente imperturbável. Ainda assim, do bolso do colete de Winge espreita um canto do lenço húmido e ensanguentado. Blom fica espantado com a determinação do homem e vai directo ao assunto.
— O Norlin enviou-me com a correspondência pedida de Indebetouska. As queixas não tardaram a chegar.
Blom senta-se junto ao fogão para secar as botas depois de entregar o pequeno embrulho a Winge. No interior há três cartas com os selos quebrados. Blom pigarreia e continua.
— Provavelmente foram escritas à pressa logo que o Extra Posten chegou à rua. Todas dizem a mesma coisa, mas apontam motivos diferentes. A primeira carta vem de um comerciante rico que está preocupado com o preço do algodão e com as consequências para as finanças do reino. Um conde Enecrona, do Colégio Comercial, alerta-os para o perigo da degradação moral que pode advir de alertar o público para coisas que nunca poderiam ter imaginado. Por fim, mas não menos importante, temos Gillis Tosse, que acha que as coisas escandalosas estão, pela sua natureza, ligadas às correntes revolucionárias. Tosse acusa-te de seres jacobino.
Winge aquece alternadamente os dedos de uma mão na palma da outra.
— Eu conheço o Tosse. Talvez também te recordes dele? Estudou em Uppsala na mesma altura que nós.
— O nome não me soa familiar.
— É um preguiçoso que não gosta de ler, mas vem de uma família tão rica que conseguiram comprar-lhe um cargo mesmo sem ter tido qualquer sucesso académico. Lembro-me de como olhava com ares de superioridade os que labutavam à secretária: suponho que via os nossos esforços como prova da nossa moral decadente. O chefe Norlin disse-te porque te mandou aqui com estas cartas?
— Não, mas não era preciso dizer. Não sou estúpido, Winge. Fui eu que segui o protocolo quando apareceste com o teu tecido e li sobre ele no Extra Posten. Esperas que algum destes cavalheiros que escrevem a queixar-se tenha outros motivos para além dos que aponta. Talvez uma ligação ao corpo encontrado no Fatburen, suponho.
Winge aperta os lábios com tanta força que se transformam numa linha fina. Ao mesmo tempo, fecha os olhos e massaja a testa.
— É verdade. Admito que esperava que os nomes me dessem uma ideia mais clara, mas nunca ouvi nenhum deles e não vejo que outra coisa possam ter em comum, para além de dinheiro.
Blom esboça um sorriso conhecedor.
— Mas eu vejo. Só que não há nada de graça nesta vida, e quero algo em troca.
— Se estiver dentro das minhas possibilidades, é teu, Blom.
— No dia em que a tua saúde piorar, quero que me avises, e apenas a mim, o mais depressa que conseguires. Há uma aposta acerca da tua morte entre os homens da esquadra. O valor em jogo é três vezes o meu salário anual.
— Se a informação que tens para me oferecer for útil, não me importo que alguém lucre com a morte que vou sofrer de qualquer forma. Enviarei um mensageiro no momento exacto em que souber que a febre se aproxima. Agora tu.
Blom sente um friozinho no estômago ao pensar na maquia valiosa que poderia melhorar drasticamente a sua situação e permitir-lhe terminar a escrita do já começado Religionens Nödvändighet för Samhällets Bestånd (A Necessidade da Religião para o Melhoramento da Sociedade), não no seu quarto gélido, mas em grande estilo, no Clas på Hörnet, depois de uma sucessão de pratos transbordantes trazidos da cozinha: arenque, borrego assado, guisados.
— Muito bem! Já ouviste falar de uma sociedade chamada As Euménides?
— Só por alto. É uma das muitas ordens herméticas que fazem caridade com as crianças pobres, se não me engano. Doam fundos aos pobres das congregações mais desfavorecidas da cidade.
— Correcto. As Euménides caracterizam-se pela sua grande generosidade, e só os ricos podem pertencer a essa sociedade. Sabes que escrevo poesia. Em tempos conheci um Claes von der Ecken, herdeiro de uma casa comercial, que me pagou generosamente para recitar os meus poemas. O Ecken era membro da Ordem das Euménides. O seu negócio estava em queda, e, quando tentou abandonar a sua missão caridosa para salvar o seu ganha-pão, os elementos da ordem uniram-se para o arruinar. Espera-se que os membros desempenhem as suas obrigações sem desculpas. O banco exigiu o pagamento imediato dos empréstimos do Ecken, e ninguém aceitou emprestar-lhe dinheiro. Certa noite, apareceu um vagabundo à minha porta a dizer que a quantia que eu recebera para ler os poemas era apenas um empréstimo. Era o Ecken, agora falido. E foi assim que despertou o meu interesse pela Ordem das Euménides. Um dia tive a oportunidade de ver a folha de registo dos membros. A minha memória é quase tão boa como a tua, Winge: os autores de todas as cartas que recebeste pertencem à ordem.
Quase imperceptivelmente, os pés de Winge começam a bater no chão.
— A tua história pode ser menos sensacional do que parece. Sabes de onde vem esse nome, Blom?
— Euménides? Não.
— Tive um preceptor que tinha paixão pelos clássicos gregos e que me fez passar horas incontáveis debruçado sobre Ésquilo. Na nossa língua, a tradução dessa palavra é «as benevolentes». Na história, é como os sábios se referem às fúrias, as deusas da vingança, para escaparem à sua ira.
Blom começa a desejar que a visita termine e que a sua participação seja esquecida. A ganância é a única coisa que o faz ficar.
— Mais uma coisa. Sei que se reúnem na casa de Keyserska, ao lado dos Röda Bodarna.
Winge começa a andar de um lado para o outro enquanto pondera.
— Já ouvi o nome dessa casa; é um dos muitos bordéis secretos que têm autorização para assim continuar, com a bênção da polícia, desde que não se ocupem de outras actividades. É um sítio estranho para uma ordem com fins caritativos.
— Oh, é mais estranho do que isso, Winge. Sei que a ordem não se limita a alugar o espaço da casa de Keyserska. É dona do edifício.
Winge vira-se para a janela, pensativo, fitando o Ladugårdstullen, enquanto recorda as últimas palavras que Mickel Cardell proferiu. Lá fora, sob o crepúsculo, o vento abrandou e o Kurckan calou-se, esperando a aproximação da brisa nocturna.
— Tu que estás tão bem informado, Blom, por acaso não sabes se a casa de Keyserska tem liteiras próprias e se são verdes?