6.

Ficámos sentados nas escadas até ao amanhecer. Com a luz da manhã, a tranquilidade que nos banhara até então quebrou-se. Corremos para o nosso quarto. Encontrámos o papel onde tínhamos anotado todos os nossos empréstimos, e o resultado pareceu-nos fatal. Muitos dos empréstimos que tínhamos pedido estavam prestes a vencer. Se não pagássemos, os nossos credores iriam enfurecer-se. Em pouco tempo, começariam a falar entre si e descobririam a fraude, que tínhamos pedido o dinheiro emprestado para fugirmos com ele. Um ou mais iriam ao tribunal, mostrariam as notas promissórias vencidas e exigiriam a ajuda da polícia para recuperarem o seu dinheiro. As queixas acumular-se-iam, o total da dívida seria somado, e nós seríamos presos. «Temos de sair daqui, Kristofer», sussurrou o Sylvan com os olhos cheios de lágrimas, «e temos de o fazer antes que descubram o nosso paradeiro!» «Mas para onde havemos de ir?» «Temos de seguir caminhos separados. Tanto os casacos azuis como os homens da polícia vão andar à procura de dois homens com roupas vistosas. Temos melhores hipóteses de escapar se estivermos sozinhos.» «E depois? Não podemos esconder-nos para sempre!» «Temos de deixar a cidade, Kristofer, entendes?» Pensei, com um peso na alma, em tudo o que sacrifiquei para vir de Karlskrona para aqui, nas estradas que me gastaram as solas, nas boleias em carroças que paguei com serviços que preferia não ter prestado. O Sylvan, que passara toda a vida na cidade por ordem do destino, estava provavelmente pronto a deixar Estocolmo, mas, para mim, a fuga era um sonho desfeito, um sonho pelo qual eu lutara toda a vida. O Rickard não vira a pobreza e a miséria das zonas rurais. Disse-lhe isso mesmo. Não me deu ouvidos. «Vou partir em direcção a Skanstull e daí para Fredrikshald. Se Deus quiser, chegarei lá antes do fim do Verão.»

Reunimos as nossas poucas posses, eu no mesmo saco com que chegara, o Sylvan numa trouxa que fez com uma camisa velha. Antes de o galo cantar e de o Sol nascer, já estávamos a descer a rua. Nenhum de nós conseguia expressar por palavras o que sentia. Abraçámo-nos uma última vez, ambos à beira das lágrimas, e depois cada um seguiu o seu caminho, o Sylvan para norte, para tentar pedir dinheiro emprestado ao primo para a viagem, e eu em direcção ao Saltsjön, para procurar o alfaiate no beco em Ferken. Este fez-se esperar até meio da manhã e fingiu não me reconhecer nem às roupas que eu vestia. Como todos os comerciantes, parecia ter um sexto sentido para perceber a necessidades dos clientes, e eu não estava em posição de negociar. Troquei as roupas finas que tínhamos comprado por roupas mais simples: um colete grosseiro, do tipo que um lavrador usaria, um casaco quente com remendos nos cotovelos, um par de calças e uns sapatos resistentes. Um gorro de malha substituiu o chapéu. Pareceu surpreendido quando lhe perguntei quanto me ia pagar pela diferença. «Pagar-lhe por estes trapos sujos? O jovem só pode estar a brincar!» Por fim, deu-me um punhado de xelins para se livrar de mim. Escondi o cabelo debaixo do gorro, dirigi-me para a ponte Skeppsbron e olhei em volta.

Para onde ir? Não podia mostrar a cara em Stadsholmen. Um encontro infeliz numa rua estreita e era o meu fim. Também frequentara muito a zona de Ladugårdslandet. Södermalm parecia ser a minha única alternativa, com o tipo de gente que impediria que me sentisse sozinho na minha desgraça. Segui as pedras do cais em direcção a Slussen, passando pelas quatro rodas que controlavam a cascata sob Kvarnhusgränd, e segui caminho, passando pelos moinhos de vento.

Ao contrário do que esperava, a vida como pobre e sem-abrigo era pior em Södermalm do que em qualquer outra parte da cidade, precisamente por haver muitos pobres e carenciados nessa zona. Nas tabernas e nas caves, os funcionários tinham aprendido a distinguir quem não tinha dinheiro. Sabiam imediatamente quem entrara só para apanhar algumas migalhas e dormir algumas horas num canto. Repetidas vezes fui posto na rua ou impedido de entrar, a menos que mostrasse uma bolsa recheada de moedas à porta. Isto significava que todos os abrigos estavam apinhados à noite, e as casas punham criados a guardar os celeiros. Acabei a dormir sob as copas das árvores em Danto ou perto de Vintertullen. As moedas que recebera do alfaiate não chegaram para mais do que algumas bebidas diluídas e pão velho. Ninguém exigia pagamento pela água de Årstaviken, por isso pude lavar as mãos e a cara no mar, e, quando o calor se tornou intenso, fiz uma cama com palhas na zona seca da baía.

Certa noite, vieram atrás de mim, querida irmã, enquanto eu dormia. Como tantas outras vezes, divisava o teu rosto nos meus sonhos, apenas para o ver substituído por um riso trocista que me fitava. Uma bota pesada fora pousada no meu ombro e mantinha-me preso ao chão. Uma candeia iluminou-me o rosto, e o gorro foi-me arrancado da cabeça. «Kristofer Blix. Espero que tenhas dormido bem, porque a tua vida de preguiça acaba aqui.» Tentei virar-me debaixo do pé, sem sucesso. «Nunca ouvi falar de ninguém chamado Blix! O meu nome é David Jansson. Vinha a regressar a casa de Sista Styvern e parei aqui para descansar enquanto esperava o amanhecer.» «Dizes tu! E qual é o nome do teu pai?» «Jan Davidsson, é caldeireiro em Hedvig Eleonora, e a minha mãe é Elsa Fredrika, nascida com o nome Gudmundsdotter.» Mencionei a igreja mais remota de que consegui lembrar-me, esperando que acreditassem na minha palavra sem querem verificar a informação. Estava enganado. «Ora vejam bem. E onde é a casa dos teus pais?» «Para lá de Träskbacken, ao pé dos moinhos!» «Então, ficarás certamente grato por te escoltarmos por essa zona tão violenta.»

Agarraram-me por baixo dos braços e puseram-me de pé, enquanto me seguravam com força para me impedirem de fugir pelo meio dos arbustos. Eram três homens. O homem que falou era um tipo corpulento com pernas curtas, tinha a boca cheia de tabaco e o rosto tão sujo que era difícil distinguir-lhe as feições. Seguiu à frente com a candeia, enquanto os seus dois companheiros, em silêncio, me levavam entre eles. Eu não conseguia vê-los bem, por estar constantemente a levar pancadas de mão aberta na nuca sempre que fazia menção de me virar. Sempre que eu tropeçava, um deles dava-me um beliscão. O hálito dele dava-me vómitos quando me sussurrava ao ouvido. «Mantém o ritmo, seu tolo, se não queres que te torça o pescoço!» Mal tínhamos conseguido passar o Fatburen quando percebi que a minha desculpa fora uma tentativa fútil e que seria violentamente castigado se chegássemos a Träskbacken antes de admitir que não tinha ali ninguém conhecido, muito menos os meus pais. «Esperem. Eu menti. Sou a pessoa que procuram.» O homem da candeia virou-se para trás. «És o último de uma dezena de vagabundos da tua idade que tivemos de arrastar pela cidade na última semana, portanto, essa é uma boa notícia.» Deu um sinal, e, nessa altura, uma dor intensa explodiu nos meus olhos, e a cara bateu-me na calçada. Nesse momento, ouvi uma gargalhada que parecia o relinchar de um cavalo e vi um bastão ensanguentado antes de perder a consciência.

Acordei com um cheiro a sais debaixo do nariz. Estava sentado numa cadeira. As mãos que me mantinham direito largaram-me os ombros quando consegui manter-me sem cair para a frente. Tinha a cabeça a latejar, e a nuca doeu-me quando lhe toquei. A sala apareceu quando a minha visão clareou. Havia tapeçarias a cobrirem paredes de pedra e tapetes no chão de madeira. A sala não tinha janelas. A cadeira estava no centro do espaço, em frente a uma secretária com pernas curvas. Do outro lado desta havia um homem sozinho sentado numa poltrona. Com um desconforto crescente, reparei que a minha cadeira não estava directamente pousada no tapete, antes se encontrava em cima de um pano manchado. O homem reparou no meu olhar e falou. «Estás a perguntar-te para que serve essa manta. É para proteger o meu tapete turco das impurezas. Muitos dos convidados que se sentam no lugar que ocupas agora, Kristofer Blix, não conseguem conter as tripas. Os que não sangram derramam outras coisas.» Soltou um risinho quando me virei. «Pareces assustado, Blix, e não é de espantar, mas o teu destino está parcialmente nas tuas mãos. Lembra-te disto quando me responderes. Se não for pelo teu bem, que seja pelo do meu tapete.» Usava vestes caras, tinha uma barba tão curta como o seu cabelo e entradas que começavam a aparecer na linha do cabelo. Os seus olhos eram de um azul gélido. Supus que tivesse pouco mais de quarenta anos. A voz do homem era rouca. «Chamo-me Dülitz. Sabes quem sou?» Abanei a cabeça. Dülitz esticou-se por cima da secretária e encheu um copo com o líquido vindo de uma garrafa — água, a avaliar pela cor. «Deliraste bastante antes de recuperares a consciência, Blix, e, pela forma como falas, diria que não és de Estocolmo. Qual é a tua terra natal?» «Karlskrona.» Ele assentiu. «Pelo menos temos uma coisa em comum, tu e eu, estamos ambos longe de casa.» Bebeu. Sequioso, só pude assistir em silêncio.

«Durante a minha infância na Polónia, trabalhei com vidro, Blix.» Pronunciou o meu nome como se tivesse um sabor desagradável. «Fiz dragões, leões, reis, quimeras e bailarinas emergirem do fogo e gravarem-se no vidro. Vim para aqui à procura de refúgio quando a minha terra foi tomada pelos russos, apenas para descobrir que as pessoas como eu haviam sido proibidas de praticar a nossa arte. O rei determinara-o, sem dúvida para ganhar popularidade entre os seus súbditos. Não sei como os pobres desgraçados cortam vidros para cobrir as janelas. Felizmente tive sorte. Quando ponderava o que podia fazer, bateram-me à porta certa noite, já tarde. Abri e deparei-me com um jovem, parecido contigo. Mandei-o entrar, servi-lhe pão e vinho, e ele explicou ao que vinha. ”Preciso de um empréstimo”, disse. Fiquei confuso. ”Sim, tenho dinheiro para emprestar, mas porque me procuraste justamente a mim?” ”É judeu, não é?” Na vossa língua, Blix, há centenas de anos, um judeu é uma pessoa que empresta dinheiro em troca de algum lucro. O facto de eu nunca me ter endividado ou emprestado dinheiro na vida não dizia nada ao jovem. Eu era judeu, portanto, todos podiam procurar-me para pedir dinheiro, sem qualquer sinal de gratidão, porque fazê-lo estava na minha natureza.» Enquanto Dülitz falava, tirou um cachimbo de uma caixa, encheu-o com tabaco e acendeu-o com um fósforo. «O meu convidado, ansioso por adquirir a dívida, não se mostrou tão disponível na altura de pagar o empréstimo que eu lhe dera por caridade. Percebi que encontrara a minha nova profissão.»

O rosto de Dülitz ensombrou-se. «Não sou um simples explorador que se dedica à usura, Kristofer Blix. Também negoceio outras mercadorias. Quando a dívida do jovem se tornou suficientemente avultada, percebi que era dono dele, que podia fazer com ele o que quisesse, desde que o destino que escolhesse para ele fosse preferível a ser atirado para uma cela húmida na prisão. Hoje em dia, a vida humana é a mercadoria que negoceio. Em tempos, moldei o vidro nas formas que desejava. Hoje, moldo as vossas vidas da mesma maneira.»

Com estas palavras, o homem pousou o cachimbo que apagara entretanto e tirou de uma gaveta uma pasta de couro, que pousou à sua frente e cujo conteúdo começou a apresentar como um jogo de paciências em cima de um tampo de mármore, perfeitamente alinhado, apesar de não ter desviado o olhar de mim nem por um momento. «Reconheces isto, Blix?» Eram as notas promissórias, todas as que assinara com o meu nome e cujo total somava mais de cinquenta Riksdaler. «Comprei as tuas dívidas e agora és meu, Kristofer Blix, de corpo e alma.»

Demorei algum tempo a conseguir falar. «O que planeia fazer comigo?», perguntei. Respondeu-me num tom indiferente. «O que sabes fazer? Que habilidades e competências tens? É isso que pretendo determinar com esta nossa primeira conversa. O teu valor, para mim.»

Disse-lhe tudo. Que mais podia fazer? Contei-lhe dos meus anos em Karlskrona, tudo o que aprendera e tudo o que sabia fazer, e esperei que fosse suficiente. Dülitz mergulhou uma pena branca num tinteiro e anotou as minhas palavras que pareciam mais dignas de nota. «É tudo?», perguntou quando eu não tinha mais nada a acrescentar. «Muito bem. Todas as noites, ao toque da meia-noite, virás à minha escada. Fá-lo-ás até eu ter decidido como me vais servir.» Senti um alívio maior do que algum dia pensei sentir ao pensar em deixar aquela sala abominável e, ainda que por pouco tempo, respirar um pouco de ar fresco, limpar o pânico da garganta e sentir o vento no rosto. «A primeira ideia que te vai ocorrer vai ser a de fugires de mim, portanto, quero que fique claro que vou encontrar-te e que… vamos deixar a conversa por aqui, já que conseguiste manter a manta limpa até agora. Depressa! Leva o Blix lá para fora.»

Fui agarrado pela parte de trás do pescoço e posto de pé. O homem teve de me apoiar quando as pernas me falharam e de me manter direito enquanto cambaleava em direcção à porta. Ainda assim, consegui lançar uma última pergunta por cima do ombro. «O que aconteceu ao meu amigo, o Rickard Sylvan?» Dülitz respondeu, inexpressivo. «Encontrámo-lo muito antes de ti. Muitas das manchas nessa manta são dele. A nossa conversa não foi tão gratificante como esta. Depois de muitas entrevistas, decidi que o valor dele era inferior à dívida. Dei-lhe vinte dias para me pagar o que deve e depois vou entregá-lo ao tribunal, para passar uma década ou duas na casa de correcção e ter uma morte lenta numa fábrica.»

Ao fundo da escada, em frente à casa de Dülitz, na terra onde o meu saco de viagem aterrou a seguir a mim, pus-me de gatas e vomitei até só sair bílis.