Numa esquina da rua Prästgatan costuma haver um pedinte por quem Anna Stina já passou muitas vezes, a caminho da grande praça e do mercado. Normalmente está sentado em cima de duas tábuas com que improvisou um banco e no colo mostra o defeito que lhe serve de ganha-pão. Tem ambas as mãos desfiguradas, de uma forma que faz os que passam ficarem parados a olhar ou entrarem na sarjeta para não se aproximarem demasiado.
A deformidade não foi causada pelo fogo. É como se algo lhe tivesse transformado as mãos em cera e as tivesse moldado com formas novas e anormais. A carne dos dedos parece ter derretido, deixando as pontas sem unhas e pouco mais de uma fina camada de pele a cobrir os ossos. Nas palmas e costas das mãos há formas estranhas, buracos e altos, e a pele está descolorada e é quase tão lisa como a de um bebé.
É este homem que ela procura com a sua pergunta, mas descobre que não está sempre ali. Tem de esperar e tenta afastar o frio do corpo quando se torna demasiado difícil estar ao relento. Por fim, o homem aparece, com as tábuas debaixo dos braços e as mãos envoltas em ligaduras. Dá-lhe tempo para se instalar, organizar o seu espaço e sentar-se. E para depois retirar as ligaduras e expor as mãos desfiguradas aos olhares e à neve. A sua respiração torna-se acelerada quando as vê, tal como se lembrava. Aproxima-se e estende-lhe o pão que guardou do pequeno-almoço. Ele pisca os olhos perante tal opulência e parece ainda mais confuso ao ver quem lha oferece.
— Abençoada sejas, filha, mas o que fiz eu para merecer tamanha dádiva?
— Quero saber o que lhe aconteceu às mãos.
Quase sorri de alívio.
— É uma história que já contei muitas vezes e por muito menos do que isto. Já estiveste no Klara Sjö, rapariga?
Ela assente com a cabeça.
— Então talvez conheças um odor especial, que não vem da água fétida ou do lodo ao longo das margens. Há lá uma fábrica onde trabalhei quando era jovem. Fazem sabão, rapariga, para os pobres se lavarem no Natal e para a higiene matinal dos nobres. A arte é a mesma. A diferença está no cheiro. Mas antes do perfume vem o fedor, e esse vem de carcaças de animais. São derretidas para extrair a gordura. Depois esta é misturada com outras coisas e solidifica. Num piscar de olhos, o sabão está feito e pronto a ser usado. Eu era um aprendiz ávido e jovem e fui descuidado quando estava a misturar a potassa com a cal. Ficou demasiado forte. Entornei o pó branco nas duas mãos e, quando as enfiei numa tina de água para as lavar, ouvi o meu mestre gritar-me palavras de aviso. Era tarde demais. Foi como se tivesse enfiado as mãos em óleo a ferver. As cinzas queimam quando são misturadas com água, sabes, e consomem tudo o que encontram. Fiquei como vês. Por piedade, deixaram-me continuar a trabalhar lá na limpeza, mas já não sou tão trabalhador como era, e o que ganho não chega para me sustentar.
Anna Stina deixa as palavras assentarem-lhe na mente enquanto pondera.
— Qual foi a sensação?
Ele ri-se.
— Foi um prelúdio da descida aos infernos que me está seguramente destinada, rapariga.
Quando percebe que ela não parece achar graça, diz num tom mais sério:
— Nunca senti nada pior. Quando o meu mestre pegou num pano de lã e limpou as cinzas, que agora pareciam uma papa fervilhante, foi como se me estivessem a arrancar a pele das mãos. Foi buscar limões, para aliviar a dor com o sumo, e talvez fosse a coisa certa a fazer, mas a dor durou dias. Senti-me como se estivesse a tocar em brasas incandescentes.
Cospe ao visitar a memória. Quando ergue o olhar, a boa disposição desapareceu.
— Pronto. Querias mais alguma coisa? Agora que as memórias voltaram, o teu pedaço de pão já não me parece um pagamento tão bom.
— Consegue voltar a preparar essas cinzas? Como as que o queimaram? Eu pago.
Não demoram mais de meia hora a deixar a cidade entre as pontes. Talvez seja apenas uma ilusão causada pelo terreno, mas Anna Stina tem a impressão de que o edifício junto à margem do Klara Sjö está inclinado sobre a água, como se o pântano em que foi construído já não tivesse forças para sustentar o seu peso. Têm de esperar pelo pôr-do-sol e pelo fim do dia de trabalho. Um a um ou em pequenos grupos, os trabalhadores deixam a fábrica e caminham para casa por cima do gelo e da neve endurecida. Vê o homem das mãos deformadas contar em voz baixa para se certificar de que todos se foram embora. Inquieto, olha em volta antes de lhe fazer sinal para o seguir.
Contornam a fachada do edifício do lado da terra e descem para a praia coberta de gelo. Do lado voltado para a água, a casa é sustentada por pilares, suficientemente altos para lhes permitirem passar por baixo. O pedinte passa por entre as tábuas acima de si e pragueja em voz baixa quando os pés resvalam na superfície escorregadia. Encontra o buraco que procurava, suficientemente grande para lhe permitir passar a mão e o antebraço e abrir uma tranca. Por baixo do buraco há um monte de escória congelada. Anna Stina supõe que é aberto todas as manhãs quando o chão é varrido e os dejectos são empurrados para a água. O seu companheiro pede-lhe silêncio com um gesto antes de levantar a abertura no chão e de espreitar lá para dentro, com a mão livre a cobrir-lhe a boca para impedir que o vapor da respiração o denuncie. Fica parado um bom bocado antes de subir. Anna Stina espera pelo seu sinal para o seguir.