— Guarda! Guarda Mickel! Acorda!
Quando os abanões vigorosos trazem Cardell de volta à consciência, a dor regressa também na zona por baixo do braço esquerdo, que já não possui. O membro em falta foi substituído por uma mão esculpida em madeira de faia. O coto assenta numa cavidade, e o pedaço de madeira está fixado por meio de tiras de couro em volta do cotovelo. Cravam-se-lhe na carne. Devia aprender a soltá-las antes de dormir.
Contrariado, Cardell abre os olhos e depara-se com a paisagem manchada do tampo de uma mesa. Tenta levantar a cabeça e percebe que tem a cara colada à madeira. Uma substância pegajosa arranca-lhe a peruca quando se levanta. Pragueja e enfia-a dentro do casaco, depois de a usar para limpar o rosto. O chapéu está caído no chão, amachucado. Endireita-o e puxa a aba para junto das orelhas.
As memórias começam a voltar. Ainda está na cave Hamburg. Deve ter bebido até à inconsciência àquela mesa. Um olhar por cima do ombro revela outros na mesma situação. Os poucos bêbedos que o dono achou suficientemente fiáveis para não serem atirados para a sarjeta estão estendidos nos bancos e debaixo das mesas, à espera da manhã, quando poderão ir para casa receber uma reprimenda dos que os aguardam. Mas isto não se aplica a Cardell. Sendo aleijado, vive sozinho e é dono do seu próprio tempo.
— Mickel, tens de vir! Está um morto no Fatburen!
*
São os dois pequenos vagabundos que o acordaram. Os seus rostos têm algo de familiar, mas não se recorda dos seus nomes. Atrás deles está Baggen, o velho gordo de Norströmskan, ajudante da proprietária. Tem o rosto corado e acabou de acordar, posicionando-se entre as crianças e a jóia da cave, fechada a sete chaves num armário pintado de azul: uma colecção de copos gravados.
Ali, na cave Hamburg, os condenados param com os companheiros a caminho da montanha onde serão executados, em Skanstull, e tomam o seu último copo. Em seguida, os copos são gravados com os seus nomes e com a data, antes de serem acrescentados à colecção.
Só se pode beber deles sob supervisão rigorosa e mediante o pagamento de um soldo definido com base no estatuto do executado. Diz-se que dá sorte. Cardell nunca entendeu porquê.
Cardell esfrega os olhos e percebe que ainda está bêbedo. A sua voz soa entaramelada quando tenta falar.
— Que raio se passa?
É a criança mais velha, uma rapariga, que responde. O rapaz tem lábio leporino e, a julgar pela aparência, é irmão dela. Franze o nariz ao sentir o hálito de Cardell e esconde-se atrás da irmã.
— Está um morto no lago, mesmo à beira da água.
A sua voz está carregada de um misto de alegria e de medo. A cabeça de Cardell parece prestes de explodir. O seu coração acelerado arruína a clareza de espírito que conseguiu invocar.
— O que tenho eu a ver com isso?
— Querido Mickel, não há mais ninguém a quem pedir. Sabíamos que estavas aqui.
Massaja as têmporas numa tentativa fútil de obter algum alívio.
O dia começou a clarear sobre Södermalm. A escuridão da noite ainda perdura no ar, o Sol ainda não se ergueu sobre Sicklaön e Danviken. Cardell sobe as escadas da cave aos tropeções e avança, trôpego, pela rua Borgmästaregatan, vazia, com as crianças à sua frente. Ouve sem interesse uma história sobre uma égua sequiosa que foi beber do lago Fatburen e saiu a correr, assustada, em direcção a Danto.
— Tinha o focinho por cima do corpo, e este virou-se.
O chão transforma-se em barro lamacento quando se aproximam da água. Há muito tempo que Cardell não tinha motivo para se aproximar das margens do Fatburen, mas nada mudou. Nenhum dos muitos planos para limpar as praias e construir pontões foi iniciado: o que não era estranho, tendo em conta que tanto o Estado como a cidade estavam à beira da bancarrota — sabia-o melhor do que ninguém, por ter de complementar o seu salário anual com todo o tipo de extras. As casas de férias luxuosas em volta do lago haviam sido transformadas em fábricas. As fábricas despejavam os resíduos no lago, e a zona rodeada por tábuas onde deveriam depositar-se os dejectos estava a deitar por fora e era ignorada pela maioria. Cardell pragueja em voz alta quando o calcanhar de uma das botas se enterra na lama. Tem de esticar o braço bom para manter o equilíbrio.
— A vossa égua assustou-se porque viu um companheiro a apodrecer. O talhante deita o lixo no lago. Acordaram-me para me fazerem vir salvar uma carcaça de cavalo ou de porco.
— Nós vimos um rosto na água, um rosto humano.
A água do lago Fatburen lambe a praia e forma uma espuma amarelo-clara. As crianças estão certas, visto que há algo a flutuar a alguns metros de distância, um vulto escuro. A primeira coisa que Cardell pensa é que não pode ser uma pessoa. É demasiado pequeno.
— São restos do talho, como vos disse. É um animal morto.
A rapariga não desiste. O rapaz acena com a cabeça, em sinal de apoio. Cardell resmunga, resignado.
— Eu estou bêbedo. Entendem? A cair de bêbedo. Não se esqueçam disso quando vos perguntarem pelo dia em que pediram ao guarda para ir nadar no Fatburen e ele vos deu uma sova quando voltou do mergulho, imundo e furioso.
Despe o casaco com a dificuldade inerente à falta de um braço. Esqueceu-se da peruca, que cai na lama. Paciência. Custou-lhe apenas algumas peças de cobre, o modelo já saiu de moda, e só a usa porque uma boa aparência aumenta a probabilidade de um veterano de guerra conseguir uma bebida ou duas de graça. Cardell ergue o olhar por um momento. Lá em cima, as últimas estrelas da noite cintilam numa faixa por cima de Årstafjärden. Fecha os olhos para assimilar aquela beleza antes de enfiar a bota direita no Fatburen.
A lama húmida à beira do lago não suporta o peso de Cardell. Afunda-se até aos joelhos e sente a água a entrar pelo cano da bota, que fica presa na lama quando cai para a frente. Chapinhando e nadando, Cardell começa a avançar.
A água é espessa. Sente-a deslizar-lhe por entre os dedos, cheia de todas as coisas que nem as pessoas dos guetos de Södermalm acharam que valia a pena guardar.
O álcool inibiu-lhe a capacidade de raciocinar. Sente o pânico a aumentar ao perceber que já não toca o fundo do lago sob os pés. O lago é mais fundo do que julgava. Subitamente, vê-se transportado para Svensksund, três anos antes, a ser arrastado pela corrente enquanto a frota sueca se afasta.
Cardell toca o cadáver que flutua na água quando se impulsiona na sua direcção. A princípio, pensa que estava certo. Não é um cadáver humano. É a carcaça de um animal, que os criadores do talhante deitaram fora e que agora inchou como uma bóia devido aos gases da decomposição. Mas então o corpo vira-se, e Cardell vê-se cara a cara com ele.
Não está decomposto, mas duas órbitas oculares vazias fitam-no. Sob os lábios rasgados não se vê um único dente. O cabelo manteve o brilho — a noite e a lama do Fatburen descoloraram-no um pouco, mas é obviamente louro-claro. Cardell inspira fundo e engole um pouco de água quando o faz.
Quando acaba de tossir, está deitado, imóvel, a flutuar ao lado do corpo. Olha para o rosto desfigurado. As crianças à beira do lago não emitem um único som. Aguardam em silêncio o seu regresso. Vira-se na água e começa a bater os pés descalços, nadando em direcção a terra.
É difícil puxar o corpo para a terra lamacenta, quando a água já não ajuda a suportar o seu peso. Cardell deita-se de costas e cria impulso com ambas as pernas, ao mesmo tempo que tenta puxar o cadáver pelas roupas esfarrapadas com que está vestido. As crianças não o ajudam. Em vez disso, fogem assustadas para longe da água, ao mesmo tempo que tapam o nariz. Cardell tosse para expulsar a água suja dos pulmões e cospe para a lama.
— Corram até Slussen e chamem os casacos azuis.
As crianças não fazem menção de obedecer. Mantêm-se simplesmente à distância, ao mesmo tempo que vislumbram aquilo que Cardell pescou no lago. Só reagem quando Cardell lhes atira um punhado de lama.
— Corram a chamar o maldito guarda-nocturno e um casaco azul, raios!
*
Quando o som dos passinhos desaparece, rebola para o lado e vomita. O silêncio abateu-se sobre a praia, e, na sua solidão, Cardell sente um aperto frio roubar-lhe o ar dos pulmões, cortando-lhe novamente a respiração. O seu coração começa a bater mais depressa, sente a pulsação na carótida e é assaltado por uma ansiedade violenta. Sabe bem o que se segue. Sente o braço que já não tem quase materializar-se na escuridão, até que todo o seu corpo lhe diz que está lá outra vez e lhe causa uma dor insuportável, uma mandíbula de ferro a morder-lhe a carne e os ossos.
Em pânico, Cardell desata as tiras de couro e deixa a prótese de madeira cair na lama húmida, agarra o coto com a mão direita e massaja com força a pele irregular para lembrar os sentidos de que o braço que pensam existir já lá não está e de que a ferida que está a causar a dor cicatrizou há muito tempo.
O ataque não dura mais de um minuto. Volta a conseguir respirar, primeiro em pequenas golfadas de ar, depois mais longas e lentas. A ansiedade deixa de o dominar, e o mundo assume formas familiares. Os ataques de pânico súbitos perseguem-no há três anos, desde que regressou a terra com menos um braço e um amigo. Ainda assim, já se passou muito tempo. Pensava ter encontrado uma forma de manter os medos à distância. Bebida. Brigas. Cardell olha à sua volta em busca de conforto, mas só vê o cadáver. Balança para trás e para a frente, enquanto agarra com força o coto do braço.
Não sabe quanto tempo passa até a guarda chegar. Fica sentado, imóvel, na praia, a olhar em frente. As roupas molhadas arrefeceram, mas a bebida que ingeriu ao longo dos anos ainda serve para o manter quente. Quando finalmente chegam, são dois homens de casaco azul e calças brancas, cada um com um mosquete equipado com uma baioneta. A forma como caminham diz-lhe que ambos estiveram a beber, o que é condenável mas muito comum. Cardell sabe o nome de um deles. São muitos os que partilham o hábito de beber para esquecer as dores, e as tabernas são pequenas.
— Ora se não é Mickel Cardell que veio dar um mergulho. Vieste à procura de alguma coisa valiosa que engoliste há alguns dias e não apanhaste quando saiu pelo outro lado? Ou andas atrás de uma meretriz que fugiu para o mar?
— Cala-te, Solberg. Posso cheirar a merda, mas tu e o teu amigo tresandam a bebida. Devias gargarejar com água do lago antes de ires acordar o chefe da guarda.
Cardell ergue-se e endireita as costas. Aponta para o cadáver ao seu lado.
— Está ali.
Kalle Solberg aproxima-se, mas depois pára e recua.
— Porra.
— Pois. Suponho que é melhor um de vocês ficar aqui enquanto o outro vai a Slottsbacken buscar um oficial da guarnição.
Cardell enrola o casaco e a prótese e enfia o embrulho debaixo do coto do braço. Prepara-se para dar um passo, mas depois lembra-se de que perdeu uma bota. Pousa o embrulho no chão, dá meia-volta e refaz o caminho seguindo as suas próprias pegadas, com o ar mais digno que consegue, até encontrar o local e arrancar a bota da lama, que se solta com um gemido. Solberg foi o escolhido para ir buscar ajuda e já vai a subir a colina em direcção à cidade. O seu colega está parado, em silêncio, sem mostrar sinais de arrogância. Provavelmente sente-se desconfortável por ficar sozinho com o morto na escuridão. Cardell acena-lhe com a cabeça enquanto passa por ele. Tem um primo nas redondezas que possui um poço e talvez um pouco de sabão para partilhar com ele.