12.

Quando o Verão começa a aproximar-se do fim, a menstruação falta-lhe pelo terceiro mês consecutivo. No primeiro mês não fez caso. Muitas das raparigas da fiação deixavam de sangrar, porque os seus corpos subnutridos precisavam de conservar toda a energia. Da segunda vez, foi a mesma coisa. Disse a si mesma que provavelmente precisava de mais tempo para recuperar, apesar de, graças aos cuidados de Karl Tulipan, ter começado a ganhar algum do peso que perdera. Vive sob o seu tecto e ajuda-o com o trabalho no Markattan. O seu nome é agora Lovisa Ulrika. Se Karl sabe que não é a filha dele, mostra-o apenas com o espaço que lhe dá, em vez de a sufocar com o amor paterno que lhe arde no peito. Parece ter ganhado nova vida. Desapareceu o velho decrépito que encontrou quando chegou, encolhido como se atrás daquele balcão se escondesse de todas as dores do mundo. Karl das Flores recuperou as forças. O seu riso ecoa pela taberna quando brinca com os clientes. O bom humor é contagiante. O Markattan brilha, agora que as paredes imundas foram caiadas, os chãos foram varridos e as canecas lavadas e secas. A clientela aumenta. Até as pessoas finas de Riddarhustorget se contam agora entre os clientes quando a noite já vai longa e o discernimento é menor.

Quando o terceiro mês chega e passa, sabe que a felicidade que teve ao seu alcance terá vida curta. Contra a sua vontade, está agora grávida, do filho do guarda Jonatan Löf. Quando chegou, Karl Tulipan pegou-lhe na mão e levou-a a Sankt Nikolai para falar com o padre, para o seu nome ser inscrito nos livros e para a registarem na paróquia. Quando a barriga crescer, vai desgraçar o seu novo nome e o do seu novo pai.

Os que ainda se lembram de Lovisa Ulrika dos tempos de infância e que ao fim de alguns copos reparam, em tom de brincadeira, que as maçãs do seu rosto mudaram de lugar naqueles anos e que o seu nariz também parece diferente, mas que ainda assim calam as suas suspeitas em respeito para com a felicidade de Karl das Flores, terão em breve motivos para se comportar de forma diferente. Vão falar de uma interesseira, de uma enganadora que cometeu actos vergonhosos e que, no seu desespero, está disposta a tudo para garantir um bom futuro para si e para o filho. O próprio Karl terá de ouvir a verdade quando o padre o procurar, com a sua batina preta, para terem uma conversa séria. A rapariga é uma libertina, dirão. Tem mesmo a certeza de que é sua filha? Os seus clientes habituais, que se haviam alegrado por o verem feliz ao fim de tantos anos, vão persuadi-lo. Ela, Anna Stina Knapp, vai ser atirada para a sarjeta. Daí, o caminho para Långholmen será curto.

O padre Bengt Neander desapareceu, segundo ouviu dizer. A carta que enviou a condenar o inspector Hans Björkman pôs fim à paciência do colégio, que já estava por um fio, e foi contrariada pelos ossos descobertos na cave da casa, ossos que, apesar do estado em que se encontravam, só podiam ser associados ao desaparecimento da fiandeira Knapp. Em vez de ficar para enfrentar uma investigação, foi visto a embarcar num navio com destino a Inglaterra, a praguejar e a cambalear. Björkman também já não mantinha o cargo, partira na direcção contrária, através do Báltico. Mas Pettersson estava lá. E, com ele, o Mestre Erik. Aguardavam-na pacientemente do outro lado do fiorde, para a convidarem para dançar a última dança em volta do poço.

É numa noite de Setembro que o encontra pela primeira vez. Está na hora do fecho, e a maioria dos clientes do Markattan não é difícil de persuadir. Até os mais relutantes se deixam conduzir para a porta sem grande drama. Karl Tulipan já se recolheu, convencido de que o trabalho do dia chegou ao fim. Quando dá uma última volta aos barris que servem de mesas, descobre um cliente que ficou para trás, um homem encolhido num canto atrás de uma mesa, junto à lareira, a tentar aquecer-se. Está pálido e magro, não consegue adivinhar-lhe a idade. Parece simultaneamente jovem e velho. Os seus cabelos longos são louros, mas estão tão sujos que nem consegue perceber-lhes a cor. O rosto é uma máscara de manchas secas. Não é a primeira vez que o vê. Costuma vaguear por entre as mesas como um fantasma, desde a hora de abertura até à hora de fecho. Agora não quer sair. A respiração do homem é leve e sibilada, tem os olhos fechados, e o corpo está encolhido para preservar o calor. Não reage aos safanões. Ela tem de se ajoelhar para o abanar pelos ombros magros. O homem tresanda. Sob as suas mãos, sente apenas pele e ossos.

— Acorda. Já é tarde. Não podes dormir aqui.

Abana-o, a princípio delicadamente, mas depois com mais força. E é então que ele abre os olhos. Neles, encontra as mesmas emoções que enfrentou durante o ano que passou. Medo e confusão, um tipo de dor que não desaparece enquanto a memória durar, e vê que ele é jovem, mais novo do que teria imaginado, a avaliar pela sua aparência. Ele revira os olhos, e as pálpebras fecham-se para adormecer novamente, deixando-a sem saber o que fazer.

Anna Stina olha para a porta da rua. Um vento frio sopra com força lá fora. As candeias mal conseguem iluminar a calçada. O ano está a chegar ao fim, e a geada vai começar a qualquer momento. Fecha a porta e põe a tranca no lugar, vai buscar um pouco de lenha e atiça as brasas que ainda queimam por baixo das cinzas. Põe uma chaleira a aquecer, com um pouco de sabão na água, e, quando está quente, começa a limpar-lhe o rosto com um pano.

As crostas de sujidade começam a dissolver-se lentamente. Por baixo delas há um rapaz, pouco mais velho do que ela. Começa a recuperar lentamente a consciência e, apesar de a bebedeira lhe ter roubado o controlo sobre o corpo, faz o que pode para a ajudar a despir-lhe a camisa por cima da cabeça para a poder pôr na água com sabão e lavá-la. A água da chaleira fica preta num instante. Tem de aquecer mais. Dá-lhe água do poço a beber, depois mói uma mão cheia de grãos pretos e começa a preparar o café. Nunca se habituou a apreciar aquela bebida amarga, mas ouviu dizer que ajuda a restaurar a sobriedade. Fala num tom calmo, tentando despertá-lo com as suas perguntas. Lentamente, ele recupera a consciência e, com esta, a fala.

— Chamo-me Johan Kristofer Blix.

— Chamo-me…

Ela interrompe-se.

— Lovisa Ulrika, Lovisa Ulrika Tulipan.

Não quer contar-lhe do passado que não é seu, e ele também não parece muito interessado em falar sobre si.

— A minha terra natal é Karlskrona. Tornei-me cirurgião durante a guerra. Vim para Estocolmo em busca de felicidade, mas o que encontrei foi… outra coisa.

Ficam sentados em silêncio. Ela põe-lhe uma manta sobre os ombros enquanto a camisa seca por cima da lareira. Anna Stina surpreende-se ao sentir uma familiaridade nascer daquele silêncio. É isso que a faz perguntar a primeira coisa que lhe veio à mente quando ele lhe contou da sua profissão.

— Dizem que há ervas para ajudar as mulheres que engravidam contra a sua vontade. Como as que são usadas pelas borboletas nocturnas.

Não consegue esconder as emoções. Não é tristeza pela criança que não poderá nascer, mas ressentimento contra o pai dela e a impureza de que não parece conseguir livrar-se. Tem de esperar algum tempo pela resposta. Por fim, ele assente.

— Podes ajudar-me a arranjá-las?

O olhar dele foca-se na sua barriga, escondida pelas roupas largas que arranjou para adiar a revelação. Pestaneja, como se estivesse a vê-la pela primeira vez, e Anna Stina vislumbra algo mais no seu olhar, algo mais do que desespero e confusão. Até a voz dele tem um som diferente quando responde.

— Sim. Sim. Tu ajudaste-me, portanto, vou ajudar-te também.