Anna Stina sabe que o fogo é um jogo de ângulos e espaço. O que vai ser queimado tem de ser cuidadosamente empilhado e de ter espaço suficiente para atear. É como uma coisa viva, o fogo, e, como tudo o resto, precisa de respirar. As brasas dos paus cuidadosamente colocados que acende no fogão da casa, em Katarina, revelam-se mais difíceis de fazer pegar do que imaginara. A pilha de Årstaviken é feita de pequenos galhos e vai incendiar-se assim que for tocada por uma tocha. O padre aguarda pelas sete horas. Quando o homem no cimo da torre da igreja de Katarina der as horas, a fogueira será acesa em honra de Santa Valborg.
Anna Stina costumava ter medo do fogo. Nas histórias infantis este era sempre um monstro, descrito por aqueles que tinham visto as suas casas reduzidas a cinzas, mas Anna Stina foi criança noutros tempos, criada em Estocolmo, que foi construída em pedra e não em madeira, e com os anos tornou-se cada vez mais difícil para ela ver a ligação entre o fogo devorador e o fogo acolhedor da lareira. Também esta noite, quando crescer dali a algumas horas, será domado, controlado e diminuído com o auxílio de baldes.
A noite está quente, mas o vento que sopra do mar é frio. É bem apreciado, uma vez que o Barnängen agora chega ao Fatburen de barlavento, onde a geada desapareceu e o fedor pode ser visto a olho nu, no meio dos enxames de moscas. Entre a Primavera e o Verão, a luz nocturna é agradável. Para trás ficou a escuridão dos meses de Inverno, em que os caminhantes nocturnos tinham de apalpar o caminho de braços estendidos à sua frente, de candeeiro em candeeiro, todos os objectos perdidos passavam a pertencer à sarjeta e a única esperança era insinuar-se junto dos limpadores das ruas no dia seguinte ou permanecer no mesmo lugar até ser madrugada. De todas as estações do ano, a Primavera é a preferida de Anna Stina. O ano ainda não teve tempo de quebrar as suas promessas. Tudo parece possível.
Não é a única a alegrar-se. O prado está repleto de pessoas. Na relva estão sentadas crianças, pobres e vagabundos das congregações de Katarina e Maria, lado a lado com os trabalhadores das fábricas, os que têm tempo e energia para despender. Mais à frente estão as pessoas finas, os donos das fábricas com amigos da cidade entre as pontes, um grupo de nobres com roupas bonitas de seda e rendas. Ao lado dela está sentado Anders Petter, o vizinho. É alguns anos mais velho e já está a aprender a acompanhar o pai no mar. Um dia, saltará para o cais e caminhará com passos firmes sobre uma prancha irregular. E as velas brancas levá-lo-ão para lá do Saltsjön, em direcção ao mar, até Beckholmen ocultar o percurso do barco pelo mundo fora, muito longe de Estocolmo. Inveja-o. Sente-se presa à cidade por correntes que não são menos pesadas apenas por serem invisíveis.
A brisa vinda de Hammarby intensifica-se. Puxa os joelhos para o queixo e, ao mesmo tempo, ouve-se um grito das alturas. A tocha é encostada à base da fogueira, onde o fogo começa a lamber ansiosamente os galhos. As chamas pegam e sobem até ao topo. Um tumulto espalha-se por entre os grupos ali reunidos quando se descobre que o grito não veio da torre, mas de um dos miúdos de rua, que, impaciente, imitara essa voz. Tal coisa nunca havia acontecido. Um guarda corre, desanimado, pela colina acima para perseguir os pecadores, que rapidamente desaparecem em todas as direcções, com risinhos, mas os celebrantes encolhem os ombros. A alegria espalha-se. Garrafas de aguardente passam de mão em mão. O crepúsculo intensifica-se. O fogo, que é agora uma garra luminosa a fazer pressão contra as estrelas, torna difícil distinguir algo mais do que silhuetas. Uma delas, no entanto, é inconfundível: uma figura embriagada está presa às mãos dos casacos azuis e é mantida à distância enquanto uma grande pinça a prende pelo pescoço. Debate-se e tenta saltar, primeiro para um lado, depois para o outro. As suas imprecações e natureza arrogante atraíram um séquito de observadores, que riem às gargalhadas. Só depois de o grupo passar Anna Stina repara que Anders Petter pousou a mão na dela.
Anna Stina sempre soube que este dia haveria de chegar. Não é ingénua. Anders Petter foi um bom amigo enquanto brincavam juntos nos jardins, mas ambos tinham crescido, e o interesse dele ultrapassara há muito os limites da amizade. Não tem nada contra Anders Petter. É uma companhia agradável e é bonito, com o cabelo escuro e os olhos claros, mas não se sente pronta para o passo que ele quer dar. Não sente desejo de proximidade física, tal como a mãe, Maja, que viveu sozinha toda a vida. Talvez uma noite, num futuro pouco distante, quem sabe, mas agora não. Já esperava por isto há algum tempo e passara noites em claro a ponderar como abordaria a rejeição sem arruinar a amizade. Por isso, é com surpresa que constata que a reacção surge espontaneamente, antes de ter tempo de a invocar. Afasta a mão. No silêncio que se segue, não sabe o que dizer. Está feliz por ter escurecido o suficiente para poder esconder o rubor do rosto. Em vez disso, é Anders Petter que fala.
— Sabes que gosto de ti, Anna. Sempre gostei.
As palavras escapam-lhe.
— Em breve estarás em idade de casar, Anna. A tua mãe já não tem muita saúde. Quando ela se for, não vais ter ninguém. Podemos procurar o padre, Anna, e pedir-lhe a bênção…
A voz dele vai ficando mais sumida até que desaparece completamente. Ela continua sem saber o que dizer. Odeia-se por isso, sabendo que a dor dele aumenta com o seu silêncio. É como se fosse um bloco de mármore, perdido entre as torres de Barnängen, a caminho do cinzel de Sergel.
São os soluços de Anders Petter que a puxam de volta para a consciência. Já não consegue vê-lo, mas ouve o seu amigo de infância outra vez, o mesmo rapazito que consolou quando esfolava os cotovelos ou quando sofria os castigos do pai. Quando era pequena, Katarina não era a pocilga suja que aprenderam a conhecer com a idade, antes uma terra de contos de fadas, cheia de aventuras e imaginação. As ideias eram dela, mas sem ele não teria sido possível concretizá-las. Ela transformara o tecto de um abrigo no convés de um barco a navegar em direcção à China ou à Índia. Pedras e lascas de madeira transformavam-se em porcelanas e jade para felicidade de ambos. Quando as chuvas de Verão faziam a água correr pela colina de Katarina abaixo, transformavam-se em bombeiros. Anna Stina descrevia as chamas que só ela via, enquanto Anders Petter trabalhava e ria, carregando um balde furado. Ela dourara os dias com a sua fantasia. Durante muito tempo, pensou que era por isso que ele gostava tanto dela.
Mais uma vez, a reacção partiu directamente do seu coração, sem tempo para pensar ou calcular. Vira-se e abraça-o, põe os braços finos em volta dos seus ombros trémulos e sente que ele escondeu o rosto nas mãos. Balança-o para trás e para a frente, como sempre fez. Ele reage, põe os braços em volta dela e enterra o rosto no seu pescoço, enquanto ela lhe acaricia o cabelo. É um abraço redentor, e Anna Stina começa a pensar que está tudo bem quando os lábios dele procuram os seus. Cobre a boca dela com a sua ao mesmo tempo que os seus braços a apertam com força. Quando ela recua, ele segue-a, e caem para trás na relva. Ele muda de posição, pressionando-a contra o chão com as suas ancas pesadas, e, quando ela tenta protestar, a língua salgada de Anders Petter entra-lhe na boca.
Anna Stina sente-se confusa, como se aquilo fosse um mal-entendido. O horror segue-se imediatamente. Anders Petter sabe que foi rejeitado. Talvez espere que os beijos a façam mudar de ideias, que tenha sido apenas para proteger a sua honra que ela o rejeitou, que talvez esteja grata por poder fingir que a culpa foi dele. Os sons que Anna Stina tenta emitir são sufocados por Anders Petter, primeiro uma tentativa de falar com ele, depois os seus gritos a pedir ajuda. Segue-se o pânico, e o peito e os ombros de Anders Petter prendem-na ao chão, enquanto tenta afastar-lhe as pernas com os seus joelhos fortes. Algo está prestes a ser-lhe roubado, algo que não quer dar, e não há nada que possa fazer.
Mais tarde, Anna Stina recordar-se-á de todas as coisas que lhe passaram pela cabeça naquele curto espaço de tempo. As emoções conflituosas. Uma parte do seu ser que lhe sussurrara que a culpa era toda sua, que o que acontecera era algo natural, que aquele tipo de aproximações devia ser bem recebido. Conheciam-se desde sempre. Porque não haveriam de se conhecer também desta forma? Por toda a parte, no bairro pobre de Katarina, vêem-se as relações infantis transformarem-se em relações adultas. Quantas delas não terão começado com cenas como esta, em que o rapaz que se tornou homem é quem sabe e a rapariga que se tornou mulher tem de ser forçada a ver a razão?
Não. Ela suga-lhe o lábio inferior e enterra nele os dentes com toda a força de que é capaz. Sente um líquido quente com um sabor metálico. Quando ele recua, Anna Stina consegue estender a mão sob a chuva que cai sobre si e dá-lhe uma chapada, duas. Os braços que a prendiam retrocedem para conter o sangue, a pressão que a mantinha presa desaparece. Anders Petter sai de cima dela e fica deitado na relva.
Choram cada um para seu lado. Anna Stina é a primeira a parar. Estende a mão para tocar novamente em Anders Petter, como amiga, como que para lhe dizer que é capaz de perdoar o que aconteceu, mas é como se o seu toque o queimasse. Ele afasta-se com um sacão, quase caindo, mas por fim consegue levantar-se e começa a correr pela colina acima.
Anna Stina fica sentada mais algum tempo. Lá em baixo, junto à baía, a fogueira é uma pilha incandescente que em breve estará reduzida a cinzas. Um velho com o chapéu de lado e nós na barba está sentado um pouco mais acima e lança-lhe um sorriso desdentado com uma mão enfiada dentro das calças, cobertas de sujidade e de vomitado. Esteve ali sentado durante todo aquele tempo. Cospe um pouco de tabaco pelo espaço entre os dentes da frente.
— Estava à espera de um espectáculo melhor, mas tenho a certeza de que hás-de encontrar um adversário mais fogoso, e nessa altura talvez tenhas a bondade de avisar um pobre coitado disposto a pagar um xelim para assistir!
Dá uma palmada na perna e ri-se da sua própria piada. Ela estremece de desconforto, sacode a erva da roupa e segue o mesmo caminho que Anders Petter seguiu, em direcção a Katarina.