Cardell agita o braço bom para fazer o sangue correr-lhe para os dedos congelados e pula sem sair do lugar para aquecer. Esperou mais de meia hora no pátio em frente à casa baixa. A criada, que se recusara a deixar entrar um desconhecido, especialmente com a aparência de Mickel Cardell, obrigara-o a esperar lá fora até a senhora chegar da cidade. Quando lhe pediu uma bebida quente para afastar o frio, ela deu uma gargalhada e voltou a fechar-lhe a porta na cara. Cardell está farto de esperar. Sempre que olha para o relógio da igreja de Katarina, que consegue ver apoiando uma bota no cepo em frente à casa e erguendo-se algumas varas acima do chão, convence-se de que o mecanismo deve ter congelado e de que os ponteiros pararam de se mover. Finalmente, a porta volta a abrir-se, e a mesma rapariga aparece.
— Pode entrar e beber uma cerveja aquecida se quiser. A senhora vem já.
A ideia de beber uns goles da bebida quente é o bastante para travar os planos de vingança de Cardell. Sacode a neve dos ombros e bate com as botas no chão antes de entrar para o espaço aquecido. Cheira a pão. Depois de pendurar o casaco e o lenço do pescoço, sente o calor vindo do fogão descongelar-lhe as articulações e solta um suspiro de alívio.
Para lá da cozinha encontra-se a dona da casa, iluminada por uma luz fraca. A viúva Fröman ainda veste o luto da cabeça aos pés, apesar de se terem passado muitos anos desde o falecimento do marido. Ela própria já deve passar dos sessenta. Cardell supõe que o casal não teve filhos e que, após o falecimento do marido, e à falta de mais familiares, ela se tenha mudado permanentemente para a sala. Apesar do aspecto simples da casa, a viúva tem uma aparência formidável. Tem as costas direitas como o cabo de uma vassoura e está sentada demasiado perto da lareira. O seu rosto severo não revela o menor indício de autocomiseração, apenas uma dignidade contida, uma expressão que diz ao mundo que a magoou que é perfeitamente capaz de retribuir na mesma moeda. Cardell tem a impressão de que o leve curvar do pescoço, quase indiscernível, mesmo perante um oficial da artilharia, se deu de forma involuntária. Pigarreia.
— Boa noite.
Tem a sensação de que a viúva Fröman, sem mover os olhos, o mede de cima a baixo e o lê como um livro aberto. Deixa passar um momento antes de responder.
— Disseram-me que o seu nome é Cardell e que pertence à guarda. Não imagino que assunto possa ter a tratar comigo. A vida raramente me traz surpresas, e esse é o único motivo por que lhe foi concedida a entrada aqui. Agora, diga-me, ao que vem?
Cardell sente as orelhas aquecerem e mexe-se sem sair do lugar. Percebe subitamente que interpretou mal o olhar severo da viúva. A mulher é cega. Quando os seus olhos se habituam à luz fraca, vê que os dela estão toldados por uma névoa leitosa. Estremece e procura as palavras.
— Perdoe-me a visita inesperada e deixe-me apresentar os meus sentidos pêsames pela partida prematura do seu marido…
Ela interrompe-o levantando uma mão no ar.
— Pare com isso. Os corvos devem grasnar, não tentar imitar o canto do rouxinol. O Arne Fröman, pastor da congregação de Katarina, paz à sua alma, morreu há muitos anos. O seu corpo estava tão impregnado de álcool que todas as larvas que se aproximaram do caixão devem ter morrido imediatamente. O facto de eu ainda estar de luto diz mais acerca de mim do que do pastor. O melhor que o senhor guarda tem a fazer é ir directo ao assunto.
Cardell assente, mas depois lembra-se de que a viúva não vê. Procura coragem para dizer o que tem a dizer e surpreende-se ao descobrir que surge com facilidade.
— Parece-me que têm uma vida simples, tendo em conta a posição importante que o pastor ocupava.
Experimenta uma certa satisfação ao ver a viúva hesitar perante aquelas palavras, antes de recuperar a compostura. Cardell apressa-se a continuar.
— Diga-me, a Sr.ª Fröman por acaso não conhece um homem chamado Ullholm? Magnus é o seu primeiro nome.
Sente algo mudar no ambiente, tão palpável como uma corrente de ar gelado a entrar por uma janela partida. Quando ela responde, já não há sarcasmo na sua voz.
— Sim. Lembro-me do Magnus Ullholm.
— O Ullholm fugiu para a Noruega com as esmolas da paróquia há uns anos. Talvez esse dinheiro possa ser-lhe útil, agora que perdeu o seu marido.
Cardell pergunta-se se é possível uma pessoa completamente imóvel ficar ainda mais quieta, mas constata que, se alguém está à altura desse desafio, é a viúva Fröman.
— Não precisa de me lembrar de quem o Ullholm é nem do que fez. Conheço a história demasiado bem.
— Existem certamente muitas outras pessoas na mesma situação que a viúva Fröman, que também se lembram do nome Ullholm. Provavelmente têm filhos e netos que não tiveram uma vida mais privilegiada por causa dos seus crimes. Talvez saiba os nomes destas pessoas.
— Claro que sim.
— Diga-me, Sr.ª Fröman, tendo vivido tantos anos na companhia de um homem que conhece bem a Bíblia, está familiarizada com a expressão «Olho por olho, dente por dente»?
A viúva Fröman exibe uma fileira de dentes afiados no meio da penumbra. Cardell demora alguns instantes a perceber que está a sorrir.