Atrás do Markattan, o pátio está deserto. A neve acabada de cair ainda está branca e não amarela, como ficará em breve, quando a fila para a casa de banho se tornar mais longa do que a necessidade. A camada superior estala enquanto Anna Stina a apanha para dentro de um balde, para derreter na lareira. Espera até a massa branca se tornar transparente e derreter por completo. Quando deita a água por cima do pó, a mistura fervilha um pouco e enche o quarto com um cheiro estranho, mas depois assenta. Custa-lhe entender como encerra um poder tão grande sem o revelar.
Vai buscar um pedaço de carne à cozinha, uma raspa de um dos presuntos que estão a curar pendurados do tecto, e atira-o para a mistura. O resultado não a desilude. O líquido sibila como um gato e, de todos os lados, ataca a carne com dentes e garras invisíveis que a rasgam e desfazem, até ser impossível perceber o que era. Fumega e borbulha. Quando o fumo desaparece, é como se nada tivesse acontecido. A carne desapareceu sem deixar rasto.
Ainda assim, Anna Stina hesita. Inclina-se para a frente e, no mundo às avessas do outro lado da mistura, vê uma rapariga que a olha, uma rapariga igual a ela. A respiração de Anna Stina agita a superfície do líquido e distorce a imagem ali reflectida. Fecha os olhos e enche os pulmões de ar.
*
O ar frio queima-lhe a garganta e o nariz, mas Mickel Cardell sente-se feliz por ter deixado o ar estagnado da sala da viúva Fröman. O encontro correu melhor do que esperava. Agora tudo foi posto em movimento. A menção de Magnus Ullholm e a notícia do seu regresso a Estocolmo pareceu rejuvenescer a viúva várias décadas. A chama que parecera alimentada por um ódio antigo lançou-a numa sede de vingança. Cardell mal saíra da casa quando criadas e criados passaram por ele a correr, tão felizes como ele por se verem longe do rosto cego da viúva Fröman. Agora, precisa de bebida suficiente para afastar a imagem da viúva dos seus pensamentos e faz uma pausa na praça antes de Slussen. Fica lá sentado meia hora antes de decidir que a cidade entre as pontes tem melhor oferta. Enquanto pondera a escolha de tabernas, lembra-se da missão que lhe falta cumprir, portanto, vira à esquerda na praça Järntorget e dirige-se para o Markattan.
Cardell nota imediatamente o reconhecimento no olhar de Karl Tulipan quando o dono da taberna vem ao seu encontro, tal como da outra vez, com as mãos levantadas num gesto de desculpas. Cardell baixa a aba do chapéu e faz uma expressão de desagrado.
— Devo entender pela sua expressão que a rapariga ainda está ocupada?
Tulipan assente afirmativamente.
— É verdade, lamento. Posso oferecer-lhe um copo em troca da desilusão?
Algo mudou nele, e Cardell semicerra os olhos.
— Vejo que os clientes começam a chegar, e, se a rapariga o ajuda na taberna, não entendo como pode ter saído.
— Ela… a Lovisa não está bem. Chegou a casa com febre. Não tive coragem de a mandar sair do quarto.
— Ah, então agora já está em casa? Talvez eu tenha mais sorte que o senhor.
Cardell começa a dirigir-se para as escadas atrás do balcão.
— O senhor perdeu o juízo? Não pode entrar sem ser convidado. Ainda por cima bêbedo, a avaliar pelo cheiro! Vá-se embora antes que eu mande chamar os casacos azuis para o porem sóbrio.
Cardell afasta-o para o lado como se ele fosse um enxame de mosquitos.
— Sai da minha frente, porra.
*
Anna Stina ouve o guarda subir as escadas, escuta os protestos inúteis de Karl Tulipan e compreende que a indecisão a faz perder a oportunidade. É tarde demais para aquilo por que tanto lutou e que tinha ao seu alcance. Apetece-lhe gritar, mas o único som que emite é um gemido. Levanta a bacia com as mãos trémulas e posiciona-se ao lado da porta fechada, pronta para despejar o conteúdo em cima do guarda assim que ele entrar.
Mickel Cardell tem um sexto sentido que não sabe como desenvolveu, uma capacidade que deve ter nascido dos anos passados à sombra da morte. No meio da confusão induzida pelo álcool, pressente o perigo, vê uma sombra pelo canto do olho e baixa-se instintivamente, com o braço de madeira em frente ao rosto. A taça parte-se em cacos quando o atinge no braço. Ouve o conteúdo fervilhar no casaco e na madeira do braço, e o instinto leva-o a despir a roupa tão depressa que as costuras se rompem. O fumo faz-lhe arder os olhos. Não sente dor, portanto, conclui que não ficou ferido. Enquanto fica ali parado, a piscar os olhos de espanto e a perguntar-se o que acaba de acontecer, uma pequena figura esgueira-se por baixo do seu braço direito estendido e desce as escadas. Pela segunda vez, Cardell afasta Tulipan do caminho com um empurrão e corre atrás dela.
Anna Stina não sabe porquê, mas vira à esquerda em vez de virar à direita e entra na cozinha, cuja janela é demasiado pequena para lhe permitir escapar. Só encontra outra saída. Espera o guarda no canto mais afastado da cozinha, e ele não tarda a aparecer.
Cardell aproxima-se do canto e vê no rosto da jovem uma expressão que conhece demasiado bem. Recorda-se dela dos tempos da guerra. Há pessoas que abandonam a esperança quando o jogo parece virado contra si. Essas lançam-se para a morte com fúria. Talvez nos últimos momentos experimentem uma sensação de satisfação, de terem recuperado o controlo sobre o seu próprio destino. O preço é a sua vida. A rapariga ergue uma faca com ambas as mãos. Não ouve os gritos dele. Cardell assiste enquanto ela a vira na direcção da garganta, fecha os olhos e a empurra com toda a força contra a pele despida.