Tenho bastante tempo para escrever, querida irmã, agora que os dias mais quentes do Verão estão a chegar. A tarefa que me foi imposta deixa-me com muitas horas do dia livres. As feridas precisam de tempo para cicatrizar, e tenho de estar atento à capacidade de recuperação do meu paciente. Frequentemente, as minhas funções resumem-se a prestar-lhe os cuidados diários. Alimento-o com papas, lavo-o e cuido de todas as suas necessidades. Muitas vezes, quando ele fica inquieto e solta uivos, dou-lhe vinho, mas ele nem sempre o quer, e sou obrigado a usar o funil. Não consigo ouvi-lo. Fica mais calmo quando o efeito do vinho se faz sentir.
O mesmo se pode dizer acerca de mim. Vou constantemente à adega buscar mais garrafas, e é frequente beber tanto quanto consigo. O meu anfitrião não parece importar-se com o que eu faço nos meus tempos livres. Viu-me tropeçar pelos corredores enquanto cambaleava da adega para o quarto, mas não disse nada. A bebedeira não me traz alegria, mas ainda assim é preferível à sobriedade. Pelo menos torna menos claras as imagens que se me infiltram na mente. Consegues imaginar o horror de encostar a ponta de uma faca a uma vista e pressionar até todas as imagens desaparecerem para sempre? Cenas como esta vêm-me constantemente à memória quando fecho os olhos.
De cada vez que amputo mais um membro, dou-o ao Magnus. Vejo os dedos das mãos e dos pés desaparecerem dentro daquela garganta vermelha, ossos serem esmagados entre os seus dentes até exporem o tutano. Ele olha-me do seu canto como se dissesse: «Tu és o próximo.»
*
A bebedeira constante torna mais difícil distinguir o sonho da realidade. Os padrões do papel de parede parecem balançar e mover-se como tentáculos à minha passagem, preparados para me agarrarem se me aproximar demasiado. Na adega, certa noite, quando fui buscar mais vinho, vi um emaranhado de ratazanas à luz da tocha, presas pelas caudas e a guinchar. Ou terá sido um sonho? Rastejaram ao longo da parede soltando sons horríveis e desapareceram num canto. Dizem que é um mau augúrio. Muitas vezes bebo até cair antes de ir para o quarto, tanto para me ajudar a adormecer como para não acordar sóbrio.
Certa noite, acordei com um som perto de mim e vi que o meu anfitrião havia entrado no meu quarto, vasculhado os meus pertences e que agora estava sentado na cama a ler o que eu te tinha escrito, querida irmã, estas cartas que nunca te enviei e que foram redigidas para os teus olhos e para os de mais ninguém. Se não foi um sonho, também o ouvi rir.
Os escritos do Hagström têm-me sido muito úteis. Incluem desenhos que mostram a melhor forma de separar um membro do corpo, onde devo fazer as incisões e a importância de deixar uma aba de pele para cobrir o coto. Primeiro amarro-o para estancar a hemorragia, com uma tira de couro que trouxe dos estábulos e que corto no comprimento certo. Unto o couro com banha para o manter maleável e forte e impedir que fenda quando aperto com toda a força de que sou capaz.
Não tenho muito apetite, querida irmã, e ainda bem, porque tenho de esgravatar os campos em busca de comida. Não sei como o meu anfitrião se mantém vivo. Talvez tenha comida armazenada num lugar que só ele conhece. A camisa está-me larga, as calças caem-me pelas pernas abaixo. Ultimamente, tenho de as amarrar em volta da cintura para as manter no lugar. O retrato da sala assombra-me os sonhos. O meu anfitrião disse-me que é o seu pai. Diz que o odeia. Nos meus sonhos, vejo um homem com belas vestes a tactear às cegas pelos quartos e corredores da casa, com um buraco no lugar da cabeça. Procura o filho, não sei se para o abraçar ou para o estrangular.
Ontem preparei-me para lhe separar o braço esquerdo do ombro. Já só falta este e a perna do lado contrário. Depois disso, terei de encontrar uma nova forma de manter o meu paciente amarrado à mesa, pois já praticamente não me restam membros para prender com as tiras de couro. Afiei a faca e examinei cada um dos dentes da serra com o polegar, para verificar se estava afiada. Espalhara vinagre pelo chão e pelas paredes, substituído a caruma de pinheiro e fumigado a sala para purificar o ar. Acabara de dar um nó na tira de couro e de atravessar um pau nela para a torcer com toda a força de que fosse capaz quando notei algo. A luz do Sol entrava na sala e brilhava-lhe no dedo. Era um anel, minha irmã, no dedo mindinho da mão esquerda. Já devia tê-lo visto, mas até agora não lhe dera importância. Debrucei-me para o observar melhor. O anel era de ouro e tinha uma face oval. Cuspi na mão e fi-lo deslizar para fora do dedo — a mão tentou agarrar-me com as unhas falhadas, mas fui suficientemente rápido para não me deixar arranhar. Na face de pedra escura estava gravado um brasão, belo e detalhado. Senti-me zonzo, como se tivesse batido com a cabeça. Soltei a tira de couro e fui sentar-me no degrau da entrada.
Ao longe, um corvo grasnou do cimo de uma bétula. Fiquei muito tempo em silêncio a observar o anel. Era o tipo de anel usado por homens nobres, com um brasão a representar a família. Embora nunca me tivesse sido dito o seu nome, aquele anel poderia identificá-lo se alguém soubesse interpretar o brasão.
Comecei a tremer enquanto os pensamentos me rodopiavam pela cabeça. A providência dera-me uma oportunidade de ter um pequeno gesto benevolente para com aquele a quem fizera mais mal do que uma pessoa infligiria ao seu pior inimigo. Mas como? Comecei a andar de um lado para o outro em frente ao pequeno edifício de pedra. O vinho que bebera turvava-me os pensamentos. Quando a voz falou atrás de mim, pensei que me ia bater ou que ia cair morto no chão. «Como vai o braço esquerdo? As tuas roupas ainda não têm manchas. Do que estás à espera?» O meu anfitrião estava mesmo atrás de mim. Move-se sem fazer o menor ruído. Senti os cabelos da nuca arrepiarem-se e ouvi a mentira na minha voz quando respondi, ao mesmo tempo que fechava a mão em volta do anel de ouro, «De nada, senhor, ia começar agora mesmo». Como sempre, o seu rosto não revelou qualquer expressão em volta daqueles olhos vazios como um lago escuro sob o céu nocturno. «O que apertas com tanta força na mão? Tens os nós dos dedos brancos. Mostra-me.» Baixei a cabeça, estendi as mãos e mostrei-lhe as palmas. Ambas vazias. Antecipando o seu sentido sobrenatural que lhe permitia perceber sempre quando lhe estavam a esconder algo, soltei o meu segredo na relva atrás de mim, por trás da minha perna. Ele fitou-me demoradamente enquanto eu mantinha as duas mãos trémulas estendidas à minha frente. «Não desperdices o teu tempo. Estás a ficar mais magro a cada dia que passa. Não me serves para nada se morreres de fome antes de concluíres a tua tarefa.» Dito isto, deu meia-volta e deixou-me. Quando ouvi os seus passos atravessarem o pátio, baixei-me para procurar o anel. As suas últimas palavras haviam-me dado a ideia de que não conseguiria encontrá-lo sozinho.
Na sala, encostei a mão à face do meu paciente. O seu rosto ainda era belo, apesar de haver apenas duas órbitas vazias por trás da ligadura e de as faces terem afundado devido à falta de dentes. Nunca lhe tinha tocado assim, e ele pareceu acalmar-se. Peguei no anel com o polegar e o indicador e aproximei-o dos seus lábios. Quando ele percebeu o que era, pus-lho na boca e fui buscar água. Fi-lo beber e ouvi o som dos goles. Abri-lhe os lábios para olhar lá para dentro. Não havia o menor vislumbre do ouro. Tinha-o engolido.
O meu anfitrião tem um plano para o pobre coitado. Este desmembramento deve ter outra razão de ser. No seu estômago, o meu paciente transporta agora a prova do seu nome e da sua origem. Para quê não sei, pois em breve ter-lhe-ei decepado os membros restantes e tê-lo-ei privado de uma oportunidade de comunicar com o mundo exterior, mas talvez alguém o encontre, siga as pistas e venha dar aqui, ao monstro que é responsável por esta atrocidade sem igual. Não sei se o meu paciente ainda consegue ouvir. Seguindo as ordens do meu anfitrião, ao terceiro dia enfiei-lhe um espeto no canal auditivo, o mais fundo que consegui, e até bati palmas junto aos seus ouvidos, sem obter qualquer reacção. Ainda assim, curvei-me, aproximei a boca de um dos ouvidos e disse: «Se o anel sair, vou dar-to a engolir novamente, depois de o ter lavado. Quando nos separarmos, terás de ser tu a tratar dessa tarefa se quiseres mantê-lo. Como vais fazê-lo, não sei.»
Se ele entendeu, não deu o menor sinal. Depois cortei-lhe o braço esquerdo, levei-o num balde ao Magnus e fui para a adega beber até cair para o lado. Continuava a não conseguir dormir. Como já venho fazendo há muito tempo, preparei a minha tinta com fuligem e água, mergulhei a pena nela e escrevi-te, minha irmã e única amiga.
Lembras-te, minha irmã, de como costumávamos falar de um mundo para além deste, naquelas noites de Primavera em que me ajoelhava ao lado da tua cama até os pássaros começarem a cantar e os primeiros raios de Sol entrarem pela janela? De como costumávamos fantasiar acerca de um belo prado para além deste vale de miséria e sofrimento, onde um dia saltaríamos de mão dada por entre as flores, sem medo nem preocupações, e onde a tristeza nunca poderia alcançar-nos? Quando nos cansássemos, deitar-nos-íamos à sombra das árvores, refrescados pela brisa. Beberíamos água fresca de uma fonte e saciaríamos a nossa fome com maçãs e bagas. Riríamos juntos, muito, muito longe da febre de Karlskrona, onde os barcos a remos chegavam todos os dias, lançados pela frota de Inverno e apinhados de corpos pretos-azulados, para atracarem nas nossas praias. Seríamos felizes juntos, como só um irmão e uma irmã podem ser.
Já não sonho com prados e bagas, querida irmã. Esses sonhos foram destruídos. Dizem que a inocência, depois de perdida, não pode ser recuperada, e neste Verão os sonhos foram-me roubados. Como posso voltar a sentir alegria ou felicidade depois do que vi e fiz?
Passaram-se quase quatro anos desde que a febre te levou, minha irmã, e que o teu coração parou de bater. O lençol lavado com que te cobri repousou sobre o teu peito. Percebi que já não respiravas e que não me restava mais nada senão cavar a tua sepultura, fazer uma coroa com flores de Primavera para deixar na terra e unir dois paus numa cruz para erguer sobre a tua última morada.
Já não te peço que esperes por mim à sombra das árvores, com um rubor no rosto e o vestido de linho que a nossa mãe te deu pelo aniversário, o qual viria a ser o teu último. Em vez disso, todos os dias rezo para que estejas em paz na sepultura onde te deixei e para que não exista nenhum prado paradisíaco para lá da morte, onde possas saber o que fiz. Peço para também eu ser em breve deitado numa cova igualmente escura onde exista apenas o vazio e absolutamente mais nada.