O guarda do rosto às manchas chama um colega mais novo, abre um trinco e conduz os três ao pátio. No centro há um poço com uma bomba. O pequeno quadrado de céu acima das suas cabeças parece tão distante como se Anna Stina estivesse a olhá-lo do fundo de um buraco. Do outro lado das janelas cobertas por grades vêem-se vultos debruçados sobre as suas tarefas. Um dos lados do pátio termina num edifício de aspecto mais velho e que parece construído com outra finalidade. Quase se assemelha às mansões que Anna Stina viu em volta de Södermalm, construídas há mais de cem anos para os cavalheiros se divertirem. Certamente estava ali primeiro e foi incorporado na tecelagem à medida que esta foi sendo alargada. Os guardas mantêm-se parados. Têm de esperar pelo capataz.
Este não tem pressa nenhuma. Se a rapariga conhecida por Dragão sente a mesma ansiedade que Anna Stina, não o mostra, pelo contrário, importuna o guarda encarregado de as vigiar. Salta no mesmo lugar e pede para ir à casa de banho. O guarda encolhe os ombros.
— Fica quieta, se tens um pouco de juízo. O Petter Pettersson já vem a caminho. Se fores esperta, não o provocas.
Ela lança-lhe um olhar trocista e imita-o com uma careta assim que ele lhe vira as costas. Continuam à espera.
O capataz é um tipo enorme, com ombros tão largos como os braços de Anna Stina abertos. O uniforme azul não lhe assenta bem, usa o casaco desabotoado. Ela duvida de que conseguisse abotoá-lo, mesmo que quisesse. Transpira por causa do calor. O seu rosto é grande e redondo, com uma boca que vai quase de orelha a orelha, um nariz tão largo e arrebitado que parece um focinho, e tem olhos brilhantes com olheiras marcadas. O cabelo, basto, está preso junto ao pescoço com um nó forte. A pele está coberta de velhas cicatrizes. A sua voz é áspera e grave.
— Bem-vindas ao nosso pobre recanto, belas franguinhas! O meu nome é Pettersson, e sou o capataz da casa, juntamente com o meu colega Hybinett. Foram trazidas para cá para melhorarem o vosso modo de vida. Os vossos nomes?
É o guarda mais novo que aponta e responde em vez das prisioneiras.
— Anna Stina Knapp, Karin Ersson.
Pettersson estuda-as. Anna Stina fita o chão, como sabe que aquele tipo de homem prefere. O Dragão fita-o com um olhar de desafio. Balança os joelhos para conter a vontade de se aliviar. Pettersson aponta para ela com uma mão grande como um presunto.
— O que se passa com a menina Ersson?
— Diz que quer mijar.
— É verdade, menina Ersson? Está certamente habituada a correr livremente e a urinar onde lhe apetece, como um animal selvagem na natureza.
Ela hesita antes de responder. Anna Stina nota o tom de desafio na voz de Pettersson, o seu ar sarcástico, e reza para que Karin Ersson tenha o bom senso de não morder o isco. Não tem. Estica o queixo para a frente e cospe a sua resposta.
— Ninguém tem nada a ver com a minha necessidade de esvaziar a bexiga.
Os cantos da boca de Petter Pettersson levantam-se num sorriso que faz Anna Stina estremecer. Um gato do campo gordo com um rato debaixo das garras. Passa lentamente a língua pelos lábios enquanto se aproxima dele.
— Quero vê-la.
Segura o queixo de Karin Ersson com o indicador e o polegar e vira-lhe o rosto para a luz.
— Ah, conheço bem as raparigas como a menina Ersson. Andam pelas caves e bordéis da cidade. Também gostas de dançar?
Anna Stina quer pedir-lhe para não morder o isco, para ficar calada, na esperança de que ele se canse daquele jogo. Não pode fazer nada. A outra rapariga solta uma gargalhada confiante.
— Sim, dou uns passinhos.
Pettersson parece impressionado quando se vira para o colega.
— Eu não disse que sabia? Conheço bem as minhas fiandeiras! E danças bem, menina Ersson, ou moves-te como um saco de farinha entre os teus cavalheiros e ficas com dores nos pés ao fim de uma polca ou duas?
Ela ri-se, trocista.
— Está a olhar para uma rapariga capaz de dançar toda a noite enquanto as outras se cansam e caem no chão!
Pettersson assente.
— Se assim o dizes! Quero acreditar na tua palavra, mas a experiência ensinou-me que não é fácil. Queres dançar um pouco aqui, para mim?
Ela hesita. Ao fim de um momento, não vê alternativa a não ser dar alguns pequenos passos de dança sem sair do lugar. Pettersson abana a cabeça.
— Não, não. Em volta do poço. É assim que fazemos aqui na ilha. Não queres dar umas voltas para vermos se és assim tão talentosa?
Oferece-lhe o braço, dobra um joelho numa vénia e raspa com o pé no chão. Ela deixa-se guiar para o poço, onde uma bomba se inclina sobre um pequeno tanque de pedra para recolher a água derramada. Ela parece insegura a princípio, empertiga-se e, com um floreado, põe o braço em volta de um cavalheiro invisível e deixa os pés moverem-se ao som de uma música que só ela ouve, andando à volta do poço a rodopiar. Pettersson bate palmas e assobia.
— Vejam só! A menina Ersson dança perfeitamente. Gostaria de lhe pedir mais uma volta, e com o mesmo entusiasmo.
A segunda volta é semelhante à primeira. Mas, quando Pettersson pede uma terceira e uma quarta, ela já não mostra o mesmo interesse. Cansou-se do jogo e deixa os braços penderem, abrandando o ritmo. Quando Pettersson bate as palmas e lhe pede que dê mais uma volta, ela fica parada com os braços cruzados.
— Chega de dança. Já não me estou a divertir e continuo a precisar de ir à casa de banho, atrás de um arbusto ou àquela esquina ali.
Sem parar de fitar Karin Ersson, Pettersson estala os dedos para o guarda que estava de pé, ao lado de Anna Stina. Sem dizer uma palavra, abandona o pátio, desaparecendo para trás de uma porta dupla. A voz de Pettersson já não denota diversão quando volta a falar.
— Podes mijar mais tarde. Agora vais dançar. Portanto, menina Ersson, dá mais uma volta. O Löf há-de regressar em breve e vai trazer uma surpresa. Mas primeiro tens de dar mais uma volta. Talvez duas, se tiveres sorte.
Já não é uma dança, antes uma marcha saltitante. Quando o guarda Löf regressa com um saco por cima do ombro, Pettersson aproxima-se mais de Karin. Löf estende-lhe o saco, e ele levanta-o à frente dela com um braço forte como um tronco.
— É aqui que vive o Mestre Erik. Espera um pouco, já vos apresento.
Tira do saco uma extensão de couro entrançado com duas varas de comprimento e uma pega, mais estreita na outra ponta.
— Talvez a menina nunca tenha visto um chicote. Não precisamos da ajuda do Mestre Erik se continuar a dançar tão bem. Agora dê mais uma volta, com um pouco mais de entusiasmo, se faz favor.
Dá mais três voltas e meia antes de Pettersson desferir a primeira chicotada. Abrandou tanto o ritmo que ele quase consegue acompanhá-la com as suas botas pesadas. A chicotada ecoa entre as paredes do pátio, e os gritos dela soam quase instantaneamente. A tira de couro mais fina na ponta atinge-a por cima dos tornozelos, deixando uma marca vermelha. Morde o lábio para conter as lágrimas, mas a sua respiração acelerada revela que Karin Ersson está à beira do choro. Pettersson também percebe.
— Isto não foi nada, menina Ersson. O Mestre Erik consegue ser pior. Continua a dançar e veremos se ele não tem de se juntar à dança outra vez.
Agora aparecem rostos nas janelas em volta, magros e pálidos. A rapariga dá cinco voltas antes de receber nova chicotada, agora na coxa e com tanta força que lhe rompe a pele. Depois de mais sete voltas, urina pelas pernas abaixo e continua a dançar com o vestido molhado. O sal faz-lhe arder as feridas. Começa a chorar, primeiro em silêncio, mas depois cada vez mais alto. Ao fim de pouco tempo, já não é possível distinguir os sons que faz devido às chicotadas do resto dos gemidos. Pede e implora, promete isto e aquilo a Pettersson. Ele ignora-a. Por fim, chama pela mãe, com gritos lancinantes. Ao fim de duas horas, já só consegue rastejar, enquanto Pettersson continua a deixar o chicote cair-lhe sobre as pernas e costas. Quando o Sol está no seu ponto mais alto, o sino da torre toca. As fiandeiras saem das suas salas para comer. Algumas apontam e riem-se da dança da rapariga. A maioria nem consegue olhar para ela.
Toda a resistência que o Dragão desenvolveu nas ruas de Maria desaparece sob os golpes em volta do poço, a pouco e pouco, como se Pettersson estivesse a descascar uma das cebolas que Anna Stina costumava vender do seu cesto. Por fim, resta apenas uma criança assustada. Enquanto Anna Stina se mantém de olhos fechados e pernas trémulas do esforço de se manter de pé durante aquele tempo, sente algo dentro de si a mover-se na direcção contrária. Uma casca começar a endurecer à sua volta. Ouve aquele monstro torturar uma rapariga por prazer e com a lei do seu lado, sem ninguém poder levantar um dedo em protesto. Pettersson é igual a Anders Petter em Barnängen, a Lysander no seu gabinete, ao juiz no seu tribunal, a Fischer e ao Mudo com o bastão, a corda e a espada. Enquanto Karin começa a deixar um rasto de sangue em volta do poço, Anna Stina jura que nunca mais se permitirá ser uma rapariguinha indefesa, independentemente de como o mundo a veja. Nos seus pensamentos e acções, tem de se afastar daquele lugar cruel, e depressa, antes de se juntar ao rebanho de mortas-vivas da fiação. Já é tarde demais para Karin Ersson. Anna Stina sabe que nunca mais voltará a ser o que era.
Pettersson faz uma pausa, com o peito inchado a arquejar por baixo da camisa, de cansaço, mas também por outro motivo: percebe que Anna Stina está horrorizada. Pára para limpar o suor do rosto e olha para ela, que está de pé ao lado de Löf, o qual começou a balançar os pés de calor.
— Olha, Jonatan! Leva essa daí e mostra-lhe a cama dela, o lugar onde vai comer e a roca de fiar. E, quando voltares, traz uma garrafa, por favor. A educação é um trabalho árduo, e cheira-me que a Ersson ainda é capaz de dançar mais uma ou duas valsas, apesar de não parecer.