2.

Com a Primavera chega o calor, com o calor chega a febre. Espalha-se rapidamente e, embora atinja jovens e velhos, ricos e pobres, é mais cruel para os mais fracos. Desde que Anna Stina se lembra, a sua mãe, Maja, sempre trabalhou como lavadeira em Barnängen, com as costas curvadas sobre lãs e linhos nas baías e cais, ombros com ombros com outras mulheres na mesma situação. Na Primavera adoecia. Foi sempre assim. A febre atacava facilmente as fábricas, apesar de manterem as janelas fechadas para afastar os fumos nocivos da cidade, e Maja Knapp estava sempre entre os afectados. Começava com uma dor de garganta e inchaços de ambos os lados do maxilar inferior. À noite ficava com calor, destapava-se e suava copiosamente. Ao final do dia ficava na cama. Às vezes tinha muito frio, às vezes calor, e Anna Stina, que partilhava com ela as cobertas, via-se ser puxada ou afastada pela mãe, adormecida. Maja não quer comer, mal consegue beber, tem de ser obrigada a alimentar-se.

Às vezes delira. As palavras surgem como uma corrente, como se não conseguisse contê-las, às vezes palavras que ninguém conseguia entender, outras vezes falando com grande clareza, como se estivesse acordada e em plena posse das suas faculdades. Nesta noite, enquanto Anna Stina tenta fazê-la abrir a boca para a obrigar a engolir colheradas sucessivas de sopa, fala do fogo. Como muitos velhos, chama-lhe o galo vermelho, o fogo que destruiu quase toda a zona de Maria no ano de 1759, quando Maja Knapp ainda só saíra do ventre da mãe há poucos anos. Anna Stina ouviu aquela história mais vezes do que consegue contar, mas nunca como naquela noite. Sob a influência da febre, Maja fala descontroladamente, e os detalhes surgem como se estivesse a ver a cena diante dos seus olhos. É a história de como foi ali parar, à congregação de Katarina.

Maja Knapp aluga uma cama para si e para a filha em Katarina, mas foi na congregação de Maria que nasceu. Estava na casa dos pais nesse dia, num Verão em que o calor se transformara de alegria em seca. No espaço entre as casas, construiu uma quinta feita com caruma de pinheiro e pinhas, com pedras a fazerem de casas e paus a fazerem de cerca. O pai e a mãe estavam a trabalhar nos campos para lá de Danto. Enquanto a mulher do vizinho, que já era demasiado velha para trabalhar, ficava de olho em Maja entre sestas, ela podia brincar durante horas à sombra de uma tília.

A tarde ainda mal começara quando o sino da igreja de Maria começou a tocar descontroladamente. Duas batidas claras, repetidas uma e outra vez, antes do toque das quatro. Rapidamente veio a resposta da torre de Katarina, e um momento mais tarde o mesmo sinal emanou das três torres da cidade entre as pontes. Depois soou o toque do outro lado do Gullfjärden, de Klara, Jakob e Hedvig, e da torre do sino no topo de Brunkebergsåsen. Seguiu-se um canhão em Skeppsholmen, com uma salva dupla, e repetiu-se, com os mesmos dois tiros. Por toda a cidade foram hasteadas as bandeiras que sinalizavam que havia fogo. A sua cor indicava a direcção do perigo.

O cheiro fez-se sentir pouco depois, um cheiro a fumo. Fazia arder os olhos. Os primeiros fugitivos começaram a descer as ruas, pessoas que haviam carregado todos os pertences que desejavam salvar em carrinhos ou às costas. Na primeira meia hora foram apenas os poucos que viviam perto da igreja e esperavam que o fogo fosse extinguido. A esperança desapareceu com as ratazanas.

Apareceram numa onda cinzenta, saídas das caves e dos anexos e dos armazéns junto ao porto, a correr em direcção ao Saltsjön. Toda a gente sabe: quando as ratazanas fogem, tudo está perdido. A seguir veio o pânico. Uma hora depois de os sinos terem começado a tocar, o vento intensificou-se, cobriu a cidade de fumo, e a congregação de Maria ficou mergulhada na escuridão.

*

Um jovem apareceu a correr para levar a velha da casa ao lado. Mal olhou para Maja. Só quando já estava a sair da propriedade a consciência o obrigou a voltar atrás.

— Corre, miúda. O fogo está a vir de Danto e Hornstullen. Corre para Slussen.

Por estar proibida de sair para a rua sem estar acompanhada, escolheu esperar, até que o fumo lhe deixou os olhos a lacrimejar. Cada golfada de ar que engolia resultava num ataque de tosse. Na rua, desorientou-se rapidamente. Nunca tinha saído de casa sozinha, e o fumo apagara todos os pontos de referência conhecidos. As torres das igrejas, os moinhos. A multidão assustava-a. Passos pesados com socas de madeira, rodas de carroças e carrinhos de mão. Em vez de ser atropelada contra o chão de terra e as pedras da calçada, escolheu esconder-se numa abertura entre duas tábuas numa parede. Junto ao chão ainda era possível respirar ar puro e, com o rosto encostado ao solo, esperou. Do meio das trevas, a oeste, vinham sons terríveis. Vacas e cavalos que haviam sido deixados presos eram assados onde estavam e soltavam vozes de agonia. Maja Knapp ainda estava no seu esconderijo quatro horas mais tarde, quando o Sol se pôs e a corrente de fugitivos terminou. Só nessa altura se aventurou a sair e a ver o céu em chamas.

Das pedras da calçada, viu-o pela primeira vez, o galo vermelho. Mais alto do que a torre da igreja de Maria e com chamas que se erguiam até aos céus. Subiu a colina à beira da água e chegou ao topo da montanha com um rugido avassalador. Engoliu tudo o que encontrou pelo caminho. As chamas lamberam a madeira seca das paredes dos edifícios. Cercaram as casas de pedra dos ricos por todos os lados até deixarem marcas negras nas fachadas e nas pilastras, partindo os vidros das janelas e transformando o interior em fornalhas, um calor suficiente para pegar fogo aos móveis e às tapeçarias. Quando as telhas de cobre dos telhados se tornaram incandescentes, saltaram das traves, levadas pelos ventos quentes como morcegos vermelhos de asas magoadas. O calor do hálito do galo vermelho fez-lhe bolhas na cara. As marcas que estas deixaram ficariam consigo para o resto da vida.

Mais ao fundo da rua, viu um homem com uma só perna a coxear apoiado na bengala, com o fogo no seu encalço. Quando a bengala ficou presa nas pedras e lhe foi arrancada da mão, tentou rastejar. As roupas e a peruca começaram a deitar fumo enquanto gritava, e subitamente a peruca pegou fogo. De repente, ficou com a cabeça exposta, sem que as chamas lhe tivessem tocado. Continuou a gritar durante muito tempo. Finalmente, ela começou a correr, a chorar e a gritar, para longe do calor, com o rosto sujo marcado pelas lágrimas. À sua volta, faíscas voavam e ateavam novos fogos onde aterravam. Parecia-lhe que estava a correr por uma floresta, com chamas em vez de folhas.

O colo da mãe aguardava-a na praça Södermalmstorg, onde os habitantes haviam sido levados para Slussen pela guarda. Nunca mais viu o pai. Já não se lembra do rosto dele.

O fogo durou mais um dia. Maja e a mãe viveram da caridade das igrejas nos primeiros tempos. Mais tarde, foram acolhidas pelo dono da propriedade de Danto. Da sua casa não restava nada. Nunca conseguiram identificar o corpo do pai. Uma geração inteira foi transformada em vagabundos do dia para a noite, condenados a vaguear para o resto da vida pelas ruas da cidade, bêbedos e andrajosos, sombras das pessoas que haviam sido em tempos. Trezentas quintas e casas deixaram de existir. Vários bairros foram reduzidos a cinzas.

Durante a sua infância, Maja Knapp viu-os renascer, mas agora como uma cidade de pedra. As casas de madeira da sua infância desapareceram. Os carpinteiros morriam à fome, enquanto os pedreiros enriqueciam. Juntamente com a mãe, Maja Knapp mudou-se para Katarina, onde as casas de madeira ainda estavam de pé, organizadas em ângulos irregulares e em todas as direcções, para os donos conseguirem fazer mais dinheiro com elas. A chuva entrava pelos telhados, e os chãos eram de terra, pelo que os baldes deixados para apanhar a água congelavam nas noites de Inverno. Uma nova armadilha mortal para os desamparados. Ali ficaram. A mãe encontrou um novo homem e teve outra filha. O pai desapareceu assim que a barriga começou a notar-se.

Anna Stina pousa a mão na testa da mãe. Maja Knapp está quente, a sua respiração é fraca. Não há dúvida de que é a febre que está a fazê-la recordar o incêndio na congregação de Maria, às mãos do galo vermelho. Anna Stina sente um aperto no peito. Não quer deixar a mãe sozinha, mas não tem outro remédio senão ir à procura de ajuda, apesar de não ter nada para oferecer em troca.

Quando põe o xaile por cima dos ombros e abre a porta para sair a correr, surpreende-se ao ver que já ali está alguém: o sacristão Boman, da igreja de Katarina. É jovem e espera um dia vir a assumir a direcção da paróquia, quando o pastor Lysander for ao encontro do Criador. Cheira tanto a álcool que de certeza esteve a beber momentos antes de Anna Stina abrir a porta. Ela não esperava a ajuda dele e perguntou-se quem o teria enviado.

— A mãe Maja tem febre. Por favor, leia para ela enquanto vou buscar o farmacêutico.

Quando Anna Stina regressa, meia hora mais tarde, não cumpriu a sua missão. O farmacêutico Josef Karlsson saiu para jantar. A mulher disse-lhe que ele já devia estar tão bêbedo que não serviria de nada, mesmo que Anna Stina fosse a Djurgården chamá-lo.

O silêncio abateu-se sobre a casa. Mesmo as famílias com quem dividem a residência estão em silêncio à porta, quando Anna Stina entra. Ao lado da cama, o sacristão está de pé com as mãos unidas. O lençol foi puxado para cobrir o rosto de Maja, e, a princípio, Anna Stina não entende o motivo. O sacristão pigarreia. As palavras que pronuncia parecem demasiado solenes para aquela voz tão jovem.

— Anna Stina, a tua querida mãe, Maja Knapp, deixou-nos. Que Deus tenha piedade dela.

Murmura algumas palavras que ela não ouve. Os joelhos cedem sob o peso de Anna Stina. Perde o fôlego, como se tivesse levado um murro no estômago. Não tem nenhum som, nenhuma palavra para acrescentar ao vazio que toma conta dela. As lágrimas começam a correr. A injustiça é mais do que consegue suportar. Maja Knapp, que durante tantos anos cuidou sozinha da filha, que enfrentou o desdém da congregação por ter uma vida miserável, que arruinou o corpo a trabalhar dia após dia, sofreu tanto para morrer sozinha e sem consolo? É demasiado. O corpo de Anna Stina estremece. O sacristão Boman tem dificuldade em encontrar as palavras quando volta a falar.

— Não foi por causa da sua mãe que aqui vim esta noite. Vim a mando do pastor. Deve saber que nenhum de nós tinha conhecimento do que o destino havia planeado para esta noite. Acredito que terá sido a providência a garantir que a mãe Maja tivesse um homem de Deus ao seu lado na sua última hora.

Boman recupera a compostura e limpa o nariz antes de continuar.

— Recebemos cartas com testemunhos contra si. Tem de ir ao consistório responder pelas acusações de prostituição e maus costumes. O padre vai querer falar consigo primeiro.