Santo Antônio do Desterro
Meio dia Janeiro
Paralysia paroxistica
O sol carrasco nos carrascaes
Abre as janelas e desce as cortinas
amarellas
meu sol
joão alphonsus, “Janeiro”
o dr. josé egon barros da cunha abriu as janelas e o dia sol entrou de roldão. Belo Horizonte estava começando uma de suas manhãs ourazul em que tudo faísca e se torna mais leve. Ele chegou-se ao peitoril e sorriu para a vida, para o dia rompente, o chão do terreiro, para um mamoeiro solitário cheio de mamões, uns verdes outros amarelos, todos grandes, pojados como seios generosos. Considerou tudo com agrado, na grande lua de mel consigo que vinha desde o 17 do último dezembro — em que recebera das mãos do diretor Hugo Werneck seu canudo, o anel de médico e as palavras que o sagravam Homem da Arte. Nos primeiros dias do ano de 1928 fora nomeado médico da Higiene e apresentara-se ali ao diretor do Departamento Interno — o dr. Aires Alarcão Garrido de Cadaval e ao seu substituto — o dr. Argus Terra. O diretor geral, Raul d’Almeida Magalhães ainda não se empossara, retido no Rio por ferimentos recebidos num desastre de automóvel. O dr. Cadaval estava respondendo pelo expediente.
O Egon tinha promessa do Palácio de ser mandado para sua terra, Santo Antônio do Desterro, onde o pai tivera botica até morrer, onde fora muito bem relacionado com a classe médica e membro farmacêutico da Sociedade de Medicina e Cirurgia local. O dr. Cadaval sabia disto e mais, que o Egon era amigo dos filhos do presidente — além de acochado do Palácio. Tinha recebido bem o jovem médico, retivera-o para o café e mesmo deixara sua mesa e viera sentar-se com ele num grupo estofado. Logo se lhes agregou seu assistente, o dr. Argus. — Muito bem, dr. Egon, o presidente deu ordens para fazê-lo seguir para Santo Antônio do Desterro logo que seja escolhido o diretor do seu Centro de Saúde. Há dois candidatos. Um indicado pelo dr. Bernardes e outro pelo dr. Melo Viana — e isso tem dificultado esse preenchimento. Ficará mais formal o senhor só seguir depois de resolvido esse problema. Por enquanto não tenho nenhuma determinação. O senhor apareça para o cafezinho, duas, três vezes na semana. E meus parabéns…
Levantou-se e estendeu a mão ao moço. Terminara a audiência. O Egon se despedira, tivera muito prazer em conhecer o dr. Cadaval e muito prazer em conhecer o dr. Argus — que se mantivera calado e varando o novo colega com dois olhinhos pretos feito botões de botina, muito fixos e sempre com a expressão de quem acabou de apanhar o interlocutor com a boca na botija. Esperou um pouco, foi até à porta de vaivém do gabinete, olhou pela fresta e voltou para perto do dr. Cadaval que se espichara na poltrona, pernas ao comprido, um pé sobre o outro, fazendo valer o brilho dos calçados de verniz muito engraxados e sobrepujados por polainas cor de pérola. Vestia bois de rose, colete de fantasia trespassado, a gravata festiva e a camisa de colarinho duro era dum linho riscadinho. Tinha mãos largas, peludas e bem manicuradas. Cruzara-as sobre o ventre. Suas unhas eram rente — exceto a do mindinho direito que crescida, longa — sugeria cureta para prospecções de cera do ouvido e catota. Estava primorosamente escanhoado, a pele do rosto cheia de velhas cicatrizes de acne; tinha nariz largo, olhos um pouco estrábicos. O fiapo do olhar neutro. Testa curta, cabelo aberto ao meio e colado de gomalina. Costeletas à Valentino, nuca raspada do corte à americana. De perfil, tinha cara de rampa ou de escada e subiam-se seus traços degrau por degrau. Queixo forte e adiantado, nariz mais recuado e ligeiramente escafoide, fortes sobrancelhas, fronte fugidia. Nada de bonito. Mas muito tratado, muito arrumado, muito enfeitado e muito perfumado — via-se que Cadaval estava satisfeitíssimo com Cadaval. Todo ele, da ponta preciosa dos botins à risca dos cabelos, respirava vaidade. Era muito orgulhoso de sua família, aliás com razão. Sua gente paterna era dos Cadaval — aristocracia serra-baixo do estado do Rio, gente estabelecida na província desde o século xvii e que se gabava de descender dum ramo colateral da casa de Cadaval. Os do “reyno”, dos duques parentes d’El-Rey. Pelo lado materno era dos Alarcão Garrido, de tronco bandeirante, fixado na zona do rio das Mortes: paulistas de quatrocentos anos e mineiros de duzentos. Esse antigo sangue brasileiro não o escurecera. Era homem claro. Mas como traço dinástico ficara-lhe a dislalia de que geralmente não escapavam os Cadaval. Lá nele era uma falação explosiva, devida à decalagem na produção do som — a língua não sincronizando com os lábios, sobretudo o superior — sempre se movendo numa espécie de tremor de largas ondas. Os pulmões emitiam o ar, as cordas vocais modulavam a coluna sonora, a língua trabalhava e a campainha, mas tudo empacava quando surgia o espasmo labial e aí sua frase empenava numa palavra, numa sílaba, num B, num M, num P. Era tudo muito rápido, mal se notando e quando ele tinha de se interromper, disfarçava levando a mão à boca, na manobra tolerável de quem boceja ou contém discreto arroto. Contudo muito simpático, muito risonho e excelente sanitarista da escola de Oswaldo e Chagas. Gostava de anedotas e para gozar do seu favor, o subordinado tinha de ser fornecido de boa dose de casos de pornografia, escatologia, estórias de galego, corno e caganeira desatada.
— Simpático esse Egon — disse, logo que o Argus tornara a sentar com seu jeito esquivo, só uma beirinha de bunda no estofado do sofá. — Tenho ideia que conheci o pai dele, logo que me formei, quando andei tentando a clínica. Nessa ocasião dei c’os costados no Desterro, e era na farmácia dele que se reuniam os importantudos da terra pra conversinha da tarde. Era Pinto Coelho da Cunha, casado com uma senhora do Norte — Barros ou Costa Barros, sei lá… Acho que daí é que saiu esse Barros da Cunha. Não perguntei para não dar muita entrada… É protegido do presidente…
Deu um bocejo — bocejo mesmo — e olhou pra cara do Argus esperando nada. Este continuava de olho arregalado, fixo, na mesma posição, braços cruzados, mão direita levantada e o indicador atravessado sob o nariz como se este fosse despencar. Era homem muito moreno, o cabelo difícil, cortado quase rente, topete caracolado e riscado aqui e ali de fios brancos. Nas raras vezes que ria movimentava a beiçada como se não tivesse risorius mas, apenas, um poderoso esfíncter bucal. Se falava, era o menos possível, sempre poucas palavras e escamoteando o que pensava. Estava vestido de escuro e lembrava vagamente um pastor protestante. Na mocidade pobre fora bedel dum internato de meninos e trouxera dessa experiência e desse período uma desconfiança e um sentido de observação, verificação, espionagem que fariam um policial — delegado ou tira — muito superiores ao sanitarista. E olhe-se que ele o era dos melhores. Moço, formado de poucos anos — mas uma de nossas autoridades em higiene e profilaxia. Estava sempre a par de tudo que se passava na repartição, estimulava denúncias, delações, a espionagem, tinha gente de sua confiança entre os colegas, os guardas sanitários, os motoristas, os vacinadores, os serventes, os faxineiros. Era procurado por eles às escondidas, em sua casa, sábado à noite e é por isto que nas segundas-feiras ele desabava sobre os funcionários, inquirindo-os, confrontando-os, acareando-os, confundindo-os, levando-os a contradições — para acabrunhá-los com repreensões, suspensões e transferências. Não havia comissão de inquérito administrativo que não fosse presidida por sua figura severíssima. Era muito carola, não perdia a missa das cinco no Arnaldo, frequentava o “senhor bispo” e pertencia à Liga pela Moralidade.
— Pois simpático esse Egon — repetiu o Cadaval.
Um silêncio e veio a resposta do Argus.
— É… Muito agradável e dizem que inteligente. Pena que…
— Que — o quê?
— Olhe, dr. Cadaval, não gosto de me meter em vida alheia e só falo por lealdade com o senhor e debaixo de muito sigilo. Assim mesmo, não sei…
— Diga, homem! O que conversarmos ficará entre nós… — E empertigando-se — segredo administrativo.
— É o seguinte, dr. Cadaval. O rapaz é mesmo muito simpático mas pena que tenha passado tão boêmio, como estudante. Muito farrista, mais tempo nos cabarés que nas aulas. É o que ouvi do nosso Orsini… Vale a pena o senhor conversar com ele. Não, senhor — com o Orsini. Agora se me permite, uma sugestão. A de não soltar esse moço ganhando dinheiro à toa. Há sempre coisinha e outra para fazer nas dependências. Vou ver o jeito de não deixá-lo braços cruzados até a hora dele seguir para o Desterro… já que o presidente quer… centro de saúde de primeira classe, verdadeiro prêmio… Enfim…
— Está bem, mestre Argus. Vamos embora? Três e quarenta…
— Não, dr. Cadaval. Nunca saio antes de cinco, cinco e meia. É a hora que recebo funcionários que não tiveram tempo de falar comigo durante o expediente ou em minha casa. É sacrifício, é… mas tenho de atendê-los.
— Pois até amanhã e… saúde e b-b-b-bichas!
— Até amanhã, dr. Cadaval. Meus respeitos aos seus.
A manhã ia alta quando Egon entrou na Santa Casa. Varou todo o corredor, foi até ao fundo, um pouco antes das enfermarias do Werneck e do Borges, desceu as escadas à esquerda, deu bom-dia! ao Pitanguy que saía da clínica do Otaviano e apressou-se para os fundos do terreno. Entrou no Pavilhão Koch.
— Bom dia, irmã Salésia! Bom dia, Conceição! O Ari está aí…?
— Está, dr. Egon. Tá na salinha com dr. Nava. Há bocado que entraram.
O moço com seu ar apressado deu uma batida na porta com a mão esquerda ao tempo que a direita torcia a maçaneta. Seus amigos estavam lá dentro, o Ari sentado à escrivaninha e, meio reclinado na giratória de mola, dirigia-se ao Nava montado na única cadeira ali existente, braços cruzados sobre seu encosto. O primeiro era moço de seus trinta anos, dando a impressão de muito magro, porque seu rosto era fino e mais fino ainda o nariz que se alongava e que era o caráter marcante de sua fisionomia. Boca pequena, bem-feita, um pouco funda. Olhos doces e bondosos mas temperados por expressão muito séria e pelo que lhe adicionavam os vidros de seus óculos grossos de míope — fazendo-os menores e mais penetrantes. O outro era o primo e amigo do Egon, formado como ele há menos de um mês. Ambos tinham sido internos da Segunda Enfermaria, Clínica Médica de Mulheres e do pavilhão onde estavam, das tuberculosas. O que os dois sabiam de medicina interna deviam-no ao colega mais velho ali com eles.
— Ei, Ari. Ei, Pedrinho. Estou interrompendo? Posso esperar ou falar depois.
— Não — disse o Ari — eu ia principiar uma conversa com o Nava e depois ter a mesma com você. Mas agora mato dois coelhos duma cajadada porque o que quero dizer é igual pra um e outro.
O Ari fez uma pausa como quem estuda por onde abordar o assunto enquanto o Egon se acomodava em cima duma mesa de exame e punha os pés no travessão da cadeira ocupada pelo primo. O Nava continuava na mesma posição. Apenas sacou do bolso um maço de Jockey-Club, tirou o cigarro, acendeu e passou a carteira e a caixa de fósforos para o primo. O Ari ia abrindo a boca para falar quando a Conceição entrou com a bandeja de café. Serviu no silêncio dos três e saiu deixando tudo em cima da mesa e a porta aberta. O Ari levantou-se, foi fechá-la à chave. Tornou a sentar e de olho fixo ora num ora noutro soltou o sermão que trazia engatilhado.
— O que eu tenho a explicar a vocês é rápido e na certeza de que os dois já devem ter dito o mesmo um ao outro ou a si mesmo na hora de pensar. Parece que vou dar opinião que não foi pedida mas se ficasse calado teria remorsos a vida inteira. Quem avisa amigo é. Vocês foram mais que meus alunos desqu’entraram na enfermaria do Libânio — são amigos. E amigos mais moços que ficaram mais amigos aprendendo comigo. Os dois são dos estudantes mais inteligentes que passaram nas minhas mãos. Acompanhei a formação de ambos. Vão sair da faculdade sabendo mais clínica que muito calhorda que anda por aí formado há anos. Sempre gostei de ver a aptidão dos dois para a medicina. A vocação servida em cada um por qualidades diferentes. Em você, Nava, pela criatividade e inventividade, em você, Egon, pela capacidade de análise e de crítica. Vocês têm aberto diante de cada um largo futuro profissional. Pensem desde o primeiro dia como se já estivessem no apogeu. Vocês têm paixão pelo professorado, conforme me disseram. Então ajam desde já, des’qui acabar nossa conversa, como professores e no fim de cada dia façam exame de consciência para verem o que fizeram naquelas vinte e quatro horas e que tenha servido para aproximá-los ou afastá-los da cadeira. E tratem de suprimir de si tudo que possa prejudicar o futuro que se traçaram. De modo que…
Os dois primos ouviam encantados a conversa do Ari. Ils buvaient du lait. Sentiam sob os pés o estrado magistral e sob as bundas o macio das cátedras estofadas. Assim levantaram-se e foram agradecer dando tapinhas nos ombros do mestre e já se preparando para sair.
— Per’um pouco, podem sentar porque inda não terminei. Vocês pensam que eu ia mandar chamar só pra fazer elogios? Aqui, olha. Falta o resto. Vocês têm de ficar sabendo que a vida de estudante que levaram — acabou. a-ca-bou. Acabaram as noitadas, as cervejadas, as conversas até de madrugada. Vocês têm de assumir nova atitude diante da vida. Não podem mais ser vistos — já não digo nos cabarés e na zona, mas mesmo nos cafés do centro da cidade. Não se espantem. Algum de vocês já viu o Pimentel, o Rafael, o Campos, o Borges, o Werneck, o Lodi ou mesmo eu — sentados no Fioravanti, no Pedercini, no Trianon, no Estrela, no Bar do Ponto? Não? não é? Por quê? Porque aquilo é falta do que fazer, disponibilidade errada e advogado sério e médico sério têm sempre o que fazer, estão sempre entre duas ocupações. Se estão na rua é de passagem. Indo, num caso, para o hospital, para a faculdade, para o consultório, pra casa dum doente. No outro, vindo do tribunal, da faculdade deles, do escritório, dum encontro profissional. Toda seriedade é pouca. A alegria tem de ser secreta e dentro de quatro paredes. Tudo que não for demonstração de zelo profissional deve passar-se na moita — que nem nossos hábitos íntimos e de asseio. Ponham um biombo entre vocês e o público. Esse biombo pode se chamar cerimônia. Fechem a cara, fechem-se em copas.
— Mas Ari — disse o Nava — nós somos moços e solteiros. Será que não podemos mais…
— Podem o que quiserem contanto que ninguém saiba o que vocês quiseram! Se façam de moralistas ingleses.
— Então temos de andar mascarados o resto da vida? Mas isso é fingimento, Ari, hipocrisia que não temos.
— Não é hipocrisia não. Pode ter outro nome, outros nomes. Compostura, comedimento, seriedade, gravidade, circunspeção, cautela, ponderação, prudência — cujos alicerces estão todos na hipocrisia e na falsificação do nosso autêntico. Paciência, mas tem de ser assim. Porque se não for assim vocês não serão nada do que pretendem. Até a alegria deve ser medida…
— Nesse caso quem tem razão é o Werneck com aquele caso do que não tinha religião mas que dizia sempre qu’il faut faire le pieux…
— Exatamente. Ao menos nisso o Werneck tem razão.
Riram muito, saíram direto para o pátio ajardinado de entre as enfermarias de mulheres, ainda pararam um instante palestrando junto à caixa-d’água, subiram à Segunda Enfermaria, o Egon e o Nava assistiram o Ari tirar o avental e apanhar o chapéu. Saíram — até amanhã, irmã Salésia. Na portaria — até amanhã, irmã Madalena.
— Estou com minha furreca — disse o Ari. — Posso deixar o Nava em Padre Rolim e o Egon na Dona Marieta.
— Basta Padre Rolim, Ari, porque deixei a pensão. Estou com o Nava, na casa da prima Diva.
A nova casa da d. Diva ficava em Padre Rolim 778. Fora comprada pela quantia de 17:000$000. Para arcar com essa despesa ela rapou o que tinha de economias e embolando juros no Banco Hipotecário. Ficara a zero de reservas e encerrara sua conta-corrente. Mas a situação familiar melhorara consideravelmente. Graças a seu esforço e trabalho ela conseguira vir educando os filhos, formara o primeiro e deixara sua situação de filha viúva dependente em casa do pai mudando-se para Aimorés e reabrindo sua casa. Agora estava proprietária de pequeno imóvel do bairro dos Funcionários, justamente aquele em que morara a gente do Juvenal de Sá e Silva. Ficava entre Rio Grande do Norte e Bernardo Monteiro, quase à esquina desta avenida de que só era separada por outro edifício. A linha divisória com este era marcada por velho muro de adobe na sua cor crua de sépia e o intervalo dos blocos de barro capim e bosta de boi — era recheado de ninhos de escorpião, como se verificou à derrubada posterior do dito e sua substituição por paredes de tijolos. Essa residência tinha como terra dois grandes lotes e estava construída sobre um deles. Logo o espírito atilado de d. Diva planejou as duas operações que permitiram, posteriormente, a venda do lote que servia de jardim lateral da casa e os fundos dos dois, ao dono de propriedade limitante dando frente para Bernardo Monteiro. Isto seria para depois, quando os terrenos do bairro se valorizassem mais. O 778 era uma dessas casas simpáticas e claras que parecem configuradas para os dias familiares felizes. Três janelas de frente, platibanda. Sala de visitas, de jantar, corredor, sanitários, cozinha, quatro quartos. Varandinha de frente, varanda posterior à saída da cozinha.
Quando o Ari deixou os primos em frente a esta casa, os dois não entraram logo. Ainda era cedo para o almoço e eles foram indo devagar até à esquina de Bernardo Monteiro. Passaram para debaixo da sombra esverdeada dos fícus gigantescos e subiram vagarosamente até ao Colégio Arnaldo. O dia resplendia. Bem no meio do gramado central da avenida, olharam a construção vasta e desgraciosa com as sete cúpulas que dali se divisavam. O casarão ainda estava imperfeito, no tijolo, e tinha ao mesmo tempo de caserna, mesquita e presídio. Se adiantaram mais um pouco e mergulharam a vista Carandaí afora até aos longes do Quartel e mais para lá até à linha de montanhas dominada pelos cristais eriçados e pelos serrotes da serra da Piedade. Conversavam sobre o que lhes aconselhara o Ari. Davam razão ao amigo e chefe. Começavam a abrir suas almas para o aprendizado de mascarados a que têm de se submeter todos os médicos. Gozaram entendidamente o que se contava do mestre dos mestres que sempre fingia leitura devoradora quando ia e vinha de tílburi — balda que fizera escola no Rio, onde a mestrança de depois dele dera para faz-que-ler calhamaços (de preferência em alemão) nos carros, automóveis, landolés; nos cafés em que entravam, nas esquinas onde paravam, nos pontos de espera dos carris de burro e depois elétricos. Voltaram devagar para Padre Rolim e quando entraram, tinha passado a hora do almoço mas seus pratos estavam feitos, tampados por outros de borco e colocados sobre panelas cuja doce fervura mantinha a comida quentinha. Era um trivial mineiro dos mais típicos: feijão-mulatinho, angu, arroz, couve cortada, carne picada. Os ovos estalados na hora, na frigideira cheia de banha de porco, pela própria d. Diva. Depois o doce de mamão verde, e a toreba de queijo de minas. Café ralo e os dois estavam começando a fumar seus cigarros quando palmas estalaram ao sol estridentes e anunciaram gente de fora. O Nava foi ver. Era um servente da Higiene com um envelope fechado para o Egon. Ordem de serviço em estilo burocrático seco e preciso. Do doutor inspetor substituto ao dr. José Egon Barros da Cunha. Deveis vos apresentar no meu Gabinete, hoje, às quinze horas e quarenta e dois minutos para tratar de assunto de serviço. Assinado, dr. Argus Terra. Eram quase duas da tarde. Havia tempo de sobra.
Seriam suas três e meia quando o Egon chegou à Higiene e fez-se anunciar. O dr. Argus fê-lo esperar um pouco e exatamente aos quarenta e dois minutos que tinha marcado, um servente fê-lo entrar. Sentou-se ao lado da mesa do substituto que demorou um pouco acabando de rascunhar e chancelar duas folhas de memorandos e só então fez rodar o assento da giratória e encarou o jovem médico. E deu suas ordens num tom de quem não deseja comentário nem réplica.
— Dr. Egon, sua ida para o Centro de Saúde do Desterro é coisa resolvida. Mas a questão do preenchimento daquela chefia está se arrastando e não sabemos ainda quando o senhor poderá embarcar pra lá. Sendo assim o dr. Cadaval e eu resolvemos aproveitá-lo em serviços de emergência como o que apareceu hoje, com um telegrama do presidente da Câmara de Caeté, pedindo a presença de um médico. Há epidemia possivelmente de febre do grupo tifo-paratífico na zona de Taquaraçu e o senhor seguirá com um guarda sanitário para combatê-la. Já mandei separar o material necessário, já o fiz entregar a esse subalterno. É o seu Anacleto Severo.
Despregou um instante os olhos de verruma do Egon, tocou um tímpano, um servente surgiu do solo e o dr. Argus ordenou que fosse introduzido o seu Anacleto. Entrou um homem de meia-idade, alto, louro, ar militar a um tempo respeitável e respeitoso.
— Seu Anacleto, este é o dr. José Egon Barros da Cunha com quem o senhor já sabe que seguirá amanhã, de rápido, para Caeté. Podem se encontrar na Central às cinco que o trem sai às cinco e meia. Pode ir, seu Anacleto. As malas prontas do material, o senhor já pode levá-las.
Voltou-se para o Egon.
— Aqui estão as requisições para os passes seu e do guarda. E aqui as instruções de serviço. — Passou um envelope e as duas folhas de bloco que o moço doutor o vira escrevendo e assinando. Eram instruções para o levantamento de um inquérito epidemiológico, o registro dos pacientes, dos comunicantes, dos serviços prestados, em que o Egon apenas passou os olhos, depois dobrou e meteu no bolso.
— Não precisava ter tido esse trabalho, dr. Argus. Eu sei perfeitamente como levantar esses inquéritos… quando isso é possível. Quanto ao lado clínico, tenho prática porque o senhor sabe muito bem que esse grupo de febres é endemoepidêmico na nossa cidade e esses casos são o pau que rola nas nossas enfermarias de clínica médica, donde vão transferidos para o Cícero Ferreira. Os da nossa clínica de mulheres que iam para o isolamento, eu continuava acompanhando porque sempre segui como observador voluntário as visitas do dr. Levi e do dr. Moreira. Assim o senhor pode ficar tranquilo porque apesar de diplomado só há duas semanas — conheço o assunto.
O Egon era a criatura menos suficiente do mundo mas resolvera se gabar daquele preparo para dar um teco no ar de arrogância e na filáucia com que falava aquela besta do Argus. Jeito autoritário, expressão impertinente da fisionomia, ordens mais gritadas que dadas. À merda… Sujeitinho presença — esse moleque — pensava o médico. Foi ali o primeiro entrevero dos dois. Mas o Argus de cara fechadíssima ainda ia continuar. Entregou mais um envelope.
— Aqui uma carta de apresentação que o senhor deve entregar ao presidente da Câmara de Caeté, o dr. Israel Pinheiro da Silva e…
— Aí foi gastar papel e latim à toa, dr. Argus. Não preciso levar apresentação nenhuma porque sou amigo do Israel.
— Mas as formalidades administrativas…
— … não têm cabimento no caso e eu não vou me dar ao desfrute de entregar esse expediente a um homem cuja casa eu frequento. Seguirei amanhã e farei tudo para dar cumprimento às determinações… do nosso chefe comum, nosso caro dr. Cadaval.
Disse, levantou-se primeiro, pondo ele fim à entrevista e rindo por dentro com aquela invocação feita da pessoa de Cadaval. Deu um aperto de mãos sorridente ao Argus e saiu pensando — encarta mais esta, seu…
Lá fora o luar continua
E o trem divide o Brasil
Como um meridiano
oswald de andrade, “Noturno”
Quando o trenzinho saiu ainda estava escuro e um resto de minguante açucarava os contornos das casas, dos matos, com a tênue poeira de sua prata. Logo esse fim de luz branca foi devorado pelo ouro maior do sol que transbordava. O Egon, encostado no banco de palhinha suja, mal sabia da aventura em que se metia e que estava para descobrir Minas Gerais. Apenas um pouco excitado da consciência de se estrear na profissão e realizar primeiro trabalho médico sob sua inteira responsabilidade. Logo o distraiu a beleza do dia prodigioso que nascia e do sol jorrando pelas janelas do carro, ora à direita, ora à esquerda — aos caprichos das curvas e ziguezagues dos trilhos. Tinha sido primeiro a zona já quase rural do Horto e depois Marzagão onde começou o atraso. Ficaram ali uns trinta minutos para nada, parados por parar, o maquinista manobrando ludicamente — só por manobrar. Afinal saíram num sacolejar de ferragens mais decidido e só estacaram de novo em General Carneiro. O moço médico não resistiu e seduzido pelo requinte da estaçãozinha triangular, pulou na plataforma para admirar a construção. Era uma verdadeira joia de fantasia arquitetônica e tinha alguma coisa de profundamente mineira nas águas do telhado, ao tempo que de chinesa pelo torreão que sobrepujava o mesmo, redondo, cheio de aberturas, galgando até nova cobertura que nem as de quiosque, que subia em cone e terminava por ornatos que se abriam docemente como copo de lírio ou tronco de efebo. Outro telhadinho uma bola um florão uma haste e o bibelô cintilava na manhã. O mais extraordinário da construção, melhor que o bizarro da casa de três faces, era a medida, o ritmo, a proporção com que suas partes se levantavam. O que terá acontecido? à estaçãozinha de General Carneiro que não vejo há cinquenta e um anos. Terá sido? tombada pelo Patrimônio Histórico. Modificada? no seu risco. Aviltada? em sua forma. Ou entrou? a picareta progressista para fazer paragem maior.
O trem apitou. O doutor estreante já o tomou andando e ficou na escada do carro até ver sumir o assombro de bom gosto que a distância que aumentava ia tornando mais lindo mais lindo mais lindo. A palavra — gentil — tiniu e ficou tinindo na sua imaginação. Logo veio Sabará e a estação não dava de longe nenhuma ideia da cidade. Ali o comboio parou de novo e ficou perdendo tempo, como que dormindo no silêncio cavado no dia só cortado por assovio chio fino que a máquina soltava sem parar. O jovem médico aproveitou para olhar os raros passageiros. Eram matutos, gente simples, homens de bota-sanfona, de botina de elástico, o ar triste e mal barbeado, fumando seu palhinha resignado e cuspindo no chão. Mulheres envelhecidas antes do tempo, cada sua penca de menino vomitando. O diabo do trem não saía, como se estivesse encantado e o Egon levantou para desentorpecer as pernas. Foi indo até uns bancos adiante, parou perto daquele em que sentara seu guarda sanitário que desde o início da viagem não levantara os olhos dum livro atochado que sacara da maleta ainda em Belo Horizonte. Então? Seu Anacleto, matando o tempo com um romance, hem? Eu também vim munido com O crime do padre Amaro. Sempre é bom a gente… Logo a resposta em tom respeitoso mas nítido. — Meu livro, doutor, não é de estórias não senhor. É a bíblia. — E remergulhou na leitura. O periodeuta foi sentar e de longe ficou olhando aquele huguenote taciturno que o Argus lhe dera para companheiro. Ainda mais esta! E considerou que pelo ar sombrio, pela solenidade do aspecto, pela idade, pelas bigodarradas louras — o Anacleto era bem capaz de passar pelo “doutor” e ele, Egon, por escudeiro e guarda sanitário. Mais de hora em Sabará, mais longas estopadas em Mestre Caetano, José Brandão e foi só às dez e meia que o trem chegou a Caeté. Levara cinco horas para cobrir os quarenta e sete quilômetros da distância — escritos à tinta negra na parede da estação. O presidente da Câmara, dr. Israel Pinheiro da Silva, estava esperando nas pedras da plataforma.
Nascido em 1896, esse filho do velho João Pinheiro ia, na ocasião, pelos seus trinta e um para trinta e dois anos de idade. Era um moço alto, magro, rosto fino que repetia, como o de quase todos seus irmãos, os traços e o nariz que estão nas fotografias conhecidíssimas do presidente de Minas. Era pálido e pertencia ao grupo arruivascado ou alourado dos filhos do último — representado por Helena, Paulo, Virgínia e José (Zezé). Os outros eram morenos e destes só diferiam do tipo as duas moças que tinham saído à d. Helena: Carolina, casada com o Juquinha Fonseca, e Marta, com o João Cláudio de Lima. O Israel tinha expressão entre dormente e sonhadora que era a cortina mineira atrás da qual se escondia o homem inteligente, de espírito pronto, sempre disposto ao chiste e à boa risada. Egon conhecia-o muito bem da casa de sua mãe. Não podia dizer que fosse seu íntimo, nem mesmo amigo mas para suas relações era lícito usar um termo que só os mineiros entendem. Tinham muito costume — no sentido de encontros frequentes, muita conversa e cada um gostando dos casos e das estórias do outro. Foi da boca do Israel que seu irmão João, o Nava e o Egon tinham ouvido, abancados no Bar do Ponto, pela primeira vez, o nome de Einstein e uma explicação vertiginosa da Teoria da Relatividade. Tudo isto e mais as sessões de tiptologia e mesas giratórias em que ele comandava a cadeia — para interrogar o espírito dos mortos.
Muito risonho, Israel interpelou o conhecido sobre ao que vinha a Caeté.
— Uai! sou o médico que a Saúde mandou a seu pedido para ir ver os tifentos de Taquaraçu.
— Então você já está formado… Meus parabéns. Onde que tá sua bagagem?
Apresentado o seu Anacleto que montava guarda junto à mesma e aos malões do material sanitário. Logo o Israel introduziu na conversa certo Agatão Tranquilo.
— O Tãozinho agora vai levar essa bagagem e o seu Anacleto para o Tinoco, onde vocês dormem hoje. Amanhã cedinho saem para a zona pesteada. Nós dois almoçamos depois. Agora vamos direto à casa dum empregado da Cerâmica. A mulher dele tava grávida de gêmeos. Pariu há três dias menina morta. Depois engastalhou e não há meio de soltar a outra criança. Tem uma curiosa fazendo tudo — vamos ver agora se você dá jeito.
— Mas pelo amor de Deus! Israel. Eu num sou parteiro…
— Cumé que não? Caeté não tem médico, você é o único à mão e fica sendo parteiro quer queira quer não queira. São ordens do presidente da Câmara.
Seguiram uma rua vazia, o Israel às gargalhadas, o médico estreante espavorido e atraído pelas caras curiosas e tímidas aparecendo e logo sumindo nas janelas. Ia aterrado, pensando nas encrencas daquele parto empenado, nas possibilidades trágicas dum mau pé, das apresentações agripinas, das procidências de braço. Sentia-se perdido diante daquela primeira paciente que lhe aparecia depois de formado. Que merda de batismo… Chegaram finalmente à casa. O moço sucumbido tirou o paletó, a gravata, arregaçou as mangas e olhou a pobre parturiente. Era uma mulata magra, cara de sofrimento, beiços pálidos, uma roseta de febre em cada face. Respondeu que tinha vinte e nove anos e que já tivera cinco filhos em partos normais. Aqueles dois é que… A parteira era uma negra velha que foi buscar o que pedia o médico. Veio com uma bacia de latão, cheia dágua quente, um pedaço de sabão português. Agora, creolina, não tinha não. O Israel saiu correndo para comprar. Enquanto isto o parteiro improvisado fazia exame sumário, auscultava, percutia, palpava e depois tomava o pulso rápido da cliente que o diabo lhe mandava. Chegou a creolina. Ele lavou primeiro as mãos durante tempo — água e sabão. Mandou a negra jogar fora e trazer bacia com água limpa. Creolina na água e desinfetou as mãos naquela barrela esbranquiçada que enchia o ar do quarto com seu cheiro forte a ácido fênico e creosoto de faia. Àquele bafo de remédio o Egon aprumou, sentiu-se seguro, mandou tirar as cobertas e que a parteira arreganhasse as pernas da paciente. Um cheiro a mulher suja e a podre dominou o da creolina. O Egon olhou. Estava um negócio inidentificável. Debaixo da moita espessa dos pentelhos colados uns nos outros e pregados à pele do baixo-ventre, virilhas e entrepérnios por suores, água amniótica do primeiro parto e lóquios — estava alguma coisa edematosa, esfolada, verdoenga e equimótica parecendo casca de fruta podre rachada de fora a fora. Pela fenda escorriam imundícies sanguinolentas e dela brotavam folhas. Do meio saía um fiapo de umbigo ressecado feito tira de couro fina. O médico chegou perto. Eram folhas, mesmo, úmidas e emurchecendo. Apontou a alcachofra à negra velha.
— Que diabo? de folhagem é essa…
— Ela tá atafuiada, doutor.
Atafulhada? O médico compreendeu melhor quando teve a explicação. A vagina da parturiente estava cheia, entupida, atochada de folhas apertadas de urucum. Foi informado também que era um verdadeiro porrete pra menino atravessado e parto engavetado. Superior. Fazia vir tudo depressa. Havia de ser medicação analógica — pensou ele — a baga do arbusto sendo deiscente e soltando seus caroços assim que abria.
— Vamos tirar isso tudo…
Foi removendo aquelas folhas em forma de coração, sacou um punhado delas apertadas umas às outras como couve na hora de cortar. A pobre coitada estava como que arrolhada. Atafulhada. Desobstruída, começou a deixar sair uma baba grossa e suja pelas partes. O obstetra improvisado reclamou um irrigador. Não tinha. Foi ainda a preta velha que disse que ia pedir emprestado o da d. Nercinda. Vinte minutos depois voltava com recipiente, borracha e pipo de ebonite. Tudo pra ferver numa lata grande. A lavagem, ajudada pelo Israel que levantava o vaso, trouxe mais folhas, como que mastigadas. O Egon mandou encorpar o soluto de creolina, chacoalhou novamente as duas mãos na bacia e foi ao toque. Meteu indicador e médio — o mais que pôde. Sentia um calor, uma pressão como se estivesse enfiando os dedos em toucinho quente. Dentro daquelas paredes edemaciadas ele procurava inutilmente o colo. Pediu uma lata nova de azeite, que a lavassem com água e sabão e furassem com prego de ponta esbraseada na chama. Foi ainda o Israel que se encarregou da operação. Aí ele estendeu bem a direita e que despejassem na palma e dorso. Bem untados, os dedos foram reunidos na clássica “mão de parteiro” e o Egon a enfiou vagarinho na loca. Lentamente chegou até a uma espécie de bola mole que segurou de leve para identificar. Parecia um limão de carnaval, alguma coisa elástica esquivando entre os dedos, amolgável, renitente. Pega que pega, aperta que aperta, toca que toca e o troço rebentou e veio um esguicho de água que eram as do segundo bolso herniado, estourado pelas manobras. Logo depois o doutor olhando o ventre viu que sua parede mexia numa sucessão de ondas. Palpou e sentiu as contrações da madre.
— Ela entrou em trabalho de parto. Agora vai andar depressa…
Foi, de não dar tempo nem para um segundo toque. Veio lá de dentro uma espécie de peixe que, ao acabar de sair, o Egon verificou repugnado que era um monstro anencéfalo. Bom, que morto. Vade retro — pensou. Esperou um pouco e passou à segunda parte do drama. Delicadamente e depois com mais força procedeu ao Credé. Recebeu nas mãos as secundinas, viu golfar sangue agora vivo e radiante, que o mesmo já se estancava à tonicidade readquirida daquele útero. Inspecionou a placenta e membranas. Pareciam inteiras. Mas e os restos? do primeiro bolso… Depois, enquanto lavava as mãos na calha do terreiro, o Egon dizia ao Israel que a pobre mulher não escapava duma infecção, que era melhor removê-la para o Pavilhão Semmelweis da Santa Casa de Belo Horizonte e que ela depois devia ir para a enfermaria do Werneck. Coser o períneo. Fazer uma bitola estreita — esclareceu, rindo, ao presidente da Câmara. O moço médico estava bestificado e encantado do jeito sacerdotal e paternal com que o Israel exercia seu cargo — assistindo e ajudando até em parto, cheio de naturalidade e caridade simples. Para adiantar um pouco o caso, vamos contar que vários dias depois, voltando da zona tifenta, o Egon fora à casa da sua paciente. Encontrou-a lavando roupa, rindo muito e logo correndo a passar um café pros doutores. Não tivera infecção nenhuma, não senhor! e não queria saber de ir coser em Belo Horizonte.
— Precisa não, doutor. Já fica caminho aberto pra outro… Corrimento? um restinho. Igual ao que tinha antes… Vai com Deus, doutor…
— Fica com Deus, minha filha…
Precisava mesmo não. Ia ficar larga e úmida, o marido que nadasse naquelas amplidões. Ficar conirrota como as outras do interior, nas zonas onde não havia médico ou, se este havia — não havia mesmo é medicina.
Eram quase três horas quando o médico e o Israel chegaram ao Tinoco, ao Solar do Tinoco — propriedade dos Pinheiro. O Egon admirou a beleza e a dignidade arquitetônica do casarão, sua varanda central, as escadas. O Israel explicou que tinha sido do barão de Cocais e o doutor subiu, emocionado de ir pondo os pés nos degraus velhos que haviam, tantas vezes, de ter suportado as pisadas de sua gente Pinto Coelho da Cunha. Almoçou com o dono da casa que enquanto comia explicava como seria a viagem. Sairiam às cinco da manhã, ele, Egon, seu Anacleto, bem montados e guiados pelo seu empregado Agatão Tranquilo, chamado geralmente só de Tãozinho. Iam outros dois camaradas, Polidoro e Balbino. A tropa ficava, assim, constituída de cinco cavaleiros e da besta de carga para a bagagem sanitária e a de cada um. Está bom? o jovem médico não teve nada a acrescentar e os dois saíram para dar uma olhada no Caeté. Foram primeiro à Cerâmica. Depois à Matriz em cujos beirais, torres e cornijas o René Guimarães, cada vez que vinha à cidade, fazia suas sortes e acrobacias — iguais às de Quasímodo na Notre-Dame. Andaram um pouco. Voltaram para o Tinoco ao escurecer. Um cansaço gostoso da viagem, da estreia, do parto, do passeio, amoleciam o Egon. Tomou sólida canja e recolheu-se ao quarto que lhe fora destinado, à direita de quem olhava a fachada, janelas sobre o lajeado pé de moleque da frente. Tirou a roupa, deitou e parecia que não tinham nem dormido quando deu com o dono da casa dentro do quarto e abrindo a janela para o dia que nascia.
— Então? Egon… Um quarto para as cinco e tá na hora do café. Depois estrada e boa viagem no lombo do burro.
Quando o periodeuta desceu depois do café, o Israel o acompanhou até ao pátio da frente da casa. As montarias estavam prontas, a besta de carga com as cangalhas arrumadas, as malas e arcas amarradas. O seu Anacleto, já montado, estava uma figura imponente. Chapéu e gravata pretos. Botinas cruas de elástico, roupa cáqui, cabelos de trigo, bigodeira de cobre — ele parecia uma estátua de bronze dourado chapeada pelo sol. Óculos pretos. Na mão esquerda as rédeas bem-apanhadas e o volume da Bíblia, na direita, a tala. Ao que parecia, o estafermo de metal ia ler durante a viagem. O Egon nunca montara a cavalo e aproximou-se do animal que lhe tinham reservado — assim vagamente inquieto, principalmente porque percebera nos olhos do Israel uma espécie de riso reprimido.
— Não se preocupe, Egon, o burro é macio de sela e bom de boca.
Era um burro preto de sabat, um burro de dois andares e queixada bíblica — que lhe tinham reservado. O Tãozinho segurava-o pelo bridão, rente à boca. O Egon meteu o pé na caçamba e içou-se com tanto ímpeto que quase ultrabordou para o outro lado do bicho. Graças a Deus enganchou, caiu na sela, firmou-se, meteu o outro pé na outra caçamba e afastou os dois o mais possível com medo de impacientar o burro ao contato das esporas de rosetas denteadas e agudas — que o Israel fizera questão que ele pusesse. Atracou com as duas mãos o santo-antônio da sela mexicana, o que levantou protestos — assim não! assim não! — do Tãozinho e do Israel. Logo o primeiro entregou-lhe as rédeas e o segundo um chicote fino e silvante que o pobre cavaleiro decidiu não encostar nem de longe na sua montaria. Nela assim postado, o moço sentiu como que um esquartejamento pelo afastar das próprias pernas — provocado pela espantosa largura do burro paragigante. Daqueles altos contemplou o mundo como de cima dum patíbulo. Mas se aprumou, pernas e esporas afastadas, braços afastados do corpo e a destra sustentando o chicote irrisório. Num suor frio ele viu o Israel lá embaixo, a custo segurando a gargalhada que queria cacarejar. Já o Tãozinho colocava-se montado ao lado esquerdo. O seu Anacleto desfraldara um guarda-sol que não se lhe percebera, a Bíblia já aberta, apoiada ao santo-antônio da sua sela. Os peões passaram para trás. Num assombro o Egon notou que seu burro virava a cabeça, olhava-o longamente como a tomar alturas da carga. Pensou, numa vertigem: seja tudo o que Deus quiser! e largaram. Correu bem no princípio e o médico já se tranquilizando ia estabelecendo analogias entre a batida das ferraduras no ferro nas pedras do pé de moleque que tiniam sons nítidos e resolutos e os lampejos variados e como que sonoros de tão alegres que o sol fazia nascer das poças dágua e da quina mineral dos pedregulhos, da face das vidraças, dum verde de folha, do amarelo estridente dos girassóis. Essa sinfonia dura-durou enquanto durava o calçamento pedregoso. Assim que chegaram à estrada e às primeiras batidas dos cascos na terra fofa, o burro fez meia-volta, tomou um galope perigoso e voltou à sua base rédeas soltas e o monteiro atracado à sela. Atrás a gritaria de toda a tropa e o galope erudito do seu Anacleto sempre silencioso. Última forma. O Israel deu novas instruções ao Egon. Que dominasse o animal, não o deixasse abusar, ora esta! que metesse a peia, chegasse as esporas. Pois sim… Tudo nos eixos, todos em posição, a expedição arremeteu novamente. Mas aquilo estava escrito. Tão cedo o filho da puta do burro sentiu o chão de terra da estrada, fez outra meia-volta e num galope desabalado voltou ao Tinoco. Foi um espanto e uma galhofa, o Israel não se continha mais. Só que o Egon safado da vida — desceu daquele troço demoníaco que cavalgava e disse que naquele bicho não montava mais. Arre! que o Israel tivesse paciência e arranjasse pra ele outra coisa. De preferência cavalo velho que era trem que aceitava qualquer principiante e não oferecia os perigos do que lhe tinham dado. Ah! não… O Israel confabulou com o Tãozinho, este afastou-se levando o burro para a manjedoura que ele queria e quinze minutos depois veio trazendo pela arreata um rocinante magro e pelo dum castanho tão claro que parecia cabelo oxigenado. O Israel voltou-se para o Egon.
— Taí o cavalo velho que você queria. Esse serve. É só prestar atenção à balda que ele tem de desmunhecar de repente, dar uma carreirinha e retomar o passo em que vinha.
O moço montou, tocaram e eram suas nove e meia da manhã quando ganharam pela terceira vez a estrada. Não houve nada e foram seguindo o trote do Tãozinho que passara para a frente como lhe competia na qualidade de guião. Dentro de uma hora (com uma desmunhecada do cavalo a cada vinte minutos) o sol sertanejo fez-se presente no médico. Queimava a pele, ardia na nuca, antebraços, mãos; levantava-se do cavalo um cheiro de estrebaria úmida e ele espalhava espuma como se fendesse ondas. As mãos suadas do cavaleiro amaciavam e faziam como que uma pegajosidade que untava as rédeas de couro cru e os dedos que as arroxavam. Um verso subiu à boca do moço — “O sol carrasco nos carrascais” — e um vento transitório e fresco passou como a presença amiga de João Alphonsus. Aquilo não variava e o Egon sabia das horas pela subida do sol que fazia sua sombra e a do animal virem chegando para mais perto. Ele olhava com agrado as silhuetas azuladas cavalo e cavaleiro se projetando no solo e via narcisisticamente a sua, tão magra que era quase elegante, o chapéu meio de lado, a camisa arregaçada até ao braço, os movimentos de vaivém que o cavalo lhe imprimia e cuja projeção era inseparável da sua. Aquele contorno oferecia sugestões vagamente heroicas e equestres e o jovem doutor pensava em entradas pelo sertão e em lances guerreiros que faziam-no ver, no desenho sobre o solo, à direita, à esquerda — as figuras de sua gente em bandeira, em guerra, ou em penetração das terras das minas dos matos gerais. À vontade sobre o velho pangaré, ele já automatizara a defesa pronta do corpo e de pernas pés mais firmes nas caçambas a cada desmunhecada. Mesmo perdera o medo de espantar a montaria e acendia à vontade seu cigarrinho. Uma nuvem de fumaça saía também da cabeça da sombra feita na trilha vermelha. O sol carrasco… Quase onze horas passaram um riacho, viraram um barranco e apareceu uma venda de beira de estrada. O Tãozinho informou.
— Para qui pra almoçá.
O Egon deu graças ao Senhor daquela interrupção para repousar o traseiro em ebulição devida ao chouto e aos desmunhecamentos do cavalo. Apeou, mal podendo andar. Manquitolando, foi se achegando ao balcão escuro do tempo, do sujo, da madeira roxa que lembrava a cor dos jacarandás. Estava fosco nuns pontos e polido nas beiras, lado de dentro pelos cotovelos do negociante, de fora, pelos dos fregueses. Havia ali uns quatro e logo o Tãozinho foi contando que ele era o médico que ia socorrer o povo de Taquaraçu. Um mulatão grisalho, que devia ser o mais velho dos cinco, olhou entendidamente o dono da casa depois que todos tinham se apertado as mãos. Logo o de dentro pôs um copázio alentado em cima do balcão. Era dum branco puxado ao esverdeado, facetado, louça barata mas antiga, o vidro ordinário cheio de bolhas de ar. Encheu até às bordas duma pinga especial dentro de cuja garrafa macerava um punhado de pitanga. Bebeu primeiro o ofertante, passando em seguida o copo para o médico. Este conhecia o costume e sabia que recusar era injúria grave. Tomou sua talagada e logo um fogo lhe gratificou as entranhas — enquanto ele sentia um retrogosto de açúcar surgindo dos fundos da dureza da cachaça e do aperto que a pitanga conferia. Deu o copo ao Tãozinho, esse ao seu Anacleto (que, puritano, apenas molhou os bigodes), esse a outro bebedor. Assim por diante, de um em um. O último foi o Balbino que tomou sua marretada não esquecendo de deixar uma boa dose final que derramou no chão: era o gole das almas. Satisfeito com aquela cortesia mineira, o doutor acendeu seu cigarro, sentiu-se livre de todo cansaço e ofereceu a sua rodada — consumida com o mesmo cerimonial. Passou a mão naquele balcão venerável onde se viam presas a prego sem-número de moedas falsas — pratas de 2$000, de dez tostões e quinhentão; cruzados, níqueis de dois tostões, de um; cobres de quarenta réis, vintém, derréis. Tudo liga ordinária de estanho e metal branco, latão. As notas viciadas eram coladas às metades, na parede do fundo — à roda da Folhinha Mariana — com pataracas de sabão português.
Almoçaram numa espécie de alpendre no fundo da casa e o Egon notou pelo declive do terreno que estavam desde cedo subindo as encostas da Piedade. Nunca ele comeria outra vez mexidinho mais gostoso que o que se lhe oferecera. Feijão-mulatinho, arroz, quiabo, rodelas de linguiça, nacos de toucinho. Ao ponto, tudo passado na banha de porco e aguentado na farinha de fubá. Como tomado por onda atávica ele achou natural que a mesa fosse servida pela mulher e pelas filhas do dono do boteco. Silenciosas, cabeça baixa. Naquelas alturas e naqueles cafundós o sexo feminino ainda não tinha lugar à mesa das refeições. Só os machos. Depois doce de leite e queijo curado. Café com rapadura. Num bem-estar ele perguntou ao Tãozinho que serra era aquela, longe, na direita.
— Aquele espinhaço todo, doutor, é a ponta da serra de Cocais que quase emenda com a da Piedade. As duas fazem garganta onde nós vamos passar amanhã. Para trás? É a serra do Luís Sodré e depois a do Mato Grosso que caminha na direção do Ouro Preto.
Montaram e ao escanchar na sela o doutor sentiu o dolorimento da raiz das coxas, da cacunda, da bunda pisada. O sol vinha de cima e todos iam num silêncio só cortado aqui e ali duma conversinha mole, duma praga à ferroada brasa viva ferrão dos carrapatos que passavam dos animais para a pele dos cavaleiros. O Egon trazia as pernas bem protegidas pelas perneiras de tiras de casimira que lhe emprestara o primo Nelo, sua calça era dum brim grosso e a bicharia que entrava era pelo cós e espalhava-se na frente das coxas, na barriga, nas costas. Ele queixou-se ao Tãozinho.
— A queimação, doutor, é do micuim. A ferroada do rodoleiro. Mas isso a gente tira é de noite. O ardume do miúdo trata com terebintina, álcool canforado. O gancho do grande, tira com alfinetão em brasa. Trouxe tudo, sim senhor. O que não pode é arrancar o carrapato porque ele deixa o dente na pele e é ferida certa com purgação pra mais de mês.
Oh! Minas Gerais…
A cavalhada seguia Minas Gerais acima dentro. O Egon, exausto de ser sacolejado, todo queimeritematado do sol, boca gosto de poeira vermelha, mãos pegajosas e fedidas do couro cru das rédeas, corpo de são Sebastião todo furado pela seta dos rodoleiros e ardido da queimadura dos micuins, ia entretanto num encanto cavalgando aquele solo ilustre. Dono da geografia do seu estado, quando o astro ficava bem a sua esquerda ele se orientava e punha no seu nordeste, a Itabira dos Drummond; ao leste, a Santa Bárbara de sua gente Pinto Coelho; ao sul, a Vila Rica do Ouro Preto, dos Vasconcelos; ao sudoeste, a Vila-Nova, dos Lima; ao oeste, a Sabarabuçu, dos Lopes Martins, e a Santa Luzia, dos Viana. Era como se estivesse abraçado por toda essa gente amiga e mais todos os Pinheiros da própria Caeté cujo solo galopava. Nem precisava mais perguntar ao Tãozinho. Senhor dos pontos cardeais, ele identificava por si mesmo os azuis cada vez mais puros das serras do leste — a de Mato Grosso, do Luís Sodré, de Cocais, a Serrinha e a serra da Pedra Redonda. A oeste alteava-se maravilhento, luminoso, senhoril o dorso cada vez mais nítido e mais próximo da Piedade que a tropa galgara até meia altura. Em demanda da montanha mágica tinham deixado à direita os aglomerados de Mundéus e Penha e só encontravam de quando em vez casinha de sítio, casa de fazenda, palhoças, barracões, botecos à beira da estrada. Tinham atravessado o solo variável e característico do Caeté — zonas áridas de cerrado, terras duras e retorcidas como a vegetação pobre que se fincava — gravetos virados para cima. De vez em quando pastagem menos ruim — jaraguás gorduras — com seus bois sonolentos. Vez eram capoeiras e mesmo matas parecendo intactas donde surgiam as aguinhas e riachos que iam engrossar o Soberbo. Então a tropa entrava num sombreado fresco e todos sofreavam querendo demorar mais um pouco naquele verde balsâmico. Desmontavam o tempo dum cigarro, duma mijada boa ou fumavam nas selas, virando no sentido natural da flexão e extensão das pernas desmanchando a abdução dolorida e cansativa. Ah! o bom cigarro, o chapéu para trás, o gole de água fresca nas guampas… Mas já o Tãozinho chamava, seu cavalo picava à frente e os outros acertavam por sua marcha, seu trote, seu galope. E novamente o cerrado. Fascinado, o Egon olhava a serra da Piedade. De manhã ela estava longínqua, esfumada, como as ravinas que fazem o fundo da Monna Lisa Gioconda. Depois o sol varrera as brumas e ela se vestira do azul polido e claro das montanhas e terras horizontes das Très riches heures du Duc de Berry — um blau puro oferecendo as gradações agilíssimas do anil na água — muito anil, menos anil, pouco anil. Uma brancura imitava neves avalanchando caudais de prata descendo selargando-se dos pontos mais altos. Sem que perdesse seus azuis, o dia, à medida que subia, fazia a montanha dourar onde estivera a prata dos cimos e a essa mistura aurociânica respondiam tons verdes que atiçavam os blocos de esmeraldas que cintilavam nas cristas das encostas. Chegando mais perto, o astro obliquando para trás da serra permitia seu solo se mostrar sem a doçura inicial de coisa de açúcar e sorvete, antes, e a se eriçar de agulhas e a ficar duro, pedregoso, bosselado, áspero, nos detalhes onde a prata virara ouro e o ouro ferro à medida que a luz paramonteava, transpunha, baixava e fazia o crepúsculo mudar o colorido da tela prodigiosa. Agora, àquela hora e de perto, o solo de Minas Gerais assumia sua carranca de chão de ferro. O Egon padecendo na sela, via sua sombra que se esticava empurrada com a do cavalo pelos raios poentes. O braseiro se escondeu no momento em que as raízes da serra dobram para leste e fazem como a angulação dum para-vento. O moço gemeu.
— Ah! Seu Tãozinho, chegamos? ou não chegamos mais… Já não aguento, estou completamente descadeirado…
— Um pouquinho de paciência, doutor, tamo chegando. Só mais um terço de légua…
O Tãozinho e os camaradas estavam lampeiros e frescos como de manhã. O seu Anacleto, vaqueano dessas viagens a cavalo, imutável. Não suara nem se sujara — mantido pela leitura da sua Bíblia. Afinal o guião mostrou uma casa surgindo mais clara de dentro da treva que aumentava.
— É ali, doutor, que vamos ter janta e dormida. Fazenda do capitão…
A essa voz o jovem médico despencou da sela.
— Perto assim, Tãozinho, só esses quinhentos metros, vou a pé que não posso mais com esse cavalo…
Os outros foram se adiantando devagar. O Egon foi indo a pé, todo dolorido dos quartos, descambado de costas, puxando aquela porqueira de cavalo amarelo pela arreata. Chegando perto sentiu o cheiro hospitaleiro da bosta do curral perto da casa. O capitão adiantou-se com Tãozinho para receber o sô Dotô. Era um morenão simpático, olhos muito verdes, seus 48 a cinquenta que o cavanhaque grisalho aumentava. Corte barba de bode e falando com ar disfarçado um “mineiro” dos mais gostosos que o Egon já ouvira. Lembrava a falação do primo Juquita.
— A casa é sua, doutor, não repare, rancho de pobre…
— Ora essa! Tá tudo muito bom. Superior.
O banho insinuado, o médico foi tomá-lo distante, numa volta de barranco. Um jorro dágua chegavali — intermédio de gomos de bambu-imperial abertos de fora a fora. Essas telhas embiricicavam umas nas outras fazendo no extremo a bica grossa que cantava numa pedra lisa. Aquela água lavou-o da poeira, do cansaço, do calor, da secura do ar. O Tãozinho viera atrás com o capitão que levantava um lampião de querosene. Antes da água e assim que ele viu o moço em pelo, aproveitou para livrá-lo dos carrapatos grandes. Viera munido para isto dum alfinetão fincado numa rolha de que punha a cabeça em brasa à chama do belga. Depois tocava com ele o rodoleiro que encolhia os dentes e caía. Tirou seis pendurados na pele do tronco.
— Pronto, doutor. Agora os que o senhor arrancou coçando, vão dar ferida na certa. Depois do banho — é que vamos tratar as coceiras com terebintina ou cachaça de alcanfor.
O capitão que iluminara a operação declarou preferir cachaça com fumo de rolo ou mais simplesmente fumo mascado para esfregar. Com licença da má palavra — tem o guspo que também é muito bom. Disse essas coisas estendendo um lençol grosso de americano para enxugar. Vestido, o Egon reentrou na sua dignidade de doutor e voltaram todos para casa. Sentados em bancos em forma de X, ou tamboretes, esperaram que chamassem para comer. Afinal passaram para uma sala de jantar tão desornada como a da frente e abancaram diante de grande mesa de cabiúna sem toalha. O capitão na cabeceira. Um mulherio surgiu trazendo os pratos, travessas, panelas. Cabeça baixa, não salvaram nem foram salvadas. Mulher e filhas do capitão. A comida ficava na mesa e o dono da casa não servia ninguém para não constranger com de mais ou de menos. Como ele ficasse de pé cada vez que tirava qualquer coisa para seu prato, o doutor compreendeu aquela cortesia e passou a fazer o mesmo que ele e todos. Picadinho de miúdo de porco com angu e feijão. Lombo com arroz. No fim uma canja de galinha gorda — gosto enriquecido pelo vinagre. Café ralo adoçado com rapadura. Antes tinha sido um generoso cálice de pinga com os pedacinhos de casca de canela boiando dentro do garrafão. Era da boa e seu grau certo — fazia o rosarinho de bolhas que se encostam por dentro do copinho. Num bem-estar foram para a frente da casa. Noite sem lua mas toda estrelada. Aí o Egon perguntou ao capitão onde era.
— Qualquer lugar, doutor. O senhor pode seguir em frente, até ficá fora de vistas, chiqueiro adentro. Cuidado pra num trupeçar nos porcos. O que? que o senhor prefere. Jornal velho? Sabugo de milho?
Numa curiosidade ele optou pelo sabugo. Foi dando encontrões em capados do tamanho de hipopótamos aluídos nas lamas e porcarias do chiqueiro. Aliviou-se bem ao fundo, como se sempre o tivesse feito assim e como se nunca tivesse se sentado numa banca de latrina. Entrou pedindo cama e levaram-no a um quarto que dava na sala da frente. O jovem médico ia encontrando em si gestos e jeitos especiais, precisos como se algum antepassado estivesse reencarnado nele. Dormiu dum sono que varou a noite. Quando levantou é que examinou a cama. Era toscamente feita com quatro segmentos de tronco de árvore, seus quinze centímetros de diâmetro. Essas estacas reforçadas, à meia altura e em cima, por ripas retas. O enxergão era feito de galhos muito direitos pregados nas extremidades. Terminavam em ponta chanfrada e estavam garantidos uns nos outros por amarração feita com fibra de bananeira. Ficava um ótimo estrado. Alto, estreito, comprido. Em cima o colchão atufalhado de palha de milho que se remexia, para ficar macio, pela abertura no seu meio. Travesseiro bom, moldando a forma da cabeça assim que a gente se deitava e se ajeitava. Cheiroso dos caroços de macela que pareciam grãos de chumbo paula-sousa miúdo. O café da manhã foi bom como a janta da véspera. Xicrão da bebida rala e pegando fogo. Queijo escorrendo soro. Angu dormido, frito na banha de porco. O moço inda pitou um cigarrinho, negaceando numa conversinha mineira com o capitão. Mas o Tãozinho chamava com a tropa pronta. Seu Anacleto já montado e de Bíblia — parecia uma estátua equestre de guarda-chuva.
— Pois, capitão, até mais e muito obrigado por tudo. O senhor faz favor de agradecer à dona tamém.
O capitão despediu-se com ar de repente biscornuto, mais para carrancudo, com aquelas intimidades de moço da cidade mandando recados pra sua mulher. Não era dos hábitos, conforme esclareceu o Tãozinho. O senhor preste muito atenção nisto. Não precisa salvar nem a dona da casa nem as filhas. Nem olhar. E de jeito nenhum falar nada que mostre que está de sentido nelas… Mas já a cavalhada ia longe, renteando aquele fim de Piedade. Ela lá estava com um dorso antediluviano cujas escamas fossem cor de pena de pavão. Finalmente acabou, a tropa desceu um pouco e tomou uma planura mostrando do outro lado, como farol numa entrada de barra, as primeiras cumeeiras da serra de Cocais que manda ali uma proa como a querer fazer a abordagem da Piedade. Mas as duas, sem força, não se juntam. Entre elas estendem-se as navas caminho de Roças Novas. O dia foi igual ao outro. Aquele rangido de couro debaixo do sol, micuim, o rodoleiro, o mosquitinho-pólvora, aquele ar queimando. Almoço, o mesmo, noutra venda igual à da véspera. Ai! Abençoadas águas frescas dos riachos que vadeavam. Atravessaram Roças Novas de noitinha e foram dormir numa fazenda adiante, de outro compadre do Israel. Tudo igual à outra, menos o banho que o médico tomou dentro dum vasto cocho de gado. Ele sentia-se perdido nas distâncias das distâncias daqueles cafundós do Caeté. Dois dias de cavalo que tinham-no estropiado. Estava que não se aguentava mais e caiu das nuvens quando o Tãozinho deu-lhe a medida do percorrido. Quatro léguas. Duas de Caeté ao capitão. Outras duas do capitão a Roças Novas.
— Amanhã mais uma e meia e estamos na Taquaraçu.
Afinal chegou este amanhã em que o moço se viu e à sua tropa trotando para Taquaraçu. Os dias a cavalo tinham-lhe ensinado alguns truques da arte de montar e sua audácia já ia ao ponto de andar mais depressa, de espertar seu pobre pangaré desmunhecador, quando preciso, a rebenque e espora. Já automatizara certos movimentos de freio e sentia com orgulho a obediência da montaria. Saídos de Roças Novas, atravessavam terrenos menos sovinas, zonas melhores de plantação, veios dágua mais abundantes para os peões atirarem as guampas e refrescarem. Também o Egon estava mais moído e corpo todo uma dor só. Cheio de feridas do rodoleiro começando a zangar, feridas na região dos terços superiores dos glúteos, na zona onde a socação da sela faz dobrar a pele que de tanto esticar e encolher acaba em bolha dágua como queimadura e em ferida parecendo corte. O mesmo na parte anterior das coxas, nas zonas que vão esfregando naquela espécie de frontão barroco que guarnece a frente das selas mexicanas e que só servem para judiar. Quatro chagas abertas. Mais outras dos carrapatões. As queimaduras de sol na nuca e antebraços. A dor contusiva da raiz das coxas, das cadeiras, das costas. Corpo sofrendo, seu corpo sofrendo das primeiras machucadelas com que lhe pungia a profissão terrível e que com as canseiras e cuidados da vida toda — devia tornar o médico mais sagrado ao médico. Mas a verdade é que — parafraseando Otto Lara Resende — o médico só é solidário com o médico quando aparece o câncer. Assim mesmo, depois do resultado da biópsia…
Além de mais águas, havia mais capoeirões onde a tropa ia passando. Dentro da mata — os cavaleiros mergulhados num fluido verde como água de aquário. O colorido daquele ar úmido resulta da travessia das folhas verdes pelos raios amarelo-estridentes do sol. Paravam para descansar mais frequentemente porque o Egon estava no último furo de sua resistência. A sela virara um cavalete de tortura e ele sonhava, vagamente, com os confortos de um silhão, perna enganchada sem fazer força. Disposto a tudo, desmoralizado pelas dores e desconfortos ia falar nisto ao Tãozinho quando ele de repente disparou, numa subida, parou num cocuruto e quando o doutor chegou lá-incima do calvário, ele riu e mostrou um casario pouco adiante.
— Taquaraçu.
À entrada do lugarejo o moço olhou os dois lados da estrada e ficou curioso com a quantidade de escadas feitas de bambu, atiradas e se amontoando perto do barranco.
— Que escadas? são estas, Tãozinho…
— Escada não, doutor, andas pra carregar caixão de defunto nos ombros dum adiante, outr’atrás. Na entrada das cidades o respeito manda jogar fora pra chegar no cemitério carregando pelas alças.
Egon contou o número das tais armações de bambu. Umas trinta. Aquilo, num lugar onde o obituário seria dumas quatro ou cinco pessoas por ano, dava ideia da peste que ele viera combater. Um arrepio calouro correu sua espinha. Entraram no lugarejo. Depois duns minutos de ruas vazias deram na quina dum largo. Logo à direita uma velha igreja mineira atestava a antiguidade do distrito. Continuando via-se mais um lado do logradouro cheio de casas quadradas. À esquerda, no lado mais alto, o cemitério onde justamente entrava um enterro de virgem, caixão branco levado por homens de brim escuro, acompanhados por outros que repetiam o jeitão da gente das alças, meninos descalços levando flores, umas velhas embiocadas carregando velas acesas. Rompia a marcha o padre cujo vozeirão irradiava como a vibração doutro sino respondendo ao da igreja — que dobrava a finados. A praça pareceu imensa ao Egon, impressão que lhe vinha das casas baixas, dos muros ameaçadores do cemitério, do sol esmagador que aplastava tudo numa luz que parecia irreal, de outros tempos. Um cavaleiro passou trotando na sua besta perto do grupo que chegava. Salvou e continuou — as ferraduras da alimária tirando aqui e ali, dos pedregulhos um tinido uma chispa de fogo. O Tãozinho retomou a marcha e seguiu em frente até um casarão de esquina.
— Aqui, doutor. Pode apear. Estamos no major Jacinto, onde o senhor e seu Anacleto vão ser hospedados. Eu e os camaradas vamos ficar com parentes.
Entrei com o Tãozinho e logo uma senhora se adiantou toda de negro, pálida, cabelos pretos apanhados numa trança de mandarim que lhe escorria pelas costas. Saudou sem dar a mão. Fez gesto que o doutor entendeu ser para acompanhá-la, mostrou porta aberta para um cômodo que dava na sala.
— Seu quarto, doutor.
Ele começou a sentir-se constrangido diante daquela personagem que parecia saída das páginas de Wuthering Heights — no seu ar sonâmbulo e de aparição. Sempre com voz sem cor disse que ia mandar trazer o banho e queria saber se o médico punha na água cachaça ou álcool puro.
— A senhora pode mandar mesmo é cachaça. E deixem ficar a garrafa que eu destempero a meu jeito.
Ele nunca tinha ouvido falar em semelhante prática. Depois soube que era pra não apanhar resfriado. Mas naquela hora tinha resolvido dar à aguardente que trouxessem fim mais digno. Sempre sob o comando da senhora com ar de santo de roca — parecendo não ter corpo nem carnes sob o vestido preto, entraram três negras e um molecão carregando bacia de cobre areada e mais reluzente que um sol de ouro. O Egon bestificado olhou para aquele objeto de museu. Tinha os quatro pés, as duas alças e uma guarnição na borda — fundidos numa liga metálica mais clara. Pesaria suas quase três arrobas. Puseram no assoalho, rente à cama. Depois vieram as panelas, caldeirões e chaleiras com água saindo do ferver. Um jarro de porcelana azul e branca, sem asa e uma lata de querosene foram deixados com a água fria para dar tempero no banho. Uma cuité boiava. A dona trouxe lençol pro doutor enxugar e o sabão cor-de-rosa dentro duma saboneteira desbeiçada da mesma louça do jarro. Sozinho, fechado, o Egon cerrou as bandeiras das janelas, passou as tramelas. Uma claridade do dia poderoso entrava pelas frestas da madeira e por quadrados vazios abertos como naipes de ouros em cada bandeira cerrada. Uma penumbra enchia o quarto onde o moço distinguia cama de jacarandá tipo gôndola, muito estreita e comprida: podia servir de essa para os ataúdes desmesurados que Daumier pôs na alucinação que representa sua água-forte — Le Médecin. À sua cabeceira tamborete tosco com um castiçal de igreja pintado de preto e pó de prata, com longa vela de cera de seus bons setenta centímetros. Um tocheiro para altar ou para velório. A bacia, na semiobscuridade, parecia uma poça de água sanguinolenta. Despindo, o moço inventariava as injúrias da distância, do sol, da bicharia, dos trancos da alimária no seu corpo. Bolhas d’água nos antebraços. Quatro feridas — duas na bunda e duas na frente das coxas feitas pela sela hostil. As ferroadas do rodoleiro já querendo pustular. O sarampão do micuim. Ainda arrancou três daqueles que sentiu nas costas, sem paciência de fazer cair aqueles bagos de milho com o alfinete em brasa. O corpo todo doendo em cada centímetro quadrado da superfície da pele, em cada osso — daquela surra que durava há três dias. Tomou um consolado gole da aguardente que lhe tinham dado para o banho. Sentiu que suas entranhas acendiam feito tição soprado. Outro, maior, que lhe desceu forçando o esôfago como uma bola de bilhar incandescente. Sentou na bacia. Pensando só no sol, na montanhaolonge de azul e prata cinzenta e outrazul e prata cinzenta… Um pensamento lhe passou — sacana de Argus! mas logo adormeceu no colo líquido daquela bacia beirada de cama onde sua cabeça caiu pesando como se caísse decepada.
Pareceu-lhe decorrido muito tempo, quando a voz do Tãozinho de quarto adentro acordou o moço médico.
— Que isso? doutor. Afrouxou? Vamos que o major Jacinto tá chamando prá janta.
O major era o pai da dona viúva que recebera. Ela não tinha filhos, não tinha irmãos e formava com ele toda a família. Ela iria pelos seus sessenta a setenta, à escolha, pois seu aspecto era de gente sem idade. Velha, era. O que ela tinha de taciturna e alheia, o major tinha de falador, excitado, comunicativo. Tinha a esclerose cerebral alegrinha e movimentada. Comia sem parar, como se tivesse perdido a propriedade de sentir saciado o apetite. Em dado momento a filha proibia que ele continuasse a devorar, ele parava, começava a chorar, mas à primeira palavra que ouvia dum interlocutor embarcava na associação e tomava os degraus cansativos, infindáveis e colados da fuga de ideias. Dentro desse comboio disparado distinguiam-se caras, pessoas, fatos que aproximados de outros podiam deixar entrever coisas da vida do falador inexaurível. O médico percebeu que seu nome Jacinto radicava-se no do brigadeiro Jacinto, seu padrinho de batismo. Por mais que perguntasse não conseguiu saber qual dos dois brigadeiros Jacintos era o seu — se o Machado de Bittencourt ou o Pinto de Araújo Corrêa. No estribo de qualquer dessas figuras imperiais o interlocutor do Egon largava-se para as campanhas do segundo e mais longe, do primeiro reinado, descrevendo-as desordenadamente, mas com um toque de verdade alucinante que dava como que a certeza de seu testemunho e sua presença em fatos centenários ou quase. Sua idade? O Egon percebeu que ele andava perto dos cem. Que tinha acabado obra que durara dez anos em sua casa e que ia agora economizar pelo menos durante novos dez para outras modificações que levariam no mínimo mais cinco. Tinha assim uma espécie de certeza da própria eternidade. Porque queria casa pronta e preparada para então tornar a tomar estado. Porque, doutor, não posso ficar sem mulher, não posso. Isso até hoje, doutor, potência até ali. Pra dá, vendê, jugá fora. A essa voz a filha silenciosamente foi ao quarto do doutor, apanhou o garrafão de pinga e pô-lo diante do velho. Esse logo encheu meio copo e começou. Foi indo. Mas ao tantésimo gole — terra — e foi levado para seu quarto, como criança, no colo da filha. Essa voltou. O Egon agradeceu, pediu licença e disse que ia se recolher porque estava caindo de sono. A mulher avara de palavras então abriu a boca.
— E durma bem, doutor. Se ouvir barulho de cascos de cavalo debaixo da sua janela, não se incomode. É o dr. João Pinheiro galopando no largo. Não senhor, não é do filho que estou falando não. É do pai, do falecido dr. João Pinheiro.
Essa agora! Num mal-estar arrepiado o Egon foi deitar. Apesar do sono que sentia só conseguia, de espaço em espaço, cair numa modorra grossa de que era tirado para um estado de semiconsciência em que ouvia se aproximando se afastando o tropel dum cavaleiro na noite. Mas o som das ferraduras e os estalados da tala sumiram madrugada, varridos pelo primeiro raio de sol. O médico espreguiçou um pouco na cama seu corpo dolorido e ferrado dos bichos, esperou o primeiro barulho dentro de casa para abrir sua porta. Cuidou de si e ao voltar para a sala atentou na mistura disparatada de objetos opulentos e de coisas pobres. Na parede dois retratos a óleo: um velho barbado e uma bela senhora de frente, como numa foto de identificação criminal, os bandós repartidos no meio. Estava em ar de baile, vestido decotado à moda da imperatriz Eugênia — mas pessoa pudica tinha diminuído a abertura imodesta colando à tela babadinhos de papel de seda recortado que subiam até à raiz do pescoço. Idem, cobrindo os braços nus. Havia um grande espelho numa moldura dourada — aço todo roído. Essas coisas gritavam na companhia de bancos de madeira, tamboretes. A mesma trapalhada na sala de refeições: linda mesa de jacarandá encostada à parede, tamboretes às cabeceiras e banco de madeira crua no lado livre. Um guarda-louça de jacarandá rosado estava cheio de trens corriqueiros, de canequinhas de ágata, de sopeiras ordinárias ombreando com uma terrina de louça da Índia, dois pratos de Sèvres e copos diferentes de cristal. Opulência passada, pobreza atual. Uma estante fosca na sombra — cheia de bilhas, moringas, potes, quartinhas — cujo barro avermelhado pretesverdeava do mofo insistente. Saindo do seu quarto, o Egon viu passar negrinha carregando seu penico duplamente atendido, tampado e o todo decorosamente coberto com a toalha de crochê adequada. A dona apareceu toda de preto, seguida duma mulata gorda. Traziam o café mineiro fervendo, mandioca cozida espalhando fumaça e o cheiro gostoso — manteiga fresca, queijo curado. O Egon encheu-se. Foi à porta e viu o major sentado fora, quentando sol. Deu bom-dia, não foi respondido. Antes, encontrou no seu o olhar rancoroso do velho que fazia com a mão sinais coléricos de vassimbora, vá prosinferno e continuava a fazer movimentos de boca e bochecha como quem suga. E o moço assombrado deu-se conta que ele estava mamando, com ar empenhado, uma chupeta de criança. Mas já o Tãozinho chegava com os animais e os camaradas. Seu Anacleto saiu de sua toca. Montaram e seguiram pra cavalgar o dia inteiro, comer onde estivessem, voltar pra dormir em Taquaraçu — como o fizeram dias e dias varando todos os sítios, fazendas, choças, agrupamentos de casas e barracões em torno de vendas — esboçando a semente de povoados, arraiais, vilas, futuras cidades. Trotaram palmo por palmo tudo que ficava entre os vilarejos de São Félix e Bom Jardim — já quase na Santa Luzia — e as vertentes oeste das serras do Capote e da Mutuca que se dirigem juntas para o norte e o leste, formando com a serra da Pedra Branca os dois pilares que fazem a garganta por onde se passa dali pra Santa Luzia do rio das Velhas e pra Itabira do Mato Dentro. O Egon dividia-se entre as dores de seu corpo e o deslumbramento daquelas montanhas prodigiosamente translúcidas ao longe e logo opacas e mais duras se chegando perto. No altozul giravam nuvens como anéis de Saturno — ou ficavam imóveis e subidas com’umispuma argêntea de clara batida — ou faziam negativos de degraus se perdendo um pra baixo do outro do outro do outro para os para-lá dos horizontes inatingíveis. Longe… Águas fartas desciam em numerosos riachinhos — afluentes que iam engrossar o Taquaraçu pela sua margem direita. Claro. As origens da epidemia cuja pesquisa os cadavalargus — enfatizavam tanto, óbvia. Eram aqueles riachinhos contaminados da terra sem cafoto nem fossa — inda mais latrina! — onde se ia cagar no chiqueiro, na touceira de bananas, nas moitas, nas ribeirinhas. Admirava que só tivesse pegado aquele pedaço do município, sem corrê-lo ladalado sulanorte… Nesse trecho de Minas o citadino Egon teve seu primeiro contato com a gente do interior do Brasil, tão diferente da sua população praieira e capitaleira. Gente perdida, desvivida, pobre, doente e ignorante cuja paciência radica num embrutecimento tão grande que abole instinto de conservação, de defesa — que nela teria o nome de rebelião. Pode acontecer. Canudos é uma lembrança mas também um símbolo de crença nos nossos cuessératamens…
Na memória do doutor gravou-se a figura do primeiro tifento que ele viu depois de sair de Taquaraçu. Foi numa espécie de casa-grande de fazenda pobre e em ruínas, tudo aferrolhado, num quarto escuro como breu. Um gemido e um cheiro de trampa guiaram-no para o jirau onde estava siderado um homem seus quarentanos. Mandou abrir a janela. À luz que entrou viu corpo tão prostrado que parecia ter sido achatado por rolo compressor em cima da enxerga imunda. Um colchão de palha empapado de fezes. Nu. Trapos para cobrir. Pegava fogo. Sobre a barriga escavada como as carenas, um embrulho de pano com umidades pardas escorrendo: cataplasma de bosta de boi. Os olhos nos fundos das órbitas de sombra mal se davam conta do que acontecia. A caveira dando sinal de querer romper a pele ressecada. As ventas entupidas duma espécie de fuligem igual à que fazia escamas sobre os beiços gretados. A boca aberta arreganhava mostrando a protusão dos dentes cariados e secos, uma língua de papagaio árida e negra enrolada no fundo das goelas. Deixava sair gemidos que se entrecortavam de pausas. Hálito fecal. O médico primeiro fez limpar o doente, jogar fora a cataplasma, dar asseio ao cacifro e ao jirau. Pensou um instante nos seus tratados — “a língua pregada no fundo da boca, o corpo pregado no fundo da cama” — é, era assim, mas havia mais o cheiro, a vista, o real, o flagrante, o contato com a merda. Naquele tempo não se sabia o que era hidratar um doente. Mas por instinto o Egon viu que estava diante duma espécie de náufrago sedento e mandou que lhe dessem água. Água? doutor. E pode? Pode sim, façam um chá e vão dando morno ou frio. Com rapadura mesmo. Qualquer folha boa serve. Losna mesmo é bom. Como mandava o Argus, seu Anacleto fez a vacina nos sãos. Trouxe a empolinha para colher o sangue do doente. Era um tubinho de vidro (como os de ensaio, só que menor) com tampa de borracha de que surgia uma agulha de bisel curto comunicando, dentro, para um canudinho de vidro dobrado em ângulo reto e que se encostava a prolongamento oclusivo da tampinha de borracha. Introduzia-se na veia, angulava-se a agulha e o vácuo de dentro puxava o sangue. Faz favor de registrar o nome do doente, seu Anacleto. Nome, idade, cor, estado civil, naturalidade como está nas instruções. O senhor já conhece. Depois o nome e demais informes dos vacinados. Lavaram-se mãos e antebraços longamente com um sabão preto fedendo aos seus ingredientes de sebo, de cinza. Desinfetou-se à falta de álcool, com a aguardente que lhe arranjaram. Ensinou, como queria o Argus, os circunstantes sobre os cuidados a serem dados ao doente e os que serviam para prevenir o contágio da doença. Pela cara dos que ouviam ele viu que eram palavras entrando num ouvido e saindo pelo outro. Aceitou o café. Queria-o fraco, sem açúcar e bem fervido. Foi ver ferver. Tomou um copo da palangana amargosa só pra matar a sede. Montaram e bateram pra outro. O Tãozinho fez a moralidade da fábula.
— Não adianta, doutor… É o senhor virar as costas e eles atocham no doente outra cataplasma de bosta…
Assim o Egon correu aquele canto perdido de casa em casa. Viu menino, menina, mocinho, mocinha, homem, mulher, velho e velha queimando de febre, dismilinguindo nos delíquios, desfazendo-se em piriri ou de tripa presa, melhorando, convalescendo, morrendo. Iam quase todos de miocardite tífica, de hemorragia, de caquexia infecciosa — outras mortes, mas quase maioria da sede, da fome a que a burrice dos médicos reduzia os clientes. Estavam longe as eras em que a hidratação bem-feita, a alimentação adequada e rica em proteínas, os antibióticos tornariam as febres do grupo tifo-paratífico, entidades quase benignas. Aquela tropa comia onde podia, às vezes o que havia na casa dos pesteados. Se tinham a sorte de parar numa venda, havia sempre linguiça pra fritar, farinha pra farofa, ovo pra dita, às vezes porco no sal, umas quitandas, uns pés de moleque, pelo menos rapadura. E uma pingota. Matavam a sede com cerveja quente, gasosa, gengibirra de abacaxi, aluá de arroz ou de fubá mimoso. Daquelas águas dali, só no café e bem fervidas. Saúde haja, pensava o médico. Saúde haja para tratar a dos outros. O Egon dava também consulta a doentes de outras doenças que encontrava. Vermífugo para menino de barriga empanzinada. Eu já rezei ele, doutor. Pode rezar, também é bom, mas não deixe de dar o lombrigueiro pra ajudar. Quando o sol chegava nas alturas do meio-dia, uma hora — o Tãozinho dava o toque de volta e sempre por caminho diverso para vir vendo mais gente, mais doente. Pelas cinco da tarde entravam na Taquaraçu para o cerimonial de tirar carrapatos, lavar o corpo, jantar, ver o dia morrer, o acender dos lampiões e bicos de querosene. Para escutar o major Jacinto. Afinal chegou o dia do Tãozinho dizer que estava tudo dito e que podiam voltar. Refizeram as léguas de até Roças Novas. Daí para o capitão. Do capitão para o Caeté. Pouco antes da tropa chegar à sede do município, o Tãozinho galopou. Chegar na frente e “prevenir o doutor”. O “doutor”, o Israel, esperava na varanda do Tinoco já pronto para rir do cavaleiro canhestro. Tinha mais gente. Certo ele tinha chamado para gozarem. Devem ter ficado cada um mais andré que o outro, pois quando o Egon farejou de longe a coisa, lembrou que tinha aprendido nas suas andanças uns rudimentos de a cavalo e briosamente tomou as rédeas do seu. Já não era mais o pangaré amarelo, mas montaria decente emprestada pelo capitão. Pois tomou as rédeas da sua, afrouxou uma, apertou a outra brida, chamou o bicho na espora, cortou ele de tala e fazendo-o ladear levou-o até esfregar a focinheira na estaca onde estava a argola. Desceu da sela airosamente e subiu as escadas de três em três. Isso faz mesmo 51 anos que se deu…
O primeiro dia de Egon em Belo Horizonte, de volta do Caeté, foi cheio de sensações e pensamentos de natureza diversa. Primeiro a impressão de doença física que lhe fora dada pelos carrapatos cujas dentadas latejavam da supuração, ardiam aqui muito, ali pouco — como queimadura mais funda, mais leve. Pôde afinal tratar aquilo tudo com pomadas e loções da farmácia e aplicar onde devia os curativos esterilizados. As contusões da sela e do sacolejo iam passando ou diminuindo de doer graças a doses de aspirina. Estava era negro do sol sertanejo. Pele da cara, pescoço, nuca antebraços mãos descascando. Isto era cuidado à Pasta de Lassar. Sentia também como se aqueles dias de a cavalo, sol, comida indigesta, cama dura o tivessem amadurecido para a vida médica. Diagnosticara, tratara, prescrevera, aconselhara, prognosticara, ordenara com autoridade sua. Aqueles poucos dias pareciam-lhe ter durado anos. Ele embarcara calouro e voltava médico — mais do que quando colara seu grau: compartira de dor alheia, sujara-se de vômitos, suores, urinas e fezes de seus semelhantes. Sentia-se solidário. Sua vida participava. E tivera a ocasião de assinar seu nome antecedido do D e do R — dr. — na última linha de seu relatório. Ia entregá-lo ainda àquele dia, ao Cadaval. Paz e repouso lhe vinham de tudo isto e da luz e dos silêncios da casa da prima Diva — só interrompidos por um canto que vinha do tanque e da garganta diamantinense da maravilhosa mulata que estava cozinhando e lavando para a família, pelo piano das meninas, pela voz alta e alegre da prima quando chegava da repartição ou pelas gargalhadas do Nava que gozara muito as desgraças das aventuras sertanejas do parente. Mas o Egon sentia também como uma espécie de confirmação, de crisma mineiro — óleo daquelas andadas no chão de Minas, do gênero das casas, dos beirais dos telhados, das tábuas largas dos assoalhos, do trançado das esteiras que faziam forro nas casas (cruas ou passadas à cal), dos riachos e ribeirões, dos cerrados, capoeiras, pastagens. Duma certa dureza espalhada no solo, nas montanhas, nas pessoas. Esse sacramento — ele o tomara em Caeté, na sua matriz, nos seus ares, suas águas, seus lugares. Cantava internamente — Oh! Minas Gerais!…
À tarde, relatório enrolado para não dobrar, foi à Higiene. Procurou pelo Cadaval. Já tinha ido para casa. Teria, então, de falar com o Argus. Resolveu ir direto ao seu gabinete, sem se fazer anunciar ou aquele homem metido a sebo fá-lo-ia esperar para se dar importância. Empurrou a porta de vaivém — com licença! — e caiu em cheio numa cena odiosa. Todos os guardas sanitários estavam na sala, em pé, olhos fixos no Argus que ia e vinha pálido de raiva, no meio deles — trespassando um por um com seus bugalhos de lince.
— Não, senhor! Pode ficar, dr. Egon. Quero que o senhor veja como é que eu faço pra confundir um culpado. Imagine o senhor que recebi carta anônima em termos indecentes, censurando ordem de serviço dada aos guardas sanitários. Logo esse protesto porco veio dum deles. Já estive olhando um por um e tenho desconfianças dum que engoliu em seco enquanto eu o fixava. Vou ler agora essa imundície e depois encarar todos novamente. Duvido que o culpado mantenha sua naturalidade. Duvi-D-O-dó.
Então o Argus abriu o papel que amarrotara na mão e leu com propositada lentidão as injúrias que o missivista assacara contra ele. Era um ramalhete de todos os belos xingamentos da língua portuguesa — que é nada pobre no gênero. O Argus lia, interrompia e mirava o conjunto de homens constrangidos que ele varava com a pupila. Quando chegou à suprema injúria — ao nome da mãe — parou um instante e perguntou direto.
— Está ouvindo? Bem, sr. Otto Roscheim.
O Egon virou-se para o interpelado. Era um moço do quinto ano da faculdade que ele conhecia do serviço do Samuel. Tinha origem alemã, era muito louro de grenhas e fino de pele. Ouvindo-se assim intimado, todo o sangue incendiou-lhe a cara. O Argus terminou a leitura, fixando cada vagarosamente — tornando mais e mais encarniçado seu hipnotismo para finalmente concentrá-lo — tal par de maçaricos, no moço Roscheim. Foi chegando perto até ficar tão cara a cara que os hálitos haviam de se confundir. O Argus, toda a fúria nos bugalhos que não piscavam, manteve o estudante sob seu raio até que este perdesse o controle. De repente aconteceu. O pobre rapaz da cor dos lacres, passou à da cera, começou a subir e descer o gogó engolindo em seco, a suar frio e a tremer das mãos e dos joelhos. O olhar ofidiano continuava a encantá-lo. Ele parecia um rato prestes a entrar pela boca da cobra chamando. Afinal fez a suprema besteira e falou.
— O senhor me desculpe, dr. Argus, pelo amor de Deus me desculpe, eu estava brincando, escrevi aquela carta sem querer. Juro pela saúde de minha mãe que…
— Ah! então o senhor confessa, hem? Tão aí seus companheiros todos de testemunha. O dr. Egon também. Vou representar contra o senhor e pedir sua permuta com um dos guardas do nosso barco sanitário. Lá num porto perdido da barranca do São Francisco o senhor terá muito tempo de recordar suas matérias para quando daqui a uns dois anos voltar para seus exames. Assim mesmo é o que ainda vamos ver… Agora podem todos sair, o senhor e os outros guardas. Vamos, já… Tenho mais que fazer.
O Egon estava indignado. Tinha se sentado numa cadeira do grupo de couro mas o Argus fora para sua mesa, abancara na giratória.
— Faz favor, dr. Egon.
— Tou trazendo meu relatório, dr. Argus.
— Muito bem. Vou ler e levar ao dr. Cadaval. Mas já estou ciente de tudo. Sei onde comiam, paravam e dormiam. O seu Anacleto já me entregou uma cópia dos assentamentos que ele fez dos doentes e dos comunicantes. Qualquer novidade mando chamar o senhor. Não, não precisa se entender com o dr. Cadaval. Tudo comigo. Já estamos falados.
O Egon saiu bestificado da impudência com que seu chefe praticamente confessava que o fizera espiar pelo guarda sanitário. Uma inimizade crescia dentro dele. Que sujeito escroto! Além do mais a cena repelente em que ele vira — tudo que não gostava de ver nos semelhantes. Um moço ficando vermelho e depois pálido de medo. Se desmoralizando, pedindo perdão, falando em pelo amor de Deus, se aviltando e suando. Pobre rapaz! O bando dos guardas sanitários se submetendo àquela prova de focinho a focinho e de farejamento — montada pela besta do Argus. Finalmente o policialismo, a violência moral daquela ordália e no fim o desplante e a crueldade com que um futuro médico era posto em situação de suspender suas aulas, perder o ano, arrostar com o sofrimento daquele exílio fluvial onde o paludismo seria o arremate. E a carta até que estava engraçada, muito bem-feita e os insultos que ela carreava tinham certa grandeza literária e arranjo estilístico na maneira como se graduavam os xingamentos, desafios, invectivas e logo as injúrias e os baldões — esmeradamente postos em escala crescente. Furioso, o Egon desceu Bahia, em direção do Bar do Ponto pensando como seria diferente se fosse com ele. Nada aconteceria porque a carta iria para a cesta, seria esquecida. Se o Argus não fosse tão mesquinho jamais montaria cena assim ignóbil. Pobre Egon! Esse pensamento que ele remoía seria levado por sua vida afora e ele sempre agiria resguardando a qualidade humana dos seus subordinados. O que também não lhe valeria muito e o fato de não ser temível trar-lhe-ia muito sofrimento. Talvez o Argus estivesse certo e tivesse o instinto do que ensina Rabelais. Está no Livro i, capítulo xxxii do Gargantua: “Oignez villain, il vous poindra; poignez villain, il vous oindra”. Mas… não adiantemos. Chegado em frente ao Trianon, hesitou pensando na advertência do Ari, mas acabou entrando.
— Um cavalo-branco, Mário. Doble. Não, só gelo e água pura.
Dias depois, às vésperas do Carnaval, novo emissário do Argus e memorando que repetia o que fora recebido antes de sua ida para Caeté. Sempre o mesmo estilo merdolento. Deveis vos apresentar amanhã, às cinco horas e dezessete minutos da tarde, ao meu gabinete, para receber ordens de serviço, eticetra e tal trololó pão duro. E estava assinado como o primeiro — dr. Argus Terra. Irritado com aquela besteira de precisão dos dezessete minutos, o Egon apresentou-se às três e meia na Higiene. Como da vez anterior não se anunciou e entrou no gabinete do Argus à hora em que este, sozinho, esticava-se na giratória e dava um consolado bocejo. Quando viu o médico que entrava endireitou-se, compôs uma cara e pôs-se a remexer atarefadamente a papelada à sua frente.
— Sua hora era mais tarde, dr. Egon, e eu estava…
— …estudando seu expediente, eu vi. Só que eu não podia vir na hora marcada e adiantei um pouco, dr. Argus. Mas o que é? que o senhor manda.
Eram novas ordens do dr. Cadaval. O surto tífico que assolara o lado oeste da serra do Capote sumira para reaparecer ainda mais brabo na vertente leste da dita serra e dos contrafortes da Mutuca. E era para ele, Egon, seguir novamente pra Caeté e retomar o que já fizera doutra vez. Ali ouviu que seguiria com o sempiterno Anacleto, nas mesmas cinco horas da manhã do dia seguinte, para vacinar, tratar, montar a cavalo e penar sob os pinos do sol. Para sua carne mal cicatrizada — a rodoleiros servir de mantimento. Logo agora, Carnaval à vista. Persombra… Não. Vai para Caeté e enche tuas ventas não do violeta, do heliotrópio, do cravo do Rodo e do Vlan mas do cheiro da bosta, da urina, do vômito e do suor dos homens e mulheres doentes. Saiu mortificado da Higiene. Atravessou a praça, desceu Cláudio Manuel e meteu o dedo no tímpano elétrico da casa do Cisalpino. Justamente ele veio abrir a porta.
— Uai! Egon, você?
— Eu mesmo. Imagine você, Cisalpininho — vou voltar a Caeté para ver mais tifentos. Ordens do Bicho Cadavalargus. Logo agora que…
— Ah! não, desta vez então eu vou cocê… Já pensou? nós dois soltos e a cavalo no meio das mulatas do Caeté. Que ticoticada!
— Só que não é farra, nego. É muito duro e tem trabalho que dá panos pra manga. E eu não tenho autoridade para me fazer acompanhar de amigo em serviço. Expedição vetada.
— É? Pois fique avisado que amanhã às cinco, vamos nos encontrar na Central e no rápido de Santa Bárbara por simples acaso. Chegando em Caeté tenho certeza que o Israel me arranja cavalo. Vou no seu rastro, sempre por acaso…
— Mas o Argus…
— O Argus que se foda.
O Egon tomou tudo como brincadeira do Cisalpino e a alma caiu-lhe aos pés, na manhã seguinte, ao deparar com o amigo na Central. Temia a sua incontinência verbal, o escândalo provável do seu Anacleto. Mas lá embarcaram os dois e refizeram com atraso e tudo a viagem de antes. Na estação, o Israel. Não houve mais partos a fazer, o Cisalpino foi bem recebido e o presidente da Câmara disse que não tinha nada, era até melhor que em vez de um seguissem dois médicos. E seguiram. Dessa vez o caminho foi diferente só que com o mesmo sol, as mesmas águas, os mesmos doentes. Seguiram por Penha e Mundéus e foram dormir num sítio triste perto da porta que os prolongamentos das serras da Piedade e de Cocais fazem pra entrada, dum lado, para Taquaruçu e, do outro, para União, Santo Antônio e valados de entre Mutuca e serra da Pedra Redonda. No primeiro dia jantaram em União e sentados diante da venda onde tinham comido tomaram um café riscado de aguardente que deixou lembrança nos dois amigos resto de sua vida. União era então a denominação da antiga Viúvas. Esse nome não tinha desaparecido naquele 1929 e ainda servia para designar a parte velha e mais alta do povoado. Pois demoraram diante daquela venda. Apareceram pela graça de Deus um violeiro e seu companheiro tocador de harmônica. Havia um luar prodigioso. Era inevitável a confraternização. O Egon estimulado pela presença do Cisalpino teve os ouvidos mais agudos e suscetíveis para a serenata cor de prata que se desenrolou. Umas luzinhas e foguinhos diante das casas do morro, em frente, ficavam mais vermelhos, eram rubis cintilantes de cor apertando por vias da brancura do luar. E sempre a associação desse astro com a poesia de João Alphonsus. Disse baixinho, segredando para si mesmo “Escorre leite pelas ruas largas e longas”. Hem? — perguntou o Cisalpino. A resposta foi um puxado da harmônica longo e triste, triste se alongando. Até que o Tãozinho reclamou. Tinham de seguir, xentes! para a fazenda onde iam dormir. Não podiam pôr o homem esperando. Parecia desconsideração. E no dia seguinte era trabalho duro desde cedo. Olha que o mundo não vai acabar, doutores! Seguiram até um sítio pobre à meia distância de União e Santo Antônio. Mal deram boa-noite ao dono da casa. À luz fumarenta de lamparina de querosene os dois médicos foram para o cômodo da frente da casa. Cedo, ainda a noite não acabara, acordaram em folha, renovados pelas três horas de sono. Cavalgaram dia todo até à fazenda onde iam novamente dormir e onde fariam pião para bater em todas as direções, choça por choça, sítio por sítio, cada ponto habitado daquele vale que ia até aos Pilares de Hércules que davam para Itabira. À noite, o Egon conversando com os donos da casa (eram vários irmãos) descobriu os mesmos como uns Pinto Coelho que ali estavam atolados há mais de cem anos. Eram homens do campo, iam madrugada para a lavoura de alpercatas ou descalços e não sabiam ler. Eram brancos, cara de pássaros, olhos muito verdes mas dois tinham mulheres quase pretas cuja descendência ia escurecer o sangue luso, galaico, suevo, godo, aquitanense e celta — sendo transfundido ali. Logo que o Egon se disse também Pinto Coelho da Cunha aqueles descendentes de ricos-homens de Portugal e de potentados da Colônia não mudaram o à-vontade com que tratavam o hóspede. Apenas tiraram o “doutor” e passaram a dar-lhe o “primo”. Eram todos da progênie do patriarca de Pitangui. A tropa sanitária tomou aquela fazenda como centro da rosa dos ventos de oito pontas de que cada uma pedia dia de viagem em sela de alimária. Ali os defuntos eram enterrados perto donde morriam. Muito longe levar pros cemitérios. Vacinaram, trataram, aconselharam toda uma população cujo primitivo de vida e costumes quase fazia duvidar que aquilo fossem seres humanos. Conservavam uma memória de linguagem e afundavam-se no maior aviltamento biológico. A indignação do Egon e do Cisalpino diante do abandono daqueles tomadores do nosso solo não conhecia limites.
— Só mesmo a tiro — dizia o Cisalpino. — E pensar que isto é o Brasil. O genuíno, o autêntico, o que não fala e que não deixam falar. Que deixam sem saber falar. E engraçado é que os presidentes, os diplomatas, os ministros e os deputados a 100$000 por dia estão convencidos de que eles é que são o Brasil. Ah! Dies irae, dies illa — será? que te verei um dia…
Afinal acabou a tal lida de Caeté e os dois voltaram para Belo Horizonte. Dia seguinte o Egon foi levar seu relatório. Esteve com o Argus e insistiu para ver também a outra parte da dupla a que ele gostava de chamar de Bicho Cadavalargus. O Argus ainda negaceou mas o Egon não arredou pé. Queria ver o dr. Cadaval. Foram ao seu gabinete. O homem trescalante olores água-de-colônia brilhantina resplandeceu de satisfação e felicidade quando gozou o médico.
— Sim, senhor! Já sei, já sei. Pagodeira grossa em União, hem? O Argus me contou. Dizqueste Cisalpino é do cu do conde… Eu também sou louco por serenata. Bandoneón nem se fale… Desquestive em Buenos Aires… ah! tierra querida…
Novamente o Anacleto dando seu relatório ao Argus, o Argus enchendo os ouvidos do Cadaval que certamente entupiria os do dr. Raul d’Almeida Magalhães assim que este assumisse.
Lá pela meia altura da Quaresma novo chamado do Argus. O Egon devia seguir agora, pela linha do Centro, até Brumadinho.
— Quequiá desta vez? dr. Argus.
— Sempre o grupo tifo-paratífico. Resolvi mandar o senhor porque estas febres estão virando numa especialidade sua. Já designei também o seu Anacleto. O senhor e ele já têm muito costume um com o outro.
Furioso, o Egon foi procurar o Cisalpino. Irem juntos. Mas o Cisalpino tirou o corpo.
— Caeté, sim, Egonzinho. Aquilo é velho e é bonito. Agora Brumado do Propeba, lá isto é que não. É horrível. Tá doido? Mas esse sacana do Argus não deixa mesmo você sossegado, hem? Dá impressão que ele e o tal de Cadaval querem matar você. Sim, senhor! Médico novo, ignorando muita coisa, não sabe se defender e pra pegar tifoide é num átimo. É pra isto que eles ficam jogando você nos focos.
O Cisalpino riu e gargalhou. Mas a ideia entrou de cérebro adentro no Egon e ele teve certeza de que havia maquinação. Logo concebeu um ódio que, longe de atenuar, o tempo foi acrescentando. Durou vida afora, chegou até às eras de todos no Rio. Hei de mijar na cova desses putos! pensava sempre o Egon. Não mijou. Mas foi muito gratificado que leu-lhes o necrológio nos jornais anos e anos depois. Desejou que a terra lhes fosse leve — com o Pão de Açúcar por cima e o Corcovado de quebra…
A alegria do Cisalpino dobrou e a convicção do Egon virou certeza quando uma semana depois de voltar do Brumadinho o tifo deu em Santo Antônio do Monte e o novamente fodido foi o Egon, despachado para lá com seu doravante siamês — o inevitável Anacleto e suas malas. Lá viu dois casos na sede do município, um em Buriti, outro em São José das Rosas. Os febricitantes que ele foi examinar em Miranda, Pântano e Estiva eram casos de gripe, de tuberculose, pielite, erisipela. Não havia epidemia nenhuma e sim grossa sacanagem do Argus. Mas pelo sim ou pelo não, procurando tifentos fantasmas, ele tivera de bater a lombo de burro, cavalo e besta as distâncias de Nossa Senhora de Nazaré dos Esteios a Nossa Senhora da Saúde, das margens do rio Santo Antônio às do ribeirão do Raposo. Os pontos cardeais. Não contando aquela merda da viagem pela Oeste de Minas. Mas guardou desta ida a Santo Antônio do Monte lembrança inesquecível. Dos altos da serra de São Domingos, certa tarde, seu campeiro alertara. Parar um pouco aqui, doutor, pra ver o sol descendo iluminar o rio São Francisco. Ali. O Egon olhou e só viu o mar de montanhas umas depois das outras, depois das outras, depois das outras. É ali, doutor, nessa direção. Apontava. Ficaram olhando suspensos num silêncio. A bola do sol ia descendo no céu limpo. Quase tocando o horizonte, encostando seu fio na montanha. Mas às últimas claridades, um pouco para cá acendeu-se de repente um longo fio serpente de fogo que coleou lampejou nem o tempo de se contar até quarenta e cinco para se encantar apagada e sumida no chão adentro da noite que caía. O prodígio devia-se à batida oblíqua dos raios poentes no espelho das águas do “marroeiro dos rios” que incandesciam e eram vistas lampejando nas léguas e léguas pra lá de Santo Antônio do Monte, de Dores do Indaiá, Bom Despacho, São Gotardo Abaeté Curvelo Pirapora. Longe, aquele risco de neon. O que ele viu! de Minas nestas viagens. Minas, como Deus, presente em tudo. Nos riachos, corgos, ribeirões, rios, montes, serras, serrotes, cordilheiras. Na fruta do mato colhida no galho de cima do cavalo, no gole de pinga, no café ralo, na rapadura, no angu frito, na couve, feijão, arroz pacho, arroz solto, farinha de mandioca, de fubá, carne de capado, couve, torresmo, couve, miúdo de porco, couve. No melado com farinha ou queijo curado. Nos doces cristalizados traçados com golinhos de licor de pequi. Nas casas com estrutura de madeira de lei ou feitas a sopapo de barro, cal e bosta de boi. Nas capelinhas, igrejas. Nas matrizes. Nos cruzeiros dos Passos, cemitérios, cruzes de tocaia. Nas camas duras com lençol de saco ou americano alvejados, cobertor de farofa de Itaúna, travesseiro de macela. Nos fornos feitos com pedaços de casa de cupim cortados cheios da bicharia que os solda novamente ao capricho da forma dada pelo homem — que depois esvazia os módulos e os transforma em assadores superiores aos de tijolo. Na linguagem evasiva, adocicada, se-faz-de-tímida, da língua do inda-que-mal-pergunte, do com-perdão-da-má-palavra, do não-desfazendo-dos-presentes, dos circunlóquios, do uai. Língua do primo Juquita. E até nos carrapatos rodoleiro, rodeleiro, rodelego, aliás picaço, aliás carrapato-estrela; no micuim, aliás carrapato-pólvora, carrapato-fogo — os dois ácaros a mesma coisa, o pequenino, forma jovem; o grandalhão, forma adulta do Amblyomma cajennense — que parasita o cavalo e transmite ao homem a febre maculosa de que escapou o Egon. Tudo isto lhe entrou na alma para fazer mais apanhada sua argamassa de mineiro. E ficou devendo esse nobre barro à antipatia que lhe tinha o dr. Argus Terra.
Bem que este ainda abria avidamente os telegramas do interior esperando mais tifentos em Minas para mandar para lá o moço Egon. Mas cessara a safra daquele ano. Também se resolvera o caso do Centro de Saúde do Desterro. O dr. Melo Viana e o dr. Artur Bernardes, emperrados, não abriam mão dos seus respectivos candidatos. O presidente Antônio Carlos cortou o nó de górdio despachando para lá médico de sua preferência. Era o dr. João Nogueira Pedroso Lucas que em quinze dias dera tudo por organizado e solicitava fosse lotado o resto do seu pessoal. Assim o dr. José Egon Barros da Cunha saiu de Belo Horizonte para a Vila Nova d’El-Rey de Santo Antônio do Desterro na madrugada de 1o de maio de 1928. Chegou à sua cidade às duas e quarenta do mesmo dia. Como lhe dissera na véspera do embarque o Teixeirão, ele estava virando mais uma página da sua vida.
Ah! Combray, Combray […]
marcel proust, Le côté de Guermantes
Quando entregou as malas a um carregador e pôde chegar até à praça da Estação o Egon foi invadido por onda de infância, pensamento de coisas vividas e até àquela hora recalcadas e sem lembrança. Essas agora acudiam em chusma, chamadas por cada objeto em que ele passava os olhos. Já a plataforma. Depois o conjunto da estação e, vista de fora, sua torre graciosa cheia de vidraças azuis. O largo estava o mesmo e súbito restituiu-lhe a reminiscência desagradável duma das primeiras cenas de violência a que assistira. Estava ali, companhia do pai e presenciara o espetáculo ignóbil de preso espancado por escolta aos olhos de espectadores mais interessados que revoltados. Indignado estava seu pai, cuja mão ele sentiu que apertava mais a sua como a transmitir-lhe o nojo por tal cena de baixa humanidade. O preto seguia, um pescoção, uma pranchada de refle derrubando-o, um pontapé levantando-o. Sangrava do nariz, da boca quebrada, da cabeça, duma orelha despregada. Lá estava. Como nos dantes do sempre um esboço de jardim e no meio a coluna com o busto em bronze do benemérito da cidade — o dr. João Pedreira Prisco. Todo o fundo era ocupado pelo prédio do Hotel Avenida em que morara, solteiro, seu futuro tio, o italiano Uccello dei Uccelli que viera a desposar, depois, sua tia materna Violeta. Sorriu lembrando dos níqueis e pratinhas que ele, menino, ganhava dos dois lados para o leva e traz de bilhetinhos arrebatados e dos belos postais representando baixos-relevos de Mastroiano. Para cima dos telhados a massa verdescura do morro do Defensor, todo coberto de sua vegetação exceto no meio, onde o dr. Clarindo Albernaz Bulcão andara fazendo as escavações para ali dispor um plano inclinado. Era promessa e as obras tinham sido interrompidas quando Nosso Senhor falhara ao compromisso. Pois sua capelinha lá em cima ficaria sem via de acesso e ele sem a afluência dos fiéis… Às favas… Havia automóveis e carros de aluguel. O Egon escolheu um destes e fez pôr sua bagagem no banquinho da frente.
— Pra onde? meu patrão.
— O amigo toque pra rua do Santo Pretor número 426. Pode pegar a rua da Rainha e depois virar à direita, pela avenida Silva Paranhos…
A traquitana moveu-se e o cocheiro rompeu às chicotadas. O cavalo pulou, pôs-se em marcha rápida, levantou o rabo e começou a cagar para o mundo. O Egon agradado com o espetáculo teve a impressão de que voltava a tempos recuados em que ele vira isto na Fazenda de Santa Clara, no Sossego, onde estivera com os pais visitando os Carneiro. Subindo Rainha, de frente para o morro do Defensor ele teve a impressão de ver debruçado no alto o vulto gigantesco de sua avó. Mas os sinos da Matriz batiam as três horas e depois veio um carrilhão longo e triste — cujas notas espancaram o fantasma. Virou em Silva Paranhos, andou dois quarteirões e tomaram por Santo Pretor. O 426 era logo ali entre a avenida e a rua de cima. O prédio era simpático, sobrado pintado de cinzento, entrada estreita no lado direito de quem o olhava. Ao ruído do carro uma senhora chegou-se às janelas de cima muito sorridente e aos gritos.
— Já sei que é o dr. Egon. Recebi a carta. Tavesperando… Deixe as bagagens embaixo que eu mando buscar. O senhor suba porqu’estamos na mesa do café… Mariazinha… Ei! Mariazinha — entrou, chamando pra dentro.
O Egon fez como lhe mandavam, deixou a bagagem embaixo e subiu. A escada dava numa saleta e esta na sala de jantar a cuja porta o esperava festivamente, todos os dentes para fora, a dona da casa. Ele abraçou sua nova senhoria e logo abancou-se para o bem-vindo café. Recusou os sequilhos, as torradas, o pão alemão, o pão francês, as brevidades, as rosquinhas, o pão doce, o cuscuz de fubá que lhe eram oferecidos ao mesmo tempo que chá? mate? chocolate? café com leite? quiéqui o senhor prefere. Ou quer? um refresco. Quem sabe? se uma garrafa de gasosa.
— Não, senhora! Muito obrigado, d. Querubina. Só o cafezinho. Repito sim, senhora. Assim mesmo, bem doce, muito obrigado, d. Querubina.
— Faz favor de não fazer cerimônia e de não me chamar de Querubina. É Sá-Menina, como todos me chamam. Gosto muito do meu apelido que foi o de minha mãe, minha avó, minha bisavó, minha tataravó. Sou a quinta da família que responde por ele. Que tal? o cafezinho. Vamos a mais uma xicrinha. Mariazinha! Mariazinha! xicra limpa e escaldada pro dr. Egon tomar outro café. O senhor é dos meus, tamém sou doida por café. Me alago dia inteiro. Agora o senhor vá deitar um pouco. Eu chamo quando o banho estiver pronto. Taqui seu quarto.
O Egon zonzo do falatório foi fumar seu cigarrinho trancado. Tudo muito bem arrumado, boa roupa de cama, cheiro de alfazema. Tinha armário para os ternos, cômoda de gavetinhas, gavetas e gavetões, estante de livros, escrivaninha, cadeira giratória e outra, austríaca. Pensou que pudesse deitar um pouco mas já a Sá-Menina gritava através da porta que estava tudo pronto no banheiro. Quando ele quisesse. Esticado na água, o médico pensava na dona da casa. Aquela falaragem era característica da sua gente, desses Romariz que eram uma das famílias mais antigas do Desterro. Ela o era pela mãe, Lobato pelo pai e pelo marido que era seu primo. Esse casamento mantivera seu nome de solteira. Fora casada pouco tempo. Logo viúva. Não tivera herança conjugal e uma desastrada demanda com primos maternos despojara-a das fazendas de seu direito. O advogado apelara mas ela estava atravessando fase difícil. Por isso recebia hóspedes. Mas era fidalga e lembrava-se sempre disto. Pelos Romariz ela era neta materna do barão da Quaresma, sobrinha do barão do Corregão Velho, bisneta do barão do Degredo e prima em todos os graus dos outros barões que enxamearam o Desterro no Segundo Reinado. Tinham sido afazendados nos vários distritos do município e suas baronias repetiam esses topônimos: eram o barão do Santo-Terço, o barão da Igreja Grande, da Angra dos Milagres, de São José das Botas, Santana do Areal, São Pedro Papa, Águas Turvas, Roçado, Tipiti e Murça. Suas descendências eram população enorme do Desterro. Tinham como característica o orgulho dos antepassados e o malquerer, a quizila, a brigalhada, a desunião entre os primos. Viviam se dilacerando em questões de terra, movendo processos por dá-cá-aquela-palha e faziam a fortuna dos advogados locais. Quando pareciam irreconciliáveis e caminhando para morte-d’homem faziam as pazes para se aliarem contra inimizade familiar mais recente. Numerosos e prolíficos, casavam muito entre si, e deslindar seus parentescos era obra que pedia genealogista do pulso dum Pedro Tacques, dum Roque de Macedo. Os Romariz consideravam-se fundadores do Desterro. O mesmo diziam de si os descendentes de outros senhores feudais da região e que detinham o mando e a fortuna do local. Eram beneméritos como Aristônio Masculiflório, Saudosino Rodovalho Pedreira, Anacleto Tiburtino Bocarro Xavier (barão da Morsadela), Henrique Schimmelfeld (o bávaro), Zoroastro Fortes (dito o Alferes), Precursório Ramos, o dr. João Pedreira Prisco e tantos outros. No fundo todos tinham razão porque aparentados por sangue ou casamento. Misturavam-se também aos descendentes dos cristãos-novos Iseu Ruffo Rattae, Érico Rosano Djuif e Hilário Catão Poccit, vindos da Bahia já bem depois do Judeu Nuquim* e que tinham dado no Sabarabuçu subindo o São Francisco e o rio das Velhas. Daí desceram para comerciar nas “vendas” que abriram nas beiras do Caminho Novo. Tinham casado com Macária, Expedita e Cordália ou Córdula — filhas do estradeiro português Macário Gibão e de Umbelina (de Jesus) sua escrava e depois negra forra. Esses três casais foram os povoadores das partes altas do Caminho Novo — da Borda a Juiz de Fora — principalmente dos aglomerados da Interpotâmia e Desterro. São os antepassados das antigas famílias Ruffo, Rozano e Catão — fazendeiros e nababos da Colônia e do Império também largamente misturados ao sangue dos outros povoadores bandeirantes e mais aos dos descendentes de Garcia Rodrigues Pais, talvez o verdadeiro fundador de tudo que vem de Barbacena pra baixo, pois foi ele o dono das sesmarias grandes como países que bordavam os dois lados do Caminho Novo das Minas dos Matos Gerais. Os grupos de que falamos aparentavam-se assim dos grandes troncos luso-mamelucos do centro da capitania, depois província com sangues Botelho, Arruda, Sampaio, Horta, Leme, Bueno, Gama, Tacques, Nogueira do Ó, Vale Amado, Ataíde, Gomide, Jales, Pinto Coelho da Cunha, Abreu e Melo. Antes de sair e apreciando mais um cafezinho com a dona da casa o Egon fora apresentado aos retratos a óleo pendurados nas paredes da sala de jantar. Eram do barão da Quaresma e de seu pai o barão do Degredo — respectivamente o avô e o bisavô da Sá-Menina. Ambos máscaras severas e tristes — a do mais antigo má catadura; a do mais recente, triste figura. Realmente fachadas compridas, magras e alongadas por barbas de bode que pareciam caricaturas de d. Quixote ou dos acompanhantes que o Greco pôs no Enterro do conde de Orgaz.
Une mémoire, mon petit, c’est un sacré caveau de famille!
Vivre avec plus de morts que de vivants…
andré malraux, La voie royale
Ainsi, devenus grands, les enfants se rappellent avec
rancune de ceux qui ont été mauvais pour eux.
marcel proust, À la recherche du temps perdu
A primeira visita do Egon, logo no dia de sua chegada ao Desterro, fora a seus tios d. Felisberta e dr. Colatino Pareto. Ela era irmã de sua mãe de modo que o segundo vinha a ser apenas seu afim — tio torto. Este fizera entrar o sobrinho para seu gabinete, sentara-se na giratória, ficara de mãos frouxamente postas diante da boca e calado encarara o visitante com seus olhinhos agudos como continhas esverdeadas. Esperava que ele começasse a conversa, a declarar ao que vinha. O Egon tinha diante de si um velho e procurava inserir na figura atual a que conservara de um “tio Pareto” da infância que aos poucos tinha ido se imobilizando nas fotografias que havia no álbum de seus avós e nos gavetões de sua casa. Uma representava um moço de cara passável, possivelmente na época da formatura, bigodes alourados, ralos e caindo nos cantos da boca, sem escondê-la e ao seu desenho bem-feito. Olhos ainda mansos e confiantes, cabelos abertos em duas riscas e puxados para o meio da testa onde se embutiam num esboço de cacho feito a capricho. Entre olhos e boca um vastíssimo nariz feito bico de ave — que motivara seu apelido dado pela própria mulher e adotado com entusiasmo pela sogra e cunhadas. Era chamado o Nariganga — alcunha que punha-o fora de si. Havia outras imagens dele em grupos familiares tirados na sua chácara, na sua fazenda. Procurando bem, esses traços conhecidos ainda se encontravam na figura rebarbativa que o Egon tinha diante de si e que lembrava-lhe também a de Bergson. O nariz como que aumentara, afinara e parecia a foice da Morte. Os bigodes tinham espessado e seus cantos levantavam-se não num riso, mas num ar de amargo sarcasmo. O cabelo antes caído na testa, levantara-se num topete à Lopes Trovão e os dos lados desciam para tornarem a subir à roda das orelhas como penas de arara. Diziam-no um tribuno eloquentíssimo mas, se era, a voz não auxiliava e o dr. Colatino falava e conversava numa espécie de nhe-nhe-nhem a um tempo irritado e algodoado. Era filho de italianos de classe média — o pai farmacêutico-químico, a mãe senhora bastante instruída para ter sido a professora de primeiras letras dos dois filhos e das quatro filhas. Depois dessa instrução tinham vindo os anos duros cumpridos no Caraça com muito latim e muito bolo. Esses, duma feita, foram aplicados com tal brutalidade que as mãos ficaram disformes e rachando. Ele arranjou folha larga de papel e carimbou aquelas extremidades que se marcaram a suor e sangue como a face do Cristo, na toalha de Verônica. Conseguiu burlar os padres e mandar aquela prova de martírio ao pai pedindo para tirá-lo do internato. Pois o italiano mandou a carta ao superior do Caraça sugerindo que o filho fosse punido em dobro por ter feito sair notícias clandestinas do colégio. Os reverendos não se fizeram de rogados e o menino Colatino recebeu uma dúzia de bolos puxados em cada mão e uma dúzia de bastonadas no oco da sola de cada pé. Quando saiu da cama estava exemplar. O Egon olhava o tio e pensava nestes casos ouvidos na crônica familiar. Espiou suas mãos. Eram finas, muito sardentas no dorso, de unhas bem tratadas e escrupulosamente limpas. Era aliás essa a impressão nascida do aperto do colarinho alto e esmaltado, da gravata perfeita, do terno elegante, dos punhos lustrados cujas abotoaduras representavam o gládio da Lei e a balança da Justiça. Botinas de verniz preto, cano de pelica da mesma cor, botões de madrepérola. Desprendia um cheiro de bom charuto, água-de-colônia fina, brilhantina cara e assim trajado e tratado afetava grande asseio — apesar de ser, segundo as queixas da esposa à mãe e irmãs — homem de muitíssimo pouco banho. Sobre sua origem italiana parece que se envergonhava um pouco pois melhorava as coisas dizendo que na Itália o pai era “caçador do rei”, o que se podia traduzir por uma espécie peninsular de monteiro-mor e que viera como “cientista” por ocasião da primeira epidemia de febre amarela. Só que as datas não coincidiam. Sempre, segundo a mulher — tudo conversa fiada e ela, no auge das discussões com o marido, sempre jogava-lhe na cara que o visconde de Saboia é quem fechara as orelhas do sogro — furadas para os brincos usados nos tempos de Reggio da Calábria.
Depois dos do Caraça vieram os anos da Faculdade de Direito de São Paulo. Sua carreira política cedo interrompida e mesmo seu fracasso como chefe municipal não dão a impressão de que ele tivesse sido burcheiro. Falam também por semelhante hipótese sua admiração por Deodoro e seu fanatismo por Floriano. Assinara manifestos e era documentadamente um republicano histórico. Considerando isto o Egon riu por dentro porque já naquele 1929, quadragésimo ano da não foi esta a República dos nossos sonhos — os sobreviventes desse título já estavam ingressando no mesmo folclore em que desde os sessenta entram no dito e na música popular o primeiro Rei Momo, as rainhas dos estudantes, os tenentes interventores, as primitivas misses Brasil e tudo que leva através do tempo um pedaço imutável. A própria ação aberrante dos anos repele essa estagnação e prepara os limbos onde essas figuras vão encontrar as dos heróis da Armação, de Canudos e dos veteranos do Paraguai. E uma ideação gozada passa a envolvê-los dando-lhes o toque de comicidade que eles não tinham em vida, no momento da transfiguração mas que baixou com a idade, a velheira, as doenças. É de lembrar grande figura médica dos 900 na sua dignidade, dureza engomada e elegância fraque sobrecasaca que quando do seu apogeu criava um halo de veneração e respeito e que à evocação dentro das categorias de hoje fica parecendo uma daquelas figuras de sociedade dos filmes de Chaplin como as das recepções de O conde e de Luzes da cidade. (Dessa forma as próprias convenções de hoje, a do chiste, por exemplo, podem corromper o mecanismo da memória.) Foi assim que depois de ter tido a impressão de que ia conversar com Bergson, o Egon de repente verificou que ia palestrar com um morto que se ignorava. O seu “tio Pareto” era nem mais nem menos o que os adeptos do baixo espiritismo chamam — um chicharro.
Quando da Proclamação da República seu prestígio subira como foguete. Recebera logo a 15 de novembro um telegrama do generalíssimo dando conta da queda da monarquia, ordenando-lhe derrubar a Câmara Municipal, substituí-la por um conselho provisório e que prendesse imediatamente os barões da Quaresma e do Corregão Velho. Logo o Pareto os meteu no xilindró e por sua própria conta mais os barões do Tipiti, do Roçado, da Murça e o da Angra dos Milagres — contra os quais tinha demandas correndo no foro. Logo depois ele fora feito ministro de Estado mas um mistério envolvia esse fato político. Ficou apenas seis dias à frente de nossas Relações Exteriores, demitiu-se e voltou para Juiz de Fora. Para assumir a chefia da política. Diziam que para preparar seus caminhos para o Palácio dos Governadores. Esses não se abriram e o nosso Colatino Pareto tornou-se o chefe prestigioso local. Mas com a passagem de Antônio Carlos Ribeiro de Andrada pelo Desterro formou-se entre este e seus parentes Pedreira Prisco forte coligação que derrubou o Pareto dos galarins municipais e ele começou sua carreira de ostracismo como “grande reserva moral do Estado”. Era aliás um dos maiores advogados locais. O Antônio Carlos ficou dominando ali e em Juiz de Fora, fazendo política por dois municípios, o que, anos depois, seu sobrinho José Bonifácio Lafaiete de Andrada repetiria — chefiando grupos atuantes em Barbacena e na mesma Juiz de Fora. A esses dissabores na vida pública o Pareto juntaria os de sua vida conjugal. Sua mulher (tia materna do nosso Egon) fora das mais lindas moças do Desterro. Casara sem gostar, influída pela mãe e o Pareto depois de curta lua de mel começara uma vida conjugal detestável. Em pouco estavam em quartos separados apesar do que houvera quatro crianças do matrimônio. A mais velha Alódia, de quarenta anos naquele 1929, era casada com nortista, o pernambucano Balbino de Alcântara Cavalcanti; Carminda, de trinta e quatro, desposara em 1911 um partidão local — o bacharel Ezequiel Romariz de Rosano Fortes; a mais moça Fidélia, ainda solteira, ia pelos seus trinta e um anos — tão linda, entretanto, que ninguém lhe dava mais de vinte e ela conquistara o título de Miss Desterro três anos seguidos, sendo ainda a detentora da coroa. Houvera um morgadinho, também Colatino, que morrera nos cueiros. O nosso Nariganga tinha pois motivos de consolo para seus desgostos conjugais e políticos — bem-querendo os genros, amando as filhas e adorando os netos — de que o preferido era um filho do Ezequiel Fortes, nessa época mocinho de dezesseis anos a quem ele passava (sem os bolos) o latim que trouxera do Caraça. E tinha outras distrações. Quando farto, cheio da própria casa, ia caçar no seu sítio da Creosotagem de Cima, assim chamada para distinguir da de baixo, a Creosotagem que ficava rente a Juiz de Fora. Eram ambas estações de tratamento a creosoto dos dormentes da Central. Ou dava-se a sessões de hipnotismo que deixara ultimamente, porque tendo adormecido uma de suas empregadinhas passara por tremendo susto. Ela gelara, inteiriçara, ficara babando horas e não houvera passe que a desipnotizasse. Foi preciso médico para fazê-la acordar com injeções de éter. Ou entregava-se à música e ia a Juiz de Fora reger um quinteto que se estreara no Clube com um fiasco. Os músicos eram o dr. Bernardo Aroeira, ao piano; o seu Creuzol, ao oboé; o conde Belli, à clarineta; o Belarmino Resende, à trompa; a Tatiana Brant, ao fagote. A regência ficara com o dr. Colatino e eles tinham ousado dar a uma audiência consternada Beethoven, no Quinteto em mi bemol maior, Opus 16! Além disso era dos advogados mais bem pagos do Desterro e avarento, acrescentava sem parar a sua fortuna milionária. Tudo isto passava em cinematografia rápida pela cabeça do Egon enquanto entrara no escritório do parente afim e os dois se punham frente a frente para começar a conversa — ele num sofazinho e o Colatino na giratória, na posição que já descrevemos. Os dois se inspecionaram com precisão e o Egon foi o primeiro a tomar a palavra.
— Pois é, tio Pareto, cheguei indagora mas fiz questão de visitar vocês hoje mesmo…
— Obrigado.
— …para quando escrever mandar contar como encontrei tudo por aqui. Tia Felisberta, os primos, os netos tudo bem?
— Bem, obrigado. E você? está de passeio? com demora?…
— Uai! tio Pareto. Pensei que você soubesse. Vim para ficar. Fui nomeado para a Higiene do estado e lotado no Centro de Saúde do Desterro. O Antônio Carlos fez questão que eu viesse pracá. Diz’que precisa de mim na minha cidade. Não sei por quê. Fiquei muito satisfeito porque é oportunidade pra conviver c’os parentes daqui e se eu for feliz na clínica fico mesmo por esses lados. Afinal sou mesmo filho é do Desterro. Meu umbigo está aqui com o primeiro dente de leite. Mas como eu ia dizendo fiquei muito satisfeito com a decisão do presidente e…
O Egon eufórico ia descrever a estrutura da reforma sanitária por que Minas estava passando, conversando com agrado e disposto a começar uma estima àquele tio que de menino sempre o intimidara e contra o qual ele nutria uma destas antipatias instintivas das crianças, cujas raízes profundas mergulham no despertar da sabedoria de cada um sobre aquilo que lhe convém e aquilo que não lhe convém. Não notara que a cada vez que ele lhe dava o você — seguindo hábito de tratar os tios nas suas famílias materna e paterna — o homem remexia sua bunda chocha na cadeira, fazia estalar os punhos sacudindo as mãos e tinha ondas de vermelhão a lhe incendiar as faces e a nariganga.
— …ele foi mesmo muito simpático me designando recém-formado para chefiar o Posto duma cidade da importância do Desterro… essa nossa Halifax mineira. Depois, estar aqui já é estar no Rio de Janeiro, de que nossa terra é o subúrbio mais dentro das Gerais. O presidente…
Mas a essa altura as comportas da paciência do Nariganga tinham estourado e ele prorrompeu em invectivas contra o Andrada.
— Olha, menino! o que o Antônio Carlos não passa é dum grandessíssimo cínico [sic]. Ele sabe perfeitamente que só quem pode continuar oposição a ele aqui no Desterro sou eu. Quer evitar isto e fica me manietando. Começou nomeando porção de parentes meus para lugares aqui, para dar a impressão que está atendendo pedido de minha parte. Agora, pra rematar, vem você, sobrinho da Felisberta. É uma verdadeira perseguição. Você diz que está muito satisfeito de ter vindo para o Desterro. Mas quem não está nada satisfeito com isto sou eu! Nada, nada, nada mesmo…
O Egon bestificado com a grosseria, pasmo com a explosão de tanta falta de educação, procurava uma palavra que ardesse nos melindres daquela besta mas, maldotado para a resposta pronta, só chegava a formular pensamentos de pesada injúria — esses que ficam em camadas jacentes no fundo de cada alma. Só lhe ocorria o que mais o revoltava — e pensar que meu pai foi amigo do sacana deste velho calhorda! E talvez este pensamento acabasse emergindo num bom nome da mãe — não fosse a figura de sua tia Felisberta aparecendo na porta do aposento onde não penetrou. Dirigiu-se ao sobrinho prevenindo logo suas possíveis manifestações de beijo e abraço.
— Ei, tia Felisberta!
— Ei, Gonzinho. Num chega perto de mim não porque eu estou numa influenza daquelas. Também faz favor de passar comigo para a sala porque eu não entro nesse escritório inçado dos micróbios que os constituintes do Colatino deixam nas cadeiras e no sofá.
Segui o alvitre de acompanhá-la para a sala. O tio Pareto levantou-se também mas para começar sua passeata de fera enjaulada vai e vem escritório saleta sala de jantar corredor copa cozinha alpendre cozinha copa corredor sala de jantar saleta escritório saleta… O Egon sabia que a tia não estava resfriada nem nada. Não queria era chegar-se a ele que como todo médico ela julgava sempre portador das pestilências de que tratava. Tinha mania de doença e quando era visitada pelos netos e netinhas perguntava logo — quem quer ganhar pratinha? Todos corriam, se punham em fila, muito comportados, bicanquinha pro ar onde ela pingava em cada narina duas gotinhas de óleo gomenolado. Depois é que dava a cada um sua placa de quinhentão e o beijinho. Eram moedas entesouradas em separado, depois de ferverem dez minutos. Aliás ela tinha um quarto inteiramente vazio que trazia aferrolhado. Servia para guardar essa coisa admirável e infecta que é o dinheiro. Ficava arrumado no chão: cédulas em montinhos segundo o valor; moedas, cada prata e cada níquel na sua pilha. Na hora das despesas da casa quem tirava a quantia necessária era a Alda (sua criadinha de confiança). Depois chave e as ordens para a factótum ir se lavar as mãos e antebraços no tanque do terreiro. Esfregar três saboadas. Depois vir para passar o álcool… Pois o Egon acompanhou a tia. Logo o princípio da conversa recolocou o Egon de bom humor. A irmã de sua mãe falava puramente um mineiro de palavras preciosas como o de Diamantina e todo ourivesado de expressões tão de sua família materna que ele como reubicou-se no gênero de prosa há tanto não ouvida, falação da sua infância e do Desterro. Estavam sentados no canto que ela preferia de sua sala de visitas. No fundo, ao abrigo de poeiras da rua e das correntezas de ar. Ela sentou-se no meio do sofá estofado de seda dum roxo puxado a solferino e ele numa cadeira de verniz preto feito laca mas com encosto de cetim. Dava as costas para um porta-bibelôs cheio de japonesidades mas via bem os quadros da parede que ele conhecera na infância. O de noiva, da prima mais velha. O faceiro, da mais moça. O execrado pelo dono da casa, óleo representando sua sogra. Um trabalho importantíssimo da própria Felisberta. Era uma folha de latão cortada bem certo nas máquinas do Eugeninho Teixeira Leite tendo a ponta esquerda alta e a direita baixa fazendo um movimento gracioso de papel que se enrola. Isto tornava aparente o avesso que tinha sido passado à purpurina dourada. Toda a superfície da frente era ocupada pelas madrepérolas, relevos, goma-lacas, incrustações de um trabalho japonês representando samurais no meio de paisagem com íbis, dragões e mais uma onda espumante se quebrando em renda. Era um risco adaptado por professora de pintura célebre em Juiz de Fora e no Desterro (onde lecionava três meses por ano) — d. Maria do Céu Vasconcelos de Azevedo Melo. Era uma linda portuguesa de cabelos brancos, feições muito moças e olhos azuis como seu nome. Depois de dar notícias de Belo Horizonte tintim por tintim o Egon, para gozar a guarda da tia, contou a ela a impressão de desagrado que o tio Pareto tivera com sua presença no Desterro. Ela fez uma cara de repugnância resignada e começou a falar com tédio.
— Importa não, Gonzinho. Esse homem é insuportável. Não sei quando é que a gente descansa com ele nas caldeiras de Pero Botelho. Nunca vi ninguém mais implicante, cascavilhador, escrafunchante do que ele. Nossa Senhora! É assim como você viu. De repente, por qualquer coisa, sem dizer tirte nem guarte começa a disparatar e a fazer desses tendepás. Eu já nem me incomodo e quando muito enfarada, largo tudo, vou para Belo Horizonte ou para o Rio tomar banho de mar no Flamengo com a Fidelinha. Ele que fique aqui com a Alda e a casa correndo de trouxe-mouxe.
— E as primas? tia Felisberta.
— Sem novidade, tão na casa da Carminda, aproveitando do Fortes ter ido pra fazenda. Assim elas têm liberdade pra conversar sem o homem ali colado, sem despregar, feito uma sarna. — O Egon estava encantado. A tia num instante de conversa lhe dera verdadeiro ramalhete de expressões do código familiar. E fazia-o no sotaque do Desterro, feito de boa pronúncia, sem comer letras nem sílabas. Agora, a cadência era do “mineiro”. Resolveu palestrar mais um pouco, puxar por ela e levou novamente o assunto para o tio Pareto. Vieram logo queixas amargas e um rosário enorme de anos e anos de tipiti. Ela já não podia mais, Gonzinho, não podia…
— Gênio dele, tia Felisberta. É continuar na sua resignação. Também você tem suas compensações. Ele é o melhor advogado do Desterro. Rico. Você é a senhora mais bem-vestida da cidade. A d. Vivi, a d. Cecinha, a própria d. Julieta não chegam a seus pés. E digam o que disserem — bom marido e homem correto, incapaz de pôr o pé em ramo verde. Você pode acreditar, tia Felisberta, nunca ouvi nem mamãe nem as outras tias, nem o tio Uccello que tem uma língua de palmo dizerem isto de bilontragem — isto aqui, do tio Pareto. Juro. Verdadeiro varão de Plutarco.
— Quanto a isto, Gonzinho, sei lá, tenho cá minhas dúvidas…
— Queisso? tia Felisberta! Um varão de Plutarco!
— É. Mas já peguei ele uma vez dum jeito muito esquisito na Creosotagem de Cima. No fundo da casa, numa conversa muito de perto com a lavadeira.
— Engano seu, tia Felisberta. Homem de tanto respeito.
— Olha, meu filho. Num tem homem nenhum de respeito por mais pintado que seja. E a tal lavadeira era uma mulata linda. E outra patroa já tinha corrido com ela. Não quero falar os nomes mas o caso foi na rua da Santíssima Trindade. Eu logo tratei de pôr minhas barbas de molho e mandei a mulherzinha simbora.
— Estou bobo, tia Felisberta… Nunca imaginei… Bom, vou andando que tá na hora do jantar da Sá-Menina.
— Peraí, Gonzinho, deix’eu ir buscar uma beleza de oração pra você. É o Hino a Santa Rita de Cássia. Foi muito cantado em Juiz de Fora ano passado. Música de Cincinato Duque Bicalho com versos lindos dum João Ribeiro de Oliveira que não sei se será o Janjão ou outro do mesmo nome. Vai com Deus. Apareça.
A Sá-Menina, apenas entremostrada, merece conhecimento mais íntimo. Era senhora entre quarenta e cinquenta, ponhamos quarenta e cinco anos, alta, mas já um pouco empilhada pelas gorduras que lhe tinham curvado as costas e que empastavam as linhas de um corpo que certo fora elegante como o das mulheres de sua raça — de que ela tinha exatamente o tipo. Era morena clara, pele e dentes magníficos, cabelos muito pretos e lisos, puxados para trás, presos num coque que parecia sempre desmanchar-se, que ela firmava a cada instante tirando e recolocando ora um ora outro dos quatro grampos de tartaruga antigos que lhe ajudavam a compor o penteado. Tinha mechas brancas nascidas da testa que a risca central dos cabelos dividia nas duas partes que lhe faziam lado a lado, como as metades de um diadema de prata. Olhos muito negros, bonitos, profundos, pestanudos — expressão sempre rasgada e risonha. As sobrancelhas de nanquim se prolongavam num sombreado até a raiz nasal, como os cabelos cujas nascidas laterais se desenhavam finamente nas faces, à frente das orelhas. Um leve buço dava graça a seu lábio superior. Resumindo, bonita senhora, nariz ostentando o regular e ligeiro aquilino dos Romariz. Um pequeno sinal na face esquerda — de que saíam uns três ou quatro pelos que ela não aparava. Falava abundantemente — sempre alto e bom som como se o ouvinte estivesse do outro lado do Paraibuna. Era capaz de sustentar conversação de horas sem perceber que o pseudointerlocutor era surdo-mudo. Ria muito dos outros, era engraçada nos comentários e sobretudo na resposta pronta e sempre à altura: palavras de agrado ou bate-boca insolente. Se era este o caso, o contendor perdia sempre — que ela era Romariz e dotada da petulância, da prosápia e da insolência da família. Usava as orelhas sempre descobertas, ostentando dois brincos que tinham pertencido à baronesa sua avó. Já não há mais destas joias senão nos museus. Eram pingentes feitos com um trançado finíssimo de cabelos amarrados malha por malha, que faziam cestinhas alongadas como nassas e arrematadas em cima e embaixo por delicadas pecinhas de ouro. A Sá-Menina, como as viúvas do seu tempo, só vestia preto. Na rua, costume. Em casa, blusas de mangas curtas mostrando as roscas dos braços sempre em perpétuo movimento mímico. Tinha mãos expressivas e bonitas. Gesticulava tanto quanto falava. E as duas coisas abundantemente. Quanto às qualidades, era muito sociável, muito parenteira, muito bondosa e de um carinho maternal com os hóspedes. Éramos três. Eu iria conhecer os outros dois à hora do jantar. A Sá-Menina era secundada, complementada, completada e perfeita — por mocinha, não sei se sua parenta ou afilhada, Mariazinha, que ela chamava a propósito de tudo ou de nada para ajudá-la ou simplesmente assisti-la fazendo ou não fazendo. Era gritada dia inteiro. Lembro sempre dela quando preciso da legendária Policena Barbosa. Sabem da estória? Era uma empregada de família em Belo Horizonte. Dentro de casa, só ela sabia de tudo. Era reclamada dia inteiro. Policena, minhas meias. Policena, me dá café. Policena, corre na esquina compr’o jornal. Policena, põe a mesa. Policena, tir’a mesa. Policena, traz água. Policena, onde estão? meus sapatos. Meu vestido, meu colar, minha pulseira, meu anel de safira. Policena! Policena! Policena! Policena! A pobre coitada (que tossia) sempre dizia — num sei com’ocês vão siarranjar quand’eu morrer. Faz mal não. Me chamem mesmo morta que eu cascavilho as coisas e faço achar o perdido. Deu tão certo que a devoção se espalhou e todo mundo chama pela falecida Policena quando precisa dar com o sumido. Minha amiga Lúcia Machado de Almeida não passa sem ela e dela, Lúcia, recebi a crença. Na desordem de meus papéis e minhas fichas as que sovertem me são restituídas pela santinha Policena Barbosa que nunca deixo de invocar. Mas é preciso pagar o devido: são três ave-marias. A reza é tão poderosa que serve mesmo saindo de boca descrente e pecadora como a minha, ai! de mim. Pois a Mariazinha da Sá-Menina era uma espécie da moça de Belo Horizonte. Mariazinha! Mariazinha! pode tirar o jantar que o dr. Egon já chegou. Foi tirado e sentamos à mesa sob o olhar iracundo dos barões — Sá-Menina, numa cabeceira, ladeada por seu filho Ludovico e Mariazinha — que levantava toda hora mastigando — segundo o que era reclamado. Um resto de tarde ia morrendo e a luz das janelas já não dava. Mariazinha, acende o lustre! Foi feita a claridade e eu pude olhar meus companheiros de casa e a mesa toda florida.
— Lindas flores, Sá-Menina…
— São para o senhor e para festejar sua chegada.
— Ora! Sá-Menina, muito obrigado! Com efeito! A senhora gastando dinheiro à toa… Muito obrigado!
— Num tem que agradecer. Num gastei dinheiro nenhum. Mandei a Mariazinha buscar nos canteiros da avenida Paranhos. Faço sempre assim. Um dia de Finados eu tava colhendo prum ramalhete quando veio um guarda dizer que era proibido e que eu ia ser multada. Corri logo com ele. Seu grandessíssimo cachorrão! fique sabendo que tudo isto aqui são terras que meus parentes deram à cidade. Apanho flor e se quiser arranco os pés. Ato contínuo procurei os primos, que são muito prestimosos quando não é coisa de dinheiro. Eles foram ao presidente da Câmara e o sem-vergonha esteve pra ser demitido. Eu é que num deixei. Pena dele. Veio aqui com a família toda, tudo chorando, beijando minha manga, pedindo pelamor de Deus. Eu perdoei depois de passar uma boa raspança. Mas já tava esquecendo de apresentar o senhor a seus companheiros de casa. Este é o dr. Eutanásio Boamorte, este o seu Asnazário Ventura — todos dois são da agência do Banco do Brasil. O dr. José Egon Barros da Cunha, médico que veio para o nosso Centro de Saúde.
Tivemos todos imensa honra e a sopa de macarrão foi servida. Veio depois um trivial encerrado por doce de cidra, queijo do reino e cafezinho. Tudo bem saboreado. Enquanto a conversa corria pude observar e me inteirar dos companheiros de casa e mesa. O Asnazário era um moço de seus trinta anos, cuidadoso consigo e no trajar-se. Estava de ponto em branco num belíssimo terno cinzento. Colarinhos impecáveis. Colete abotoado alto. Gravata parabólica. Almofadinha. Dos cabelos colados a gomalina e penteados para trás desciam longas costeletas que guarneciam um rosto escanhoado, pele fina muito rosada, olhos mansos e um pouco espantados, boca pequena, vermelha e desenhada como se o tivesse sido a lápis de rouge. Era meticuloso, delicado, cauteloso e não abria a boca se não chamado às falas. Assim mesmo no número de palavras menor possível.
— Seu Asnazário! Mais um pouco de arroz? Está muito bom, todo soltinho, vermelhinho do urucum.
— Estou servido. Obrigado.
— Seu Asnazário! Hoj’é quart’ou quinta-feira? Nem sei ond’estou com a cabeça.
— Quarta.
Já o dr. Eutanásio (cujo sobrenome redundante era Boamorte — dos Boamorte da rua do Matoso) era o contrário. Não se podia dizer que falasse pelos cotovelos já que fazia por cada centímetro quadrado da pele, dobrada dos da roupa de baixo e da de cima. Era um quarentão grisalhando de figura impactante. Tinha um nariz da história universal: longo, sinuoso, recurvado, suscetível e projetando-se qual orgulhosa e rompente carena. Olhos agudos de falcão, sobrolhos mefistofélicos. Face rubicunda. Queixo gordo — dos de covinha, orelhas alerta, testa curta compensada pela cabeleira que não era ondeada mas cujos fios se angulavam e ficavam parecendo raios em torno a sua cabeça terminada atrás por cachaço possante sem ser gordo. Sua pele era lustrosa da seborreia e dum vermelho incendiado. Era dramático e pedia a farinha no tom dum juiz pronunciando sentença de morte. Não falava — urrava, em alturas tribunícias. Uma voz tormentória como a daquele oculto e grande cabo. Da sopa à sobremesa, tudo largamente regado do seu tinto particular, ele politroava contra as instituições, as autoridades, os costumes, a política nacional, as combinações internacionais. Autoridade em finanças, bacharel especialista em direito comercial, bancário e por dentro dos segredos da economia nacional, ele provava por A mais B que o Brasil era mesmo um país perdido. Um vento de miséria e fome era soprado pelas suas demonstrações e cada um se servia de mais — na incerteza de se estaria ou não fazendo a última refeição antes das vacas magras, dos cavalos do Apocalipse que ele profetizava. Talvez fosse para amanhã… À medida que o jantar progredia e o nível de sua garrafa baixava — mais tenebrosos eram seus vaticínios. E não admitia discussão. Esmagava o contendor e ainda pedia o reforço do companheiro de banco.
— Asnazário! Diga sinceramente. Estamos? ou não estamos? às portas da bancarrota…
— Estamos.
A Sá-Menina achava o dr. Eutanásio um partidão, ganhando bem no banco, homem de boa família (os Boamorte da rua do Matoso) e estava tecendo os pauzinhos para casá-lo com parenta encruada. Já se tinham visto. Se achado bem. Iam se gostando e as coisas deviam se decidir no fim do ano. Ele, às vésperas de entrar pelo casamento, para a aristocracia do Desterro, resolvera adotar os costumes da mesma e começara pela caça. Comprara fuzil de primeira ordem, treinara pontaria no Clube de Tiro aos Pombos e aos Pratos e aos domingos cedo saía no seu forde para os caminhos das cercanias. E matava tudo. Arrasava o que ia encontrando pela frente. Andorinha, beija-flor, urubu, macuco, pato, pardal, gaio, pinto, galinha, ganso, vira-bosta, chapim, mocho, papagaio, irerê, macaco, paca, tatu, cotia sim, até cachorro, ovelha, bode. Tivera um dia de bezerro. Massacrava e jogava dentro do carro. Voltava tarde da noite, cheirando aos espíritos ingurgitados e ao sangue das hecatombes. No dia seguinte a Sá-Menina guisava todas aquelas carnes e dava-as ao almoço e ao jantar. Aos poucos o Egon revoltado com semelhantes nacos coriáceos, faisandés, recheados de chumbo paula-souza quebra-dentes dera para fazer refeições fora, às segundas-feiras.
Terminado o jantar, o Asnazário saíra para a casa da noiva, o dr. Eutanásio para continuar suas libações e augurar na Fluminense. O Egon ficara um pouco de prosa com a Sá-Menina. Resolvera não sair, deitar cedo para se apresentar no Centro de Saúde manhãzinha do dia seguinte. Nada para ler. Seu caixote de livros só chegaria amanhã ou depois, despachado de Belo Horizonte a domicílio. Pediu qualquer coisa impressa a sua hospedeira e ela depois de gritar pela Mariazinha descobrira um Álbum Municipal do Desterro e ele se recolhera com o cartapácio: 530 páginas fora as da bibliografia e do índice. No seu quarto fumou um instante à janela que dava para um telhado vizinho, sentiu o grande silêncio dentro do qual ouvia ao longe um mugido dágua. A noite estava úmida e feia. Tiritou de frio e um pouco de medo sabia lá de quê. Fechou as vidraças e atirou-se ao livrão.
Deep into that darkness peering, long I stood there wondering, fearing,
Doubting, dreaming dreams no mortals ever dared to dream before;
But the silence was unbroken […]
edgar allan poe, “The Raven”
Uma curiosidade por sua terra fê-lo meter a cara naquele Álbum e ler sua história até de madrugada. Era tudo em letra miúda, carregado da transcrição dum mundo de documentos e quando o Egon encerrou a leitura verificou que continuava na mesma. Pouca coisa aprendera do muito que lera. É que no fundo não havia história, ou pelo menos a interpretação social e econômica dos fatos que eram apresentados como uma espécie de desconversa cuidando menos do Desterro que das várias marcas do Caminho Novo. Assim sabia-se que em 1701 o guarda-mor Garcia Rodrigues Pais tinha se proposto a abrir uma picada que fosse da Borda do Campo à Raiz da Serra. Entravam notas sobre este caminho, sobre se o Sabarabuçu já estaria povoado de baianos subidos pelo São Francisco e rio das Velhas quando os paulistas chegaram em bandeira. Vinham achegas eruditas sobre a etimologia do nome Sabarabuçu com as opiniões dos partidários desse topônimo e mais, das designações Suburubuçá, Suburubaçu e Surubaçu — origens de controvérsias intermináveis. Depois as datas de 1705 a 1708 em que Antonil traça as etapas do Caminho Novo e como se o havia de seguir para chegar ao Desterro. Só que este nome não aparecia no roteiro histórico. Roça do Contraste de Simão Pereira, Registro de Matias Barbosa, roças do capitão José de Sousa, do alcaide-mor Tomé Correia, as duas (a grande e a rocinha) de Manuel Araújo, a primeira e a segunda do sr. bispo e de repente estamos na Borda do Campo. Do Desterro, nada. Apenas em 1710 surge um documento referente a tropelias cometidas “no sítio do desterro” e se dá ordens à Milícia Voluntária dos Rosseiros [sic] de se unir à gente que ia dar caça aos desordeiros junto aos “homens aliciados pelo capitão-mor de dentro e pelo capitão-mor de fora”. Abrem-se aí novos parênteses para descobrir quem seriam esses capitães-mores. Esse importante ponto de discordância histórica criou dois campos principais de controvérsia. O de dentro seria um Manuel de Sousa — reinol e branco e o de fora um Manuel de Sousa — paulista e mameluco. Uma terceira corrente (pouco documentada) admitia um Manuel de Sousa único e não discutia sua procedência nem suas cores. O assunto sempre esteve e continua em aberto. Livro da autoria de Pardal Tabosa nada esclarece sobre a dúvida antes abrindo novo problema já no seu ousado título: Manuel de Sousa nunca existiu nem dentro nem fora. Sabe-se hoje com certeza que a Vila Nova d’El-Rey de Santo Antônio do Desterro no Mato Grosso das Minas foi criada a 1o de abril de 1758. Não há documentos comprobatórios disto — mas a data foi tornada indubitável por resolução de 1o de abril de 1910 da Câmara Municipal que com sua sabedoria contornou o nó górdio das polêmicas inúteis. Em 1781 há notícia do Tiradentes comandando a patrulha do Caminho Novo o que coloca o protomártir história do Desterro adentro, como Pilatos entrou no Credo. E vêm páginas e páginas sobre a Inconfidência, os inconfidentes, o Alferes, o safardana do Joaquim Silvério. Outro trabalho de Pardal Tabosa estabelece muitos pontos de ligação entre a vila e o movimento libertário. É o seu alentado volume intitulado — Seria a Marília de Dirceu natural do Desterro?
Mas chegamos finalmente a pontos menos nebulosos quando se tem notícia dum primeiro documento antigo. É a Carta de Sesmaria de 11 de março de 1781, passada em favor dum Josué Pardal Tabosa du Bocage que o historiador desterrano já citado (e seu descendente) diz ser da família do “altíssimo poeta José Maria Barbosa du Bocage, célebre não só por sua admirável inspiração arcádica como por sua reprovável veia satírica e seus inadmissíveis sonetos obscenos”. Depois vêm datas enchendo linguiça como a de 1791, com a criação da Barbacena e a de 1798 do estabelecimento de Correios entre Ouro Preto e a Corte. É de 1801 o Registro do Desterro e é certo que em 1816 Saint-Hilaire passou por lá ou muito perto. Em 1822 uma deputação desterrana está presente às eleições procedidas na Vila Rica. Em 1836 Mawe dá notícias do chamado Fazendão, já propriedade do nababo Zoroastro Fortes, dito o “Alferes”. Por volta desta data, ano mais, ano menos, chega à região o bávaro Henrique Schimmelfeld que tomaria como segunda mulher uma filha, ou sobrinha, ou prima do “Alferes” — d. Branca, conhecida pelo diminutivo de Branquinha — como ficou na fonte que ela fez construir por subscrição pública e conhecida como o Chafariz da Branquinha. Tanto o mineiro como o bávaro são considerados pelos seus partidários respectivos como fundadores da cidade. O historiador narra em seguida como esta foi criada (exatamente no mesmo dia em que o foi a vizinha Juiz de Fora) a 31 de maio de 1850. Enumera depois, com as respectivas datas de posse, os governos municipais até 1916. Descreve a beleza do burgo “reclinado na montanha alcantilada e banhando os pés no sinuoso rio”. Enumera seus bairros: Altacruz, Cruz do Meio, Saudosino Pedreira (ex-Cruz de Baixo), Recolhimento, Primeirosteus e Tiradágua. Os “homens bons” da cidade vinham citados no livro com suas fotografias, as de suas resolutas, ou prendadas, ou virtuosas, ou caridosas consortes — as dos seus palacetes e a lista de suas munificências, benemerências, caridades, qualidades excelsas, acrisoladas virtudes. Terminava-se com verdadeira apoteose sobre o ensino, lembrava-se a cadeira de Instrução Primária fundada em 1847, o ano nefasto de 1890 que fora o da abertura do Instituto O’Grady — centro de instrução esportiva e herética de metodistas, australianos, o fasto e glorioso de 1891 com a reação dos homens bem-pensantes chefiados por precursório Ramos (o velho) — criadores do Ateneu Mercantil que logo prosperou sob a orientação de virtuosos sacerdotes católicos, encheu suas salas com a mocidade das grandes famílias do Desterro, e começou a forjá-la dentro de fôrma característica — igual conhecimento de uma administração comercial precisa como os Evangelhos e de um Novo Testamento certo como tábulas bancárias. E mais, Nosso Senhor, nossa Terra, nossa gente: tfm. O Egon parou a leitura particularmente impressionado com o desenho das Armas de sua cidade: “Em escudo bipartido, à sinistra, em campo de ouro, trinta moedas de prata coroando capacete de Mercúrio aberto no mesmo metal; à destra, em campo de prata, as cinco chagas de Cristo ao natural. Ao alto, a Coroa Mural tendo por timbre a quíntupla Cruz de Jerusalém. Divisa: Labor et Charitas”. Muito bonito — pensou o médico — só que em heráldica não se coloca metal sobre metal e essas moedas de prata em campo de ouro são trinta besteiras. E logo trinta… Mas, adiante, a simbologia do brasão esclarecia que cada dinheiro representava o trabalho dum dia do mês. Ah! bom… Ainda bem…
Não dormiu logo. Ficou pensando nos fastos mal cosidos uns nos outros do que era chamada a história de sua terra. Quanta coisa ficava no ar e sem explicação. Por vias de que mistério aqueles aglomerados de gente sem forma e sem estrutura que primeiro pintaram nas bordas do caminho — na melhor hipótese comerciando — reinóis, fugitivos descidos da Bahia, índios suspeitos de canibalismo, negros de quilombo, judeus, cristãos-novos judaizando ou assemelhados, facínoras, padres com família, mulheres erradas, levantinos, marinheiros evadidos, um rebotalho assassino largado pelas bandeiras — tinham se conluiado, lutado uns com os outros, se constituído em bando ou quadrilha para matar, roubar, passar ouro, aos poucos se “organizando” à moda dos polipeiros, começando a poder parar, repousar, a diminuir a turbulência, se aquietar, fazer filho — como se preparando para receber a onda superior e quase legal que a mineração secando ia fazer descer para o agrário — gentes que se misturariam às poças turvas da povoação que tinha cogumelado sobre a primeira podriqueira que borbulhara nas margens da picada de Garcia. Como dessas gentalhas surgiram os primeiros donos de vendas, de terras, apareceram as vilas inaugurais d’El-Rey, da Rainha, do Príncipe, da Princesa, as das Nossas Senhoras e dos Bons Jesuses. Como nasceu uma polícia, desenharam-se hierarquias e em cem anos tinha se constituído uma sociedade aqui um pouco mais morena, ali já disfarçando, clareando a pele, esticando o pixaim e por sua própria força de elevação instintiva tinha virado numa sociedade colonial tão polida quanto as das cidades do Salvador e do Recife — logo com Padres Regulares, Doutores, Cavaleiros do Hábito de Cristo — uma aristocracia que voltava à tona depois do mergulho que dera o fidalgo lusíada aqui aportado, com sua nobreza posta entre parênteses e o ânimo predatório solto desferrado e sem bridão. Mais um pouco e eram potentados, sesmeiros com mais terra que El-Rey no seu Reyno, nababos com mais oiro que os Tesouros da Metrópole, avultando numa elite social de mandões que ia esquecer as suas urências de sangue índio, suas acrimônias de sangue negro, reivindicar e ostentar só as suas origens confessáveis, os brasões que tinham vindo de Portugal e que reapareciam reluzentes nas coroas dos cento e vinte e quatro barões (os barões mesmo — os “com grandeza”, os das Santas Casas, os da Alforria), dos vinte e cinco viscondes, dos oito condes e marqueses com que nossos monarcas constelaram a província de Minas Gerais. Como se formou daí uma casta que herdou a força que já viera tendo na Colônia, trouxe-a Primeiro e Segundo Reinados afora, continuou dela detentora na República — fazendo-se instrumento dócil do Poder e instrumentando o Poder quando possível. Casta terrível, aderente como sanguessuga, dura para o escravo, o pobre, cruel para o povo, implacável para a massa de sangue, de carne desvivida pelo jejum crônico, pelas doenças, pelas condições subumanas em que vegeta — mas carne de que ela — a casta — mesmo assim ainda consegue (como quem tira caldo do bagaço repassado na moenda) — ainda consegue! chupar soro e tutano — mal matando aqui e ali os apetites com reações de abandono, adoçando bocas e amordaçando línguas com obras públicas fastuosas e falsas, obras de benemerência e caridade ostentosas que revertem em seu próprio benefício com polpudos juros. Casta fechada que exclui, expurga e corta as possibilidades do impecunioso, do intelectual e de todo aquele capaz do crime do livre exame. Ah! seria assim? a gente de sua cidade, sua gente. Cansado de revirar essa pergunta foi que o dr. José Egon Barros da Cunha passou sua primeira noite no Desterro — duvidando, temendo e ousando pensar coisas que ninguém quisera pensar entre aquela montanha e aquele rio. Antes de ser subjugado pelo sono levantou, abriu sua janela e repetiu sua indagação para o escuro noturno. Prestou ouvidos, todos os sentidos — mas o silêncio era absoluto.
Si j’ai rêvé, c’est qu’à certaines heures le rêve et la
vie sont composés de la même substance, ou que je
n’arrive plus à les distinguer.
julien green, Si j’étais vous
No dia seguinte — manhã fria e feia, o Egon saiu de casa para se apresentar ao Centro de Saúde. O pedacinho que ele desceu da rua do Santo Pretor não lhe disse nada no decurso de seus primeiros passos. Via pouco — que havia uma névoa vinda do rio, baixa, se arrastando e grudando os raros passantes. O gosto bom do café da Sá-Menina, do cigarro, duma alegria de juventude que ele sentia circulando no corpo e que era seu sangue rutilante. Vinte e quatro anos. Ele batia os passos, feliz, pensando em nada. Só fragmentos de ideias passavam na sua cabeça. O bastante para ele ter a noção profunda de vida, saúde, harmonia, conforto, agasalho que lhe vinham daquela paz interior e um pouco das polainas de casimira, do capote claro novo em folha, das luvas de pelica cinza com que ele substituíra as de lã grossa que ninguém deixava de usar em Minas, aos primeiros frios. Quando havia frio em Minas. Quando havia Minas… O santo baixou à chegada do jovem médico à esquina de Silva Paranhos. Foi como a invasão de doçura a entrar-lhe pelas narinas de mistura a um leve cheiro alcoolizado, dominado pelo mais ativo de rapaduras que estivessem empilhadas, derretendo num canto de balcão, deixando correr mel fluidificado a espírito de vinho. Ele mergulhou os olhos no interior da velha venda de sua meninice. Um escuro que não seria de sujo ou falta de luz, mas o preciso e sem fundo dum negro de água-forte, omitia todos os objetos das prateleiras da bodega de outrora — só deixando reluzir, dum róseo aceso — quase de cabuchão de rubi ou de caroço de romã, a teoria das crianças de açúcar fosforescente. Não estavam lá mas dentro dele tão facilmente percebia nos dentes a crepitação cândi e açucarada que envolvia juntos — pedacinhos de boneca e o sabor mais vivo dum licor sabendo a hortelã, camomila, estragão, erva-doce. Uma volta de verdes anos o invadiu tal como se difunde no corpo o canto das piorras de latão rodando vertiginosamente e centrifugando a cor preciosa das varejeiras besouro passarazul no dia de ouro; o canto longínquo dos apitos dentro do feltro de um porto de brumas que se vê de cima da montanha ou na sala maternal do especialista quando se faz exame audiométrico e aquele silvo pio sopro hálito vai diminuindo sumindo no nada duma surdez que cresce do aparelho. Ele ia ficar agora no deslumbramento dessas ondas de passado (ele sabia que seria assim) — ondas de passado se intercalando no presente tornado fofo como a cor e o gosto da goiabada mole dentro da massa bolo dum rocambole pernambucano. Ele ia seguir dando passos numa calçada de rua bem pavimentada mas de que ele recuperava o cheiro especial de barro novo que as antigas chuvas levantavam da poeira fina do macadame da via reta e direita. Ele não fora invadido por percepção única, isolada, separável (como um prelúdio, um final ponto-final, um post-lúdio) mas pela harmonia e alternância rítmicas de um refrão de balada — melhor dizendo, duma antienne mais baixa mais alta ao longo dum interminável canto litúrgico. Já desapareciam os bonecos rosados e, virado para a direita, ele atravessou a rua para ganhar a outra esquina que surgia barrada por manequins de todas as cores — sem cabeça, sem braços desmoronando e morrendo a largos golpes da tesoura que lhe abria os reguengues, eviscerava e espalhava no chão o algodão e as painas sujas de suas tripas e bofes. A Fábrica defronte era subitamente destampada pela ventania que levantava suas folhas de zinco que desciam como lâminas, cortando fios e abatendo bois dentro do ruído (como de aviões longínquos), que fazia a nuvem de gafanhotos daquela praga do Egito que em horas acabara o verde dos quintais e dos jardins do Desterro. Mas o dia clareava melhor e uma lógica subia dentro do Egon — a lucidez do terra a terra que pouco resistiria às águas que subiam da lembrança da grande enchente que quase afogara a cidade naquele ano de 1906. O rio crescera em ondas moles largas sempre mais altas — e uma enseada se formara até a esquina da rua do Rei, de onde desatracavam os barcos cheios de remédios roupas mantimentos que seus pais iam distribuir no cais de cada casa alagada. Os bondes e os carros não passavam — só os barcos e o tílburi poseidônico anfíbio do coronel Geminiano Fortes que era para seus tempos pueris uma espécie de abstração, um conjunto inseparável — veículo, parelha, estalar das chicotadas, alto negro na inacessível boleia, a coberta do veículo de que saíam duas pernas vestidas de brim claro e de onde ritmadamente surgia um braço chapéu-chile na ponta cumprimentando de vinte em vinte metros. Todos salvavam da rua, profundamente! a viatura que voava para os lados de Primeirosteus levantando no rastro fina poeira de ouro esterlino. Naquela ocasião, as gotas de prata — as gotas da enxurrada que os cavalos negros eram os únicos capazes de romper — sempre rabos pro ar e soltando bosta ruas afora. Pra quem quisesse. Jamais o Egon tinha visto a face do coronel Geminiano. Só o nome lhe ouvia pronunciado reverentemente por todos: coronel Giminininho coronel Gimininho coronel Giminininho. Ele era dos sangues fundadores do Desterro filho do Hilarião Fortes que era irmão do famoso Zoroastro Fortes, o do Fazendão. Os dois, Hilarião e Zoroastro — gente da d. Branquinha (do chafariz) e por esta — afins do bávaro Guilherme Schimmelfeld — outro fundador. Fundadores do Desterro havia-os também de nascença. As águas recolheram e o Egon continuou pela avenida Silva Paranhos. Agora mais lhe batia o coração. Mesmo ele retardou a marcha porque já via a casa e ficou sem saber o que ela lhe reservava. Estaria lá? Ele tinha se lembrado nunca mais da lâmpada elétrica ao alto, sobre a porta da entrada lateral. Há quinze anos não pensava nela, talvez nem mesmo a tivesse visto e sua presença na memória fosse simples dedução — falsificação, de seu espírito. À noite ela era apenas um halo cor de cobre; de dia parecia uma pera translúcida sob as saias rodando de repente imobilizadas do abajur dançarina — seda branca por baixo, veludo verde por cima. Se ele a visse é que não era criação de sua mente mas que existia, era realmente passado reassumido. Agora apressava o passo. A casa se desenhava toda modificada e recoberta de uma camada de cimento mais cintilante de micas que as encostas faiscantes do penhasco Tromba d’Anta, no Distrito Diamantino. Tinha sido reformada mas ainda se entrava pelo lado. Parou perto, antes, olhou fazendo deslizar a vista pela quina do batente como quem chora carta de jogo. Devagarzinhíssimo: a lâmpada estava lá. Pelo menos a saia do abajur seria a mesma. Logo precipitaram-se em torno dela os bandos de primos, das primas lindas com as bocas cheias de versos que recitavam para sua avó nos dias de festa. Versos do Poeta da Cidade. Versos para os tios no dia das Bodas de Ouro recitados na voz cristalina da neta Regina. Versos da lavra da tia Felisberta e declamados por sua filha Fidelinha. Ah! Acorda assim, lembrança adormecida no bosque. Acorda à luz desacesa da lâmpada aladinamente mágica que faz surgir gente e paisagens e casas e ruas ao nosso toque dos olhos. E agora a palavra caraduá — aberta como um cravo amarelo. Caraduá é cará do ar — tubérculos que cresciam uma vez por ano em finas raízes aéreas que desciam latada abaixo dos troncos da chácara. Tinham forma de fígados de galinha ou de cerebelos cor de cinza. Cozidos e com açúcar, eram bons como marrom-glacê. Nunca mais ele tinha visto daquilo e nunca mais tal veria fora do toque das mãos de sua avó, de sua mãe. A casa verde de d. Calina veio correndo como uma locomotiva ao encontro da deles. Arfou um instante e recuou — que o enterro queria passar, num gemido e num abafar de passos em roda do caixão roxo cercado de fraques e de fardas da Guarda Nacional. Sua mãe gritava abrindo o telegrama — Coitadinha! da Maria Leilá que morreu no Ceará. De disenteria. Esse dia ele guardou para sempre porque ficara escrito na Miscelânea: 17 de junho de 1905. Era extraordinário como ele, Egon, se contava estórias assim no dia do Desterro. E ele sabia que contar caso com sol quente faz criar rabo… Os muros agora estavam eriçados de cacos de vidro brilhando como esmeraldas e diamantes e topázios nas suas pontas e gumes. Não eram dos velhos tempos da avó não não. Ela não admitia nem cachorro, na chácara. Praquê? pra morder? os filhos de minhas amigas. Sei que eles é que pulam para chupar minhas frutas. Mas verdadeiramente importante era uma espécie de vazio que se fazia e o Egon começava dentro desse bojo a captar a qualidade de silêncio do velho sobrado. Vinha de longe e como a concha da sala, podia se encher de todos os ruídos ao sopro juvenil que fazia sair da casca morta do molusco aquele trom cheio de vida marítima. Esse silêncio era o da sala de visitas no silêncio do dia do Desterro. Ele tornava tudo mais longe mais distante. O outro lado da rua ficava no horizonte — além muitalém daquela serra… As paredes se afastavam e o papel verde que as aveludava adquiria perspectivas de floresta. Uma sombra. Outra maior, retangular, da janela fechada. Ao seu lado o espelho luminoso da outra janela, aberta. O Egon via ali dentro a fotografia tirada naquele canto dum garoto de dois anos vestido de mata-mosquitos. Tinha a impressão de que era ele e que o farmacêutico seu pai fizera-o vestir assim por admiração ao sanitarista que debelara nossa febre amarela. Mas ele sabia que aquele silêncio que prendia tudo como dentro dum vidro grosso ele o podia esfacelar soprando a concha mágica que logo atroaria enchendo os espaços da longa e sinuosa cobra sonora senroscando e traçando voltas sinais cabalísticos onde ele podia soletrar o fabuloso nome. Começava com o círculo se fechando como um alvo, depois o segmento serpentino, pássaros súbito voando num céu neutro onde o sol esplendia e um pescoço de êider levantava-se do eido pra fazer um último passo e terminar com o fôlego, como um ponto final.
De novo o rebojo concêntrico do silêncio que constrange e o menino torna a cortá-lo com o mugido marítimo da concha choros gemidos em torno de Nossa Senhora do Carmo deitada morta num leito de flores e que saía depois sob uma chuva de diabolôs que batiam no chão levantando faíscas brasas das fogueiras de Sãjoão. Soprava mais e o som agora era emitido pela figura materna sentada numa arca enquanto depressa lhe arranjavam cama tudo limpo um longo gemido majestoso e solene dentro dos passos de segredo ponta-dos-pés psius de todas as mulheres escorraçando os meninos e as negrinhas para o fundo das árvores e à volta — o mistério do aparecimento de uma menina dentro da casa. Aquela data o Egon sabia. Fora o 17 de maio de 1910.
Mas a forte realidade empurrava o Egon para a esquina de Silva Paranhos e rua do Rei onde a bebedeira fantasia de associações espontâneas novamente levaram-no noutro sonho. Aqui era o caminho por que se chegava a Antonieta — movediça qual ave, de cantos cheia, músicas de sua época já em todo o ar: “Primavera”, “Fado Liró”, “Vassourinha”, “Dengo-dengo”, “Tire o dedo do aparelho”. A essa inevitável associação com siririca trouxe o desavergonhado ao mundo, um instante de segundo, porque a cruz ou a aspa daquele encontro de logradouros novamente o levava. O retrato de d. Guilhermina foi visto através duma janela fechada e o boné de seda do dr. Rosa dentro dos vidros da outra. A casa, em frente, cheia de moças nas janelas, pousadas no teto, libertas da gravidade, descendo e subindo como num quadro de Chagall, as paredes de amarelo e as quinas de chocolate. Depois se apinhavam no portão que ia dar no jardim, o jardim dava num terreiro, o terreiro numa chácara. A chácara passou por aqui, por aqui, por aqui até a outra chácara em Cataguases. Na esquina — em pé no ar, espada nua e coberto de sangue montava guarda o cadáver recortado e rasgado do almirante Saldanha da Gama. Em frente era a casa quadrada e fechada onde o menino sem fôlego partia o silêncio levantando e batendo seis vezes a aldraba o tempo de ouvir seis sons abertos espalmados palmadas no ar.
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Ele tinha tempo de correr antes das janelas todas explodirem. Mas quem disse? que o compadre Almada e a comadre Matildinha davam queixa. Aquele segredo ficou para sempre no coração dos três. Um último som das canções de Antonieta morreu quando o Egon pôs o pé no passeio e parou devagar vendo distintamente Alice Alicinha Cecinha vindo devagar do Colégio Americano pisando na ponta do pé esquerdo e entrando em casa para morrer. A impressão da menina morena foi tão nítida que ele nem viu o Nariganga que o espreitava da janela. Já um outro silêncio vinha da casa deserta e sempre aberta cheia de uma sombra pardacenta da cor das paredes. Toda a dor e o sangue da Paixão podiam ser vistas nas suas Estações por quem olhava da rua. E um cheiro de jasmim, agudo como onda de éter, entrava pelas narinas. Um pensamento sempre habitara o Egon que o fazia pensar naquela esquina por mecanismo que ele só decifraria quando descobrisse que no branco — (pode ser até louro) um beiço, uma expressão, um arranjo de cara, uma maçã de rosto podem aparecer como pedaço incrustado do negro ancestral. O sino da Matriz batia as oito quando ele chegou à esquina da rua da Rainha. O moço parou um instante para aproveitar ao máximo cada badalada e mais o que ficava vibrando depois de cada uma — retrossom dos sinos acrescido a cada percussão envolvido e engrossado pelas camadas das outras — fazendo o ar todo trêmulo e sonorizando sem parar zóooooooom. Mas ali já era um lugar sensacional. Nem ele resistiu sequer instante — que se atrasasse, sebo! — e entrou devagar no parque Schimmelfeld. Ia perder tempo ali mas o Egon sabia muito bem que para viver integralmente é preciso perder um ror de tempo. Às vezes aumenta o prazer — senão o da gente, o dos outros quando se conta a estória ou se a escreve. Envernizar (a sugestão está em Gastão Cruls) tem acepção chula mas dá bem a ideia de narrativa intencionalmente demorando e sinuosa de Proust — viz., La Prisonnière e do plágio antecipado a isto que era o pensamento do jovem médico a cada sensação do já-visto compondo inevitavelmente quadros perdidos e readquiridos de repente nas homologias que juntavam as partes de um Desterro morto — desmembrado naquelas calçadas fachadas ares do Desterro dagora. E saboreava longamente esse seu brinquedo de puzzle, feito, desmanchado, recomeçado, repetido, retomado.
Ele foi subindo envernizando seus passos ida, parada, volta a calçada da rua da Rainha que renteia o parque entre Silva Paranhos e a rua do Cenobita, o trecho desta que fecha o jardim por trás e depois virando à esquerda para pegar o quarteirão da rua Schimmelfeld até andar a sua parte fronteira. Era realmente um lindo quadrado de vegetação tropical de aleias tortuosas entre canteiros altos e que por estes, pelas árvores, pelas palmeiras parecia um pedaço da Quinta da Boa Vista, do Passeio Público, da praça da República — levado do Rio para seu subúrbio do Desterro. No primeiro trecho de que falamos o Egon foi olhando a um tempo os canteiros e as construções de que destacava-se o palacete fachadas de tijolinho do Clarindo Albernaz Bulcão. Ele e outras construções tinham substituído o renque todo igual de casas geminadas e baixas por cima das quais apareciam os telhados do sobrado do barão da Quaresma a quem todos aqueles lotes tinham pertencido integrando propriedade única. Hoje estavam nas mãos dos descendentes, até a parte virada para Cenobita. Entre galhos e folhagens e araras coloridas de verde vermelho azul amarelo e de seu grito gutural — via-se ainda o pitoresco pavilhão da Biblioteca com suas janelas de arco ogival e diante dele um repuxo todo colorido das cores cruas em linhas cheias de graça que o tornavam merecedor de ir para Cnossos e enfeitar o Palácio do Rei Minos. Ficava no lugar onde tinham cantado outrora as águas do Chafariz da Branquinha. No fundo o cercado de bambus folhas galhos onde sempre havia meninos dos colégios perto, aguentando o tédio das gazetas. Virando e pegando o terceiro trecho, de frente ao Fórum via-se o zigue-zague da ponte de cimento que ia para a construção chamada Choupana feita dum trançado de alvenaria e cimento imitando caramanchão que tivesse sido construído com bambu-imperial e recoberto de sapé. Numa das pontas da ponte que era como um Z muito aberto ela se apoiava num pedregulho artificial dotado de um banco imitando pedrouços onde se fotografavam todas as moças e a meninada do Desterro. O Egon lembrou-se de retrato seu há muito perdido de vista. Representava menino de seus três a quatro anos, roupa branca à caçadora, cinto de couro escuro, colarinho à mamãe, a borboleta de uma gravata de seda imitando o laço Lavalière, bengalinha, chapéu de palha bilontra no chão. O médico ficou ali, andando lá pra cá na ponte, parando onde tinha sido retratado, sentando nos bancos da Choupana. Depois ficou indo e vindo no passeio a cujo meio ficava o busto do fundador. Anos depois ele dizia que ali ele vira o que havia de mais belo no Desterro e indignar-se-ia com o que fizeram depois ao lindo jardim. Não se cansava de dizer que tudo devia ser restaurado como no antigo risco, reconstruído o pavilhão da Biblioteca e reerguido o belo repuxo. E desentulhar o jardim de tanta estátua tanto busto. E refazer o alinhamento das velhas calçadas tirando o denteado de parquear carro.
Parou depois muito tempo no meio do encontro de Silva Paranhos e Schimmelfeld. No ponto geométrico onde fora a Cruz do Meio. Olhando até a praça da Estação e além dela um morro muro. Para o contrário, outra muralha tendo no flanco o Ateneu Mercantil. Para os lados os caminhos físicos e morais de Altacruz e do bairro oposto chamado pelo nome do benfeitor da cidade — Saudosino Rodovalho — que era a antiga Cruz de Baixo. Afinal considerou os quatro cantos que pareciam avultar contra ele como quatro proas de navio sus ao transbordado quase afogando. A do jardim, a do Paço Municipal com sua cúpula. A do atual Clube Desterro para ele ainda sem história, a do velho Clube Desterro — cujo tombo era o livro de notas de sua avó. Lá estavam com a letra dela as datas de 19 de janeiro de 1908 — grande baile e a lista dos presentes; de 31 de dezembro de 1908 — sarau dos graduandos do Instituto O’Grady; outra anotação sobre outra noite de danças em que viera convidado, de Juiz de Fora, o dr. Dilermando Cruz para realizar uma conferência — “As moças”. Três jovens da cidade vizinha tinham integrado, nesse sarau, com três rapazes do Desterro a Comissão de Festa. Sido João de Resende Tostes, Romeu Mascarenhas e Clóvis de Resende Jaguaribe. Mais os apontamentos sobre os carnavais, com confetes feitos de finas lâminas papel dourado metalizado que a avó do Egon recolhia para guardar, tirado da cabeça das filhas. Depois o médico (como se tivesse ainda o olho occipital) teve uma noção simultânea dos dois trechos de via pública que tinha atrás e adiante. Nessa direção ele viu os altos onde estava o Ateneu Mercantil, sua bela e graciosa construção, seu campo de esportes que na sua infância vizinhava com o recreio do Colégio Laurindo Sobrinho na sua primeira sede que era velha casa cercada duma chácara de que lhe lembravam os gostos e perfumes de frutas hoje mortas — os jambos com gosto de rosa, os sapotis com o de caldo de cana, os abios, as carambolas, amoras, grumixamas, jamelões, cabeludas, araçás e as pitangas, as romãs, os cambucás e os dois cajás — o mirim cortando como navalha e o manga — acerada faca. Desceu tendo à esquerda as nove palmeiras do parque e à direita as duas do Fórum. Agora lembrava apenas reconhecia e não era mais posto em órbita de sonho com as associações involuntárias que lhe tinham nascido de cores de fachadas, quinas de casa, beiradas de passeio, esquinas das ruas. Cada coisa se reintegrara em sua própria essência e o dr. José Egon Barros da Cunha sorriu, lembrou seu Balzac, até falou alto, entre brincando e sério — quando pôs o pé direito no princípio do primeiro quarteirão do trecho que ficava entre Silva Paranhos e a praça da Estação. — Agora nós, rua Schimmelfeld.
Anos e anos o Egon acumularia lembranças de sua vivência na rua Schimmelfeld. Durante todo o período em que ele morou no Desterro e depois nas suas voltas a esta cidade, primeiro frequentes, depois mais raras, finalmente cessadas — à medida que a morte ia limpando a área de seu interesse por desterranos que ele visitava. Finalmente a cidade só lhe apareceu cheia de indiferentes e depois, por circunstâncias que aos poucos serão sabidas, de desafetos seus — que nem ao menos o conheciam. Assim as notas que ele deixou são de uma rua Schimmelfeld cobrindo largo período de tempo e espaço. A narrativa arrancada de suas informações tem de recuar ao seu remoto passado pessoal, às vezes de superpor a essas imagens as que ele guardou de 1928 e 1929. Essas duas camadas pretéritas receberiam ulteriormente novos blocos de sensações que sua memória amalgamou e tornou inseparáveis das misturas ideativas mais recuadas. Sua primitiva e mais comprimida lâmina de recordações da rua lhe veio à tona quando ele a pisou. Mas logo seus componentes se tornaram impuros combinando-se (não por mistura física mas por reação química) a analogias menos passadas ou associadas ao então atual. Tudo fugidio e atraindo para seu caldeirão os fatos que davam os presentes sucedentes. E esses logo corriam para o indestrinçável que impossibilita a recordação pura da noção primeira. Assim o Egon já nesse dia, depois de descer e depois de tornar a subir Schimmelfeld, corrompeu para sempre cores e cheiros dos três sucessos que ele lembrara mal inaugurando seus passos e dizendo as palavras a um tempo de saudação e desafio ao logradouro. Esses três quadros eram os de amáveis lembranças. Primeiro de um baile de Carnaval que ele assistira no Clube do Desterro, aos tempos em que os pais levavam crianças de três e quatro anos a estas festas. Ele conservara uma impressão feérica como a de uma cascata de joias — luzeiro em movimento — faíscas presas dentro duma bola de gaze que tivesse a consistência e o apanhado dum casulo de bicho-da-seda. Ele via o espetáculo de fogo por dentro, quando se intrometia entre as pernas e caudas dos pares dançarinos. Via de fora quando se deitava sobre as cadeiras de mogno preto que circulavam o salão. Essa memória nunca morreria, resguardada e custodiada por retrato das senhoras e cavalheiros em grupo, faces de espanto e os olhos fechados ao brilho insuportável da explosão do magnésio. Via seu pai muito alto dentro daquele girassol em chamas como imagem todo-poderosa envergando a casaca a que ele fizera coser na gola e cobrindo os pretos reversos de seda verde. Sua mãe fina e elegante, vestida de cetim branco, luvas de pelica branca, uma flor encarnada no coque e a cauda apanhada por grande broche de águas-marinhas policrômicas. Esse par rodava feliz e descuidado da fatalidade. Via também uma cigana: sua tia coberta de sequins e confetes dourados; echarpe azul dum filó incrustado de coisas metálicas cingia-lhe os quadris e valorizava suas calipigiosidades — como a canção francesa fizera às de Madame Arthur. O pierrô de cetim róseo que era um Paulo Figueiredo adolescendo, com cachos postiços e que ele logo faria entrar na figura do mesmo Paulo Figueiredo com mais vinte e um anos que ele conheceria dias depois. Entre Flores, Noites e Colombinas, as Artes, figuradas por três irmãs respectivamente vestidas de Música (filó creme estampado de pautas, notas, claves e escalas), Poesia (enorme lira lantejoulando na mão), Pintura (miniatura dum cavalete dourado no penteado alto e palheta pendurada, batendo-lhe os flancos, como a patrona dum hussardo). Tudo isto tinha as sete cores do arco-íris e cintilaria para sempre no ar da esquina direita de quem descia Schimmelfeld, entrando por Silva Paranhos. Ai! onde estariam? aqueles que dançavam tanto. Se já não estavam dormindo, deviam estar sentindo o sono imenso que os faria mergulhar no passado onde estão todos deitados, dormindo profundamente. Ele tinha ideia de uma casa de balas. Logo a encontrou como boca de forno, ou simplesmente boca de que saía um hálito, uma expiração, um ar, um sopro, um cheiro invasor de açúcar queimando comumessência. Logo encontrou a furna mágica do lado esquerdo e dentro, um bruxo de floresta germânica colhendo flores do ar e crianças do chão que ele logo encantava em estrelas sóis meias-luas multicores e prendia dentro de vidros de cristal com tampa de prata. Vendia sua mercadoria a ogros passantes ávidos de esmeraldas, rubis, safiras, topázios, diamantes-cândi, pérolas-coco — mastigáveis e de todos os gostos. Gostos agudos, alongados como o risco de unha cariciosa, sua lâmina disfarçada pela polpa do dedo e correndo de fio a pavio as costas do parceiro. Ai! filha, assim, devagar diva de vagar. Voga, vaga — do pescoço que se arrepia à suã, suão suando. Gostos agudos repentinos como dois ácidos. Redondos de ovo e açúcar vitrificado. Os outros sabores — os matinais do limão, os a pino da laranja, crepusculares do chocolate todos envolvidos em nuvem duma doçura invasora e difusível como se fosse uma perfusão venosa carregada de música cor e luz. Ele parou um instante, entrou, pediu, custando a lembrar a palavra que de repente lhe explodiu — sortidas — e saiu com seu cartucho de onde se espalharia no seu corpo aquele gosto de para-sempre. Atravessou para o lado direito e foi procurando. Sabia que encontrava. No fim, apenas farejando, achou pelo cheiro. Era um salão de barbeiro onde ele sofrera numa tábua posta de lado a lado sobre os braços da cadeira imensa medo de cair do alto desse patíbulo, envolto em linhos de múmia. Em torno de sua cabeça tiniam ferros de máquinas precisas graduadas para meia cabeleira baixa e tiritavam como queixos lâminas das tesouras capazes de levarem de roldão narizes e orelhas. Ele olhava figura espavorida como a sua dentro da poça do espelho de águas turvas. Logo piscava e ela piscava. Inclinava também a cabeça se mãos verdugas inclinavam a sua e já ele era todo picado de bichinhos pulgas vermina toquinhos de cabelo com pós de arroz. O perfume grudento dos cosméticos, loções e brilhantinas — ondas de violeta, bergamota, sândalo, cravo, narciso e lírio logo correspondendo-se e coordenando-se aos gostos das balas. Assim aquela rua para ele ainda não tinha estória. Tinha apenas coisas que podiam se resolver mal separáveis uns dos outros — cheiros, sons, gostos que ele evocava e encontrava. A esses ele já ia superpor camadas e camadas de imagens que sucediam em torno dele como casas pessoas objetos.
O primeiro prédio à esquerda era o do novo Clube do Desterro — térreo ocupado pela agência local do Bank of York & South Brazil, dirigido por um inglesão fisionomia a um tempo triste, capaz e rubicunda a que os olhos sonolentos de sempre entre-duas-águas davam um ar extremamente distinto e distante. Usava cabelos à escovinha, face sempre rapada a fundo e ternos eternamente escuros. Era volumoso. Tinha nome adequado à sua cara apoplética — era Mr. J. K. K. MacCrimson Faced. Ele tinha introduzido no Desterro nova maneira de tomar uísque: copo grande para long-drink socado de gelo triturado grosso cujos intervalos eram cheios da bebida até à borda. Ele traçava o primeiro, rápido; o segundo, como o primeiro e do terceiro em diante, lentamente. De acordo com o aforismo dos bons tomadores do scotch — Primus subitus; secundus sicut primus; tertius, paulatinum. Todas as tardes ele mantinha esse ritmo no Ao Papa-Goiabas — o bar elegante da rua Schimmelfeld. Invariavelmente com ele e seguindo seu ritmo, o jovem advogado Ludovino Pareto e o alto funcionário bancário Cornélio Hansen, cujas caras mimetizavam a do anglo, logo ao primus. O banco estrangeiro e essas três pessoas incorporar-se-iam para sempre à rua abstrata do Egon. Do mesmo jeito que figuras que ele ia descobrindo, componentes de outras instituições daquele todo urbano. Vinha logo a casa de artigos masculinos propriedade dos sobrinhos do Poeta da Cidade. Nos seus altos, que se ganhavam por entrada numerada 808, o Egon teria seu primeiro consultório. Perto ficava o do grave dr. Amarílio Gonzaga que entrara e se fixara na memória do seu colega por duas razões. A primeira, sua tenacidade já que tendo chegado ao Desterro desconhecido, tentara por todos os meios entrar no Serviço de Obstetrícia e depois no de Ginecologia da Santa Casa. Repelido pela Fortaleza, não se dera por vencido e acabara criando a Maternidade Pública que cresceu, prosperou e que prolongaria seu nome no Tempo. Ele era simpático e o Egon teria se tornado seu amigo não fosse sua reserva impeditiva de qualquer convivência. O tempo e o espaço os separaram mas sua figura tornar-se-ia avivada na memória do Egon devido a sua semelhança com o reumatologista português Manuel de Assunção Teixeira. Quando o Egon fez-se amigo e compadre deste, por estranho fenômeno de memória tornada afetiva, arrancou do seu esquecimento o Amarílio e tornou-se íntimo do seu fantasma já que o era de seu sósia. Para mais adiante desse consultório era a casa duns armeiros representantes, no Desterro, dos comerciantes Grippi, de Juiz de Fora. A loja chamava a atenção porque era o ponto de encontro obrigatório, à tarde, dos cavalheiros e moços ricos, desocupados e elegantes da aristocracia local que vinham ali ver as novidades em arma, cada qual se munindo da mais precisa no que era logo seguido pelos outros pois uma rivalidade os assanhava cada um querendo ter os melhores mateiros, os melhores fuzis, as melhores matilhas da cidade. E assim com os uniformes, facas, botas, bolsas de caça. Todas as tardes lá aparecia também o dr. Eutanásio Boamorte sempre tratado dalto e ironicamente pelos devotos mais ricos de santo Humberto que viam de maus olhos aquele pobrete-alegrete querer se dar a uma diversão e a um esporte que ali, no Desterro, marcavam nível a um tempo social e de conta bancária. À medida que foi conhecendo a rua Schimmelfeld o Egon foi evitando aquela calçada para não ter de entrar em contato com o gênero que a ele aborrecia, dos caçadores. Achava todos uns agressivos, assassinos em potencial e via-os sempre ensopados de sangue. Ele que nunca matara senão os bichos da aula de fisiologia, não podia conceber semelhante diversão. Essas convicções levavam-no a examinar-se a si mesmo: era verdade que jamais mataria animais mais altos que cães, gatos, cobaias, ratos, camundongos, sapos, rãs mas, pecador, já desejara ardentemente abater colegas e professores que achara odiosos. E esse pensamento logo que configurado era uma autoacusação desagradável. Um cheiro bom de couro novo dominava toda a rua quando se passava diante duma casa de malhas, arreios, selas, artigos para seleiros e sapateiros. Uma alfaiataria cavalina — pensou o Egon. E com seu endereço fornecido ao de cavalheiro precisando fazer terno, ele faria ulteriormente pilhéria que nunca ser-lhe-ia perdoada na rua Schimmelfeld e em todo o Desterro. Mais cheiro bom de couros finos, sabonetes, fumos e imbrocations diante da Casa Waggon sempre cheia de gente alegre, simpática, moça e risonha. Era uma espécie de Casa Crashley onde se compravam artigos de toalete masculina e material esportivo. Desde pela manhã até à noite era um entra e sai que não parava de alunos do O’Grady, atletas do Esporte Clube Turner que se recrutavam principalmente no meio dos descendentes dos alemães vindos para o Desterro, de moços do comércio e dos bancos da cidade. Vizinha era a Foto Trones, ateliê fotográfico do moço Trones d’Oragos, autor de fotografias artísticas que enriquecem o belo Álbum do Desterro que ele publicaria em 1929. O Egon tornou-se seu amigo e foi um dos subscritores desse livrinho — hoje raridade bibliográfica — indispensável a quem queira ver o que foi a cidade na terceira década do século. Mais cheiros — agora o enjoativo e envolvente de remédios manipulados no laboratório da Farmácia Lessa. Depois as portas muito santas duma casa de artigos religiosos — a única que era frequentada pelas senhoras da alta. Ali compravam imagens sacras cada qual querendo vencer a outra pelo tamanho. Já não eram mais santos de peanha nem de oratória. Eram os enormes, de altar-mor de catedral — tamanho natural, postos no chão das salas de visitas, de jantar, quartos — como o Egon tinha visto na casa de sua tia Felisberta. Naquele ano, santa Teresinha do Menino Jesus estava no rigor da moda. Depois eram os perfumes que saíam abafados das portas cerradas dum salão de cabeleireiros femininos onde vinham se tingir e pentear as senhoras sem preconceito do Desterro. As outras, as mais virtuosas ali não punham os pés, para não pecarem por vaidade e para não sentarem nas mesmas cadeiras poluídas em horário especial (de nove às onze da noite) pelas bundas das pensionistas dos dois puteiros mais caros da cidade: o da Valparaíso e o da Malvina Lícia. Mas já mudavam os olores e vinha, primeiro, o consistente dos molhados de casa importadora de salsicharias e cervejas — depois, o acolhedor e penetrante dos pães, roscas, bolachas, biscoitos de uma grande panificação luso-brasileira. Passos adiante não eram mais perfumes mas sons musicais saídos dos harmônios, pianos e pianolas (que saudade! quem sabe? hoje, o que é pianola) e dum elemento de atração da casa especializada em instrumentos e coisas da música: gramofones e seus discos. Assim podemos pôr este estabelecimento como o precursor, no Desterro, das futuras casas de som, estas, das discotecas — por onde o pecado entraria ostensivamente na cidade. De degrau em degrau ali se assistiria muito depois aos bailes de enxutos como aquele cuja notícia o Egon leria bestificado 49 anos depois, no número 836 de Fatos e Fotos/Gente, saído a 29 de agosto de 1977. Um baile gay! um desfile gay! naquela Cidade Santa — naquela Roma, naquela Jerusalém, Meca, Lhasa de Minas… Agora o cheiro gostoso e aconchegante dos das costuras — lós, lãs, gorgorões, damascos, nobrezas, sanguinhos, manustérgios, rendas, fios, galões de fios de todas as larguras — ditos de fio-entre-finos de palheta — e era A Casa da Pechincheza fundada em 1882, onde as senhoras se sortiam do material com que costuravam as sedas e os linhos dos altares assim como as linhas, fitas, nobrezas, foulards, veludos, tafetás, merinós, belbutinas, metins — todas as fazendas — para seus vestidos decorosos e costumes de casimira. O Egon tinha remota ideia de ter ido ali com o pai querendo se fornecer e aos filhos de manguitos. Dá-se esse nome em Minas a um agasalho masculino que se usa por baixo das camisas. São de flanela forrada de seda, cobrem peito e dorso. Abotoam-se num ombro e lembram a forma de pequenas casulas. Alegria! das louças da Casa Reuilmont lustrosando nas vitrines suas todas as cores. Uma instituição: a filial da Alfaiataria Virgílio Bisaggio, cuja matriz ficava na vizinha e rival cidade de Juiz de Fora. Como nesta, o Politeama do Desterro tinha escritos em cartaz, ao lado do pano de projeções, os versinhos que se viam também na sala de diversões do Politeama de Juiz de Fora.
Rapaz moderno
se tens idílio
de amor eterno,
vai ao Virgílio
fazer um terno.
Um terno chique
da cor de uva
e que te fique
como uma luva.
Pouco depois da alfaiataria era um sobrado de portas baixas fechadas, exceto uma que dava num corredor muito limpo donde subia escada de madeira bem tratada e com seu corrimão sustentado por hastes torneadas e envernizadas de amarelo-claro. Era a entrada do Centro de Saúde. O Egon subiu.
A cada momento cruzávamos esses Fariseus, ressoantes e vazios como
tambores, que vêm do Templo assoalhar a sua piedade — uns com as
costas vergadas, esmagadas pela vastidão do pecado humano; outros
tropeçando e apalpando o ar, d’olhos fechados para não ver as formas
impuras das mulheres; alguns mascarados de cinza, gemendo, com as
mãos apertadas sobre o estômago — em testemunho dos seus duros jejuns.
eça de queirós, A relíquia
Ao chegar em cima, deu de cara com um homem de avental, carregando sob um braço suporte metálico e debaixo do outro um irrigador de vidro grande. Parou um instante olhando o moço que subia e o Egon reparou na fisionomia boa do que estava carreando os utensílios médicos duma sala para a outra. Era um cidadão não muito alto mas esticado de corpo e de pescoço. Este era forte e sustentava cabeça redonda, duma calvície luzidia, face de sobrancelhas levantadas em mímica de satisfação, óculos aro grosso de tartaruga, vidros espessos de míope que tornavam seu olhar a um tempo cintilante e pouco perceptível, nariz pequeno e bem-feito, bigodes fartos aparados curto e a boca aberta no melhor sorriso que mostrava dentes claros e muito bonitos. Vestia avental amarrotado sobre a pele, bolsos cheios de tubos de ensaio, lapiseiras, canetas-tinteiro. Suava apesar da temperatura daquela manhã nublada. Falou numa voz franca, bem timbrada e agradável.
— Uqué? que o senhor deseja.
— Queria falar ao chefe do Distrito Sanitário, dr. João Nogueira Pedroso Lucas.
— Sou eu mesmo, faz favor de entrar praqui — foi dito num sorriso que se acentuava. Largou o que carregava, entrou numa salinha onde havia mesa, giratória, cadeiras e um grupo de couro.
— Vamos sentar. O senhor…?
— Me chamo José Egon Barros da Cunha e vim me apresentar ao Centro de Saúde. Sou o novo médico designado pra cá e espero suas ordens.
— Ora! até que enfim resolveram mandar o colega. Eu já tinha reclamado duas vezes e o dr. Argus sempre trastejando, escrevendo que ainda havia possibilidades de sua ida para Teófilo Ottoni, que ia ver…
— Pois pelo visto parece que ele viu e o dr. Aires afinal me deu ordem de embarque. Aqui estou, dr. Lucas.
— Dr. Barros da Cunha, o senhor…
— Faz favor de tirar o doutor e chamar-me simplesmente Egon — como todos fazem…
— Ótimo, Egon. Eu ia dizendo que você é o médico mais graduado, depois de mim, do Distrito Sanitário. Sendo assim você é, automaticamente, o chefe do Centro de Saúde. Fica desde já investido no cargo — e soltou logo uma de suas gargalhadas contagiantes. O Egon riu muito também e um servente entrou com a bandeja do café.
— Você tem sob suas ordens os médicos do Centro. São por enquanto três. Um atende os casos clínicos, mais os de pequena cirurgia, a venereologia. É o Dimas Alvim, moço muito inteligente e preparado. É casado com uma colega, a dra. Jarina, também funcionária e que faz a nossa ginecologia, nossa obstetrícia. Parteira de mão-cheia, escola do Fernando. Olhos e ouvidos ficaram com o Audiovisto Munhoz, um elegante, um sportsman — mas muito competente. Para você vai ficar tudo quanto é doença infecciosa e epidêmica porque o chefe do Centro é por dever o seu epidemiologista. Assim ficarão sob sua responsabilidade os guardas sanitários e a brigada de mata-mosquitos que vamos criar e preparar porque há uns rumores de febre amarela — você sabia? — casos amiudando no interior e dois verificados no Rio — estes, fora de dúvida. E o mais, fazer como você me viu fazer — todo serviço, até arrumação de salas, abertura de caixotes. E vamos deixar o resto para depois do almoço. Eu estou tinindo que trabalhei a manhã inteira. Vá comer e volte pelas doze e meia, uma hora, para o turno da tarde.
Sem saber por quê, o Egon começou a rir com o dr. Lucas. Gargalharam, despediram-se — até logo! — até logo! — e o moço despencou escada abaixo inteiramente conquistado pela alegria, naturalidade e o nada estudado do seu chefe. Que sujeito encantador! ia pensando rua Schimmelfeld acima. E que atividade, que franqueza. Nenhuma titica de galinha. E aquela do Argus a retardá-lo… a ver se o mandava para o norte penar na Nova Filadélfia, via Bahia… Estava feliz, achando que ia se dar bem com o chefe e naquele Centro de Saúde de sua terra. Olhou com simpatia os passantes. Tinha vontade de cumprimentá-los, parar com eles, dar sua prosinha como via outros fazendo. Voltou para sua pensão seguindo não a balda de reachar lugares mas a de observar as pessoas com quem cruzava. Era a gente comum na rua à hora do almoço. Havia grupos de colegiais, de estudantes, de rapazes geralmente muito bem-vestidos — trajados mesmo com apuros de detalhe que os distinguiam logo. Numerosos eclesiásticos. Bancários. O Egon estranhou a falta de elementos do sexo feminino. Era uma multidão masculina. Chamou-lhe também a atenção o fato de não ver pela rua Schimmelfeld nenhum elemento verdadeiramente popular — como se andar naquele logradouro fosse prerrogativa de gente rica e bem situada socialmente. Como som e cor, aquela pequena multidão repetia o de todos os ajuntamentos. Mas o curioso era um certo número de senhores vestidos de azul-marinho, cinza escuro e preto. Usavam chapéu tipo Gellot, aba armada de debrum. Todos de colete completando o terno. Na lapela, a mesma insígnia de confraria — ouro, esmalte roxo e vermelho. Gravatas negras. Da mesma tinta, os calçados chamando a atenção pela qualidade de sua fôrma, seus vernizes, suas pelicas. Casa Cadete, Rio. Guarda-chuva, fizesse tempo ameaçador ou o sol que começara a apontar dum desbotado de gema de ovo de galinha que não come milho. Óculos escuros. Deslizavam com passadas sutis e ar compungido como se pisassem a nave da Matriz. Eram altos, baixos, gordos, magros — mas tinham impressionante ar de família — cada um — um pouco de todos ou vice-versa. Eram de expressão austera, triste e contida. Havia belos e feios. Quem seria? aquele comprido e grave, com aquele rosto de Sexta-feira da Paixão. Aquele outro? com feição de repugnância e desprezo. Um terceiro? esse gordo, cara de bunda aborrecida. Um? que parecia um anão grosso, mãozinha amarela, papuda, piedosamente espalmada no peito, tão curtinha que parecia que seus dedos tinham sido desarticulados à altura da junta falange-falanginha. Esse? mínimo que de longe parecia criança vestida de hominho e de perto velhinho trajado de rapaz. Quase todos um traço especial: narizes dinásticos, queixadas borguinhonas, prognatismos habsburguinos, bochechas pendentes duma tristeza filipina. Atentando neles, o Egon começou a lembrar de reproduções de pintura. Era isto. Aqueles homens fúnebres lembravam os Velázquez, Dürer, Holbein e Goya nas telas representando os reis, rainhas, príncipes das raças de Borgonha, Habsburgo, Bourbons de França, Borbones d’Espanha e Nápoles-Duas-Sicílias. Aquele ar de família vinha do fato de todos se aparentarem e se entrecruzarem há cerca de dois séculos naquela beira de Caminho Novo. Eram os representantes dos Trancosos, Rosanos, Taveiras, Fortes, Masculiflórios, Pedreiras, Ruffos, Romarizes. Eram os descendentes dos potentados que lhes tinham transmitido o direito de passar a cidade na moenda e beber-lhe a calda dourada. Eram os beneméritos, os “homens-bons”. Aos poucos eles seriam nomeados e apontados à admiração do Egon por sua virtude, inclitude, bondade, caridade, santidade. Quando isso aconteceu, ele ouvia e ia concordando mas o diabo é que sua mente rebelde era como a daquele abade do Crime do padre Amaro que, quando lhe cheirava prodígio, suspeitava logo escândalo. Ele, Egon, fazia parte deste grupo de duvidadores que quando veem santarrão, homem perfeito, varão de Plutarco, catolicão e comungão — perguntam de si para si mesmos pelo defeito escondido, pelo crime perfeito perpetrado e pelo cadáver no armário. Desconfiava e começava a resistir dentro, porque implicava com santos. Gostava de gente como ele, dos lançados entre o bem e o mal — humanamente, obrigatoriamente, compulsoriamente capazes das alternâncias da alma. Horrores e ações sublimes — lá o tinha dito o poeta. Mas o que mais o deixou varado de assombro foi ver como eles passavam dentro dum abre-alas, chapeladas profundas, curvaturas de espinha, expressões adorabundas. Ave! Eme Lobo! Jota Cordeiro te saúda! Seu modo de responder variava. Uns ricos-homens ao serem cortejados mais se empinavam, levantavam a cabeça e respondiam tirando os chapéus trazendo-os até ao nível do nariz, vendando-se com a aba — como a não querer ver nem sentir, o verme salvante. Outros demoravam um pouco a resposta, faziam primeiro um ar de espanto e ao condescenderem retribuir — já estavam olhando para lá do cumprimentão-pobretão. Agora — uns aos outros eles se cortejavam com seriedade, respeito, nível e decoro. Lé com lé, cré com cré.
Depois do almoço o médico voltou ao Centro de Saúde. Lá conheceu seus companheiros de trabalho. Gostou dos três. Do Dimas Alvim com sua cabeleira branca em cara de moço. De sua mulher, a dra. Jarina, muito bonita, muito elegante. Do Audiovisto Munhoz com seus bons modos e sorriso amável. Mas o que o encantou, ao conhecer os guardas sanitários, foi ser apresentado ao chefe deles — seu Onésime Cresylol. Esse francês com nome de desinfetante fora amigo de seu pai e mesmo trabalhara na sua botica. Ele caiu nos braços do Egon que tinha ímpetos de pedir àquele homem venerável desculpas de ter de chefiá-lo. Falava com forte sotaque, nunca perdido nos seus anos e anos de Desterro.
— Que satisfaçon, Gonzigne, trrabalhar com você depois de ter trrabalhado com seu pai. Carreguei tant’você no col’. Ainda tenho seu retrrat’ vestid’ de mat’mosquite.
O Egon estava deleitado pelos modos do Cresylol. Pelo jeitão decidido daquele velho gaulês de olhos moços e rasgados, bigode grisalho em escova, dentes tingidos do fumo e uma cabeleira dura, de neve, guarnecendo a cara cor de fiambre. Deu naturalmente o “você” ao superior hierárquico por amizade velha e o Egon achou natural continuar a chamá-lo como ouvia sua mãe fazer. Seu Cresylol — o senhor.
Todos os dias o Egon passava suas quatro vezes pelas calçadas dos Pareto, nas suas idas e vindas para o trabalho da manhã e o da tarde, no Centro de Saúde. A casa dos tios ora estava fechada, ora aberta, janelas vazias ou, às vezes, a figura do Pareto tomando alturas, a da d. Felisberta ou da Fidélia se inteirando do movimento da avenida Silva Paranhos. Com a prima e a tia ele parava o instante dum bom-dia, dum como vai? dia lindo, heim? então? quais são as novas? tudo velho… Com o tio torto era só bom-dia pra lá ou boa-tarde pra cá. O moço tocava a aba do chapéu e o velhote lá de cima mexia imperceptivelmente a cabeça. O Egon tinha resolvido ficar naquela primeira visita e não voltar ou pelo menos não voltar tão cedo à casa dos parentes. Não gostara do ambiente. Reassumira pelo dono da casa sua mesma idiossincrasia de menino. Por sua mulher, uma imperceptível implicância pelo que adivinhava de sua pouca afetividade, de seu egoísmo cristalino — mas afogava esse sentimento dentro do desconforto, da pena que lhe causava o destino ingrato daquela tia — abafando sua vida ao lado dum homem odioso e detestado. Pela bela prima, simpatia e curiosidade. Naquele dia esta é que o fez parar, chamando-o para baixo duma janela em que estava debruçada e que dava para a rua do Rei. Ela gritou-o pelo diminutivo que só lhe davam aqueles parentes — diminutivo incongruente porque lhe vinha de tios e primos para quem era indiferente.
— Ei! Gonzinho. Tava mesmo aqui de alcateia, esperando você passar. Pra convidar você pra vir jantar amanhã. Aniversário de casamento de papai e mamãe. Vem a família toda, a meninada. A Alódia e o Balbino. A Carminda e parece até que o Ezequiel! O jantar é às cinco. Vem às quatro e meia quistá bom. Agora, Gonzinho, pelo amor de Deus não se aborreça, mas não venha direto do Centro que a mamãe morre de medo de micróbio de roupa de médico. Vai até em casa pra lavar, mudar… Você vem?
— Venho, prima. Venho limpo, sem pulga nem carrapato e banho de creolina tomado. Até que enfim chegou o dia deu rever as primas, o Balbino e conhecer o Ezequiel. Você tá linda… Até amanhã.
— Até amanhã! Você vai adorar o Ezequiel. Ele está um orador… Você nem imagina… Um suprassumo… Ficou consagrado desde o dia da chegada do Rui Barbosa, na campanha contra o Epitácio e depois, quando recebeu o senhor bispo nas festas de inauguração da nossa diocese. Verdadeiro portento, a última palavra… Até amanhã.
No dia seguinte, o Egon apresentou-se em ponto, na casa do Nariganga. Fora rapidamente à sua pensão, como a prima pedira, banhara-se, deixara propositadamente os cabelos escorrendo água, perfumara-se com água-de-colônia e mesmo se esfregara um pouco com óleo gomenolado para o cheiro de remédio alertar as narinas da tia. Assim anadiomênico e ainda pingando é que a cumprimentou nas suas escadas. Ela pediu que ele entrasse para o gabinete do pai. Ia dar uma olhada dentro e voltava já. O Colatino lá estava resplandecente, de prosa com um amigo. Falou com o tio e este procedeu a uma meia apresentação em que não nomeou o sobrinho torto.
— Não sei se você já conhece. Meu amigo e médico, o deputado Epaminondas Alecrim…
— Como não? Conheço muito de nome o ilustre parlamentar e é um gosto para mim, cumprimentá-lo pessoalmente. O senhor permita que eu me nomeie. Seu criado José Egon Barros da Cunha. Por outra — seu discípulo porque sou médico formado há uns poucos meses.
O Alecrim concedeu em ter também muito prazer em encontrar o colega. Disse, acentuando a palavra, para, modesto, afastar de si a mestrança que lhe conferira o mais moço. Era um homem nem gordo nem magro, socado de corpo, mãos sardentas encobertas dum pelo cor de cobre, cabelos, sobrancelhas e bigodaços também muito ruços, olhos dum verde deslavado, nariz bonito e toda a cara duma vermelhidão de apoplexia. Exprimia-se devagar, muito compassado, arrumando as palavras com cuidado — ao jeito de quem coloca objetos com ordem, numa prateleira. Falava, fazia como se recuasse para ver o efeito e depois de pequena pausa retomava suas sentenças simétricas e caprichadas. Não ria nunca. Talvez sorrisse, possível que fosse sorriso esboçado um jeito que tinha de apertar os olhos, enrugando os pés de galinha. Usava camisa de peito duro, colarinho de bunda-virada, plastron, fraque e calça listrada. Botinas de político: cano de pelica, guarnição e bico de verniz. O último, ligeiramente quadrado, na forma de um rostro de pato. Era deputado à “bitolinha” e bernardista ferrenho.
— Mas como eu ia lhe dizendo, meu caro dr. Pareto, o presidente Antônio Carlos está errando muito, com sua mania de cortejar a popularidade…
O Nariganga deu olhar rápido para o lado do sobrinho torto e refestelou-se para ouvir diante deste carlista de última hora o amigo Alecrim demolir o presidente de Minas.
— …como se ninguém estivesse atento a suas manobras. Elas são percebidas na Viçosa e ele está debaixo da mira do nosso grande chefe. Repercutiram pessimamente as promessas que ele anda fazendo de voto secreto, mormente agora, tendo em vista as próximas eleições em Belo Horizonte e os compromissos que a Comissão Executiva já tem com o dr. Cristiano Machado. Sim, senhor! voto secreto. O senhor não leu? a entrevista dada ao Correio da Manhã. Pois voto secreto. E essa universidade? inteiramente ridícula… Tudo demagogia, querendo se enfeitar para a presidência da República.
— Dessa creio que podemos nos considerar livres, meu caro dr. Alecrim. Seria demais e ele estaria querendo… comer mais do que pode seu estômago… para dar essa forma delicada à expressão mais crua usada pelos franceses…
— Sim? Expressão francesa? Não conheço. Deve ser fina como o espírito desse povo.
Aí o Egon não resistiu e resolveu jogar o tudo pelo tudo e dar o troco ao Nariganga. E soltou a enormidade.
— É mesmo muito fina e sobretudo muito boa para se usar em família, dr. Alecrim. O tio Pareto refere-se à maneira como os franceses ridicularizam os que têm ambições exageradas. Ele, por comedimento verbal, não quis usar a expressão. Os franceses dizem do que vê grande demais — qu’il pète plus haut que son cul — sim, senhor! que peida mais alto que o próprio cu.
Disse, levantou-se e foi no encalço da tia que se dirigia para a sala de visitas com a Fidélia. Mas teve o segundo de ver a cor que injetara a cara do Pareto e lhe incendiara o vasto naso, ao tempo em que ele fazia bater as abotoaduras dos punhos com uma sacudidela indignada. Ria por dentro. Encaixem mais esta, seus cretinos! A tia sentou-se no lugar habitual do sofá, o moço tomou a mesma cadeira da sua primeira visita, a Fidélia foi olhar à janela — quando a primeira farejou o cheiro do óleo gomenolado com que se untara o Egon. Alarmou-se logo.
— Gonzinho! você tá resfriado. E os meninos vão chegar daqui a pouco. Nossa Senhora! Fidélia…
— Resfriado nada, tia Felisberta…!
— Mas tou sentindo cheiro de óleo.
— …gomenolado, tia Felisberta. Eu abuso dele. Fricciono o peito e ponho no lenço pra cheirar. Olh’aqui… É muito bom como preventivo. Acostumei com isso e acabei usando sempre misturado com água-de-colônia. E a tia sabe? que des’que adotei esse sistema nunca mais tive resfriado. Vale a pena.
— Graças a Deus! Que susto você me deu. Mas cumé-cocê faz?
— Muito simples, tia Felisberta. Ponho assim coisa duma colherinha de café da essência de gomenol para cada cem a cento e cinquenta gramas de água-de-colônia. Isto em termos de medicina doméstica. Porque há mais e melhor. Sim, senhora! muito melhor. Ah! Mas para você que pode, tia, que tem o “pataco” como dizia o alemão seu pai — que Deus tenha! — devia é mandar buscar de Paris tudo, tudo, sobre o assunto — numa casa especializada chamada Le Gomenol. Para resfriado comum ou bravo eles têm o Gomenolixir, o Rhinogomenol, ou gomenol para instilação com’ocê faz. Têm inalação e até pasta pra esfregar os peitos, as costas. E aqui muito entre nós (e o Egon baixou a voz até aos registros dum sussurro de confessionário), na idade do tio Pareto — que tá chegando na hora de próstata, dos seus netos ficando rapazinhos e correndo risco de doença afetiva — você tem motivos de sobra para fazer uma reserva para as vias urinárias com os Glutinules preparados com esse santo óleo e ele mesmo, puríssimo, a vinte ou trinta e três por cento. Tem água gomenolada, sabão e unguento de gomenol…
— Que maravilha! Gonzinho…
— Você quer? saber, tia. Tem um médico francês, o dr. Lyotard, de Nice, que dizque — nenhum’outr’essência reúne tanta propriedade curativa…
— Que beleza, meu Deus! Que coisa cotuba, Gonzinho!
— Para tudo. Para operações, para partos: é o que é!
— Você tem? o endereço, Gonzinho.
— De cor, tia Felisberta: Le Gomenol, rue Ambroise Thomas 17, Paris, Neuvième. E eles mandam pra quem encomenda muito, de brinde, L’Imitation de Jésus-Christ num livro contendo no fim o formulário de todas as indicações e jeitos de usar o gomenol.
O jovem médico, descaradamente, resolvera gozar a turma. Já eram duas aquela tarde. Uma no Nariganga e agora, outra, na sua mulher. Só mesmo assim é que era possível. A tia foi pegar o caderninho para tomar nota de tudo e o Egon acercou-se da janela onde estava a Fidélia, a tempo de ver chegar a prima Alódia, o marido, a meninada. Foram juntos receber o bando. Quando sentaram de novo na sala, a Alódia logo se apossou do parente recém-chegado para dizer-lhe que adorava sua gente, que sua mãe fora a sua tia idolatrada, que nunca se consolara da mudança deles do Desterro, que graças a Deus agora ele voltara a sua terra. Isso sim! Ele ia ver o que era uma cidade.
— Melhor que Belo Horizonte, Gonzinho. Tinha sido um erro porem fora o dinheirão que gastaram para construir capital no meio dum sertão seco, deixando de lado o Desterro com a riqueza de águas que tinha. Aqui é que devia ter sido a cidade escolhida. Mas não! tinham ficado de lado. Falta de gente para proteger contra as manobras do seu Augusto de Lima, do seu Afonso Pena, do seu Bias Fortes e de todos os outros inimigos do Desterro. Esta sim, era a cidade mais culta e progressista da Mata, do estado. E industriosa — a Halifax mineira. E pertinho do Rio de Janeiro — seu verdadeiro subúrbio. Eu adoro minha terra, por isso tenho horror a Belo Horizonte. Dizem que aquilo lá é só poeira, escorpião, papo, opilação e morfético pra todo lado. Agora o primo ia ver que cidade de homens inteligentes. E que cidade religiosa. Falar nisto você precisa entrar para a Irmandade dos Servos Tementes de Jesus Rei. O Balbino era dela. E eu ainda hei de dar com papai lá dentro. Você não imagina a beleza da opa preta, aqueles senhores, rapazes e meninos metidos cada um na sua e andando devagar nas procissões, tocheiro na mão. Ah! eu e o Balbino somos muito religiosos! Graças a Deus e a santa Teresinha do Menino Jesus. Você não pode nem imaginar o que eu adoro essa santinha. Fiz parte do grupo de senhoras que angariou dinheiro para trocar sua imagem e doá-la à Matriz. Mas agora minha santinha vai ter paciência que eu vou ter de largar dela um pouco. Quero me dedicar de corpo e alma à última moda que é santa Joana d’Arc — isso até sua devoção pegar bem pegada. Depois, então…
A Alódia continuou a falar sem seguir no caminho reto e pegando cada atalho das associações. Fuga de ideias — pensou o Egon. E considerou a prima que ele deixara recém-casada quando sua gente saíra do Desterro e que agora estava mostrando seus primeiros fios brancos. Realmente estava no tempo pois ela devia andar beirando seus quarenta. Depois, muito filho, muito trabalho… Nada bonita, considerava o moço. Muito parecida com o pai. Alta, seca, espigada, muito branca, olhos miúdos. Mas ela se fizera o gênero distinto. Tinha realmente porte senhoril, pouco se maquilava, vestia-se com sobriedade e na rua não ria nunca. Seu marido era pernambucano, Cavalcan — T — I — ti do Recife, filho de uma sra. Alcântara, dos Alcântara do Engenho do Cororó. De nome todo era Balbino Alcântara Cavalcanti. Na família, Totó. Aos costumes, cirurgião dentista e professor da Escola Odontológica do Instituto O’Grady. Era homem de traços finos e bonitos mas duma imobilidade de máscara de porcelana. Louraçudo, vermelhoso, usava uns longos bigodes sempre frisados. Cor de ouro. Tudo isto somado aos olhos claros faziam dele coisa muito parecida com as fotografias de Boni de Castellane. E o curioso é que sua mulher tinha vagas analogias com Anna Gould. O Egon observava-o também e descobria no seu perfil, no seu jeito, conforme a posição, aspectos ora felinos, ora de ave — como se ele fosse um desses seres compósitos da mitologia, metade homem, metade leopardo ou metade águia. Era isto mesmo, pensava. É esta a razão dele ter sido apelidado “Bicho Homem”. O médico não sabia a origem do apelido — mas era um verdadeiro rasgo de gênio, como só os tinha sua tia materna Jandira, que todos chamavam Jajá.
Então chegou Carminda e foi como um surgimento. Ela não entrou, apareceu, toucada de cor de chama viva. Fazia dezesseis anos que o Egon não a via e ela imediatamente retomou o lugar que ocupava na sua imaginação, ao jeito de moldagem voltando ao molde. Ele não errava quando em menino a achava a coisa mais linda em que já pusera os olhos. Só que a mocinha de cabelos daquele castanho vermelhado de nerprum, substituíra-os luminosamente pelas refulgências dum tosão de ouro. Bestificado, o Egon analisava aquele instante prodigioso da criação natural e não podia atinar no que ela possuía diferente de todas as outras pessoas. De repente descobriu em cheio. Era o arremate luxuoso de cada traço se comprazendo na complexidade da própria terminação e nela demorando. Uma palavra reboou dentro dele — barroca! isto mesmo: era uma santa barroca, finamente traçada e cinzelada, lavor a um tempo de Athayde e Antônio Francisco Lisboa — despencado do teto ou do altar de igreja mineira. Um’imagem barroca! Fascinado por aquela obra-prima de prima o Egon detalhava seus traços como crítico de arte ou amador esclarecido estudam os detalhes duma pintura, melhor, a variedade de planos duma escultura. Nada na fisionomia da Carminda era feito ao acaso. Cada saliência, cada reentrância tinha uma intenção, assinalava um propósito. A pálpebra superior, na comissura externa superpunha-se à inferior que parecia sumir no abrigo que lhe fazia a outra e vinha daí a expressão infinita do seu olhar. Já na comissura interna, as duas se juntavam por igual, fazendo uma saliência e um biquinho de ânfora — sugerindo a passagem das lágrimas que nela pareciam cintilar sempre presentes. Cada orelha era um prodígio de resolução anatômica onde todo detalhe era deliberado — concha, pavilhão, hélix, antélix, trágus, antitrágus, lóbulo — riscados e salientados com luxo e vagar caprichados. Eram reduções às proporções de flor e pétala, dos movimentos circulares e helicoidais gigantescos de um frontão de igreja churrigueresca. Assim o nariz — moldado numa geometria inevitável como as pirâmides e os cones mais certos. O desenhado dos lábios tornava-os independentes da boca e eles viviam para a própria beleza de seu relevo. A expressão fisionômica era um assombro e os olhos luziam como os que Antônio Francisco engastou no semblante transfigurado do seu Cristo resplandecente e latejante da Ceia, na Capela i dos Passos de Congonhas do Campo. Foi logo cercada pela família.
— Então? o Quielzinho?
— Diz que vem. Arranquei dele a promessa de vir. Garantiu de pedra e cal. Agora vam’esperar…
— Olh’aqui, Carminda! Adivinha quem é este.
— Tem nada que adivinhar porque ele não mudou nada. Como vai? Gonzinho.
O fato de saber que morara como lembrança, simples memória, dezesseis anos dentro daquele ser privilegiado inundou o Egon tal uma graça. Logo ele se adiantou.
— Muito bem obrigado, Carminda. Então? esses são seus meninos. Estou curiosíssimo de conhecer seu marido. A Fidélia já me disse que ele é o melhor orador do Desterro. Doido pra conhecê-lo.
O Egon notou que a chegada de Carminda deslocara para ela o eixo do interesse familiar e que ela passou a ser o centro das atenções das irmãs, do cunhado, da mãe, do pai. Os meninos estavam espalhados pela casa inteira, exceto os dois mocinhos mais velhos — da Alódia e da Carminda. O último chamou a atenção do Egon por qualquer coisa na fisionomia, que ele conhecia e reconhecia — apesar de nunca ter visto aquele primo. Analisa que analisa e de repente deu no vinte. Era o seu riso, um riso familiar que o Egon conhecia desde menino no belo rosto da Carmem Moretzsohn. Ali estava ele replicado. Eram extraordinárias aquela verificação e aquela semelhança que só podia vir, no menino, das dez gerações que iam dele ao guarda-mor Maximiano de Oliveira Leite e sua mulher d. Inácia Pires de Arruda — os quais eram nonavós da Moretzsohn Barbosa. Ela e aquele menino eram primos em 15o ou 16o grau e tinham ido buscar aquela expressão no século xvii — para restituí-la na sua duração de mais de duzentos anos. O Egon congratulou-se consigo mesmo pelos conhecimentos genealógicos que lhe permitiam degustar conscientemente um parentesco — como quem demora confeito na boca para prolongar o gosto. De repente a Fidélia da janela bradou como atingida por revelação.
— Gente! o Ezequiel.
Todos se precipitaram em direção à entrada, deixando na sala de visitas só os meninos e o Egon. Este viu à frente do grupo que voltava o legendário contraparente. Era um homem ainda moço, extremamente elegante, tratado e bem tratado da ponta das botinas ao nó impecável da gravata. Fino de corpo, boa altura, muito moreno. O elance de sua figura vinha da sua agilidade mas principalmente do pescoço forte, musculoso e muito longo que favorecia e dava graças ao porte orgulhoso da cabeça sempre levantada. Tinha cabelos dum negro especial, cheio de reflexos inesperados como os dum mar em noite de breu. Eram repartidos no meio e iam para o alto de onde às vezes caíam, muito lisos, dos lados da cabeça. Ele logo, com o pente dos dedos, ajeitava-os para cima. Sua testa era alta, ou tornada alta pelas entradas; o nariz bem-feito, a boca pequena, lábio superior proeminando de leve e de traçado acentuado por bigode curto e muito preto. Sobrancelhas levantadas no centro por contração da musculatura da testa — como se o causticasse sempre o fogo de altos pensamentos — ou talvez um infinito desdém a tudo e todos. Olhos semicerrados, abertos o bastante para perceberem tudo no interlocutor mas como a distanciá-lo e a pô-lo no seu devido lugar, na posição adequada para ser percebido. Como quem empunha uma lente e leva ao ponto focal o pequenino grão de areia que se quer detalhar. Em suma, figura de belo homem que se sabia assim e também dotado da noção plena das vantagens que tinha sobre os outros. Como os artistas acostumados a serem seguidos pelos jorros de iluminação do palco ele se habituara a estar sempre na vedette de que olhava o mundo e se mostrava ao mundo. Era dos privilegiados que só encontram em torno de si halo concordante, aplaudidor. Isto lhe dera uma segurança de centro, eixo, padrão — na família e na sociedade — e levava-o a menosprezar o que via de dessemelhante a seus índices. Defendia suas prerrogativas com todas as armas — principalmente a contundência de uma ironia que se lhe tornara permanente e com que ele pungia em todas as gradações — desde a picada de alfinete à zebrura sangrenta deixada pelas duras catanas. Era temido. Ao ser apresentado ao Egon não se desmanchara em palavras mas tivera gesto e sorriso de régia acolhida ao tempo que o inspecionava atentamente como quem procura plano de clivagem para enuclear um quisto. Com duas ou três frases que trocaram — ele e o médico — logo este o sincretizou de não poder mais separá-los — ao Joaquim Álvares de Castro Gomes, aquele brasileiro amante de Maria Eduarda, em Os Maias. Já o Balbino o acaparava sofregamente e foram os dois conversar num vão de janela. Mas o jantar estava servido e a tia Felisberta chamava todos para a mesa. Eram famosas a cozinha e a bonne chère do Pareto. Ele gostava de comer bem e beber do fino. Mas era uma mesa europeia, mais propriamente italiana, rica em massas afogadas em molhos radiantes e empapadas de manteiga e da pomada dos parmesões fundentes. E foi justamente por macarronada clássica que se começou o jantar. Fazia ainda dia claro. Logo de início, pequena escaramuça entre o Pareto e a mulher. Como esse se tivesse encarregado dos vinhos e abria uma botelha de Chianti perto da entrada do corredor de trás, onde havia uma pia e nela o Balbino lavando as mãos em grandes águas — a d. Felisberta queria que o Pareto jogasse fora a garrafa que acabara de abrir.
— Esse vinho não serve, Colatino. Está infeccionado porque quando você abriu a garrafa eu vi um pingo pulando da mão do Totó e embarafustando no gargalo. E mão de dentista é mais perigosa que de médico…
— Ora, Felisberta, deixe-se de nove-horas. Se você pensa que vou deixar de lado esse néctar por causa de suas miragens, tá muito enganada.
— Pois dessa garrafa ninguém bebe na mesa, senão vou pro quarto. Beba você se quiser. Alda! traz outra garrafa e você mesma abre ela, tomando todos os cuidados.
— Mais fica!
— É? bebê. Como se eu não soubesse que o que você quer é ficar com a garrafa inteira. Que lhe aproveite! Se cair doente não conte comigo.
Havia um silêncio constrangido. Mas passou. O Ezequiel, muito hábil, criou a distensão quando considerou que a tarde estava divina. As conversas recomeçaram e a barulhada dos meninos. A Alda trouxera a segunda garrafa desarrolhada assepticamente. O Pareto, dono da sua, atacou-a com copázio degustado tecnicamente. Servido, o Egon considerou que o macarrão estava uma verdadeira maravilha e começou a saborear seu prato, entrecortando as garfadas com goles de vinho que lhe suspendiam o coração. O Balbino, que se sentara ao pé do Ezequiel, mal comia e continuava sussurrando no pé do ouvido do concunhado. Devia ser assunto do conhecimento da d. Felisberta e da Alódia pois essas seguiam com interesse as respostas dadas pelo ricaço. No princípio só uma mímica de negativa, depois a de lavar as mãos, finalmente o ar de quem entrega os pontos e um assentimento dado mais alto que o resto da conversa.
— Tá muito bem, Balbino. Fico ciente de tudo e vou fazer o que me toca… Mas tem uma condição: o Subtílio Trancoso fora da combinação. Não vou com a carinha de santo desse petimetre de doutor — sempre querendo se meter em tudo quanto é bom negócio que aparece no Desterro…
— Nem se fala mais em Subtílio. Homem ao mar. Manda quem pode e suas ordens estão dadas… Agora, mudando de assunto — e a trasladação?
— Para muito breve. Estamos só esperando que os parentes do Rio marquem a data e eles não chegaram ainda a um acordo. Na certa vai predominar a opinião de Lohengrin Raposo. É o de mais respeito na descendência do Morsadela, homem de grandes posses, ministro já duas vezes, presidente de banco… É dele que o senhor bispo quer a opinião. É o que ouvi hoje no bispado, durante a reunião da comissão. Por sinal até que me obrigaram a ficar como orador por ocasião da cerimônia. Foram todos muito amáveis. Disseram que faziam questão. O senhor bispo repetiu várias vezes que não havia outro, que contava comigo. Tive de aceitar.
— E os restos?
— Desenterrados desde ontem e passados para a urna de mármore. Muito pouca coisa: um pedaço da caveira, as pás, uma canela…
— Nossa Senhora! — disse d. Felisberta. — Vamos mudar? de assunto. Inda mais agora que vai ser servido o frango ao molho pardo. Quem esbrugar seus ossos logo pensa nos do barão. Cruz! Credo!
O interesse do Egon acendeu-se. Ele ia ouvir a opinião daquela roda ultraconservadora e ajuizada sobre caso que apaixonava o Desterro. Tratava-se da ideia que surgira por ocasião do cinquentenário da morte de um dos beneméritos da cidade, de seus restos serem trasladados do Cemitério Municipal para a igrejinha de Nosso Senhor, atalaia da cidade, seu ponto mais alto e que protegia o município como farol de fé colocado sobre as escarpas do morro do Defensor. Ainda à tarde ele ouvira a respeito discussões apaixonadas entre os médicos do Centro de Saúde e agora a notícia de que uns caquinhos de ossos roídos pela terra já estavam a salvo na rica urna de mármore obtida por subscrição pública. Então a trasladação se fazia irrevogavelmente — conforme ele ouvira de seu colega, o elegante Audiovisto Munhoz, otorrinolaringologista, da alta sociedade local e trasladacionista da primeira hora. Sim, porque a ideia tinha adversários. Os descendentes de “fundadores” como Ariotônio Masculiflório, Saudosino Rodovalho Pedreira e Henrique Schimmelfeld achavam que aquela honra devia caber aos seus respectivos maiores e declararam-se logo antitrasladacionistas, enquanto os filhos e netos de Precursório Ramos e de João Pedreira Prisco tomavam o outro lado, aliados às vergônteas restantes do remoto Macário Gibão. Como a cidade fosse, nos seus profissionais liberais, industriais, comerciantes, bancários e trabalhadores manuais, na sua maioria, de dependentes ou vinculados empregaticiamente aos donos do município, este se dividira em dois partidos irreconciliáveis. No Clube do Desterro, já houvera escandalosas vias de fato entre pró e antitrasladacionistas e sucessos mais graves tinham acontecido no bordel da Valparaíso entre dois grupos que se tinham atacado a garrafadas. Mas graças à sábia influência dos reverendos padres do Ateneu Mercantil as coisas estavam se abrandando — sobretudo devido a uma sugestão partida do próprio senhor bispo. A sua excelência reverendíssima atribuía-se a lembrança que desanuviara o ambiente da cidade.
— Mas oh! senhores. Por que? tanta luta se são todos parentes uns dos outros e todos têm? nas veias o mesmo sangue… Traslademos os ossos de todos os fundadores e façamos da igrejinha de Nosso Senhor o Panteon do Desterro onde repousarão os ossos dos desterranos ilustres e de seus descendentes.
Essa ideia de um cemitério promoção social agradara a todos e afinal os ossos do benemérito inaugural iriam para o alto do morro. O Egon acompanhava o caso com interesse principalmente depois que fora instruído sobre a personagem do barão por amigo recente que se fizera na pessoa do professor Eulálio Manso Conchais. Era um mestre da Escola Normal que fora procurá-lo no Centro de Saúde, para pedir por um pobre doente. O Egon sentira-se atraído pelo nome e pela adequação deste à pessoa. Era realmente um homem de boas e belas falas exprimindo-se numa linguagem admirável. Impressionava pelo ar de bondade e doçura. E a linda palavra Conchais que lhe encerrava o sobrenome era cheia de associações harmoniosas — praias cheias de luz luar, de vieiras cintilantes e coloridas luzindo sobre areias, ao banho de ondas mansas e aos jorros do plenilúnio. Toda essa brandura e fulgor rimavam com espírito de fino humanista. Pois o Egon tinha atendido seu protegido e findo o tratamento mandara uma carta com detalhes do seu diagnóstico. Eulálio voltara ao Centro para agradecer e sem saber como tornaram-se companheiros do subir e descer da rua Schimmelfeld na passeata diária que a população masculina da cidade fazia à noite, esperando a hora de entrada do cinematógrafo. Uma identidade e uma simpatia começaram a uni-los. Logo que se esboçara a questão mudancista o Egon interpelara o professor sobre quem era? esse barão cujos ossos estavam dando tanta celeuma.
— É um tal de Anacleto Tiburtino Bocarro Xavier, filho do dono duma “venda” no Caminho Novo que ali se estabelecera nos albores do século xix. Era um portuga e casara na descendência do Macário Gibão. O Anacleto, seu filho, nascera pelos 1820 a 1830. Era bacharel por São Paulo e enriquecera comprando por tuta e meia terrenos aos herdeiros dos sesmeiros que os tinham nas proximidades do Caminho Novo. Quando nascera o agrupamento de casas que de futuro seria o Desterro, ele, o Schimmelfeld e o Saudosino Rodovalho eram donos de quase todas as terras. Viera a vila, depois a cidade e o homem tornara-se um nababo revendendo com ágio implacável o que comprara por nada ou ocupara. Viveu desse comércio na povoação nascente e de explorar escravos de ganho. Tinha fazendas sem fim e fornecia queijo, leite, carne aos habitantes. Já era uma personalidade quando o segundo imperador viera a Minas e o Anacleto fizera-se notar dando de presente dez escravas — por sinal que três com cria — para a princesa imperial alforriar. Logo na primeira leva de nobilitações ele fora feito barão da Morsadela. Claro que sem a Grandeza — nunca concedida a esses barões de alforria…
— Mas pelo visto — dissera o Egon — era um ganhador de dinheiro e não vejo no que o professor me conta motivos para que se considere o homem um benemérito do Desterro…
— Mas é considerado um dos numes da cidade. E com justiça — a levar em conta os padrões usados aqui para se erigir em beneméritos, justos e santos os tartufões ricos e de caridade ostensiva. O nosso barão era dono duns atoleiros perto do rio. Pois ofereceu-os à Câmara, de mão beijada para ali ser construída a cadeia. Atendida essa necessidade, o nosso filantropo livrou-se de uns barrancos perto da atual avenida Silva Paranhos dando-os para a construção do Hospital da Misericórdia do Desterro. O aterro do charco e a terraplenagem da buraqueira foram feitos por subscrição pública.
O Egon e o professor tinham chegado ao fim da rua Schimmelfeld. Foram andando pela praça deserta até perto da estação. Vivalma. Mesmo assim o Eulálio ainda abafou a voz para segredar no ouvido do jovem médico sua opinião final.
— Aí tem o senhor a estória desse benemérito. E aqui entre nós. Ele não estaria roubando nada de ninguém se o tivessem feito passar umas férias na cadeia que ele ajudou a dar à cidade.
— Estou bestificado, professor…
— Pois mais lhe contarei dos outros varões da história do Desterro. Fica para depois que já estamos atrasados para o início da fita de cinema.
L’essentiel n’est pas de faire quelque chose, mais
que l’on en parle!
pierre véry, Un grand patron
Quando levantaram da mesa as senhoras e os meninos foram para a sala de visitas. O Egon acompanhou os homens ao escritório do Pareto. Iam fumar longe da d. Felisberta — infensa à nicotina. O médico estava arredondando e amaciando o seu Jockey-Club oval e ainda não o levara à boca, quando viu chama acesa quase no seu nariz. Era o Ezequiel dando fogo, cortesia que lhe era habitual depois que a vira sendo feita pelo diplomata e vate Osório Dutra, numas férias em que ele viera com um grupo de Juiz de Fora caçar macuco no Desterro. Achara essa delicadeza coisa mais linda! encomendara logo um belo isqueiro de ouro e ninguém podia puxar cigarro ou charuto na sua proximidade sem que ele logo o sacasse do bolso e iscasse. E note-se que ele não era fumante. Só questão de alardear boa educação. O médico gozou aquela semostração mas não deixou de ficar cativo do agrado e ali mesmo disse ao contraparente da curiosidade que sempre tivera em conhecê-lo e que agora, que ia ficar no Desterro, tinha vontade de cultivar suas relações. Queria visitá-lo e desejava saber quando e a que horas isto seria mais conveniente. O Ezequiel imediatamente franzira a testa no seu jeito especial e depois de pensar algum tempo é que respondeu.
— Mas… digamos dentro de hoje a duas semanas. Venha de dia, duas, duas e meia que a esta hora mando deixar aberto o portão do palacete.
— Uai! que palacete? Vocês mudaram? Deixaram? a antiga casa da tia Felisberta.
— Não. A casa é a mesma, salvo umas adaptações que eu tive de mandar fazer para modernizar e dar conforto. Cocheiras logo depois viradas em garagem. Não há que errar. Mesmíssimo lugar.
O homem reassumira seu ar distante e de enfado. O Egon já se arrependia da ideia da visita — recebida daquele jeito, como um pedido de audiência. Mas o Balbino aproximou-se e reapossou-se do cunhado. Logo retomaram uma velha conversa sobre caçadas, tiro aos pombos, tiro aos pratos. Referiram-se com azedume à fazenda que o dr. João Pedreira Prisco Filho tinha arrendado no Mato Grosso e para onde convidava para caçadas à anta, ao veado e à onça — figurões da finança, da política e da ciência do Rio de Janeiro.
— Você precisava dar uma lição ao Prisco, alugando também uma reserva de caça, Ezequiel.
— Tou pensando nisto. Ele não perde por esperar.
Silenciaram os três. À falta de qualquer outro assunto o Ezequiel interpelou o primo da mulher.
— E você, caça?
— É coisa que nunca experimentei. Nem tenho vontade. Sou de natural avesso a tudo que é agressão.
Logo os caçadores sorriram superiormente e o Ezequiel como a querer mudar de assunto fez nova abertura.
— Então, decidiu mesmo ficar no Desterro, hem?
— Tenho vontade…
— Já foi? visitar o senhor bispo.
— Não. Não o conheço pessoalmente nem sou católico praticante e assim não me achei obrigado.
— É? como assim? Você vai me permitir uma opinião. No Desterro não há questão de alguém achar ou não achar que está obrigado a isto ou aquilo. A cidade é quem sabe a que cada um de nós está obrigado, digamos comprometido, forçado a fazer e a pensar. Até do que gostar. Aqui todos que querem um lugar ao sol têm de entrar para o Clube do Desterro — dancem ou não dancem; para o Círculo do Tiro — cacem ou não cacem; e têm de visitar o senhor bispo, ser irmão de opa e tocha, ir às missas dominicais da Matriz. Não digo sejam ou não sejam crentes — ou praticantes, segundo sua expressão — porque a última alternativa é simplesmente inadmissível no nosso meio — ou melhor, em certa classe do nosso meio. Pense nisso. Até à vista, que já vou. Carminda, vamos… Podemos retomar o assunto dentro de quinze dias. Não se esqueça — duas, duas e meia.
O Egon ficou parado, safado da vida, furioso daquele seu modo de ser entupido que não lhe dava resposta imediata para as impertinências que ouvia. E aquela fora firme. Que sujeito… Esperou o aparato de sua saída com a Carminda e os meninos, foi despedir-se da tia e dos outros primos. Nem deu adeus ao Pareto que, com a retirada do Ezequiel, retomara sua balda favorita de andar pralapracá do alpendre da cozinha ao seu gabinete, sacudindo os punhos, roxo de raiva, resmungando. O moço consultou o relógio. Ainda tinha tempo de sobra para ir desanuviar daquele bando de chatos num cinema. Saiu, tomou à direita, seguiu Silva Paranhos e virou numa rua Schimmelfeld quase vazia. Parou um instante antes de entrar no Palace Coliseu. Ficou a observar os que penetravam quando deu numa cara que tinha a impressão de conhecer e que o olhava com insistência, um meio sorriso esboçado. Fez também uma expressão de agrado e bateu na aba do seu lebre cinzento. Logo o outro aproximou-se rindo e abraçou-o ruidosamente.
— Que prazer! nego. Juro e aposto cocê num tá me conhecendo. Vamos, diga. Vi logo. Sou o Luisinho Bracarense, amigo do Fábio. Ele é que nos apresentou no cabaré de Belo Horizonte no dia da posse do Antônio Carlos. E o Chico Pires? como vai. O Nava? O Cavalcanti? Os outros? Quê? cocê tá fazen’aqui, homem!
O Egon contou ao Luisinho que estava no Desterro de mudança e que, nomeado pelo Antônio Carlos, ia tentar clinicar na cidade. Mas estava se caceteando muito, só trabalho, conhecendo ninguém, só tendo até agora ido duas vezes à casa do seu tio afim — não sei se você conhece? o dr. Colatino Pareto — até estava vindo de lá, onde se aporrinhara à beça, porra! Ia espairecer no cinema e o Luisinho ia com ele.
— Não, nego. Estou só vendo o movimento e depois vou encontrar com minha pequena, na pensão da Malvina Lícia. Muito obrigado…
— Você pode fazer as duas coisas. Vai ao cinema comigo e depois, então, pros braços da amada…
— Ela chama Zenith. Mas sinceramente, não posso ir com você porque estou a zero — mais liso que cu de santo.
— Mas será? possível. Tou convidando você e agora não aceito mais desculpa. Você vai comigo ao cinema e se precisar algum…
— Não preciso nada. Você com o tempo vai ficar me conhecendo. Posso aceitar um convite pra cinema, pra jantar, pra beber mas… dinheiro, de ninguém. Não peço nem aceito. Chóooobs…
— Chó — o quê?
— Chóooooooobsss…
Só o tempo e a convivência mostrariam ao Egon o que eram o chóbs, o rrreleitz, o tuuuc-tó de que o Luisinho entremeava suas frases. O médico verificaria também que aquele amigo com que estava começando a se relacionar era não só um dos melhores homens do mundo, como um dos seres mais inteligentes que lhe seria dado conhecer. Era duma ignorância exemplar mas de finura e penetração psicológica de navalha, duma percepção do belo, do feio, do chiste, do humor, do trágico — que tocavam as raias do gênio. Mas por estranha aberração, era dotado de vocabulário paupérrimo, tinha dificuldade de se exprimir, falava um português básico que não ia além de suas oitocentas a mil palavras e para completar seu pensamento na conversa rápida, tinha de apelar para estes sons que — descobriria o médico — eram verdadeiros curingas do seu vocabulário, significando tudo e completando admiravelmente as sentenças do Luisinho. Com o tempo e a prática ele ficaria sabendo que aquele chóooobs curto-menor dito depois do “não peço, nem aceito” estava entre o normal e a cólera e que era afirmação para valer. O segundo, mais prolongado, queria dizer — não insista homem, não me venha de borzeguins ao leito, senão vai ter… Mas isto seriam verificações do depois. Àquela hora os dois novos companheiros dirigiram-se à bilheteria e logo depois estavam repoltreados na plateia. Mal tiveram o tempo de relancear a “coroa das damas” já as luzes se apagavam. O filme principal chamava-se Aurora e encantou os dois. O Egon jamais esqueceria aquela fita, com seus truques inesperados de imagens de longe de repente se aproximando e já passando da nitidez do foco para o nevoento e o gris do mais ausente. Depois, mais tarde, lendo sobre cinema, verificou que tinha tido a dita de assistir e a felicidade de não se esquecer daquela obra-prima de transposição cinematográfica feita pelo alemão Friedrich Wilhelm Plumpe, aliás Murnau — da estória de Hermann Sudermann. Era dos últimos carros-chefe do cinema mudo e nele se vê além do grande exemplo de esteticismo expressionista o aparecimento do recurso do close-up. Já discuti a questão da descoberta do close-up em livro anterior. Ela é atribuída a Murnau nesta rodagem de 1927 mas ele tinha notícias do seu uso em filmes de sacanagem passados no Cinema Alegre do Rio, nos seus tempos de Pedro ii. O autor desconhecido de O mate saboroso — um dos primeiros pornôs do cinema, roçou a criação de gênio sem percebê-la, como os representantes das culturas astecas desconheceram a roda como elemento útil apesar de tê-la utilizado em brinquedos de crianças como os que se veem no Museu de Antropologia da capital do México. Mas… deixemos de conversa fiada e voltemos aos dois amigos. Saíram do cinema e foram devagar até ao Papa-Goiabas. A confeitaria estava vazia naquela noite de muito frio e os fregueses recém logo passaram-se a dois capotes internos — que era como o Luisinho chamou as talagadas de genebra tomadas para esquentar o corpo e levantar o moral. Sentados, o Egon pôde observar melhor o Luisinho — a quem já viera reparando no trajeto entre cinema e botequim.
Era um rapaz ali pelos seus vinte e nove, trintanos mas pelo espigado, pelo lépido e pele rosada da cara ninguém lhe dava mais duns vinte e cinco. Os ombros descaídos aumentavam-lhe o teso do pescoço. Penteava para trás e o cabelo fofo e solto enristava como crista audaciosa encompridando a face que já era longa. Tinha testa e queixo salientes, o que lhe dava semelhanças com as estilizações em feijão que ficaram do nosso segundo imperador. Nariz arrebitado e pequeno, boca de cantos um tanto caídos parecendo um U de cabeça pra baixo. Bons dentes, sempre muito limpos. Testa franzida do esforço que fazia para focalizar o interlocutor e o resto, com o olho míope que lhe servia. Era só o esquerdo porque cegara do direito, com carga de chumbo que lhe soltara à queima-roupa um corno recalcitrante da vizinha Juiz de Fora. A visão monocular obrigava-o a uma eterna torção do pescoço para adiantar e centrar o olho válido. Costeletas. Sempre escanhoado, vestido com simplicidade e decoro. Gravatinha-borboleta. Tinha ar tenso e empertigado que lhe dava jeitos de galarote. Outras coisas o Egon verificaria depois. Por exemplo — o Luisinho era encolerizável e dois sinais certos de vias de fato próximas era vê-lo ficar enxugando as mãos dum suor nervoso que lhe dava. De repente ficava dum lívido amarelo, arrancava os óculos e avançava como uma fera. Sabia brigar e bater. Era um bebedor admirável, nunca perdendo a linha nem a tramontana com doses maciças de uísque, ou cerveja a cântaros respaldada cada garrafa com martelada de Steinhäger, ou de conhaque ou de cachaça. E varava noites nesse nível — não mostrando externamente nenhum sinal de porre. Nem seu físico fino era o de alcoólatra. Só raiando o dia é que era sinal certo de que estava lotado — ver se acentuar seu estrabismo divergente e ouvi-lo dizer na sua dificuldade de exprimir-se — sempre a mesma frase misteriosa e sibilina.
— Rrrr-releitz, nego! Esse negócio de madrugada é mesmo hora de cu e alma. E puta que os pariu pra todos.
O Luisinho não era boêmio qualquer. Era filho do engenheiro naval ilustre e homônimo a quem a construção de navios de cabotagem muito ficara devendo no Brasil. Morrera cedo e a família vivia da pensão que lhe dava a Organização Henrique Lage. Sua mãe, d. Laurinda Menezes Bracarense, era de grande família carioca cheia de ligações de afinidade ou consanguíneas na fidalguia do Desterro. Era filha dum herói da Retirada da Laguna e mantinha seus modos imperiais. Sua passagem na rua Schimmelfeld era sempre sensacional. Quase nunca sem a filha Laurindinha, braço dado com o dela, a cabeça de neve penteada alto, blusa plissada de seda negra, fichu de lantejoula, miçanga ou vidrilho preto, capota de pequena pluma, luva, leque, bolsa — toda parafernália de senhora dona viúva. O Luisinho quando as via aproximando, largava tudo para acompanhá-las. Quando elas iam para casa é que ele voltava. Além de filho exemplar, irmão exemplar, ele era um grande sentimental. Sempre amara donzelas até que forte paixão contrariada pela família da moça desiludira-o para sempre do gênero família. Se abstinha. Dera-se sem reserva às putas. Agora andava num rabicho doido pela tal Zenith — mulher-dama de beleza rara que exercia à rua Hiparco Carozzo — pensão alegre da Malvina Lícia.
Pois foi justamente para esse bordel que o Luisinho convidou o Egon depois da Confeitaria. O Egon recusou, lembrando-se dos conselhos do Ari Ferreira e disposto a uma vida de médico exemplar e a de jeito nenhum dar isto assim que falar aos santarrões do Desterro.
— Impossível, Luisinho. Tenho de levantar cedíssimo para o Centro de Saúde. Muito trabalho…
— Tuuuc-tó! Pra cima de mim não, nego… Váaa tomar banho, ara… Vamo sim. E vam’a outra cervejinha com seu respaldo.
Foram. A resistência do Egon também foi-se. E os dois foram descendo. Primeiro rua Schimmelfeld, depois Precursório Ramos, rua do Rei e chegaram até Hiparco Carozzo — um só quarteirão entre a penúltima e Santo Pretor. Vivalma. Só em frente ao portão que o Luisinho mostrara de longe ao Egon estava uma sombra de capote gola levantada, embuçada num cache-nez, chapéu desabado, óculos pretos que ao perceber os dois amigos se aproximando — abrira um guarda-chuva, com ele cobrira a cabeça e saíra rápido em direção a Santo Pretor. Galochas davam-lhe pisada sem som. O Luisinho rindo, abriu o livro.
— Esse cretino é o Radagázio Tabosa Neto, dono da metade das casas do Desterro, irmão da opa, grande fingidaço. De vez em quando larga a mulher, passa dois, três meses na calaçaria e depois, diz ele, sente falta dos sacramentos. Aí confessa, comunga, não sai da igreja meio ano, até cair de novo. Pelo visto ele agora anda de cio… Filho da puta… Fazendo que não ia entrar… Olh’ele de longe, bispando e esperando a gente sumir… Escroto…
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare
— Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.
manuel bandeira, “Poética”
Nada mais silencioso, abafado, cosy, íntimo, aconchegado, secreto e meia-luz que o ambiente da sala-de-estar-de-jantar-bar da Pensão da Malvina Lícia — para onde ela própria levou os dois amigos. Era uma pessoa grisalha, distinta, feições alegres, corada, baixota, gorducha e vestida com simplicidade. Teve muito prazer em conhecer o Egon e recebeu-o com dois beijos churriados — um em cada bochecha.
— Vocês se sentem que eu vou acordar a Zenith e venho logo pra servir. Tou esperando só mais uma pessoa e depois passo o cadeado no portão… já tá tudo acomodado.
Nessa hora bateram duas pancadas espaçadas e três próximas na porta da varandinha lateral.
— Pronto, é o… Deu o sinal combinado. Agora vocês vão ter a paciência e esperar um minutinho de luz apagada pr’ele entrar. Exige sempre muito recato… Minutinho…
Na escuridão feita pela tenancière abafaram-se uns passos galocha borracha e um vulto esgueirou-se. Mas à luz elétrica da rua dava para se distinguir, muito enrolado no cache-nez, o mesmo cauteloso que tinha sido visto há pouco. O Luisinho não resistiu e deu o brado.
— Boa noite! Radagázio… Que frio, hem? Nada com’um choco nesse tempo.
Vendo o incógnito do entrante desmascarado, a Malvina acendeu lustres, lampadários e o pudico Radagázio teve de parar, cumprimentar e ser apresentado ao Egon. Só então pôde recolher-se. Mas já entrava a mulher do Luisinho e o médico sentiu a respiração cortada por sua beleza. A sala ficou mais clara com sua presença. Era uma criatura muito branca, cabelos castanhos, olhos prodigiosos. Alta, escultural, donairosa. Parecia uma rainha. Também estava na cachorra e tomada dum rabicho daqueles pelo Luisinho que logo a recebeu com gestos de noivo. Sentaram-se todos e a Malvina trouxe a cerveja, o conhaque para o respaldo, e o kümmel para ela e a Zenith. Começaram as libações. Estavam nisto já há meia hora quando o tal Radagázio reapareceu de cara furiosa. O Egon reparou melhor no sujeito magrela, cabelinho muito crespo aberto do lado, ventas de cheira-cheira, queixo de rabeca, olhos neutros. Era vermelhoso e a cólera acentuava sua cor. Logo a Malvina Lícia levantou-se curiosa com aquela saída intempestiva mas já ele se dirigia à porta e dava o fora sem despedir de ninguém. A dona da casa foi ao quarto. Voltou sem conter o sorriso que teimava em lhe vir à tona da face. O Luisinho queria saber por toda lei — o que houvera, para o homem se escafeder assim tão depressa e puto da vida. Teve a resposta.
— Ora, meu bem, sua culpa. Pois ele vinha todo escondido e de repente você lhe grita o nome… Danou e com isto não pôde, não deu no couro, brochou mesmo… Mas eu vou chamar a pequena pra vir fazer sala pro doutor e o melhor é passar logo a corrente e trancar o portão. Assim a gente está mais à vontade.
O Egon não tinha vindo pra ficar, só para atender ao convite do Luisinho, mas a estas falas sentiu por dentro uma espécie de seja tudo pelo amor de Deus. Entregou-se de corpo e alma à ambiência, ajeitou-se em sua cadeira e pediu que as botelhas fossem renovadas — bem geladinhas, Malvininha… Esta não parava de movimentar-se para servir e agradar. Não era só boa vontade e diplomacia de dona de pensão. Ela punha alma na coisa, também se divertia e entrava no kümmel de rijo. Já a Zenith ficara no primeiro cálice e deixara metade da dose onde ela e o Luisinho, muito atracados, muito babosos, iam molhando a ponta dos cigarros que não paravam de fumar. Conversavam cochichado, com cosquinhas e galinhagens a toda hora. Lambiam-se as orelhas e narinas e olhos fechados. Estavam se dando uma chupada em regra quando entrou, em silêncio, uma soberba fêmea. O médico — conhecedor — olhou agradado a estupenda mestiça. Era bem escura e a sensação de sombra que nascia dela ainda era aumentada pela expressão séria e severa que lhe dava o risco das sobrancelhas espessas, azuluzindo de tão negras e que o eram tanto e tanto que esta cor destacava nítida da pele sombria. Juntavam-se espessas sobre a raiz dum nariz que descia fino, geométrico, nítido e a prumo. Daquele ponto dirigiam-se para fora e um pouco para cima, fazendo como que o desenho esgalhado das duas asas abertas de ave em voo longínquo. Os olhos pestanudos e profundos pareciam abismos. Tinha a testa curta e teimosa, cabelos apartados ao meio risca tão nítida que parecia feita à navalha: separava dois topetes dum cabelo grosso, mastigado, de ondinhas tão iguais, regulares e decididas — como se seus altos e baixos fossem obra não do pente mas de goiva, formão ou talhadeira na mão de escultor exímio. As duas pastas volumosas, fofas e cheias passavam para trás de orelhas um pouco grandes, afastadas e acentuadas por argolões de ouro que atravessavam cada lóbulo. A boca entressorria e assim meio aberta, com os olhos, os dois mostravam as únicas brancuras que sobressaíam ali. As do lampejo das escleróticas e a dos dentes luminosos dentro dos lábios arroxados. Incisivos nem caninos mostravam limites uns com os outros e era como se tivessem sido talhados num bloc’único de mármore, de giz, de pedra-da-lua. O pescoço era longo, serpentino, hierático. A morena parecia a rainha Nefertite — o que quer dizer que era magra, esbelta e longa com’um lírio. Vestia uma camisola branca de mangas perdidas, uma espécie de dijellabah mourisco feito dum pano tão transparente que deixava perceber as manchas escuras das duas aréolas dos seios terminados por mamilos grandes e recurvados para cima — ao gênero dito teta de cabra. Mais embaixo — a mancha do pente. Via-se através do tecido que ele em vez de apresentar disposição feminina, espessava-se no centro donde mandava gancho curvo para perder-se no entrecoxas e outro cume mais longo, que subia em ápice de triângulo até ao umbigo. Esse desenho de módulo, no futuro, apareceria como invenção ou lembrança em Oscar Niemeyer que poria esses púbis completa e exatamente nas “colunas recurvadas acabando em ponta” do Palácio da Alvorada, na Brasília do Nonô Kubitschek. Ela puxou um banquinho baixo e sentou-se em pose simétrica diante da cadeira do médico e ficou calada como se fosse convidada de pedra. Sua chegada marcou o ponto da noite em que as coisas começaram a ficar confusas e a conversa do Luisinho a estender-se num longo discurso obscuro e difícil em que ele já falara duas vezes em cu e alma e ia tornando seus rrrr-releitz, tuuuc-tó e chóbs de frequência cada vez maior, intercalando-os quase a cada palavra que dizia. Estas lhe saíam se peganchando, pastosas e sengangrudando em sentenças de sentido denso que soavam ao mesmo tempo de regougo, de gemido, de imprecação, de suspiro e soluço. Ele murmurava coisas muito doces entrecortadas de ameaças. Blasfemava, soltava obscenidades, pedaços de prece, invectivas, pragas, protestos de amor. Gemia, arquejava, declamava fragmentos do Patriarca na “Ode aos baianos”. O Egon tinha a impressão de ter sido transportado para dentro dum mundo russo, duma vida dostoievskiana em que estivesse praticando com personagem que fosse ao mesmo tempo Marmiéládov na sua pungência, Míchkin na sua santidade, o anjo Aliocha e o demônio Raskólnikov. Naquele bordel, àquela hora, ele assistia o Luisinho ardendo num pentecoste de amor e ódio, debatendo-se dentro dum pensamento tortuoso como se estivesse tecendo em trama única — suas amadas puras, putas, sua mãezinha, a irmã, os amigos — tudo, cu e alma na madrugada.
Mas subitamente foi um acordar espantado de todos — empinando-se feito bêbados ao cheiro dum algodão embebido em amônia. O Luisinho pusera-se a gritar com a Zenith. É que ela contara que de tarde estivera na pensão só pra vê-la, sempre muito apaixonado, o Luisão Bracarense. Queria casar com ela. À menção desse rival, inda mais seu homônimo, como sempre, o Luisinho pulara. E para cúmulo os dois ainda se tinham posto de prosa, tinham palestrado!
— Mas foi só um instantinho, bem. Pra não ser mal-educada. Dera só boa-tarde, comovai? e fora logo pro quarto!
— Já foi tarde, sua vagabunda!
— Não pensa nisso, Zizinho, senta sossega que eu vou cantar procê o “Rajito de oro”… Não, neguinho, não! tu num vai me bater…
Mas ele estava lívido, enxugando as mãos nervosamente e de repente detonou o primeiro pescoção. A Zenith caiu de gatinhas mas já um pontapé a estatelou no chão. Arrastada pelos cabelos pro quarto, se debatendo-se. A porta fechou com estampido e ouviram-se vindos de lá de dentro os estrondos, os baques e as percussões decrescentes de uma destas demoradas surras do amour-vache que acabam sem transição, no atracado do carinho — no princípio ainda estabanado e bruto, depois suave, arrependido, curativo, balsâmico como consolo que apazigua. Só quando o silêncio absoluto anunciou a entrada nesta fase ronrom dos amorosos é que Malvina Lícia aquietou. Ela estivera andando pra lá e pra fora pra todos os lados — rápida, redonda, aflita — sem ruído como um novelo de lã em pata de gato. Foi até à porta do quarto, encostou o ouvido na greta, olhou pela fechadura, voltou sorridente, materna — que graças a Deus! os pombinhos já estavam quietinhos, coitadinhos — e deu as basnoites que já não se aguentava de pé, inda mais com aquele rolo — puta merda! E vocês até amanhã, não esqueçam de apagar a luz da sala. Só com a morena, o Egon olhou mais que não cansava de olhar aquele trem divino. Ela encostou bem as costas na parede, firmou-se, esticou as duas pernas e pegou com os pés as panturrilhas do médico que apertou num movimento de tesoura. Ele, calado, segurou os tornozelos secos, bem ossos do vintém assim mocotós quentes à sua mão e que se deixaram levantar até ele descansá-los em cima dos seus próprios joelhos, sentindo calor de sola calcanhar atravessando as pernas das calças. Então se inclinou para estudar aqueles pés com gravidade de anatomista, seriedade de topógrafo, atenção de geômetra para tal conjunto de linhas volumes perfeitos. Eram pés recurvos, altos, cavos, elegantes. Tinham uma suscetibilidade de mãos e pareciam preênseis, talvez devido à agilidade do antepé hipermóvel que dava impressão de que todas as articulações tarso-metatarsianas tinham a propriedade de ir até posições só consentidas pela luxação. Ele experimentou as juntas engates encaixes um por um como se estivesse fazendo um exame clínico. Acompanhou esfregando com o dorso dos seus dedos a órbita daquela sola uma, duas, dez, vinte vezes — como se fosse o escultor criando, esculpindo e inventando aquela curva sideral. A manipulação que fazia era mais detalhada que manobra médica: era extrassutil porque tateio erótico. Os pododáctilos perfeitos da estátua de bronze. O contraste do róseo melancia da planta com o moreno do dorso. Inventariava cada saliência óssea dos artelhos e a ligeira penugem acima deles mais perceptível como simples sombra. E a pele lustrosa esticada pelas cristes das tíbias. Um acinzentado mais espesso dos joelhos que ele descamou de leve com a unha, soprando as películas. Mas ele pôs-lhe as solas no chão levantou-se e deu-lhe as duas mãos para ajudá-la a emergir e se pôr de pé. Ficavam quase da mesmaltura. Ela continuava a sorrir de Gioconda, de Nefertite — estupenda e estúpida, sem pensar em nada. Os dois, túmidos, estavam como que inchados pelo desejo que os catapultava um para o outro.
— Cumé cocê chama? bem.
— Iracema.
— Ai! então vem, talhe de palmeira, abelha, favo de jati.
Ela não entendeu a sugestão alencarina da frase mas foi sensível ao tom sussurrado dentes cerrados — e com o mesmo riso incrustado à face chegou a boca-aberta ampla e úmida dando uma língua que vivia e vibratremia chama duma vela.
lié à un univers incommunicable comme celui de l’aveugle ou du fou […]
andré malraux, La voie royale
O Egon subia furioso a rua do Santo Pretor no dia que clareava. Olha só! que grande merda! Tudo tão bem arranjado desde que ele chegara ao Desterro e agora as coisas entornadas com aquela noite passada em casa de Malvina Lícia! Ele tivera a sorte de ver, na rua Schimmelfeld, logo nos dias de sua chegada, subindo de braço dado, duas conhecidas de Belo Horizonte — a Chica do Padre e a Emília Mascarenhas. Ao passarem piscaram discretamente e ele as acompanhara, disfarçando, até os baixos da cidade onde ficava o lupa da famosa Valparaíso. Entrara, fizera o conhecimento da dona da casa, combinara frequentar sempre à hora do almoço, ficara assim freguês das conhecidas de Belo Horizonte que o esperavam ora uma ora outra, depois do seu turno da manhã no Centro de Saúde. Nunca encontrara ninguém à hora daquelas matinées e tudo corria sur des roulettes. Agora, ele próprio punha sua reputação a perder fazendo uma sessão da envergadura da que se passara na Malvina, dormindo fora, fraquejando à primeira insinuação daquele boiardo impecunioso do Luisinho Bracarense. Que vale é que ele tivera o cavalheirismo de pendurar a conta da orgia e quando ele, Egon, matinantemente quisera pagar, a Malvina Lícia ainda estremunhada, dissera que não, absolutamente, tudo saldado pelo Luisinho.
— Como? saldado se eu sei que ele estava sem dinheiro…
— Claro, claro, mas tem crédito, conta aqui em casa. E agora, doutor, que estamos conhecidos, faz favor de não sumir… Aliás, eu sei muito do bem que vai voltar — a Iracema não é mulher pra uma vez só…
A caftina maternal rira muito, ele com ela, despediram-se às beijocas mas o médico estava furioso consigo mesmo. Pôs o pé na rua, pegou Santo Pretor desde baixo e na esquina da avenida Silva Paranhos fora cumprimentado pelo seu Onésime Cresylol que já ia para o trabalho. Com esse auxiliar não tinha perigo. Mesmo que estranhasse ver o chefe na rua, com cara de véspera e de noite maldormida, era homem decente e incapaz de falatórios. O pior era aquele berdamerda do Radagázio Tabosa que não deixaria de arrasá-lo. Tinham estado nas mesmas condições, tão bom como tão bom dentro dum bordel mas a questão é que ele era irmão de todas as confrarias do Desterro, da copa e cozinha do senhor bispo, parente de políticos, presidente de bancos e companhias, descendente de todos os “fundadores” da terra e assim tinha sinal verde para qualquer patifaria. Uma confissão limpava. E o Egon já avaliara bem a moralidade vigente no Desterro. Obscenidade, pornografia, salacidade, sacanagem, ribalderia, bordelismo, fornicação, sedução, estupro, adultério, cornificação, concubinagem — eram pecados de classe, isto é, da canalha. Com esta não havia contemplação. Já com os prurientes da alta e da carolice, a opinião era outra. Dizia-se com recato, tolerância e absolvição que o Fulaninho, coitado! tivera um momento de fraqueza mas, em compensação, dera depois exemplo edificante de arrependimento — mostrara-se um verdadeiro santo. A mulher? ah! compreendera tudo muito bem, e fora exemplar — amparando-o na penitência e estimulando-o na perseverança. Uma Mulher Forte das Escrituras — concluía-se. Tudo isto o Egon pensava e ele, solteiro, é quem ainda ficava devendo ao Radagázio, casado e pai de família, do pecado de terem coincidido na tafularia.
A chegada em casa fora de mais mortificação. Encontrara a Mariazinha regando os jarros na área de entrada e ao atravessar a sala de jantar, em cima, tivera de dar os bons-dias à Sá-Menina, ao Asnazário e ao dr. Boamorte abancados para o café. Estava claro que ele tinha decuchado. A dona da casa fez logo pergunta polida mas em que o médico, pulga na orelha, sentiu ou quis sentir um tom irônico.
— Café já? Dr. Egon, ou depois do banho.
— Depois, Sá-Menina, depois e muito obrigado.
Tomara longo e demorado chuveiro quente e mesmo se aplicara remédio heroico que tinha aprendido já no Desterro, com o Ludovino Pareto — um porrete contra mal-estar e ressaca. Sal de Frutas por dentro e por fora. O uso externo devia ser feito no banho, depois de lavado, ainda molhado. Era pôr um punhado do Eno’s na cabeça. Deixar e só enxaguar depois de cessada a fervilhação do remédio que fazia, assim, verdadeira aplicação carbogasosa na sinagoga. Pois deu certo e o Egon, quando sentou à mesa para o café, estava novo em folha. Sentiu-se menos culpado e já pôde conversar naturalmente com a Sá-Menina que sentara para fazer companhia — como era seu hábito com todos os hóspedes.
— Não vi a que horas o senhor saiu, dr. Egon.
— É porque não saí, Sá-Menina. Nem tinha entrado. Imagine a senhora a estopada! passei a noite à cabeceira do meu amigo Luís Bracarense que não está bem e que ontem sentiu-se mal no cinema. Fui levá-lo em casa e a pedido da mãe e da irmã, coitadas! fiquei lá pra medicá-lo. Não sei se a senhora conhece…
— Como não? Até demais. Ora esta! o Luisinho… Chi!… Dr. Egon, aquilo não é companhia para o senhor não. Dejeito nenhum… O Luisinho… É o maior debochado do Desterro.
— Não é tanto assim, Sá-Menina…
— Sim senhor, é sem tirar nem pôr! De-bo-cha-do!
A Sá-Menina levantou-se para ver uma coisa lá dentro — e o médico muscou-se para o trabalho. Chegara com atraso duns vinte minutos e o Centro já funcionava a pleno vapor. O Cresylol dera-lhe um segundo bom-dia perfeito. Fez suas obrigações e à hora de sair para o almoço o dr. Pedroso Lucas mandou chamá-lo. Era para pedir que ele, Egon, não tomasse compromissos para a noite. Para irem juntos com o Dimas Alvim e a dra. Jarina a uma reunião da Sociedade de Medicina e Cirurgia do Desterro. Era às oito e meia da noite e podiam se encontrar às oito na esquina de Schimmelfeld com Paranhos. Dali seguiriam para as Escolas Conjuntas onde se davam as sessões. Combinado?
Pontuais os médicos se encontraram e seguiram a pé por Paranhos, em direção do Cruzeiro de Cima. Chegaram logo depois ao casarão quadrado, cheio de dignidade imperial onde funcionavam quatro grupos escolares e cujo diretor cedera salas para as reuniões da Sociedade de Medicina e Cirurgia do Desterro. Sua primeira sede fora no andar térreo do sobrado do dr. João Pedreira Prisco (o velho), um dos mais belos da cidade que esse médico comprara, pelos 1850, ao barão do Degredo. Com morte do dr. Prisco, ocorrida em 1901, sua família ainda cedera os cômodos durante mais uns dois ou três anos mas daí o grêmio saíra para o referido edifício escolar cujo diretor-geral era farmacêutico, membro da instituição. Dele partira a ideia de hospedar os sábios encontros no histórico casarão construído pelo desterrano Amado Vale para hospedagem do imperador, na sua viagem a Minas. D. Pedro ii lá dormira uma noite mas não quisera aceitar a doação do imóvel que lhe ofertava o Vale. Este, muito magoado com a recusa, fechou a casa e turrão, disse que ninguém mais a habitaria. Depois isso foi referido ao imperador que escreveu de próprio punho carta sugerindo que fosse aberto o palacete e que nele se instalasse uma escola. O Vale obedeceu e o monarca fê-lo, por isso, barão da Faldama Santa — sem grandeza, a 13 de setembro de 1876.
O Desterro era no século passado visitado com pontualidade por quatro hóspedes incômodos. Varíola, cólera, tifo e febre amarela. Cada ano uma dessas epidemias vinha ceifar os desterranos. Quando na cidade existiu um grupo de médicos bastante numeroso para sentir-se uma classe com responsabilidades perante a coletividade — estes decidiram criar um centro para estudo daqueles males e dos meios de evitá-los. A ideia cresceu e dela resultou uma instituição realmente benemérita que foi e é hoje a quase centenária Sociedade de Medicina e Cirurgia do Desterro. Seus principais fundadores foram o já mencionado dr. João Pedreira Prisco e seu cunhado o dr. Romualdo Leonel Camareiro da Silva. A instituição pegou e prestou os mais assinalados serviços à cidade e ao município. A sua insistência ficaram se devendo o calçamento urbano, a criação de uma rede de esgotos, a instalação de latrinas que — modificaram os velhos hábitos do mato, da touceira de bananas, dos penicos e dos cafotos. A seu trabalho o Desterro lucrou a proibição das queimadas das matas nas encostas do morro do Defensor, a fiscalização e análise das águas das fontes potáveis, o saneamento do córrego Sete de Setembro e do Paraibuna, o protesto contra a instalação de fábricas no perímetro citadino, a introdução da vacina jenneriana, a primeira ideia da criação de uma Faculdade de Medicina, a qual nasceu depois e foi, com uma Escola de Engenharia e uma de Filosofia locais, o núcleo de que sairia a magnífica Universidade Federal do Desterro. O Egon remoía os fatos passados que conhecia da coleção que possuía dos Anais da Sociedade, de que seu pai boticário fora secretário. Assim, foi com orgulho que entrou no prédio das Escolas Conjuntas, pisando corredores outrora trilhados pelo farmacêutico João Elisiário Pinto Coelho da Cunha. O jovem médico e seus companheiros do Centro de Saúde seguiram um corredor mal iluminado e, guiados por reflexo de lâmpada ao seu fundo, deram numa sala espaçosa onde havia um velho grupo de cadeiras e sofá de medalhão, o luxo de esfiapado tapete persa, vasta mesa de jacarandá pés torneados coberta de pano verde luxuosamente bordado a similor. O tempo roera a trama e enegrecera os fios antes dourados. Tinteiro de prata todo escuro de veneráveis manchas de tinta e da falta de polimento. Campainha. Nas paredes pesadas molduras com os retratos a óleo dos drs. Prisco e Romualdo, ladeando uma oleografia em que o Sagrado Coração de Maria era representado em tamanho natural. Em torno à mesa, fazendo composição digna dos mestres holandeses, homens vestidos de preto da gravata aos botins. Eram os médicos mais antigos, os patriarcas — e que se revezavam constantemente nos vários cargos da diretoria. Eram figuras impressionantes e todas com aquele ar de família que o Egon já tinha notado nos ricos-homens que apareciam na rua Schimmelfeld. O Dimas Alvim e sua esposa, a dra. Jarina, adiantaram-se e foram cumprimentar os maiorais. Fizeram-no de maneira profunda e com unção que impressionou o Egon. Desmancharam-se em curvaturas diante dos bonzos impassíveis, respondendo como de favor. Voltaram para perto dos colegas do Centro de Saúde.
— Vamos chegar, já pedi licença e vou apresentá-los.
Foram até a borda da mesa de comunhão e o Dimas começou a oficiar.
— Aqui nosso presidente, o dr. Sabatino Rufo Trancoso. Os drs. Josué Cesário Camareiro da Silva, Roque Apolinário Cacilhas do Prado, Ooforato Histeriano, Martinho da Frota, membros da diretoria. E aqui os drs. João Nogueira Pedroso Lucas e José Egon Barros da Cunha, médicos do nosso Centro de Saúde que eu terei a honra de propor como sócios à hora do expediente. O dr. Egon é filho de antigo membro da casa, o farmacêutico João Elisiário Pinto Coelho da Cunha.
O Egon tinha pedido ao Dimas para dizer o nome de seu pai quando o apresentasse. Todos aqueles médicos tinham sido seus amigos e ele esperava que o patronímico lhe fosse um abre-te-sésamo. Foi sua primeira decepção. Todos responderam seu cumprimento de modo polido, mas gelado. Só os drs. Cesário e Martinho sorriram, abraçaram e tiveram muito agrado de ver ali o filho de velho confrade e secretário perfeito da Sociedade de Medicina e Cirurgia do Desterro. Em seguida ele e o Pedroso Lucas tinham sido apresentados aos colegas mais moços, em pé e falando baixo junto à porta da sala onde se daria a sessão. Eram a réplica em menos idosos dos homens lutuosos e graves sentados à mesa. Também de preto, também com uma pequena insígnia na lapela: um coração em chamas encimado pelas letras ihs tudo colocado num círculo de esmalte roxo. Era o distintivo da Sociedade dos Soldados de Santo Inácio de Loiola — a que pertenciam todos os profissionais liberais bem-pensantes do Desterro. O Egon olhava suas imagens padronizadas pela roupa e pela expressão que os tornava senão parecidos, ao menos congêneres ou idênticos — fossem gordos ou magros, altos ou baixos, brancos ou mulatos, morenos ou claros. Ia ouvindo seus nomes nas apresentações e apertando mãos secas, macias, frias, quentes, úmidas, duras — todas fugidias. Subtílio Trancoso, Amarílio Gonzaga, Silidar Ramalho, Isaltino Zebrão, Prócoro Chupitaz Esganadino, Demetério Sulfúrico e outros indistintos. Havia mão que fazia exceção por grande, larga, franca — a do Joel Martinho da Frota. Exceto este, todos sussurravam e o Egon sentiu a impressão exata dum velório a que tivessem escamoteado a essa, os candelabros, o caixão e o defunto. Puxou o relógio, viu que o tempo passava, ia se fazendo tarde, havia em todos um ar de espera. Perguntou ao Dimas Alvim:
— Por que? a demora. Falta? alguém.
— O dr. João Prisco Filho, o deputado, o grande benfeitor da Sociedade, da Santa Casa, do Lazareto, do Isolamento, do Hospício, da Maladreria, dos Dispensários, Sanatórios, Orfanatos, Abrigos, Cruzes-vermelhas — do diabo! (Uma chispa de diversão no olho do Alvim.) É médico, não clinica mas é uma espécie de patrono e protetor de todas as instituições caridosas do Desterro. Prometeu vir. Será? que vem…
De repente houve um movimento geral em direção à porta de entrada da sala onde surgira individualidade alta e possante de velho elegante e bem tratado. Tinha olhos miúdos, sem pestana, quase fechados e com eles vasculhava as fisionomias dos interlocutores. Zigomas proeminentes, bochechas alongadas, como que esticadas deles à mandíbula. Cabelinho de neve aparado baixo, deixando ver o desenho dum crânio redondo e bem-feito. Bigodes muito retorcidos, brancos como a barbicha aberta ao meio que era o seu luxo — mandava seu Packard toda semana ao Rio para buscar o barbeiro que dela cuidava. Pálido, uma expressão imutável que parecia a um tempo de riso e choro. O prognatismo superior fazia-lhe boca um tanto contraída lembrando a dos flautistas. Ainda da porta gesticulou com as mãos largas e pálidas. Uma delas segurava bengala ceptral de unicórnio, com pesado cabo de ouro. Mas não era só da bengala a impressão de luxo que dele emanava. Vestia capote negro duma lã preciosa e a frente entreaberta mostrava o forro de cetim preto que se prolongava nas golas. Era longo, tinha no talho uma dignidade de beca, de batina. Usava cache-nez de seda que completava a roupa como uma estola. Dava a impressão dum prelado, dum freire de Santiago, dum bispo nas vestes negras da Quaresma. Quando se moviam todas essas lãs, damascos e sedas faziam um ruge-ruge precioso e fidalgo. Era alto, espadaúdo, elegante de pescoço e postura. Era o próprio dr. João Prisco Filho. Afinal viera. Nunca mais o Egon esqueceu a impressão que sua personalidade lhe causou. Mais tarde, quando conheceu a iconografia proustiana, verificou sua semelhança extraordinária! era o próprio príncipe Edmond de Polignac nas fotografias que o representam só ou em companhia dos Brancovan, dos Radziwill, da condessa de Noailles e da princesa de Caraman-Chimay. Parecia representação fugida dum salão de Paris, um personagem da tela famosa de James Tissot onde Charles Haas, o general marquês de Galliffet e outros são retratados na varanda do Cercle de la rue Royale — tendo a lhes fazer fundo o céu de outono da praça de Concórdia. E ele era uma incongruência naquela aula pobre, piolhenta e mal iluminada das Escolas Conjuntas. Era riquíssimo e ocupava seu tempo em administrar sua fortuna, em criar e apurar raças de cães de caça, jogar o florete, montar, caçar, atirar ao alvo, aos pratos, aos pombos. Era deputado cadeira cativa na Câmara Federal. Casado com uma senhora da família Catão, sua prima em segundo grau, de quem lhe viera a fortuna miliardária. Essa baseava-se em imensas fazendas e na maioria das ações da Companhia Desterrana de Luz e Gás. O dr. Prisco possuía um extraordinário tino administrativo e multiplicara o dote da esposa geometricamente. Era inteligente, sagaz, fino, político, diplomático, civilizado, educado, urbano, cortês e tinha sempre uma palavra amável para ir ao coração dos que se lhe aproximavam. Ao próprio Egon, quando este lhe fora apresentado, uma vaga ideia fizera-o perguntar com muito interesse e prendendo nas suas a mão do jovem médico — que não resistiu e deu-lhe resposta imprudente.
— Então? como vai o papai. Onde está? ele agora.
— Melhor que nós, senhor deputado. Está há dezessete anos no Cemitério do Caju. Muito obrigado.
O dr. Prisco perfeito fingiu que não ouvira. Em roda amarraram-se fuças de reprovação. Depois dos cumprimentos e das apresentações seus paramentos foram disputados. Um tomou seu chapéu; o Audiovisto Munhoz, mais feliz, seu capote; este, o báculo; aquele, o cache-nez e todos levaram-no preciosamente à sala vizinha onde ia se realizar a sessão. Era pobremente mobiliada de carteiras de aula e duma mesa magistral onde o dr. Prisco foi entronizado. Só então o presidente ocupou sua cadeira e declarou abertos os trabalhos. O Egon sentado numa carteira do fundo, ao lado do Dimas Alvim, interessou-se profundamente pela espécie de robô que dirigia os trabalhos. Era o dr. Sabatino Trancoso, pequeno, pouca altura, quase sumido atrás da papelada livralhada que enchiam a mesa à sua frente. Só se via sua cabeça, sua testa alta, o narizinho, a boca pequena e as curvas espessas das sobrancelhas e dos bigodes que se correspondiam e faziam acima e embaixo desenhos iguais e invertidos. No alto as primeiras eram dois semicírculos despejando para o nadir; embaixo as segundas eram outros dois abertos para o zênite. Entre eles as maçãs do rosto muito redondinhas e os olhos dum azulado cinza que impressionavam pela expressão extraordinariamente mansa e impenetrável. Era clínico geral dos mais reputados não só no Desterro como em toda a Zona da Mata. Tinha sido discípulo de Torres Homem, destinava-se a ficar na Corte, possivelmente a suceder o mestre na clínica e na cátedra, mas uns escarros de sangue, uma febrinha vesperal, aquela tossinha tinham-no feito deixar o Rio e vir se estabelecer primeiro em sua cidade, a vizinha Interpotâmia. Repouso, muito leite, muito óleo de capivara, superalimentação tinham-no restituído e ele viera exercer no Desterro. Ali mudou o rumo da clínica médica local e deu-lhe o brilho que ela possui até hoje. Era um organizador, um disciplinador que não se suspeitava naquele físico do “gordinho” em que a cura da tuberculose transformara o magricela que ele fora. Além do grande clínico era homem de empresas insigne e dono das fazendas modelares abertas pelo sogro — que forneciam ao Desterro toda a manteiga, todo o leite, toda a carne e as grosas de ovos que a cidade consumia. Além de presidente da Sociedade de Medicina e Cirurgia ele era Guardião Supremo da Sociedade dos Soldados de Santo Inácio de Loiola — cargo em que se alternava com seu cunhado Lisuarte Catão Taveira — o admirável filósofo, latinista, helenista e hebraísta; o exegeta laico do mistério da Santíssima Trindade e do dogma da Imaculada Conceição — o que o fazia rival de teólogos do porte dum padre Maurilo Penido e dum monsenhor Cogominho Dositeu. O presidente Sabatino quase desaparecia achatado, à direita, pela estatura avantajada do dr. Prisco e, à esquerda, pela envergadura apolínea do secretário-geral daquele grêmio e eminente tocólogo, o dr. Ooforato Histeriano. Este levantava sua bela face de olhos mansos, olhos perdidos na distância e as guias retorcidas de uma bigodeira monumental, mais negra que o azeviche. O cabelo era da mesma noite e subia alto e fofo, riscado dum ou doutro fio branco. Era pálido, duma boa pele e tinha o perfil regular gabado com unanimidade pelas suas clientes. Além de pálido, era polido, de falas macias e muito comedido de linguagem. Sua palavra era limpa, escoimada e só admitia tratar os órgãos genitais do homem e da mulher designando-os em latim — vagina uteri, veretrum. Assim o fino dr. Cesário caíra das nuvens um dia em que conversando com ele sobre a bartolinite de uma cliente, o dr. Ooforato, certo distraído, dissera que “nela o macaco estava em petição de miséria”. Ora, no Desterro como em toda Minas, macaco era termo chulo para designar não a vulva, ou a vagina, ou o pente, mas soma genérica de tudo isto como está implícito no vocábulo — boceta. Certo o dr. Ooforato pensara nesta e para evitá-la deixara escapar a primeira. Esse ilustre parteiro era casado na família do patriarca Aristônio Masculiflório que fizera fortuna fabulosa, aumentada por cada geração de sua família, com negócio de fiação com que transformavam em panos as fibras de algodão colhidas num conjunto familiar de fazendas que ia até à antiga província, atual estado do Rio de Janeiro. Terminavam a mesa, dum lado, a figura aguda e toda em ângulos e linhas retas do dr. Martinho da Frota — queixo muito fino, óculos reluzentes filtrando olhar verde-claro e mais agudo que uma ponta de florete; do outro a carinha indecente do dr. Prócoro Chupitaz Esganadino. Esse era o terceiro secretário e assim encarregado da ata. Era um ser pequenino, olhos molengos, falinha muito sussurrada e arrastada, mãos sempre quentes e muito fofas ao cumprimentar, calvo, grandes beiços grossos e vermelhosos cercados da mata da barba preta — o que lhe fazia uma cara que era sem tirar nem pôr o macaco do dr. Ooforato, ou seja, a boceta de todo o mundo. Além dessa aparência obscena, sua cara era fugitiva. Não encarava ninguém, quase não falava e geralmente tomava parte nas conversas mais por mímica que por palavras e sempre concordando com o interlocutor. Descendia de um longo cruzamento de primos das velhas famílias Chupitaz e Esganadino que acumulavam sem gastar e ambas dotadas do gênio da usura, do juro, do banco. O nosso Prócoro não se casara de pura sovinaria, morava só, não tinha criada, ignorava-se o que ou a quem comia. Muito devoto, ia a sua missa todos os dias. Dele não se sabia nada de mal mas era dessas pessoas de quem todos desconfiam e que tornam crível tudo o que se diz a seu respeito. Se alguém adiantasse que ele era dado ao canibalismo, ao sadomasoquismo, ao assassinato com depeçagem, ao estupro, à fanchonice — mesmo sem qualquer prova isto entraria como cunha de pau na cabeça de todos os habitantes da cidade — tanto seu ar era suspeito. Parecia a figurinha daquele assassino do desenho de Chagall, usando barbas postiças. Entretanto a sessão começava e o presidente dava a palavra ao terceiro secretário para o expediente. Ele entreabriu o óstio bucal e, numa vozinha que parecia a baba dum corrimento, anunciou apenas dois papéis que passou às mãos do presidente. Este, numa espécie de pressa, lia rapidamente para a sala.
— Um telegrama de congratulações do presidente da Academia de Letras da Interpotâmia por motivo de mais um aniversário da Sociedade de Medicina e Cirurgia do Desterro; uma proposta do consócio dr. Dimas Alvim pedindo para serem admitidos no nosso quadro social dois colegas recentemente nomeados para o Centro de Saúde do Desterro, a saber, os drs. João Nogueira Pedroso Lucas e José Egon Barros da Cunha. Está franca a palavra.
Houve um silêncio pesado em que só se ouviu o alarido do Chupitaz Esganadino primeiro espirrando três vezes e depois assoando as umidades com estrondo. Todos olhavam os dois indigitados com um ar distante e impenetrável de jurados. Passou-se um bom minuto.
— Ninguém querendo falar passo à votação. Osquistiveremdeacordocoadmissãodosdoutorespropostosqueiramseconservarsentadosquistiveremcontraselevantem. Ninguémsemanifestandodeclaraceitosempossadosnovospropostos.
Umas palminhas chochas e rápidas. O Egon orgulhoso sentiu-se dignificado de entrar pela primeira vez num grêmio sábio. E o de sua terra, para o qual tanto trabalhara seu pai. Mas ia começar a parte científica da sessão e o presidente deu a palavra ao dr. Amarílio Gonzaga, o tal médico que, não tendo conseguido entrar para o grupo clínico da Santa Casa, tanto fizera e de tal modo se revirara que conseguira instalar uma maternidade particular onde atendia seus clientes pobres e remediados. Era considerado pelos colegas como uma espécie de mentecapto, diziam-no muito atirado, afoito demais. Era alto, claro, elegante, muito branco, olhos azulados. Falava com facilidade e entrou de braçada na sua comunicação — Um recurso ideal no tratamento de certas distócias maternas. O título um tanto vago era jeito conhecido nas sociedades médicas. Nome pomposo e pouco indicativo, de modo que a apresentação fosse uma surpresa para a qual não estivessem preparados os colegas e assim não poderem discutir com a mesma segurança que se reservava velhacamente o orador. O recurso do dr. Amarílio era nem mais nem menos a operação cesária — nestas épocas um tímido apelo a que muito poucos parteiros se abalançavam. Eram as primeiras feitas no Desterro e o diabo do homem vinha com a estatística fantástica de 22 partos por via de incisão, sem nenhum óbito materno ou fetal. Era simplesmente admirável. O Amarílio apresentou estatísticas estrangeiras e as nossas, de mortalidade no parto, comparando o caso da resolução das distócias por operação, como ele fizera, ou por manobras clássicas. Seus números eram acachapantes, sua comunicação profética. Hoje, nada valeria. Mas naquelas épocas dos 20 era uma verdadeira revolução. O orador mostrou ampliações fotográficas enormes dos vários lances da intervenção segundo as diferentes técnicas. Seus assistentes, a um gesto dele, retiraram-se e voltaram acompanhados de seis mulheres trazendo recém-nascidos e meninos de peito. Eram seis casos que ele pudera reunir para trazer como testemunho aos colegas. Um instante a sala soturna alegrou-se da choradeira da garotada e o Amarílio sentou-se, enxugando a testa e sorridente. Brilhara muito e os colegas estavam realmente indignados. O dr. Ooforato comentou de cara amarrada e cumprimentou o colega dr. Amarílio por estar seguindo a trilha aberta por ele, há meses, quando neste mesmo 1928 praticara a primeira cesariana do Desterro e possivelmente em Minas. Foi nessa hora que o Demônio resolveu se intrometer na vida do Egon. Ele não resistiu e pediu a palavra.
— Com a palavra o dr. José Egon Barros da Cunha.
— Senhor presidente, caros colegas — apenas umas poucas informações para esclarecimento da casa. O eminente dr. Ooforato quando praticou sua cesariana — dada como a primeira do Desterro e possivelmente de Minas não teve quem lhe informasse do que estava se passando em Belo Horizonte. Como aluno da Faculdade de Medicina, lá assisti duas destas operações feitas pelo professor Hugo Werneck e uma por seu assistente o dr. Elvézio Pirfo di Marcelo. As duas do professor Werneck já não eram as suas inaugurais. Ele vinha da escola obstétrica de seu pai, Francisco Furquim Werneck de Almeida, um dos inauguradores dessa cirurgia no Brasil, ainda no século passado. É o que eu queria informar, senhor presidente, agradecendo a atenção dos meus colegas.
Estes ouviram a explicação do Egon num silêncio — não de atenção — mas de pasmo diante de tanta audácia. Trazer achegas ao dr. Ooforato! Tomar a palavra no seu primeiro dia de sócio e de maneira polêmica! Era um petulante, Daquele momento em diante seu destino estava traçado. Cuidado com os espíritos de rebeldia! Mas já as atenções voltavam-se para a mesa: o presidente Sabatino Trancoso dava na campainha e depois de preparar as vias, disse dentro dum silêncio de capela o que esperava da segunda apresentação.
— Meus colegas, fados benfazejos reuniram duas comunicações sobre assunto congênere nesta mesma sessão. Vamos ter uma exposição que certo impressionará e que talvez seja uma resposta ao entusiasmo do dr. Amarílio Gonzaga pela operação cesária. Vamos ouvir notícia cujo título abona o que acabo de dizer. Tenho o prazer de anunciar o trabalho — Cesariana ou tomia da fibrocartilagem da sínfise pubiana? — pelo nosso jovem colega dr. Subtílio Trancoso.
O nome chamou a atenção do Egon que pediu informações ao Dimas, sentado a seu lado.
— Esse Trancoso é? parente do presidente Sabatino. Mesmo sobrenome…
— Irmãos. O dr. Sabatino é mais velho cerca duns trinta anos que o Subtílio. O pai dos dois era um patriarca da Interpotâmia, célebre por ter tomado como esposas uma irmã mais moça da primeira mulher e depois uma prima da mesma. Muito católico, não podia ficar sem praticar a maridança e casava sempre, logo depois da missa do sétimo dia da justo falecida — coitadas! sempre de parto empenado. O Subtílio, quando nasceu, já era tio-avô. É um excelente colega. Não quis seguir a clínica médica do irmão. Apaixonado pela cirurgia, estudou-a no Rio sob Brandão Filho. Aperfeiçoou-se na França e na Alemanha. Terá aí seus dez anos de formado e é um batuta.
Nesse ponto o Dimas olhou cuidadosamente em redor, baixou a voz até o registro de cicio e soprou no ouvido do Egon tudo mais que sabia do Subtílio. O Egon retribuía com a mesma sinceridade a simpatia e a franqueza que lhe mostrava o Dimas quando falava ou informava sobre os colegas do Desterro. Ele era desses homens especiais que fazem clínica em qualquer lugar e contra todas as políticas da classe. Sua simpatia imperiosa, sua franqueza às vezes um pouco rude — tornavam-no temido ou quando não, aceito. Ninguém ousava guerreá-lo e ele tinha o privilégio de estadear as opiniões que entendia pois era, além do mais, muitíssimo homem para sustentá-las com argumentos que iam da rasteira ao tiro. Ele continuou.
— No fundo eu admiro e tenho pena do Subtílio. Coitado. Deram-lhe uma dessas educações jesuíticas que transformam qualquer pessoa numa espécie de troço deformado como pé de chinesa. Aperta, comprime, recurva, estica e do homem mais normal conseguem fazer um aleijão. Você olhe bem o Subtílio. Veja aquela hipertricose, aquele vozeirão de basso, aquela calvície, aquele perfil caprino, aquela barba de arame, aqueles músculos, aquela vitalidade, aquele donaire e como médico você diagnostica logo o macho feito para o sexo, da cabeça aos pés. Pois encheram-no de caraminholas e duma tal concepção do pecado e do castigo que o pobre vive na penitência — de tanto pecar por pensamento. Sim, senhor! por pensamento, porque a carne ele conseguiu sufocar num esforço hercúleo. Quando foi estagiar na França e na Alemanha, fora do abafo do ambiente do Desterro, dizem que levou vida de moço, vida alegre e ruidosa de cervejarias e muita aventura com midinettes e frauleins. Dividia seu tempo entre os estudos, os estágios e a vida, os prazeres.
— Mas como é? que você sabe disto, mestre Dimas…
— Ora… como se sabe de tudo, Egonzinho… Pelas filhas da Candinha… pelo dizem, dizem, dizem… Pois dizem que ele chegou da Europa doido para voltar. O irmão é que impediu. Ele ter-se-ia aberto ao velho Sabatino, dizendo que precisava ir buscar sua francesa mas o mano mais velho e toda a família, aterrados! juntaram-se e atiraram-lhe em cima a padraria do Ateneu Mercantil. Conseguiram suprimir o que ficara de normal no pobre Subtílio. Reacordaram seus pavores místicos da infância e adolescência, casaram-no com uma prima que estivera para professar nas Carmelitas Descalças, uma das Ratae da Fazenda da Caridade, destinada a juntar nela a fortuna do pai, das tias freiras e dos tios solteirões. Uma noiva de ouro. Ele casou e com vontade férrea abafou suas glândulas. Trabalha como mouro, jejua três vezes por semana, não bebe, não fuma. Não vai a festas nem a cinemas, estrangulou certo gosto literário que tinha e mais o estético — que o levava a ser um bom desenhista amador e grande tocador de oficlide. Porque está convencido que a mulher começa em tudo isto. Não quer ouvir, não quer ver. É um cego para o mundo. Continente e casto à custa de violência: caça às vezes dias inteiros, só recolhendo tarde e coberto de sangue. E tem mais a violência da cirurgia — agressividade que ele exerce com uma competência e um esforço exemplares. Diariamente está no hospital às sete horas, depois de ter comungado na missa das cinco, assistida de joelhos. Sai à uma da tarde. Vai para casa lanchar frugalmente. Corre para o consultório. Trabalha até oito, nove da noite. Janta exausto. Estuda três horas. Essa luta constante é que o envelheceu antes da hora. A meu ver é uma espécie de demente. E ao seu?
— Ah! Dimas. De acordo. Como é? que se pode ser assim carrasco de si mesmo… Coitado! Um anacoreta isolado no deserto que ele próprio se criou…
— Coitadíssimo. As más línguas dizem sorrindo que ele usa cilício. Mas lá que tem as satisfações do toro, isso tem. Casado há dez anos, tem doze filhos. Dúzia certa. Exatamente um de dez em dez meses. Aquilo é uma máquina. Cicatrizou, tretou, relou — é pau dentro e barriga. Com nove meses — filho. Dizem também as filhas da Candinha que a madame desque casou nunca mais foi menstruada. E tem? tempo…
Já o presidente dava a palavra ao Subtílio e o Egon pôde acompanhá-lo com a vista desde que se levantou. Impressionou-se com o ar de sofrimento, de ascese e de profunda tristeza que ele exibia nos olhos sem cor dentro da maceração das olheiras. Duma palidez de cavaleiro espanhol, cabeça de marfim polido a que a calvície dava tons de bola de bilhar. E usava um daqueles bigodaços de cortina — para disfarçar o corte espesso e sensual da boca e os belos dentes, que eram todos perfeitos. Estava de negro, insígnia religiosa à lapela e até chegar à mesa, andou numa atitude modesta, olhos baixos e as mãos peludas uma na outra — ao jeito do comungante se aproximando do repasto eucarístico. Sentou-se dentro duma salva de palmas de toda a assistência. Quando houve o silêncio ele sacou dum calhamaço e começou a ler numa voz igual e monótona toda uma longa nênia. Historiou a cesariana desde seus tempos remotos. Recordou a legislação antiga que permitia abrir o corpo da mãe morta para, dessas entranhas, extrair o feto vivo. Disse da passagem dessa prática para parturiente viva, citou o caso de César cujo nome vinha da intervenção que o pusera no mundo, demonstrou que certamente fora intervenção em mulher viva — já que havia notícias da mãe de César, ao tempo das guerras das Gálias. Recuou aos hebreus, ao testemunho bíblico e talmúdico de que o Povo tinha praticado a tomia em mulheres vivas. Subiu as centúrias vindo da medicina romana até aos séculos de desde o xv, aos da história contemporânea mostrando a cesária se firmando e afinal adquirindo foros de prática corrente. Deu ali uma grande compilação da história da operação e via-se o esforço que fizera para conseguir todos aqueles dados no Desterro. O Egon achava esquisito numa apresentação científica o “ar discreto” do Subtílio, como a achar sempre que estava indo longe demais, tendo o cuidado de não fazer afirmações categóricas, numa posição não de cautela e de dúvida científica, mas na do homem hábil que não quer falar nem se comprometer. Mesmo assim acabou mostrando-se reservado quanto às indicações da operação. “Estranhareis decerto minha opinião, mas neste século de luzes e descobertas, minha posição diante da operação cesariana ainda é a de receio e fico sempre na tendência de adotar o ponto de vista mais que centenário de Ould, quando ele considerava a intervenção de que nos ocupamos como uma ‘amostra detestável, bárbara e ilegal’ da cirurgia. Assim compreendereis minha alegria ao me informar do achado de um substitutivo humano, rápido, sem perigo e quase incruento da grande operação que tantas mortes traz às mães e aos filhos — na sinfisiotomia pubiana.” Aí vinha uma nova compilação de tudo publicado sobre a Operação de Zarate e finalmente a base em que assentava sua opinião. Um caso. Operado por ele, recentemente. Encerraria sua modesta comunicação (não apoiados!) lendo a observação de sua paciente. “O.S.C., de dezenove anos, preta, criada doméstica, residente no distrito de Tipiti, primigesta de feto a termo, foi internada na Santa Casa na noite de…” Seguia-se a leitura da peça minuciosa até à descrição da intervenção que praticara e do alargamento pélvico imediato que obtivera, do nascimento de um feto a termo do sexo masculino. Quando o Subtílio chegou a esse fim, a sala desabou de palmas e cruzavam-se no ar os muito bem! muito bem! estourando como rojões. O mano presidente estava radioso. Quando se fez o silêncio ele chamou o dr. Amarílio às falas.
— Com a palavra o dr. Amarílio Gonzaga.
— Peço perdão a vossa excelência, senhor presidente — mas não solicitei a palavra nem pretendo usá-la. Não apresentei meus casos de cesariana com fim polêmico e nem sabia que meu ilustre colega o dr. Subtílio Trancoso ia mostrar, na mesma sessão, seu caso de sinfisiotomia. Nem creio que os fatos comunicados sejam matéria de discussão. A Sociedade ficou sabendo da opinião dos oradores e eu, por minha parte, já sei qual é a da casa. Muito obrigado.
— Não tendo o dr. Amarílio Gonzaga querido usar do direito da palavra para defender seus pontos de vista, vou encerrar a sessão. Antes, porém, comunico que a trasladação dos ossos do benfeitor de nossa cidade, o barão da Morsadela, será feita sábado próximo, saindo o cortejo do Cemitério Municipal às sete da manhã. A diretoria da nossa Sociedade espera o comparecimento da unanimidade de nossos consócios, inclusive dos colegas hoje admitidos, os drs. Pedroso Lucas e Barros da Cunha. Está encerrada a sessão.
À hora da saída das Escolas Conjuntas o Egon teve seu braço travado pelo dr. Josué Cesário Camareiro da Silva. Estava com o dr. Martinho e convidavam o médico mais moço a seguir com eles, a levá-los até a casa de cada um, para palestrarem um pouco. Queriam conhecer melhor o filho do velho amigo João Elisiário Pinto Coelho da Cunha. Os dois moravam na rua da Santíssima Trindade. O primeiro, bem embaixo, o segundo, logo ali, quase na esquina de Silva Paranhos. Envaidecido, o Egon acompanhou os dois velhos colegas. No princípio conversa sobre generalidades, comentários sobre a profissão. Quando pararam na porta do Martinho, houve um silêncio, os dois práticos se entreolharam e foi o dr. Cesário que começou a falar. O Egon não reparasse mas ambos queriam lhe dar uns esclarecimentos e uns conselhos para ele poder se dar bem no Desterro. E só faziam isto porque tinham-no achado simpático, franco, engraçado e inteligente.
— Pelo amor de Deus, doutores…
— Sim, senhor, nada de falsa modéstia — e é por isto que tinham combinado aquela conversa.
— Nós éramos muito amigos de seu pai e isto também é que nos anima a abrir seus olhos.
Iam falar de coração na mão. Se ele se aborrecesse, paciência. Um e outro queriam é cumprir o que acreditavam ser obrigação de amizade.
— Ora esta! dr. Cesário e dr. Martinho. Só posso ter no maior apreço o que me disserem. Receberei tudo como conselho e orientação paternais. E digo desde já muito obrigado!
Pois os velhotes cumpriram a obrigação que se tinham dado. O Egon, pasmo, verificou, do que diziam os amigos de seu pai, que ele tinha se atolado completamente naquele seu dia de estreia na Sociedade de Medicina e Cirurgia do Desterro. Quando o dr. Sabatino sentara para abrir a sessão e fizera discretamente o nome do padre, antes de inaugurar os trabalhos, não escapara a eles (e possivelmente não escapara a outros) a cotovelada entendida que lhe dera o Dimas e o cacarejo irônico dele, Egon. Não seguisse muito as ideias do Dimas, nem da Jarina. Muito inteligentes, muito agradáveis, mas péssimas cabeças — espíritos de contradição. E aquela dele com o dr. Prisco, dando notícia do pai no cemitério, fora engraçada, fora — mas verdadeira imprudência. Ele tinha? uma pequena ideia do que era? o Prisco no Desterro, não? Era médico, era deputado mas além disso possuía a coisa venerável que era a fortuna, coisa que o fazia sagrado, uma espécie de oráculo que todos cumprimentavam de baixo e incensavam adorabundos. Provavelmente o Egon ainda não o visitara, hem? Pois tratasse de fazê-lo logo para ver se era desculpado da imprudência dinda agora. Fosse, agradasse e se tivesse pecados podia confessá-los ao próprio Prisco — que é uma espécie de sumo sacerdote honorário. Além do mais, não se devia mostrar espírito, no Desterro. Nada de gracinhas. Cara fechada e fúnebre. E eram capazes de jurar que o Egon ainda não fora visitar o senhor bispo, nem se inscrevera entre os soldados de Santo Inácio. Hem? Estávamos certos disto. Visite. Aliste-se. Também tratasse de agradar ao Ooforato para fazê-lo esquecer aquele aparte sobre as cesarianas de Belo Horizonte. Aquilo fora muito imprudente, muito mesmo. E fizesse a corte aos Trancoso, de preferência a se mostrar tão admirador do Amarílio Gonzaga. E o Egon em pânico via que tinha sido leviano, ousado, atrevido — e que se descobrira aos olhos dos colegas do Desterro. Agradeceu aos amigos do pai, prometeu de pedra e cal não pisar mais em ramo verde, de seguir-lhes os conselhos. Prometeu tudo. O dr. Martinho aí despediu-se.
— Pois vou entrando que está frio. Até amanhã, Cesário. Até amanhã, menino. Juízo nesta cabeça, hem?
O Egon foi descendo a rua com o dr. Cesário. Enquanto ouvia, admirava a bela figura e a prestance do antigo médico, Já tinha reparado, durante a sessão, sua magnífica testa, chegando até um alto de cabeça, onde uns restos de cabelos grisalhos se abriam ao meio e chegavam ondeados, até as orelhas. Tinha as sobrancelhas elevadas para o centro da fronte e deste ponto descia um nariz violentamente aquilino, um destes narizes bourbonianos que só se veem nas ilustrações da História Universal. Usava longos bigodes arrepiados para as bochechas, na mesma direção seguida pelos fios da barbicha aberta ao meio. Tinha a boca um tanto funda, encimando um queixo meio prognata. Seus olhos eram largos e ridentes. Tudo isto lhe fazia uma extraordinária semelhança com o bom rei Henrique iv. O Egon se cumprimentava de ter descoberto aquele Albret-Bourbon ali, no Desterro e tanto tinha olhos para admirá-lo como ouças para ouvi-lo. Agora o dr. Cesário falava da amizade de sua filha Marieta pela mãe do Egon. Contava. Desde meninas. Faziam manha para ir brincar uma em casa da outra. Riram. Seguiram um pouco, calados e logo o mais velho retomou a palavra. Falava agora de dois outros médicos da cidade que o Egon devia procurar. O Hemetério Vilaça e seu filho Jonas Vilaça. Gente muito boa. Com certeza não tinham ido à reunião, preocupados que andavam com sua ideia fixa, nela trabalhando. A criação duma Faculdade de Medicina no Desterro. E com a tenacidade que tinham, principalmente com o entusiasmo do Jonas, acho que não morro sem ver esse templo de portas abertas em nossa terra. Que oportunidade! para vocês moços… Eram realmente dois colegas beneméritos os que estavam se batendo por semelhante ideal. Mas imagine você, meu jovem amigo, ideia tão alta e tão nobre, antes de concretizada, já tinha oposição. Sim, senhor! Triste verdade mas, verdade! Um grupo de médicos dos de mais clínica da cidade era contra. Diziam tranquilamente que, se tinham o monopólio da clientela e dos hospitais, para que se meterem a fogueteiros numa empreitada cujo resultado era dar foros e existência a essa coisa sempre opositora, contestadora e rebelde que era o estudante. Eles é que tinham a perder quando sua posição fosse examinada. E quem sabe? se uma Faculdade de Medicina, mais a Escola de Engenharia local e a Escola de Filosofia não seriam? o núcleo dessa coisa sempre temível que é uma universidade. Aí, então, era a cidade dominada por estudantes e novos professores. Estavam torados: seria a balbúrdia. Pois esses matuiús tinham achado aliados na alta finança e na política locais e antes de concretizada a ideia dos Vilaça e do seu grupo, já estava criada e poderosa uma associação — não para impedir sua criação mas para instalar um sistema através do qual faculdades ou universidade do Desterro permanecessem sempre controladas por grupo imutável e conservador. Foi para isto que tinham fundado a Sociedade dos Soldados de Santo Inácio de Loiola.
— Mas como assim? dr. Cesário. Como é? que sociedade que é quase uma irmandade religiosa pode superintender uma faculdade ou eventual universidade! Não atino…
— Pois saiba você que sim. Os opositores dos Vilaça procuraram apoio, primeiro entre os homens ricos da cidade, os que puxam os cordões que prendem e dão aspeto de vida a esses bonecos de engonço que são os políticos. Esses fantoches locais juntaram-se aos ricaços. Entre estes há uma criatura realmente superior pela inteligência — um certo Lisuarte Taveira, cunhado do presidente Sabatino, que você viu em ação indagora. Aderiu aos do contra e teve a ideia realmente genial da criação dos soldados. Ideia genial e maquiavélica… Passa o gadanho em tudo e jugula tudo. A Sociedade dos Soldados de Santo Inácio de Loiola foi fundada com o capital mirabolante de 33 mil ações da Companhia Desterrana de Luz e Gás cujos juros e dividendos serviriam para manter a instituição e distribuir prêmios, bolsas de aperfeiçoamento e de viagens aos professores do Desterro reconhecidamente católicos, apostólicos, romanos, que se distinguissem no ensino e na pesquisa social, física, química e biológica — quando realizadas à luz da doutrina e da crença cristãs. Essa sociedade de ideologia religiosa, conservadora, ultramontana e reacionária é governada por um conselho deliberativo efetivo e permanente de membros escolhidos a dedo pelo Lisuarte, pelo Sabatino, por outro parente deles o industrial Radagázio Tabosa e pelo senhor bispo.
— Esse Radagázio eu conheço, dr. Cesário. Imagine o senhor que…
E o Egon tomado duma onda de confiança no dr. Cesário contou-lhe todas as cenas da casa da Malvina Lícia e a saída dum Tabosa puto da vida — depois do fracasso com a morena. O velho médico um instante pasmou-se mas logo atinou.
— Não, meu filho. Você viu e foi apresentado ao filho homônimo. O pai Tabosa é da minha idade, mal se aguenta. Pois como eu dizia, o tal conselho deliberativo…
O dito conselho, contava o dr. Cesário, era pois escolhido a dedo pelos quatro pilares da ordem justamente entre personalidades do clero e das elites dominantes, entendendo-se por tal as elites financeiras. Conta ainda com mais vinte e cinco membros renováveis de dois em dois anos, tirados dentre os profissionais liberais, possíveis futuros professores das prováveis faculdades a se abrirem no Desterro. Assim estabeleceu-se um grupo que escolherá os professores entre os seus, antes de concurso ou outras maneiras de seleção. Que será a reitoria oculta de universidade que se abra. Será a maçonaria, a máfia, o establishment — o nome que você quiser dar, que terá sempre uma corda no pescoço do magistério e que será a verdadeira direção do ensino no Desterro, dando-lhe a fôrma por que são moldados os mandachuvas da cidade no Ateneu Mercantil. Digo isto a você assim com franqueza porque esta gente não me faz medo. Sou homem rico, não preciso de ninguém, opino como quero e digo o que bem entendo. O Martinho é outro independente. Não que seja rico mas é comodamente remediado e além disso o médico de família de todo o município cima a baixo. Ele não depende de ninguém mas, no fundo, todos dependem dele e das suas receitas porque na realidade é o maior clínico daqui. Dá poeira no Sabatino. E você sabe: na hora da doença e da onça beber água, até o bispo apela para ele. Assim ele e eu vamos levando. Tivemos até o topete de educar nossos filhos no Instituto O’Grady e nossas filhas no Colégio Metodista Feminino. Pois olhe, aqui estamos, este é o meu portão. Sempre que quiser… E… cuidado…
— Muito obrigado! dr. Cesário. O senhor mesmo nem pode imaginar o bem que suas palavras e as do dr. Martinho fizeram. Vou seguir à risca o que me aconselharam. Muito obrigado. Boa noite.
— Boa noite.
O Egon, da porta da casa do dr. Cesário, veio subindo devagar a rua da Santíssima Trindade. A noite estava gelada. Uma bruma algodoava tudo e uma solidão de chumbo parecia ter descido sobre a cidade. Chegando à esquina da rua da Indústria tomara à direita, com a intenção de ir até seu encontro com Precursório Ramos, onde havia uma espécie de fecha-nunca chamado Dia e Noite. Lá ele comeria um bife rápido, para logo seguir para o conchego de sua cama em Santo Pretor. Estava firmemente decidido a não ceder mais a nenhuma solicitação do seu espírito todo puxado pela boemia. Que diabo! Tinha de se preparar para dar de si melhor impressão que a deixada por sua estreia na Sociedade de Medicina e Cirurgia. As palavras dos amigos de seu pai tinham ressoado fundo dentro dele e acordado os conselhos que lhe tinha dado, em Belo Horizonte, seu caro Ari Ferreira. Era preciso ter juízo. Parou um instante à esquina de Schimmelfeld para olhar o algodoado da bruma que aumentava. Olhou em direção do morro do Redentor para ver a iluminação da capelinha, lá em cima, mas nada era nítido. Havia no alto uma brancura difusa, como se as luzes estivessem envolvidas em gaze. Continuou até vencer a esquina de Rainha e depois chegar à rua do Rei onde ficava, no encontro desta com Indústria e Precursório, a bendita casa quentinha onde ele mataria sua fome. Sentou num canto abrigado e pediu seu bife a cavalo com batatas fritas.
— E para beber? dr.
— Nada. Água pura, água da bica.
— Nada? mesmo, nem um traguinho praquecer? Olha que temos uma fina portuguesa da pontinha…
— Vá lá então o capote interno.
O médico estava no meio da sua dose quando viu aparecer numa porta a cara desconsolada do Oscar Videla, moço engenheiro, seu amigo de Belo Horizonte. Gritou-lhe o nome e foi aquela manifestação. Quando cessaram as palmadas nas costas e os abraços, o Oscar declarou que chegara na véspera, que viera servir no setor ferroviário com sede no Desterro. Tinha sido nomeado para a Central do Brasil e fora lotado naquele lugar detestável. Ele não podia se conformar de ter deixado Belo Horizonte. Impossível esquecer sua turma, o Bar do Ponto, a namorada, tudo… Nem sabia se ia tolerar aquela merda. E o que é? cocê tá tomando. Inteirou-se, chamou o garçom. Deu ordens imperativas.
— Uma bagaceira pra mim também, amigo! e renove a do dr. Egon.
Estavam nisto quando sentiram uma algazarra vinda da rua, um estrupido de muitos passos, gargalhadas. Um ruidoso grupo invadiu o botequim tendo à frente e como a comandá-lo, o Luisinho Bracarense. Quando ele pôs o Egon no eixo da sua mirada, foi outro estardalhaço. Aproximou para abraçar como só ele sabia abraçar. Era um amplexo sacudido e tão cheio de apertões sucessivos que o abraçado às vezes tinha os óculos quebrados no bolso e a caneta-tinteiro estourada. O Egon logo notou que ele estava altíssimo.
— Nego, que encontro. Quero apresentar você à minha turma. Vem cá no reservado.
Não havia como fugir e o Egon acompanhou o Luisinho.
— Pessoal, taqui o tal amigo do Fabinho que eu falei. É um negócio. Médico, poeta, pintor, homem do mundo. É tudo. E vai morar no Desterro chefiando um troço do Centro de Saúde. Rrr-releitz!
O Egon contrariado teve de ser apresentado a toda a turma do Luisinho. Teria de sentar, confraternizar, demorar. E ele que queria entrar em casa cedo, para acordar cedo… Entretanto o Luisinho procedia às apresentações.
— Essa gente aqui é a única que conta no Desterro. Percival Aquino de Aviz, Antônio Falcão de Valadares, Joel Martinho da Frota, Juvenal Figueira, Sílvio d’Aquino — primo do Percival, os Bracarenses, irmãos, o Paulo e o meu xará Luís — xará e rival, rrr-releitz, negócio de Luisinho ii. Outro xará Luisinho iii — que é Luís Cesário Camareiro da Silva. E o nosso Marimacho Homem Campelo. E agora, nego, vai buscar teu companheiro pra ficar conosco.
Constrangido, o Egon foi buscar o Oscar Videla. Novas apresentações e finalmente sentaram tendo tido imenso prazer de se conhecerem. O garçom chegou com o bife do médico. O Luisinho fê-lo voltar, com autoridade.
— Comida agora não. Vamos primeiro respaldar um pouco; depois todos comem juntos.
O Egon reparou primeiro no Marimacho Homem Campelo. Era uma figura de cabelos muito colados à brilhantina, olhos tão risonhos! vozinha fina, imberbe, muito baixinho e muito gordinho. Mesmo parado, rebolava. Quando ele começou a falar — muito sefazedor o médico prestou atenção e disse de si para si — você não engana, mas ao menos podia disfarçar um pouco e não ser tão escrachado — puta merda! Então? tem disto no Desterro. E assim às claras… Foi quando o Marimacho levantou para ir lá dentro, é que a alma caiu-lhe aos pés. Ele estava de jaquetão cinzento, colete, colarinho duro, gravata, sapatões grossos mas tinha substituído as calças por saias. Bestificado, ele olhou para o Luisinho e todos estouraram da perplexidade do médico. Mas choravam de rir… Foi o Luisinho que tornou a tomar a palavra.
— Quê? cocê tava pensando, nego. Tava certo que era veado, hem? É não, mas é a mesma coisa. Não é Marimacho não — que isto é nome de brincadeira. É mulher mas, mulher-homem. Negócio de gunhote. Queria andar de traje masculino no Desterro mas o delegado não deixou. Aí ela deu de usar essas roupas, tudo criação dela. Tudo de macho, mas de saia. E saia de comprimento obrigado pela polícia. Não é? gozado. Choooooooobs… E frequenta a zona como nós. Agora então, vive atrás da Chica para curar dor de corno da mulher dum turco que ela perdeu pra outra fressureira. Você tá? estranhando, nego. Uai! o Desterro civiliza-se.
Divertido e interessado, o Egon já não pensava em irimbora. Tinha de tirar todo o proveito daquela pechincha. Perguntou, inquiriu e quando a Marimacho voltou, logo puxou conversa. Era. Não escondia e falava com franqueza do seu sexo, da igualdade que assumira e que obrigara o Desterro a aceitar. Mas depressa seu bizarro desapareceu e ela confundiu-se com os que a tratavam como camarada. Sua conversa era inteligente e pitoresca. Quando sua curiosidade aquietou é que o Egon atentou nos outros componentes do grupo do Luisinho. Mal sabia ele que estava conhecendo ali amigos que não se separariam mais dele por toda a vida, como o Aquino de Aviz e o Falcão de Valadares. Como o Joel Martinho que tanta influência teria no seu destino de médico. Outros, cuja convivência desapareceria mas cuja lembrança seria duradoura: lembrança de gente boa, de saudosos e bravos companheiros de mocidade. Jamais esqueceria a elegância e a educação do Juvenal Figueira, a bondade do Sílvio, a bravura dos manos Bracarense, nem o trágico pitoresco da, ou do, Marimacho Homem Campelo.
O Percival Aquino de Aviz era pessoa absolutamente adequada ao nome de novela, cavalaria e nobreza que ostentava. Rapaz ali pelos seus vinte e tantos, muito magro, mas válido de esqueleto, largo de ombros, muito ereto e de airosa postura. Alto. Vestia sempre escuro e com apuro. Era pálido, duma palidez saudável que junto à magreza lhe dava ar de monge ou dum leão dos tempos do romantismo. Tinha perfil muito fino — nariz-rostro de ave, dentes sempre se mostrando no riso fácil — muito claros e proeminentes. Olhos pretos, largos, demorados e neles se liam a franqueza e a bondade que eram as características do Percival. Sobrancelhas cerradas de nanquim. Tinha a amizade fiel e dedicada — apesar de não isenta de severidade. Impunha-se a todo mundo pela finura de seu espírito e a correção incomparável das atitudes. Dançava espanholescamente bem e tinha um sucesso estrondoso no meio feminino. Já nesta época era funcionário do banco e nessa carreira sempre se manteve, dela correndo todos os postos de baixo até acima. Mais tarde moraria no Rio onde reencontrar-se-ia com o Egon e por este tornar-se-ia amigo do Cisalpino Lessa. O Percival era desterrano de boa cepa e da gente fundadora. Era dos Fortes, dos antigos Fortes do Alferes — apesar de não ter conservado esse nome, porque o sangue lhe viera por via feminina.
O Antônio Falcão de Valadares teria a idade do Percival. Tinha caracteres cromáticos variáveis dentro da escala e das contingências ambientais desvendadas pelos pintores impressionistas. O dia alto e o sol faziam-no muito claro e dum louro de espiga. De noite, era castanho, de pele amorenada. Tinha os olhos extraordinariamente bons mas a obrigação profissional da cara amarrada levava-o a contrair severamente o cenho e a apertar a boca ao ponto de dar-lhe a forma dum V maiúsculo. Queixo fino e um pouco projetado. Era, na intimidade civil e de terno — extremamente alegre e ria descuidadamente. Fardado, mudava completamente e quando aparecia de cáqui e laço húngaro nos ombros, ria nunca. Pertencia ao grupo do exército que forneceria mais tarde os “tenentes” de 30. Aderiu de corpo e alma a essa Revolução e dela lhe veio, no apogeu do tenentismo, interventoria de estado do Norte. Chegaria ao generalato, com a alegria e o espírito jucundo que constituíam sua inalterável marca; morreria nesta espécie de flor da idade moral, no Rio de Janeiro, depois de reformado.
O Joel Martinho da Frota era o filho mais moço do dr. Martinho da Frota, o grande clínico do Desterro. Ele próprio, médico formado há pouco, era um dos inauguradores da pediatria e ipso facto das especialidades clínicas na cidade. Mas sempre se tinha nela como se fosse de modo provisório: ansiava por meio grande e para vir emparelhar, no Rio, sua reputação à consagrada de seu irmão também médico de crianças, o dr. Martinho da Frota Júnior. O Egon o tinha encontrado horas antes, na reunião da Sociedade de Medicina e Cirurgia e ficou espantado de tão pouco tempo depois não ser reconhecido pelo Joel. Foi a primeira distração que surpreendeu no seu novo conhecido e o tempo mostrar-lhe-ia que aquele era o homem mais vago, abstrato, alheio com que ele teria contato neste mundo. Era moço, alto, magro, musculoso — com a cara fina e inconfundível dos Frota, nele mais doce que no pai e no irmão. Era muito elegante e casado de pouco com moça americana, filha dum seu professor no O’Grady. O casamento foi o motivo que ele alegou para retirar-se logo depois de ter ceado.
— Lamento não demorar, porque a roda está muito boa. Egon, muito prazer e você apareça com o Luisinho em minha casa. Moro em Santíssima Trindade, encostado a meu pai.
O Luisinho, depois da saída do Joel, ordenou uma rodada geral de bagaceira, chamou o garçom de parte, disse que estava tudo liquidado e aos outros, que podiam bater-se para o bordel. Comandava. Ele estava roxo para ir encontrar a Zenith na Malvina Lícia. O mesmo acontecia com o outro Luís Bracarense. Aquilo fazia um 69 de cornificação. Duas forças iguais e rivais se anulam e ambos seguiram a resultante que era o conventilho da Valparaíso. Lá, abancados, na sala de jantar, servidos de cerveja, o Egon pôde retomar o estudo da figura da dona da casa — que sempre o fascinara. Era uma mulher bonita, queixo forte e quadrado, boca sensual passada ao carmim, voz no registro dos contraltos, olhos cor de aço dentro de pálpebras muito pintadas, embaixo de sobrancelhas fortes. Não maquilava a pele do rosto: apenas de pós de arroz. Cabelo grisalho, forte, muito curto, à la homme; brincos de pingentes, elástica e enxuta — via-se logo que ela era da confraria da Marimacho. Logo se entenderam e a última bateu-se para o quarto da Chica. Todos gozaram a Valparaíso, sabido seu rabicho pela dita hóspede. Ela riu.
— Deixa a menina ganhar o dinheiro da colega. Quando ela sair entro eu e tudo fica certo. Ciúme é coisa que não conheço.
O Egon curioso pediu detalhes e a Valparaíso explicou que a Marimacho era excelente freguesa e michê tão bom como qualquer homem. E mais escrupulosa que estes que, quando podiam, já se sabe — carona. Com a colega, não. Ela é muito decente e faz questão de espirrar seu cinquentão.
— E vocês duas, nunca…?
— Visto, mano. Mas há muito tempo. Passou. Hoje eu até protejo… Quando tem novidade, eu repasso primeiro mas depois, aviso ela, coitada.
A noite cumpriu-se de acordo com o programa. Um por um, os companheiros iam indo simbora. No fim ficaram o Luisinho, seu xará Cesário, o Egon conversando juntos. Lá entre elas, a Valparaíso, a Marimacho e a Chica do Padre trocavam confidências ou se gabavam. Como colecionadores de selos que falam nas suas peças raras (os olhos de boi, os de cabra, o “Ceres” vermelhão francês, de 1849), as especialistas mencionavam suas conquistas ao som de Pour Élise que a dona da casa pusera baixinho na vitrola. Os olhos das três luziam como os das hienas e elas iam roendo seus ossos mais raros: uma ecuyère de cavalinhos; uma encantadora de cobras; uma campeã de tênis; a dançarina acrobata do Cinema Central; certa mutilada de perna mecânica; uma contorcionista mulher-serpente do último circo que passara…
— Uma mulher barbada — silvou a Valparaíso.
— Uma ceguinha — soluçou a Marimacho.
Como contracanto, vinha do outro lado da mesa voz de estranha doçura, baixa, veludosa, macia, convincente. Era a do Luisinho suavemente falando — falando suavemente de cu e alma e dizendo ao seu xará — que cagava pro mundo e limpava o rabo com a opinião pública. Rrr-releitz! Foi quando o Egon viu que os tempos eram chegados e pulou, de relógio na mão. Foi implacável. Eram as quatro e ele ia. Os que quisessem ficassem e ele sugeria chave de ouro com uma franciscana. Saiu. Havia um frio polar. O céu muito limpo mostrava estrelas que cintilavam duras e glaciais. Uma bruma pesada, vinda do rio, cobria o solo comuma gosma e o médico caminhava como se estivesse atolado até às virilhas numa nuvem pegajosa. Brancura astral fazia as fachadas das casas se comporem e se combinarem como pedaços de vidro, de espelho — diedrando, triangulando, quadrangulando a paisagem de uma cidade de gelo.
Pontual, o Egon, decorridos quinze dias de sua conversa com o marido da prima, apresentou-se ao encontro marcado em seu “palacete”. Eram duas e um quarto quando ele parou frente à entrada, ali na rua do Cenobita. Era um portão de serralheria, entre duas colunas de granito, encimadas vigilantemente por dois buldogues de cimento ou de pedra pintada a óleo marrom. O médico retomou contato com os dois monstros de sua infância, de quando ele vinha menino, com o pai ou a mãe, visitando o Pareto e a tia Felisberta. O horror que ele tinha aos cães estilitas retornou como se ele reingressasse chofre, na sualma quatro, cinco, seis anos. Pôs o pé dentro do jardim e, ao crissar do cascalho, firmou-se mais e mais naquela volta do tempo. Olhou. No alto a mesma cara hostil, a dum gigante, surgia de entre árvores ramalhudas. Era a varanda cujas colunas guarneciam dois vãos laterais que pareciam bugalhos e a porta central, volumoso nariz de alto cavalete. A boca era reta e deixava passar a língua-de-fora duma escadaria cujos corrimãos pareciam as guias duma bigodeira gaulesa. Pequenino, ele sincretizava essa figura à do Pareto, sonhava pesadelos com as duas e acordava para o dia, naquela tristeza enjoada que já lhe gelava os ombros — como capa molhada. Num desânimo assustado começou a galgar rampa reta que conduzia à goela hiante da avantesma em cima — ai! sem mão de pai nem de mãe para se segurar apoio de antigamente. Ela subia enorme, magicamente sonora dum rangido que os pés despertavam no cascalho britado que a cobria de neve reluzente. Dos lados, renques paralelos de caliandras imóveis, sem brisa, hirtos, metálicos como se fossem troncos, galhos, folhas artificiais. Os paus eram dum pardo feio, como que doente e sua casca rachava-se em longas feridas esbranquiçadas. Os galhos lentos, manhosos, trançavam-se uns nos outros, davam-se nós, semaranhavam-se, teciam uma espécie de cipoal que facilitava o uso da planta, para fazer sebes apertadas, densas, mais fechadas pelas folhas numerosas, recortadas, divididas em folíolos, subdivididos em pínulos rijos e cruéis como espinhos, dum verde compacto, não vegetal, antes reluzindo num lampejo mineral escuro e turmalínico. Formavam duas altas paredes aos lados, paredes que se acendiam aqui e ali de olhos esmaragdos — anéis das lagartas tintas de azebre que ventosavam e deslizavam sobre os nós cegos daquelas sarças. Menino, jamais o Egon tivera a ideia de arrancar um galho, uma folha àqueles vegetais tal o horror que lhe inspiravam as larvas fervilhantes feitas de anéis viridantes eriçados no dorso e aos lados por cerdas da mesma cor — que fincavam como dardos e queimavam como as brasas. O moço médico via agora que elas eram diminutas, não maiores que sua toquinha naquele tempo, quando endurecia sem ele saber por quê nem para quê quando as negrinhas da casa de sua avó lhe davam banho. As pequeninas roscas animais não tinham o tamanho que ele lhes emprestava na infância — quando figuravam os dragões que sua mãe matava com a ponteira de sua sombrinha encantada. Mas mesmo assim pequenas — no seu colorido veronês, imaturo, cheio de vegetabilidade — sua horripilação era a mesma. Ele ia vencendo mais e mais a ladeira e olhava um lado e outro — no temor daquelas folhas-lança, daqueles dragões lança-chamas pela goela e mal via que flores também se estrelavam ali jogando sua explosão rósea sobre o fundo sinopla. Em qualquer outro lugar seriam lindas flores. Não ali, onde tudo parecia coisa de cabala e bruxaria. Eram formadas dum miolo de que irradiavam centenares de estames retos, eretos, duros e suavizados pela finura. Leitosos no ponto de nascimento e atravessavam todas as gamas do branco ao róseo fraco, mais forte, escuro — dando dupla tonalidade à linda flor. Criando sua aparência de leveza, de imponderabilidade, de coisinha que vai voar. As anteras destes espeques eram tão indecisas que sumiam no ar como se a flor não tivesse contorno e só fosse cor. Quando há cigarras zirzinindo parece que elas é que cantam. Ali não, porque o Egon fazia descer sobre tudo remotas lembranças ominosas. Aquela entrada sempre lhe parecera hostil pelas folhas agudas, pelo trançado proibitivo de plantas — fazendo como as que tinham isolado para sempre o Palácio da Bela Adormecida. Ranger de cascalho como rosnar de mastins ao longe. Os dragões de fogo bichos-cabeludos. Tudo ali falava e dizia não, vaitimbora, não entra, passa já daqui pra fora. Pensou em não prosseguir mas já as sebes tinham ficado para trás e a subida dava em dois caminhos estreitos que se juntavam como anel — seu arco mais alto, ao pé da escadaria. Começavam junto duma gruta artificial feita com pedra e cimento, formando estalactites de que corriam fios dágua e gotas para a bacia de pequeno tanque onde boiavam e se moviam peixes vermelhos — lerdos sobre fundo lodoso. Dois braços subiam, um de cada lado, demarcados por redondos de garrafas de vinho Chianti cujos gargalos eram fincados na terra. Gênero muito usado no Desterro para limitar canteiros e alas de jardim. Chegando à escada, antes de subir seus altos degraus, o moço olhou para baixo e para o percorrido. As duas sebes laterais aparadas formavam dois lingotes enormes, três faces no ar, uma rojando a terra. No meio, o caminho cheio de história familiar. As da avó, empunhando garrucha, vindo pé ante pé de madrugada, cautelas de ladra, para ver se ouvia ruídos de maus-tratos à filha. A dos candidatos chegando floridos para pedir em casamento e descendo com as negativas latas latindo nos seus calcanhares. Para os dois lados de fora das sebes, só árvores, chão de folhas secas e dois tanques, embaixo, também secos, encimados de pontes ornamentais de concreto imitando galhos de árvore.
Dali divisava-se bem a fachada da casa, beirais do seu telhado. A construção fora feita por um primo do pai do Egon, Júlio César Pinto Coelho, coronel da Guarda Nacional, engenheiro prático, mestre arquiteto com lampejos de gênio. Ele adivinhara o valor plástico do cimento e suas possibilidades modulares. Um pouco mais e teria descoberto como armá-lo. Aquela casa parece ter sido sua obra-prima e sua construção deve ter marcado data revolucionária no estilo das edificações locais. Era um casarão quadrado igual aos outros da cidade e ficaria dentro dos padrões habituais se a inventividade do parente do médico não tivesse resolvido transformar a entrada num avarandado com absurdas colunas coríntias e ter substituído as serralherias que deviam guarnecer as sacadas das janelas e as partes laterais da varanda e sua escadaria — por modulagens, formando florões folhagens. Eram feitas de concreto, provavelmente em moldes, a julgar por sua igualdade. Havia peças simétricas com giros que se opunham. Eram a reprodução de vegetações amazônicas e brutais com folhas grossas como se as inchasse uma seiva de criação do mundo. Lembravam as flores de pano que fazia outra prima do Egon, a quem ele chamava tia Joaninha. A inspiração das corolas de seda e veludo e dos acantos e louros gigantes de cimento e reboco — deve ter sido analógica ou contemporânea. Aquele avarandado com a escada, os torreões que o encimavam, os ornatos argamassados — o conjunto pintado dum óleo imitando granito e encastoado numa casa colonial era de uma extraordinária originalidade. Com tudo isto, por impossível que pareça, a casa tinha um ar de leveza, proporção e medida que justificava a insensatez arquitetônica. O Egon olhou longamente a fachada tão de sua infância. Nada mudara. Era a mesma casa de quando ali tinham morado a tia Felisberta e seu marido. No sobrado de sua avó referiam-se a ela como a “casa da Felisberta”, a “casa do Nariganga”. Este dera-a, de dote, à filha quando do seu casamento. Logo no dia seguinte toda Desterro já dizia o “palacete da Carminda”, o “palacete do Ezequiel” como se o simples fato dele ali morar tivesse modificado paredes, tetos, assoalhos, telhados — como um banho de ouro ou como a incrustação de joalherias nas cimalhas. O palacete do Ezequiel. O doutor considerou bem os degraus que menino lhe pareciam de gigantes e pisou no primeiro. Subiu. Bateu. Uma criada demorou mas apareceu. O Egon identificou-se.
— O senhor faz favor de entrar para esta sala.
Sua velha conhecida a sala de visitas. A mobília era a mesma. Tinham aumentado as japonerias e chinoserias em moda na época — os bambus, juncos, lacas, os biombos, as esteiras porta-postais, os bibelôs sino-nipônicos. Também aumentara a pinacoteca com os belos quadros da fase azul da dona Maria Celeste e das suas alunas. Eram luares feéricos sobre baías de sonho em mares metilenos — calmos como os das costas d’África que evitou Cabral. Ficou olhando e lembrando do baile que ali houvera, dia claro, no dia do casamento da Alódia e do Balbino. Que idade ele teria? Quatro? Cinco anos? Entretanto lembrava das palmadas que tomara de sua mãe por ter-se pendurado às abas-asas da casaca do noivo zangão que rodava e adejava em sua valsa-voo nupcial. Conhecendo o velho hábito mineiro da fiscalização prévia das visitas — espécie de alfândega, polícia portuária, o Egon sabia que durante sua espera ele não escaparia a olhares indagadores que se filtravam pelas fechaduras, frinchas de portas, buracos feitos adrede nas bandeiras das ditas, sistema de espelhos etc. Já conhecia tudo isto das casas de sua avó materna e de suas tias — principalmente da Jajá, perita nesse sherlockismo. Naquele “palacete” genuinamente mineiro os periscópios não deviam faltar. Por isto ele sentou-se, tomou pose adequada e apenas circunvagou o olhar pelas coisas e paredes. Nada especulou dos bibelôs e dos quadros — pelos quais nutria a maior curiosidade. Havia na sala doce sombra — sombra que ele reconhecia. Era a mesma dos tempos da tia Felisberta. Súbito a porta abriu-se e o Ezequiel adiantou-se num sorriso.
— Vamos passar para o escritório. O dr. Pareto e o Balbino estão lá.
Adiantaram-se para atravessar o vestíbulo. O dono da casa, perfeito, abriu a porta fronteira à da sala e colocou-se de lado, mostrando com um gesto bem-educado o caminho para o moço passar em primeiro lugar.
— Queira entrar.
O Egon entrou. À sua frente, para a direita-fundo da cena — belo grupo belle époque — encostos estofados e assentos inçados de almofadas maiores, menores, veludos e cetins de todas as cores, onde já estavam sentados o Pareto e o Balbino. O primeiro, cara de sempre e fechado em copas, fumava um cigarro. O segundo, rosto de porcelana e olhos de boneca, só dava impressão de animado pelos movimentos que fazia levando à e tirando da boca um charuto, cuja cinza ele cultivequilibrava e que já estava enorme sem cair. Era fumante técnico. Sentaram-se todos sem palavra, depois da pantomima dos cumprimentos. O Ezequiel tomara o sofá onde estava o sogro. O Balbino ocupava a cadeira de braços à esquerda deste. O dono da casa, com outro gesto nímio e de aparatosa condescendência, mostrou a da sua direita.
— Queira sentar-se.
Num instante o Egon passou os olhos pelo gabinete. Era simétrico e do tamanho da sala de visitas. Ali o dia não se crepusculava através de cortinas espessas mas entrava pelas malhas das de renda penduradas diante das janelas. À luz crua, três quadros se destacavam sobre o papel claro das paredes. Alto, no meio, a oleografia do Sagrado Coração de Nosso Senhor Jesus Cristo. Aquela em que ele com a destra aponta o alto (como o Platão da Escola de Atenas, do Rafael) e com a sinistra o exocórdio pungido de espinhos, chamejando pelo pedículo e irradiando puraluzerna amor pelos homens. À esquerda, outra moldura ouro e veludo vermelho com o retrato ampliado do coronel Geminiano Fortes, pai do dono da casa. Representava figura entre força do homem e princípio da velhice, rosto alongado pelo cavanhaque, olhos severos e carregados de desdém, nariz de boa raça, bigodarras arrepiadas, boca de traço tão firme como o das estátuas, ar de autoridade, frieza, impassibilidade e orgulho iguais aos que se encontram nas faces dos masculinos da escola espanhola: cabaleros de El Greco, santos de Ribera, guerreiros de Velázquez, estáticos de Zurbarán, gentis-homens de Goya, familiares e prelados inquisitoriais de Bermejo. À mão direita do Filho, outra moldura igual com ampliação gentil do retrato da Carminda pelos seus quinze ou dezesseis anos. Era um perfil de moça, ainda não despedido da meninice, um rosto túmido de juventude, graça, decisão, firmeza, acabado, definitência, consumagem, perfazimento e perfatura que o tornavam insuscetível de qualquer acréscimo, doutro toque arremate. Era imperfectível porque os deuses e deusas não são perfectíveis. Eles são como aquele retrato mostrava que a Carminda era sobre-humana. Divina Carminda! Ela representava-se um pouco de lado, quase de perfil, na pose da moda entre os fotógrafos da época, em que ligeiro virar deixa aparecer as pestanas do lado oculto e um pouco das madeixas contrárias. Seu penteado era aberto ao meio e os cabelos ondeados iam se prender no pequeno coque, encimado pela borboleta dum laço de veludo negro. Mechas finas caíam adiante das orelhas, em espirais que lembravam os elementos bastardos dos cachos de uva. Sua beleza tilintava em prata pequena campainha. Era isto: campainha de prata — a silver bell — logo para ele, para ele, o Egon deu-lhe o nome que cabia. Quando ele a evoca surge com ela o nome de Silverbel e a essa palavra sua alma canta. Era um Ticiano adoçado por Sandro Botticelli. E estava ali, emergindo duma espuma nuvem o pescoço da Simonetta Vespucce. Sim, saía de uma espécie de aljôfar marinho nuvem branca tecido precioso e fino rendando e sumindo como um perfume. Tal sugestão foi tão forte que o moço sentiu tudo como que impregnado de heliotrópio cardamomo cravo violeta íris vetiver e o retrato borrou-se para dar lugar à figura que Alfons Mucha fez para o rótulo do lança-perfume Rodo. Essa imagem de ouro substituiu-se um instante à da prima do Egon e os cheiros que a associação trouxera foram apagados pelo sarro do cigarro do Pareto. O moço reassumiu-se e voltou à realidade. Captou o resto do escritório. Além do grupo sofá e cadeiras, dos quadros, havia duas escrivaninhas antigas de jacarandá rosado. Uma era a do Pareto, que deixara ali seus velhos tratados de direito que ocupavam estante sob o retrato da filha. Eram de encadernações antigas, escurecidas pela poeira e tornadas foscas pelo raro manuseio. Noutra estante, sob o retrato do pai do dono da casa, estavam os livros do último. Toda a coleção da Biblioteca Internacional de Obras Célebres e ainda as de Coelho Neto, Júlia Lopes, Belmiro Braga e as mais modernas e ousadas — “livros muito fortes” — de Theo Filho e Benjamim Costallat.
Todas as sugestões e associações despertadas pelo ambiente passaram dentro do Egon, como filme que durasse uns minutos (o tempo de sua vinda da sala e o de sentar-se entre aqueles três contraparentes), talvez nem isto e melhor fora contar tudo em segundos. Agora preparavam-se para iniciar uma conversa — coisa extremamente difícil entre praticamente desconhecidos, como eram eles quatro ali sentados e se olhando com curiosidade e uma inevitável ponta de má vontade. O Ezequiel, como dono da casa, bateu no teclado o lá de afinação da orquestra.
— Então? como vão as coisas pro seu lado? Gostando? do Desterro.
— No ramerrão. Trabalho no Centro, ando na rua Schimmelfeld, vou ao cinema, conhecendo pouca gente, fazendo minhas primeiras visitas. Já estive no tio Pareto, hoje vimcá e de parentes só fica faltando ir ver o Antonico. Fui outro dia à Sociedade de Medicina, conheci lá os colegas mais importantes da cidade…
— Mas não apareceu na trasladação. Ocupado noutra coisa… hem?
— É verdade, me esqueci, quando dei conta já era tarde pra ir. E o seu discurso? Foi pena que perdi. Mas com certeza você tem cópia. Tinha vontade de ler…
— Justamente eu ia ler para o dr. Pareto e se você quer ouvir…
— Faz favor. Não quero saber de outra coisa.
O Ezequiel abriu a gaveta da sua secretária e sacou de lá um calhamaço de suas boas vinte páginas. Tocou um tímpano. A criada chegou e ele pediu café e água mineral para todos. Para ele água comum, açucarada. Aquilo era, certamente, para adoçar as vias. Quando tudo veio e todos se serviram o dono da casa começou. Era primeiro o elogio do Desterro — Halifax e a princesa de Minas, sua cidade mais próspera e dotada do clima, dos céus e da natureza que a faziam invejada de toda a Mata e Centro de que por assim dizer ela era o eixo, estendendo a uma, sua mão direita carregada das benesses da agricultura e da pecuária; e ao outro sua esquerda enegrecida pelo óleo poderoso das máquinas da indústria. Fez o elogio dos Fundadores, cuja justa e necessária fortuna era como que devolvida aos desterranos em serviços públicos, em assistência, amparo, caridade — mas principalmente no exemplo de vida moral — tudo sob os olhos de Deus e do estado ali presentes, numa cerimônia cívico-religiosa conduzida pelas figuras excelsas “do nosso presidente da Câmara — esse varão de Plutarco” e “do nosso reverendíssimo bispo — esse apóstolo e modelo pastoral de virtudes cristãs”. Aí entrava-se em cheio no Morsadela. Nascimento dentro de família temente a Deus, o pai austero, sua resoluta progenitora, a educação edificante num seminário, a primeira comunhão, suas virtudes, o Hábito de Cristo, seu matrimônio e toda uma vida esmoler. Perorou dizendo que aquilo não era uma trasladação mas o plantio duma árvore teologal de fé, esperança e caridade. “O que hoje trazemos para este alto alcandorado da cidade, meus caros concidadãos — não são ossos mas, uma semente. Semente que dará tronco; tronco que crescerá; crescimento que é progresso; progresso que é fortuna; fortuna que é fruto — fruto carregado de sementes; sementes que darão troncos; troncos que crescerão”… Um fecho de ouro encerrava esse parafuso sem fim e o Ezequiel parou. Parou e olhou ansioso os circunstantes.
— Admirável. Melhor que isto só Rui ou o padre Júlio Maria — soltou o Pareto.
— Estou ouvindo pela segunda vez e quero uma cópia para ler de vez em quando — disse o Balbino.
Voltaram-se todos para ouvir a opinião do Egon. Este, lembrado do Aníbal Machado ouvindo certas produções suas, fez um olhar distanciado, alçou a meio sua mão e esfregando o polegar direito nos outros dedos, deu seu parecer.
— Muita substância, Ezequiel. Muita matéria, mas muita mesmo… Dá licença…
Pegou no original e passou os olhos. Ele não tinha ouvido errado não. Estava escrito como tinha sido lido: logo o primo sofria daquele vício de ouvir, de falar, de escrever — em que sempre uma letra varia de sílaba em certas palavras. Preto no branco: celebral, bocoitar, compurscar, savalguardar. Coisa passável. Mas no primeiro orador do Desterro — era uma maçada.
A conversa continuou, agora noutro rumo. Primeiro caçadas. Depois assaltos de florete. Raças de cães de caça. As irmandades. O retiro que ia começar para os ex-alunos do Ateneu Mercantil. Safra de algodão. Nesta o Ezequiel era inesgotável e baseava suas opiniões na prodigiosa produção da fazenda paterna que ele administrava com rara competência. Aquele solo maninho até então nevara-se de agoldoais surpreendentes depois das melhorias agrícolas que ele ali introduzira. Primeirosteus estava dando capuchos como as melhores terras do sul dos Estados Unidos, do Paquistão, do México, do Sudão. Mesmo sobrepujava esses lugares clássicos e em 1927 e 1928 dera algodão com fibras de quarenta e cinco milímetros e até com o absurdo das de cinquenta e dois. E a resistência? Em alguns tipos chegara ao recorde mundial de dezesseis gramas. Inédito, nunca visto. O Ezequiel entusiasmado concluía.
— Primeirosteus fora o melhor negócio feito por seu pai. Comprada por tuta e meia dos Faldamas e agora nós não vendemos aquilo por nenhum ouro do mundo. Bem que os Guinle tinham se engraçado. Mas tirassem seu cavalinho da chuva… Que pro-pri-e-da-de!
O Ezequiel tinha um tom especial para falar em propriedade. Como quem martela sílaba por sílaba. Tanto, que a imaginação do Egon que flutuava há muito tempo, reencarnou-se e o Diabo aproveitou a ocasião para entrar também e falar pela boca do médico coisa maldita. Ele lá a soltou, quase sem querer.
— Proudhon dizia que a propriedade é um roubo…
— É? Isso são opiniões de quem nunca teve a sensação da posse. Frases à toa que só são repetidas pelos pobretes-alegretes dos cafés e botequins que nunca tiveram nada de seu. Ora e esta! é mesmo muito boa…
O Egon sentiu a farpa acerada a lhe dilacerar o cachaço. Mas não tinha conserto. Chateado e distraído, soltara a besteira. Olhou a cara do Ezequiel. Esta passara por verdadeira transformação. Craquelara o verniz de boa educação. O homem, mais esgulepado que nunca, parecia ter ganho mais pescoço. A testa diminuíra e o bico de viúva quase encostava com as duas sobrancelhas levantadas no meio e fazendo uma linha de ouro com o dorso do nariz. Olhos entrefechados. A mímica do nojo. Estava agora cheio de puas como uriscacheiro na defesa. Tamborilava o braço da cadeira e via-se que a boca fechada cortava qualquer possibilidade de conversa. O Balbino olhava com cara de quem está assoviando sem som. O Pareto tinha uma luminosidade de gozo no fio do olhar. Nada mais a fazer — pensou o moço. Dar o fora e… ora porra! Fodam-se!
— Desculpem, mas vocês vão me dar licença que são horas deu ir me chegando. Gostei de rever a casa. Recomendações à Carminda.
É verdade, pensava descendo — não vira a prima. Por quê? descaso dela, não. Ela e ele tinham restos comuns de infância, de avenida Silva Paranhos, jabuticabas da casa da avó, risos de boca toda verde do miolo pulverulento dos jatobás — ah! coisas que criam vínculos mais fundos que os contratos. Descaso dela, não. Certo sua visita fora discutida e os papéis dos de casa encenados. Você não precisa aparecer. Os meninos também não. Nada de entradas nem de liberdades. Vou receber na sala e no escritório. O quê? Sorvete? Não, nem isso nem chá. Só cafezinho e água mineral. E a prima Silverbel resignara na sua reclusão fabulosa, privada de vir ao recreio. O saibro rangia sob suas solas. Ele nunca simpatizara com aquela casa. Desde menino. Mas agora a consciência de que a vira pela última vez e que era a derradeira que ele descia aquela rampa, enchia sua alma da tristeza enjoativa que se tem depois dos enterros, saindo do cemitério. Tristeza de para-sempre. Decerto — porque ele jamais poria de novo os pés na casa daqueles primos, nem na do calhorda do Pareto. Ir visitar a Alódia e aquele animal misterioso do Balbino, nem pensar. Na verdade aquela gente não tinha nada de comum com ele. Tinham sido criados em dois mundos geradores de — quase ele podia dizer — duas espécies de cultura. Eles, gente de pecúnia, acostumada ao seu bem-bom de não fazer nada, a ter da vida a noção macia que têm os bajulados, os agradados. Tudo a tempo e hora. Ele, impecunioso, formado em medicina e dificuldades, tendo da existência a ideia de suas puas, suas lixas, pontas, contundência. Coices como o dindagora. Nada pegara de possuído senão o cavado a duras penas. Tinham de comum uma antepassada. No mais, nada, nada de nada. Pois ele ficaria dum lado e eles do outro e como na canção dos tempos meninos — eu de cá, tu de lá, ribeirão passa no meio… Pois o ribeirão já tinha começado a correr. Chegado ao portão, olhou pela última vez a cara da casa. Sentiu aquela dor no pé, do saibro entrado no sapato e roendo sua meia sua pele. No patamar de cimento tirou os dois e esvaziou um e o par, daquele carrasco. Antes de calçar, ocorreu-lhe o gesto clássico, riu da ideia, deu com os borzeguins cada no outro e tornou a vesti-los. Batera o pó das sandálias. Era outra casa de sua vida que morria e nunca mais dos nuncas ele poderia, sentindo-o, ressuscitar mortos e lembranças encantados naquelas paredes. Adeus. Desceu até Schimmelfeld. Desceu Schimmelfeld e logo na porta do boteco do Riri Garozzo encontrou o Luisinho Bracarense.
— Ei! nego, tava tesperando. Pressentimento quiocê ia aparecer…
— E eu te procurando, Luisinho. Sabia quia tincontrar. Preciso de você. Hoje vamos tomar o aperitivo, respaldar, jantar juntos, visitar a Malvina e a Valparaíso, cear no Dia e Noite e ir às de cabo até sua quina cu e alma da madrugada.
— Uai, nego! O qué? que te deu.
— Chóoobs….
O dia seguinte estava mormaçudo, fazendo um sol de má vontade quando o Egon virou a esquina de Silva Paranhos e tomou Santíssima Trindade. Ia visitar o primo Antonico. Remoendo consigo mesmo a inabitabilidade que encontrara nos Pareto. O homem era realmente insuportável, justificando de sobra o conceito em que era tido unanimemente, nas suas famílias materna e paterna. A tia Felisberta, coitada! ocupava-se em ser infeliz, com um egoísmo que crescia com os anos. As filhas, vá lá. Mas os genros eram de chiar. O Bicho-Homem da Alódia, podia ser também o Coisa-Homem, como objeto maciço — um toco, pedregulho, tora, uma estaca, pilão, um lingote que de repente falasse. O Ezequiel, suando dinheiro, falando em tom tribunício, agressivo, contundente, fisgante e sempre com aquela ironia de caco de vidro… Positivamente não os procuraria mais. Vamos ver agora se o primo também é chato e deixou de ser aquela figura que encantava e espavoria a meninada da casa dos avós. Sempre gritando, tirando do bolso e mostrando aos meninos o canivete de capar. Ou ameaçando virá-los pelo avesso — operação que descrevia pondo tudo de calça na mão.
— Pego pelo cangote, meto a mão de boca a baixo, vou descendo no quente e no mole, sigo pela tripa, passo o dedo pra fora no olho do cu, engancho, puxo e jogo a posta atrás da porta, seus moleques! Ocês vão ver o que é bom — ficar avessado.
O Egon e os primos borravam de medo, sumiam. Mas daqui a pouco tavam rondando outra vez, achavam o primo de boa paz e já tirando do bolso os cobres para a distribuição dos quarentarréis pros grandes e de vintém pros miúdos. Lembrava dele em sua recuada infância, moço, ovante, perfil de ave heráldica, com o bico dos Pinto Coelho, os olhos claros, o vozeirão que clarinava, as gargalhadas de cascata, a simpatia — às vezes de civil e chapéu-coco, doutras com a farda de capitão da Briosa, tinindo e refulgindo dos metais do talim e da espada e mais das dragonas, dos alamares e dos botões. Depois, no período mágico das bodas de ouro dos pais, lustrando dentro de ternos de alpaca, arvorando o grande chapéu-chile dos piqueniques comemorativos da efeméride ou só em topete — gentil cavalheiro, rodando nas valsas ou rompendo nos xotes dos sete bailes dados por ele e pelos irmãos. O moço pensava nas imagens caleidoscópicas que lembrava do parente: o carlista rixento, o valentão façanhudo, o espadachim destemido e se perguntava como iria achá-lo agora, velho e unijambista. Porque soubera dessa desgraça pelo Luisinho e pelo Percival. O primo, diabético, cortara uma perna há anos. Coitado! Vai ver que vou topar algum rabugento… Pensava isto quando reconheceu seu casarão quadrado à esquina de Santíssima Trindade com Precursório Ramos. Todas as janelas estavam abertas. Numa delas, um amor de velho, cabelo branco e olhos claros, interpelava os passantes, chamava, dava trela, conversava. Ficara assim desde inválido. Não podendo ir cedo para Schimmelfeld, como fora seu hábito, fazia as ruas do Desterro virem até a ele — fisgando os que passavam para os dois dedinhos de prosa que cada lhe dava ou, se era o caso, entrando pro café. Quando ele despachou a gorducha que parara um instante, mandando-a com Deus, o Egon chegou-se risonho para chamá-lo às falas.
— Vam’ver “Só Capitão-belo” se ocê adivinha com quem tá falando…
— Vai indo, me dá mais uma deixa, qu’eu já tou no caminho…
— Que deixa? tou gostando de te ver assim forte-e-feio, biriquitando de janela…
— Pode calá boca que já sei quem é. Forte-e-feio é o renitente, o cabra que não arreda — em linguagem de Pinto Coelho. Tou ou num tô? falando com um: Capitão-belo era o jeito de me chamar do primo Elisiário. Reparando bem, você dá ares com ele. Você deve ter seus vinte e quatro pra vinte e cinco. Idade de minha filha Celica que mamou na tua mãe como você mamou cá na mulher. Você é o Gonzinho ou eu não me chamo Antônio Alves da Cunha Horta. Passa já pra dentro, primo! Ali pelo portãozinho do lado que dá direto na minha salinha.
O Egon empurrou o portão de serralheria, cujos abertos e rendados eram fechados por folhas de zinco, entrou numa área, subiu uns degraus e na porta já escancarada, caiu nos braços do primo. Este estava vestido de escuro, colarinho em pé, gravata preta das de malha e uma perna da calça enrolada até bem acima do joelho e presa com alfinete de fralda. Sentaram numa salinha simples, muito limpa. Tinha estante, escrivaninha, duas cadeiras de braço. Na parede o quadro com o retrato das bodas. Mal sentados, o Antonico pôs a boca no mundo pela mulher. Marieeeta! marieeeee-ta! ma-rieeeeeetaaa! Ao terceiro chamado e mais veemente, apareceu a prima. Foi como se o Egon a tivesse visto de ontem. Era uma ítalo-mineira muito branca, um pouco pálida, bonita, olhos muito grandes, muito azuis e na sua calmaria era uma espécie de antítese e força neutralizante dos esparramos do marido. Era fina, elegante, serena, suave, discreta, delicada, voz que mal se ouvia. Só seus cabelos tinham mudado. De escuros pra prata. Depois dos cumprimentos o Antonico dera suas ordens.
— Minha filha! vê se me arruma um café feito os do sobrado dos avós desse menino. Café fraco, fresco, pulando de quente, em xicrona, com pão de bundinha, pão alemão, queijo e um cuscuz de fubá daqueles. Pra ele avezar aquincasa.
A prima saiu para arrumar o café. Dela e do Antonico — os dois faziam um lindo casal — saíra uma raça de deusas. Licínia, a mais velha, olhos de conta e cabelos negros — diziam-na o retrato da bisavó Mariana Carolina; Naninda, a segunda, também olhos claros, a linda boca, o perfil, o todo da Charlotte por quem Werther morreu damores ou d’Ofélia ondulando entre duas águas. E a caçula, a terceira Graça, um Rubens sazonado no trópico. Essa, Cilínia, era a morena. Logo o Egon perguntou por todas. O Antonico deu notícias de uma em uma. Dos casamentos. Cada qual seu destino.
— E estamos os dois velhos sozinhos nesse casarão… Agora me dá notícia da parentada toda do Belo Horizonte, Sabará, Caeté, Santa Bárbara, Manhuaçu.
— Tudo bem. O povo do tio Modesto, firme. O Doque é o mandão político do Manhuaçu. Prima Cotinha mudada para Belo Horizonte. A filha dela casada com o médico Abel Tavares de Lacerda — uma pérola. Primo Juquita com a família crescendo, atarraxado em Santa Bárbara, as filhas lindas estudando na capital, os rapazes também. Prima Diva comprou casa na Padre Rolim. O Pedro formou em medicina, fomos colegas de turma. A prima Zoleta aumentando a família e com filhas cada dia mais bonitas…
— Falánisso, se você souber, me dá a idade das filhas da Risoleta…
O Antonico pegou uma ruma de cadernos capa de oleado preto, dos grossos e à medida que o Egon lhe fornecia os dados ele ia assentando num. O que tinha páginas com letras do alfabeto.
— Pelo que vejo o primo Antonico também gosta de estórias da família, hem? A prima Joaninha fica em boa companhia. O Pedro Nava e eu também somos atreitados a genealogias.
— Ah! é? então olhaqui estes cadernos. Tudo, tudo, casos de nossa gente que eu andei colhendo a vida inteira. Sacarrolhando dos parentes. Eta! gente mais embutida… Medo de contar até fita de cinema…
E os casos vieram. Os bons e os menos confessáveis — dos que — dizia o Antonico, não tomo nota, mas guardo de cabeça. Se fosse escrever tudo acho que esses cadernos pegavam fogo.
— E o pessoal da Felisberta? Você já foi? ver o Nariganga, as princesas suas filhas, os princeses dos genros? Você sabe? que estou aqui amputado há anos, que estive morre não morre da operação e que eles nem ao menos mandaram perguntar por mim.
— Não me diga…
— É como lhe digo. Quem sabe? a Felisberta pensa que amputação pega que nem tuberculose. Nesse caso…
Vendo as disposições e mágoas do primo, o Egon resolveu-se também a meter a poda. Contou das impertinências do Pareto com ele, do ar alheado da tia Felisberta, do ausente das primas, do jeito misterioso cerimonioso do Balbino, do implicante do Ezequiel.
— Eu por mim, primo Antonico, não procuro mais ninguém…
— Quem sou eu? pra dar conselhos, menino. Mas você faz muito bem. E quer saber por quê? Vou a dar a você a chave de tudo isto. Minha tia e sua avó, era pessoa de gênio insuportável. Verdadeira jararaca. Forçou a Felisberta a casar com o Pareto, sem gostar dele. Havia de dizer que ela pelo menos tava recebendo bem o casório. Pois senhores! quinze dias depois estava aliada à filha para fazer picuinhas ao genro. Aquilo foi um tal de querer intervir na vida dos dois, houve tanto lelê que acabaram um dia, Pareto e sogra, numa discussão que por pouco não vai às vias de fato. E ela nunca mais largou mão de perseguir o genro. Este vingava na Felisberta. Esta, apoiada pela mãe e irmãs, resistia e não cedia terreno. Resultado: ódio de morte do genro pela sogra e aos poucos esse ódio estendido ao sogro torto, às cunhadas, aos concunhados e ganhando gerações, até a você e seus primos. Chegaram sobras até para mim e meus irmãos que somos menos parentes que vocês. E o engraçado é que eu e a Marieta fomos afilhados do casal. Quando veio o casamento da Carminda foi a mesma coisa. Sua avó não sossegou enquanto não botou fogo na canjica. Tantas aprontou que acabou fazendo a Felisberta jurar que não deixava a filha casar com o Ezequiel. A Felisberta jurou e numa cena de melodrama, entrou de madrugada no quarto das meninas, de papelotes e em camisa, se arrastando de joelhos, de vela acesa na mão. Ameaçou a Carminda de maldição, de se matar depois, se ela não jurasse pela Santa Hóstia que não olhava mais pro Ezequiel. A menina espavorida, jurou e ficou presa nesse joga-joga: apaixonada e constrangida a romper, pela mãe, pela avó, pelo medo do sacrilégio, da maldição, de morrer, dir prosinfernos.
— Mas puta merda! primo, não é possível um troço destes…
— Não é? Mas foi. Chegou a hora do moço se trancar num quarto-escuro e não botar mais nada na boca. E fumando… ficou num tal estado que o coronel Geminiano resolveu entregar os pontos e assim mesmo orgulhoso como era de ir procurar o Pareto para rendição incondicional. Aí foi o Pareto quem ficou aliado do candidato a futuro genro, o que recrudesceu a danação da Felisberta e da minha tia. Não e não. Tirasse o cavalinho da chuva. A menina tinha jurado. Mantinha o juramento mas também foi pra cama sem comer. O dr. Eduardo de Menezes, chamado de Juiz de Fora, é que reuniu a família pra perguntar se queriam matar a Carminda. Não queriam. Foi quando a Felisberta largou a velha, bandeou e veio à beira da cama da moça, crucifixo em punho, desligaela do juramento. Ficaram noivos. Ora, aconteceu o que tinha de acontecer. O Ezequiel, e aqui entre nós, com carradas de razão, quando se sentiu firme proibiu a noiva de ir à casa da avó e no dia seguinte ao casamento rompia com estardalhaço com toda a família da Carminda, o Pareto de cambulhada, apesar de inocente de tudo. Tinha e tem ódio de todos: seus avós, seus pais, seus tios e mais você de arrastão. Gostou de saber? É sua falecida avó que está entre você e a gente da Felisberta. Você procurou eles à toa. Nem o Pareto nem o Ezequiel perdoam. Querem nada com você. Nós (porque também me incluo no caso) somos todos infames até à quinta geração. Sentença da alçada… Taí porque cocê tá sendo tratado de banda e taí porque cocê num tem mesmo nada de xeretar essa gente. Vá trabalhando no seu Centro, fique pro seu canto e banana pra todos. E se você gosta de frequentar parente, disponha — essa casa é sua. Não é? mesmo, Marieta.
— É.
A conversa estava sendo uma revelação para o Egon. Não perdia palavra e já o velho primo recomeçava.
— Sua avó e meus pais, saídos dum tronco comum, deviam ter constituído dois grupos familiares semelhantes. O que se viu foi o oposto. Enquanto em minha família — irmãos, cunhados, sobrinhos e primos vivem como Deus com os Anjos, são unha e carne, na descendência de minha tia e sua avó, as coisas mudaram inteiramente de figura. Acho que a primeira cunha de desunião foi o Pareto. O homem tem um gênio intolerável, é ranheta, implicante, teimoso, odiendo, rancoroso, vingativo. Tem a natureza do papelão: guarda as dobras. Posso apontar as brigas dele, uma depois da outra, com todas as cunhadas e cunhados, com a sogra, o sogro torto, os genros. Tem anotado aqui nos meus cadernos, com as datas, oito pegas-pra-capá desse gênero — Pareto versus. O Ezequiel foi outro elemento de desunião. Minha estatística dá outros oito forrobodós dele com a família da mulher que se podiam contar em dobro porque a Carminda nunca deixou de ser solidária com ele e de entrar na dança. Só que ele não é como o sogro. É de fazer as pazes, tenho até a impressão de que para ter o gostinho de brigar de novo.
— Você é um Balzac, primo Antonico.
— Ocê acha? pois então lá vai mais. Outros elementos de desunião de vocês — são de dentro e estão no egoísmo da Felisberta e no da Jandira. Essa é a reencarnação da mãe e além de egoísta é ciumenta, quer ser sempre a primeirona e ter o predomínio familiar. Filha preferida, irmã preferida. Seus filhos têm de ser netos preferidos, sobrinhos e primos preferidos. Daí uma irmandade desconfiada como a de seus pais e tias, os cunhados ainda servindo pra complicar mais. E primos como os seus, separados e rivais uns dos outros. Isso é lamentável. Olha os exemplos do que podem as famílias unidas. Olha a gente da d. Joaquina do Pompeu — donos de Minas. Olha os Sás do Brejo e da Diamantina com seus parentes e aderentes — outros donos de Minas. Enquanto isto, os Pinto Coelho e os Horta que já foram um bloco, aqui no Desterro estão cada um por si e Deus por todos… Me desgosta…
O Antonico não conversava quieto. Levantava, sentava, tornava a levantar, estava dum lado, logo no outro, ia ao corredor, gritava pela Marieta, queria água, mais café, que viesse um licor. Não parecia homem sem perna, tal a rapidez dos seus movimentos. Manejava a muleta como se nunca tivesse feito outra coisa vida inteira. Parecia que ela era ensinada de tal maneira se colocava para obedecer a seus desígnios. Dir-se-ia que aquele objeto de madeira fazia corpo com ele, que recebia circulação de seu sangue e impulsão dos seus nervos. Agora contava de outras mágoas que tinha dos Pareto, exatamente por causa da perna que lhe faltava. É o caso de que quando amputara, não quisera deixar jogado à toa um pedaço dele, que sendo dele era Horta e que portanto merecia consideração. Antes de operar reunira a mulher, as filhas, genros, irmãos, cunhados, sobrinhos e recomendara que a perna cortada fosse enterrada no túmulo para onde ele iria na hora que Deus chamasse. A família levara a coisa a sério e enquanto ele passava mal, sem noção de nada, procedera ao sepultamento tendo convocado para o mesmo a parentada toda.
— E você sabe? quem veio da casa do Pareto. Ninguém. E quem me visitou da gente dele. Ninguém, ninguém! Essas coisas doem, Gonzinho… Também ele soltara tudo no pasto…
Da família a conversa passou para o Desterro e a cidade foi espremida num tipiti. Não havia comunidade mais piedosa e temente a Deus. Praticamente ninguém faltava à missa dominical. Havia os diaristas. Os mandamentos da Lei de Deus e sobretudo os mandamentos da Igreja eram letra da legislação municipal. Todo mundo pertencia a sua Irmandade. Havia as de velhos, as de velhas, de senhores, senhoras, operários, criadas, moços, moças, meninos, meninas. Aquilo parecia aquela cidade do dr. Knock, onde o médico, em rêverie, conforme a hora, sabia que naquele exato momento trezentos termômetros estavam sendo inseridos em trezentos cus, e mil cápsulas estavam sendo jogadas dentro de miles de bocas. Também cada católico do Desterro podia considerar o tempo, imaginando o número de comunhões, confissões, missas, batizados e confirmações que se estavam processando dentro das divisões do cronos da cidade. E todos os corações sursunzavam.
— Mas Antonico, precisa não esquecer a zona, os bordéis…
— Isso são outros quinhentos mil-réis… A cidade exige virtude ou pelo menos, no mais das vezes, aparência de virtude. Basta ir à missa, confessar, comungar e andar de olhos no chão. O resto é com cada um e Deus.
E a crônica escandalosa da terra também era das boas. Quer exemplo? E o primo citou logo vários adultérios, filhos feitos nas mulheres dos outros. Caso de santarrões com duas famílias, dos que iam expandir-se no Rio. Um pouco de tudo, como em todo lugar desse baixo mundo. Só que não se confessavam essas chagas. Tudo na moita. O Egon impressionava-se muito com aquele negócio de filhos dum na mulher do outro e de que o primo, sem muito esforço, citara logo uns oito casos.
— Isso é tremendão, Antonico. Numa cidade pequena, sociedade apertada e fechada… Acaba irmão casando com irmã sem saber…
— Tanto não, porque estou aqui e presto atenção. Se ameaçar algum caso dos que tenho de olho, vou aos pais, ao padre, ao bispo, impeço o incesto! Nossa Senhora…
O Audiovisto Munhoz tinha proposto o dr. João Nogueira Pedroso Lucas e o Egon para sócios do Clube do Desterro. Era uma assembleia muito requintada, frequentada pelo que havia de escolhido na cidade. O moço passava diariamente ali, logo depois do almoço, cerca das doze horas, para o cafezinho, ler os jornais do Rio e de Belo Horizonte, antes de descer Schimmelfeld para o segundo turno do Centro de Saúde. Demorava sua meia hora, quarenta minutos, o bastante para trocar umas amabilidades na porta e depois, em cima, com os figurões da cidade. Desses apareciam os simplesmente humanos, que gostavam do bilhar, dum dedo de prosa ou dum pôquer. Os mais altos em categoria — os santos — esses não vinham tomar parte nessas dissipações mundanas. Ficavam no isolamento dos seus vaticanos, suas empresas, seus bancos, suas instituições pias. Também não pisavam na rua Schimmelfeld — considerada por eles como meio caminho andado para a zona bordelenga. O Egon fazia parte do clube há uns dias quando lhe chegou um bilhete da sua prima Fidélia. Lo chamando, estranhando seu desaparecimento e que ela e tia Felisberta precisavam lhe falar. Justamente ele tinha deixado de passar em frente à casa do Pareto e seguia para o seu trabalho evitando Silva Paranhos — de modo que já não via os parentes há seus dois meses. Lá voltou atendendo ao tal chamado. As duas levaram-no direto para sala, trancaram a porta e passaram ao que queriam. Era um pedido.
— Não, não podia ser considerado pedido — disse a tia. — Era uma ordem direta de são Miguel e santa Genoveva.
— Nesse caso eis aqui o servo de ambos e faça-se nele segundo a vontade de Deus — ele respondeu meio brincando.
Que ele não levasse a coisa nesse tom. Era realmente para assunto muito sério que as duas o tinham chamado. O seguinte: era preciso fazer algo para contrapor aos trabalhos que a d. Donzim Prisco andava a realizar com a cambulhada dos parentes das famílias Tabosa, Taveira, Catão e Trancoso. Reuniam-se sempre em casa do João Prisco para costurarem paramentos e no momento estavam terminando verdadeira obra-prima que era a nova mitra do senhor bispo. Lá conversavam piamente, ou bordavam e cosiam ouvindo as que se revezavam na leitura de passagens edificantes do hagiológio ou orações especiais para os casos melindrosos e delicados surgidos no seio de suas famílias ou entre beatas amigas. Ficavam ali de uma da tarde até às cinco lidando com panos pretos, panos roxos, rendas e galões de ouro e de suas mãos saíam batinas, sotainas, roupetas, batas, alvas, roquetes, amitos, túnicas, casulas, voltas, solidéus, estolas, sobrepelizes de todos os tamanhos com que se vestia na rua ou nos ofícios a padraria do Desterro. E todos os paramentos da liturgia. Eram senhoras sempre de preto, roxo ou cores escuras, pálidas, sem pintura, muito gordas ou muito magras, vestidas com modéstia pois tinham voto de pobreza (sempre compatível com as fortunas colossais dos maridos ou pais). Nenhuma usava perfume que fosse mas todas cheiravam vagamente a abafado, cera, incenso e baixeiros mal lavados. Quando o clero estava de roupas que nem um ovo, usavam seu afã religioso visitando as fazendas do Desterro para levar o catecismo às colonas e empregadas adultas. Estas senhoras eram todas da situação municipal dominante contra a qual militava o nosso Pareto. E a ideia fora dele, que sua mulher e filha fizessem alguma obra de vulto, elas e outras senhoras da oposição, para quebrarem a castanha no dente do Prisco, que era, na cidade, o legado do Antônio Carlos. Tratava-se de aproveitar a voga de santa Joana d’Arc e de erguer-lhe uma igreja de verdade — de jeito nenhum capelinha de nada — na Creosotagem de Cima. Aquilo agradaria ao senhor bispo, valorizaria a fazenda que por lá tinha o Nariganga e seria um elemento a mais de prestígio para ele.
— Dar dinheiro, não posso. No momento é impossível. Não me sinto bem de saúde e não trato de negócios quando estou fora dos eixos. E fica mesmo muito mais bonito que tudo seja à custa do povo e da sociedade. Dinheiro de coletas, festas de primavera, chás e bailes de caridade. E vocês já pensaram? a ponta em que vão ficar? A d. Donzinha e a Cachucha Trancoso vão se morder de despeito. Gente mais impostora: pensam que a religião é só deles, propriedade particular que nem banco, fazenda…
O Egon se inteirava daquelas miudezas sem saber exatamente qual seria seu papel na ereção da tal matriz, ou igreja ou o que fosse. Logo a tia explicou. Dariam um grande baile no Clube do Desterro com leilão de cotillons, de prendas, inscrição paga para os concursos e sorteios. Haveria mesas divididas pelas carreiras liberais. Ficaria lindo. Mesa vermelha dos advogados, azul dos engenheiros, mesa dos odontologistas, mesa dos farmacêuticos e a que ele teria de organizar: a verde, a dos médicos. Haveria ainda mesas dos bancos, do comércio, da indústria, tudo. Teria prêmio de diplomas assinados pelo senhor bispo para as que mais consumissem. Teve de aceitar sem saber bem o que iria fazer na mesa daqueles songamongas de colegas que ele vira na Sociedade de Medicina e Cirurgia. Ainda se fosse coisa com o Luisinho… Isso sim.
A prima tinha pressa na realização do baile porque queria estrear vestido que encomendara da Europa e estava apavorada com algum retardamento que fizesse a moda passar. Era uma coisa extraordinária que custara naqueles tempos, ao Nariganga, a quantia fabulosa de cinco contos de réis. Ela foi buscá-lo ao quarto, para mostrar ao primo. Veio envolto em lençóis que recobriam o embrulho de papel de seda. Abriram com cuidado e surgiu a maravilha. Era um vestido de talhe princesse, enviesado, sem nenhum ornato no corpete que abria-se generosamente prometendo ser alindado pelo colo de alabastro e divinos braços que dali emergiriam. Os godês terminavam, embaixo, por guarnição de esferas de madeira, verde-água como o vestido, que diminuíam e subiam cada vez menores sobre a parte saliente de cada dobra. Essas bolas faziam um ruído tamborilado e deviam sonorear estalar e repiquetear na dança — seguindo o ritmo da música e o da fantástica dançarina. Só o vestido merecia uma festa. Nunca o Egon tinha visto, jamais veria nos tempos futuros coisa mais linda. Nas notas deixadas por ele e de onde é tirada a narrativa dessa festa, contava que ao vestido aplicava-se palavra que ele descobrira numa leitura francesa: froufroutantes. E ele perguntava como poderia aportuguesar: frufrulantes? frufrusantes? frufrurrantes? Dizia que as letras L, S, R eram as únicas consoantes cabíveis na transposição da palavra. Mas acrescentava que não topava o segundo R e que preferiria fazer para o vestido da prima frufulantes ou frufusantes. Ou quem sabe? coisa ondulante deslizante escorregadia como furfuante…
Pois a festa desenrolou-se como todos os bailaricos de caridade em que a pretexto da fome dos pobres os ricos se divertem e enchem o bandulho. O Egon folgou a valer. Sentou uns instantes na tal mesa dos médicos e brincou com eles de conversa de esconde-esconde. Depois, enjoado, passou-se para a mesa do Luisinho Bracarense, Percival Aquino d’Aviz, Antônio Falcão de Valadares e Luís Cesário Camareiro da Silva. Encontrou-os eufóricos: estavam pondo em dia, experimentalmente, uma mistura de champanha com uísque em duas proporções: forte (mais uísque) e fraca (mais champanha). E todos iam vendo que aquilo era bom… Por mão dos amigos o jovem médico travou conhecimentos com as moças da sociedade desterrana e começou ali a teia dos interesses sentimentais com esta e aquela que prolongar-se-ia durante toda sua permanência na cidade, em outros bailes do clube, chás-dançantes nos grupos escolares, na Cervejaria Weiss, no O’Grady, no Esporte Clube Turner, no Tiro-aos-Pombos. Foi numa destas funções que decidiu-se o destino do Percival ao som da valsa “Milhões de Arlequim”. O dele e de sua futura esposa — airosa Wanda gentil. Os dois faziam par tão elegante e de tal graça na dança que geralmente bailavam sozinhos: os outros casais parando aos poucos — pelo gosto de vê-los voltear. Nestas festas é que o Egon conheceu Ruth e Maria José. Amou a primeira num’estação e noutr’estação a segunda amou. Ambas eram morenas e fugidias como também Ana e Mina… Bem que ele estava imbuído da ideia de que o médico tinha de casar cedo e a cada uma pretendeu por esposa. Mas uma coisa o impedia. Era o perfume lembrança duma mocenflor, rosazul que ficara — flor púnica — para sempre dentro dele tal qual a Persombra de seu primo Pedro Nava. A sua invocava-se por nome de princesa das Mil e uma noites: era Ronairsa. Essa sua graça dizia tudo. Ela era uma rosa simbólica dividida ao meio e nessa fenda se inseriram as letras cabalísticas que diziam náeíra, naias, nais — que é ninfa das fontes do rio; naío que quer dizer manar, fluir, correr; néaíra que é a jovem, a para sempre cheia de frescor de graça; ou nadir que é abismo ao zênite oposto. Tudo isto ele guardava dentro da flor das flores qual mistério mágico que mantê-lo-ia num longo celibato. E ele guardava as palavras, a palavra condão dentro da flor de muitas pétalas — a flor fendida mas defendida ao jeito dos cofres.
Mas é tempo de voltarmos ao Clube do Desterro. O Egon, como dissemos, gostava de frequentá-lo entre meio-dia e uma, à hora em que o sol começava a descer. Dessas estadias numa sala do alto virada para Cruz de Cima — ficara o quadro para sempre. Seus olhos subiam Silva Paranhos e paravam nas torres da Matriz que se destacavam sobre o céu desbotado — numa brancura de osso. Sua arquitetura era pobre e suas paredes desnudas. Duas torres enquadradas cada uma por quatro coruchéus. A fachada distraía com sua rosácea encimada pela teoria de janelas que cresciam de fora para dentro e que sugeriam a forma d’um galo das trevas — não de treze mas de nove velas. Subia-se para o morrote onde estava a Matriz, por escadarias imponentes. O médico lembrava sua longínqua infância e da rampa que alteava sobre arrimos de pedra, bem mais graciosa e fácil de galgar que aqueles degraus sem-número. A Matriz, de feia que era, nem parecia igreja de Minas.
O Egon conheceria o Clube ainda em outras noites de que destacava mais uma. A de esplendor político em que a cidade oferecera baile ao presidente Washington Luís Pereira de Sousa. Nesse tempo já estava sendo começada a campanha para a sucessão, as conversas dos políticos já tinham transpirado para os jornais e destes para a boataria de rua. Já se sabia que o presidente tinha no bolso do colete o nome dum pupilo e que o nosso Antônio Carlos seria bigodeado. Minas estava em gravidez adiantada da Aliança Liberal e superfetada da Revolução de Outubro. Aquele encontro do Barbado com o presidente de Minas foi o último processado antes da ocupação do Estado por aumento de seus contingentes federais. A raposa mineira ainda quis dar à soarê aspetos de cordialidade e cortesia desmentidos pelo ar de enfado, distância e reserva da cara fechada do urso paulista. Antônio Carlos viera esperar o presidente no Desterro. Na estação formara-se o cortejo que devia subir a rua Schimmelfeld atulhada duma multidão silenciosa e hostil. Os dois, de carro aberto. O Andrada apontava o companheiro e fazia gestos de bater palmas olhando seu povo — a pedir que o aplaudissem. A multidão, como se tivesse sido ensinada, respondia com vivas a ele, Antônio Carlos, e vivas a Minas. O nosso Braço-Forte à medida que o automóvel avançava e que redobravam os vivas ao presidente de Minas (que recebeu naquela tarde do Desterro uma das maiores ovações de sua vida de político) — o Braço-Forte ia ficando safado da vida e mostrando na cara, no topete, no cavanhaque, na expressão carregada que estava safado da vida. Mau político e homem malcriado, não sabia disfarçar ou não queria disfarçar. No baile foi a mesma coisa. Um Andrada radioso e o homenzarrão emburrado como meninão contrariado. Ali não houve vivas mas um halo de sorrisos, simpatia, de respeito enternecido pelo presidente de Minas — que valiam como repúdio à maneira como o outro estava tratando Minas. Ar muito amarrado, ele recebia de todos uma reverência cerimoniosa e distante como se um por um dos presentes estivesse de língua passada. Era claro como se cada dissesse: É isto, dr. Washington, com desculpa do mau jeito mas nós tamo mesmo aqui é por causa do dr. Antônio Carlos. Por isto é que cumprimentemo vossuncê. Se num fosse ele, qualquer um de nós o que fazia era levar o senhor até à ponte do Paraibuna e adeus adeus — desculpe qualquer má palavra.
O Egon, que era uma sorte de especialista em Antônio Carlos, não perdeu de vista o Andrada naquele dia em que ele, recebendo Washington Luís no Desterro, superou-se e deu ao presidente da República a última oportunidade de que ele, rombudo, não soube aproveitar para impedir o que não convinha a nenhum dos dois e quem sabe, nem ao Brasil: o 1930 que não foi uma etapa e sim um terrível prelúdio… O Egon via as evoluções do Antônio Carlos em torno do Barbado — uma libélula circunvoejando uma alcachofra. Ele multiplicava-se como cada língua de fogo sutil e graciosa da sarça em chamas que consumiu a truculência e as demasias de Hércules. Parecia são Jorge armado de prat’e aço lanceando as goelas do Dragão; imponderável Ariel, puro elance, contra a força bruta do Calibã; era que nem o Davi visando com calhau rápido de sua funda a fronte curta de Golias; um Dominguín diante do touro; Perseu combatendo o Monstro Marinho que prendia Andrômeda. Foi tudo como seria até ao fim — a luta de Maquiavel contra Joe Louis e o espetáculo de que já falamos da gilete descascando um abacaxi. Pois descascou. Individualmente ganhou. Só que não levou…
Quase coincidente à chegada do Egon ao Desterro, em 10 de maio de 1928, no dia 12, cai doente, no Quartel do Campinho, Rio, soldado da Guarnição Federal que faleceria a 16 no Hospital Central do Exército. É oficialmente o primeiro caso da epidemia de febre amarela que lavraria na capital da República, naquele ano de 1928. Já tínhamos dura experiência desse flagelo, desde o surto inaugural de 1849-1850. Os subsequentes vieram até 1908 — quando viu-se o último caso no Rio de Janeiro e declarou-se extinta a febre amarela no Brasil. Só que ela estava erradicada do Rio de Janeiro, mas continuou a ser mantida em escassos focos de zonas de menor densidade populacional, sobretudo, no Norte do país. Esses focos endêmicos estavam sendo sempre trabalhados pela Comissão Rockefeller. Deles é que teria vindo e por via do recrutamento militar o primeiro caso do rompimento epidêmico de 1928. Foi uma surpresa nesse país de desmemoriados e dorminhocos sobre os louros. Entretanto, qualquer epidemiologista e piretologista sabe que não há moléstia infecciosa extinta em lugar algum. Elas parecem assim quando são levadas à latência pelas medidas sanitárias que mantêm seu controle. Basta afrouxar o pé do pedal e todas elas explodem na sua força cataclísmica. Em 1928 o combate à febre amarela revestia-se de dificuldades maiores, numa cidade então de 1,6 milhão de habitantes, que as do Rio provinciano dos tempos da gloriosa campanha de Oswaldo. (A reflexão sobre o que aconteceu em 1928 jamais deixaria de ser pesadelo para o Egon — que trouxe até aos anos 70 o pânico de ver o causus estourar novamente no Rio de Janeiro, cidade que — diz ele — cresceu criando uma por uma as circunstâncias especiais que geram o aumento do índice mosquito; e com as selvas de pedra, os obstáculos e impossibilidades de tratar um foco segundo o sistema de Finlay, Oswaldo Cruz e Clementino Fraga. É o caso de se dizer, pensando nisto: Ai! de ti, Rio de Janeiro, que podes reproduzir os quadros hediondos da Peste de Heródoto, da Morte Negra medieval dos Contos de Boccaccio, dos horrores de Londres evocados por Defoe e mais os da gripe de 1918. O médico de hoje, como o experiente Egon, pode vaticinar — Ai! de ti, Rio de Janeiro.)
A “moléstia reinante” vexaria a cidade de 12 de maio a 3 de novembro — quando é notificado o último caso. O derradeiro óbito é de 27 de outubro. A revisão estatística do que aconteceu em 1928 mostra uma epidemia de caráter gravíssimo, com uma letalidade global de cinquenta e cinco por cento. O máximo do surto observou-se em junho. As cifras de causalidades caem a partir de julho até seu desaparecimento em novembro. Essa vitória espetacular num recorde de velocidade deve-se ao homem extraordinário que os bons fados tinham colocado na direção de nossa Saúde Pública: mestre Clementino Rocha Fraga. Seu modo de ação foi simples, decidido, rápido e enérgico. Atacava os focos fazendo os clássicos expurgos nas casas onde se registravam casos. Esses focos foram, em ordem decrescente de importância numérica, o do Hospital Central do Exército com suas circunvizinhanças; o do bairro do Catumbi; o de São Cristóvão; e o da Vila Militar. As medidas sanitárias de Fraga entaiparam a fera nesses fojos onde ela acabaria defumada. Os casos eram isolados hospitalarmente ou domiciliarmente dentro de todas as regras do isolamento. Os expurgos para eliminação do transmissor alado eram feitos tanto no foco como numa zona dita de vigilância e que estava situada dentro dum círculo cujo raio era de duzentos a duzentos e cinquenta metros da casa onde se tivesse dado um caso. A erradicação dos insetos era feita com pulverização duma mistura de salicilato de metila, 0,1/ tetracloreto de carbono, 3,5/ e querosene, noventa e sete gramas. Faziam-se aspersões de quinze a vinte e cinco centímetros cúbicos por metro cúbico do aposento. O menos e o mais eram regulados pela perfeição ou não do calafeto. Os comunicantes e os habitantes da zona de vigilância ficavam sujeitos à fiscalização clínica. O serviço dos mata-mosquitos foi aumentado e toda a cidade, a partir dos grandes focos, foi passada ao pente-fino. Os casos isolados no Hospital de São Sebastião estiveram sob a superintendência de Sinval Lins, que resumia seu tratamento à medicação sintomática, à insulina, cálcio, soro glicosado e cardiotônicos. Esse médico dividiu clinicamente os que observou em dois grupos — o da forma frusta ou renal e o da forma hepatorrenal com as variantes benigna, grave, maligna ou hipertóxica.
Logo que apareceram os primeiros casos no Rio e, depois, com seu aumento em junho, houve certo temor no Desterro. O dr. João Nogueira Pedroso Lucas convocou seus subordinados para uma reunião no Centro de Saúde. Compareceram os drs. Egon, Audiovisto Munhoz, Dimas Alvim e sua mulher e colega Jarina Alvim. Concordou-se que o chefe fosse ao Rio de Janeiro para acompanhar o que estava se fazendo nos terrenos sanitários e clínicos. Por proposta do dr. Egon, foi pedida a vinda ao Desterro de um sanitarista que desse orientação ao trabalho nos primeiros dias — fase de démarrage. O dr. Pedroso Lucas demorou-se umas duas semanas no Rio, tendo acompanhado pessoalmente o trabalho das brigadas de mata-mosquitos e o das turmas de expurgo e fiscalização. Esteve com Clementino Fraga, frequentou o serviço de Sinval Lins ao São Sebastião e voltou do Rio mais afiado que uma navalha. De Belo Horizonte, veio como conselheiro certo sanitarista cujo nome escapou — homem muito vermelho, olhos muito verdes, alto, magro, grande gogó, cheio de palavras sibilinas e de silêncios carregados de intenção. Concordou com tudo que se fazia, vinha ao Centro diariamente tomar o seu café, à noite matava seu cinematógrafo. Ficou nisso uns vinte dias e depois de elaborar a lista do material necessário para os calafetos, os expurgos, isolamentos domiciliares — retirou-se para Belo Horizonte. Assim se prepararam os sanitaristas do Desterro e o Egon ficou à espera do monstro que lhe competia combater como epidemiologista do Centro de Saúde. Não ficou só nisto. Ele tratou de se aconselhar com três colegas veteranos sobre os aspectos da terrível infecção. Fez verdadeiras entrevistas, tomando notas, com os drs. Roque Apolinário Cacilhas do Prado, Martinho da Frota e Josué Cesário Camareiro da Silva. Do último obteve mais ainda: o presente do volume do Estudo clínico sobre as febres do Rio de Janeiro, do incomparável Torres Homem. Ali muito aprendeu com o melhor observador da pirexia entre nós. O Onésime Cresylol descobrira no Desinfectório um velho fumigador colocado numa carreta de quatro rodas — dotado de pulverizador e bomba aspirante-calcante que ele consertou e pôs em funcionamento. Além disso foi ele quem ensinou aos médicos do Centro e à brigada improvisada de mata-mosquitos, a detectar os focos de larvas e destruí-los. Quando a febre amarela chegou ao Desterro já encontrou gente apta para combatê-la. Repetiu-se o que Fraga estava fazendo no Rio e a epidemia reduziu-se a umas dezenas de suspeitos e a poucos verdadeiramente doentes. Destes, quase todos foram casos benignos da chamada por Sinval Lins a forma frusta ou renal. Só um se apresentou com aspecto grave, maligno, hipertóxico. O Egon pôde assim observar coisa que poucos médicos de sua geração terão podido ver: uma forma clássica de vômito negro. Nesse paciente ele assistiu ao que Torres Homem cansara de ver e que descrevia tão magistralmente: as siderações, os aspectos congestivos, as dores do tronco e dos membros, a cefalalgia tirana, as diarreias, a anuria, a icterícia de açafrão, as hemorragias, o vômito negro, o coma, a morte… Teve a vantagem, graças à epidemia e ao seu espírito de observação, de estender sua mão, mergulhá-la no tempo, senti-la segura por Torres Homem e de entrar na cadeia da Escola Clínica do mestre incomparável. E mais: a prerrogativa de prestar um pequeno serviço à sua terra de nascimento.
O grande herói da epidemia de 1928 foi Clementino Rocha Fraga. Foi ele quem segurou o boi pelo chifre e fê-lo morder o pó. Tinha força, preparo, energia, resistência de caráter e inteligência superior para comandar e conduzir à vitória campanha como a que empreendeu de maio a novembro. Venceu todos os obstáculos: os humanos, os que vêm dos administrados e entre estes dos médicos que têm gosto de criar casos e o prazer da resistência passiva, da sabotagem; os materiais, advindos da cidade aumentada e complicada que era o Rio de Washington Luís — tão diferente do Rio de Rodrigues Alves. Mas venceu e seu nome coloca-se entre aqueles dos grandes benfeitores e beneméritos nacionais. Com a queda da nossa Primeira República, Clementino conheceu o pagamento na moeda com que o Brasil é pródigo com seus maiores filhos: ostracismo e o exílio dentro de suas próprias fronteiras. Foi preciso que passasse o tempo para que justiça fosse feita. Só em 1933 os colegas tomaram coragem e realizou-se na Academia Nacional de Medicina, ainda no Silogeu, a merecida sessão de glorificação presidida por Miguel Couto.
Aquele morreu amando.
[…]
Aquele morreu? Quem sabe
o que foi feito do amante
alçado em coche de chamas
ou carruagem de cinzas
no ato pleno de amar?
carlos drummond de andrade, “Morto vivendo”
Cada dia que passava o Egon sentia mais agudamente a verdade de certas opiniões do seu chefe Ari Ferreira, com relação ao médico e à atividade hospitalar.
— O hospital é indispensável ao médico. Médico sem vivência nas enfermarias não é médico. A clínica de consultório é cheia de limitações ao arbítrio do profissional em pedir exames, repeti-los, fazer o máximo indispensável para evitar sua inexorável tendência ao erro e servir os pobres-coitados compulsoriamente postos sob sua responsabilidade. Além de melhorar e esmerar-se na prática, o médico, dentro do hospital e da enfermaria, vive ensinando e aprendendo e mais do que isto — exercendo uma função moral. É por natureza de ofício o amigo dos sem-amigos, família dos sem-família. Vincula-se e compromissa-se com a coletividade de que faz parte. Serve-a servindo justamente os menos protegidos, os mais indigentes, os mais explorados. Tem de dedicar-se completamente para ressarcir um pouco de sua própria culpa — a de ser também um chupim do pobre na sua doença e sua morte. Até esta serve para aprimorar e dar status profissional ao médico — integrando-o num gênero da mais torva exploração de classe.
O Ari não lhe dissera tudo isto de uma vez. O Egon reconstruía como um todo o que lhe viera em pequenos conselhos, em fragmentos de conversa, em comentários durante a visita do chefe seguida por ele — tomando nota de tudo, gravando tudo de modo indelével. E agora concorria mais para firmá-lo nas opiniões que se fizera, o que mandava lhe dizer o Coutinho Cavalcanti nas suas longas cartas. Ele escrevia das suas noites sem companhia de Engenheiro Schmidt, nos confins do Oeste Paulista, contava os princípios de seu exercício de médico-operador-e-parteiro de roça. De como mais e mais se aprimorava vendo doentes particulares e indo diariamente para as tardes da Santa Casa de Rio Preto onde tivera a sorte de fazer amizade com tantos colegas. Descrevia-os, dava seus nomes e o Egon, sem saber que um dia iria conhecê-los pessoalmente, já tinha de cor suas graças: Gilberto Silva, Justino de Carvalho, Ernani Domingues, Cenobelino de Barros Serra, Rui Sabatto. Outros. E o Cavalcanti também encarecia o que estava sendo para ele a convivência com estes novos companheiros nas enfermarias do hospital do interior. Ao contrário do habitual, nesse, de Rio Preto, a visita aos internados era à tarde. O sistema adotado, o de conversa coletiva sobre cada caso, os clínicos e cirurgiões locais misturados aos que apareciam vindos de Schmidt como ele, de Mirassol como o Elyeser e o Sicard, de Vila Neves, Monte Aprazível, Nova Granada, Potirendaba, Inácio Uchôa, Cedral… O Egon admirava essas enfermarias democraticamente abertas e ponto de aprendizado dos médicos de região inteira. Não, ele não podia esperar mais, tinha de fazer alguma coisa para entrar também na Santa Casa do Desterro. Tinha pressa em meter a nuca no jugo da servidão hospitalar. Mal sabia ele que não perderia por esperar. Dando um grande salto para o futuro, suas notas escritas dos anos 70 deixavam consignadas suas longas conversas nesse desacontecido porvir com seu primo Pedro Nava — em que os dois faziam as contas das manhãs em que não tinham vivido — mas em que suas vidas tinham sido literalmente dadas aos outros — os pobres, miseráveis, indigentes — que a sociedade passa na sua moenda, tirando-lhes o caldo e depois, numa ficção de caridade, manda morrer nos seus hospitais. O Egon gostava então de dizer que, contando por baixo (com anos de trezentos dias e manhãs só de três horas de labuta) — trabalhara vinte e oito anos, 8,4 mil manhãs, vinte e cinco mil horas que ele poderia ter dado a si mas em que penara pelo e para o próximo — rigorosamente de graça! — sujeitando-se a hálitos pestíferos, a peidos nauseabundos dos rabos incontrolados, a todos os fedores da desorganização e da morte, a todos os contatos com sangues, sânies, puses, vômitos, derrames, corrimentos, diarreias, vômicas putrefatas (levara certa vez, uma, de gangrena de pulmão, em cheio, na nuca e federa dois dias lavados e relavados). E os contágios, os riscos… E não se arrependia das manhãs em que se dera assim integralmente ao próximo desconhecido — ele que poderia usar seu tempo em atividades para que a natureza o dotara — como descrever o mundo com palavras escolhidas e imaculadas, pintá-lo nas suas cores, ou desenhá-lo nas suas formas de gente, de bicho, de flor — “dos ares, das águas e dos lugares…”. Representar até o ar que se manifesta conformando nuvens de poeira, trombas-d’água, cúmulos e nimbos e cirros e estratos… Não! — lhe dissera o destino que ele mesmo se dera — deixa disso, Gonzinho, vai para sentir de perto a morte e o desmancho. Mete as mãos na aguadilha, na gosma, no pegajoso, mole e podre. Larga dessas frescuras das flores e dos aromas dos matos — teus perfumes serão o bodum, o xexéu, a creolina, o formol…
Essa servidão é que ele, no Desterro, tinha pressa de assumir. Como fazer? Parentes? não podia contar com esses imprestáveis para uma recomendação, uma apresentação, um empenho. O modo como o tinham desrecebido impedia qualquer pedido de favor. Ia ser de cara. E numa manhã bateu-se para a Santa Casa. Oferecer seus serviços ao chanceler do hospital que nessa época era o próprio Sabatino Trancoso que ele vira presidindo a Sociedade de Medicina e Cirurgia e a quem já conhecia de cumprimento. Além do mais sabia que esse mandão fora, em épocas, amigo do boticário seu pai. Na Santa Casa ele mofou sua boa hora perto da chancelaria-gabinete do Trancoso. Estava já impaciente e na de mandar tudo à merda e pé na estrada — quando o homúnculo apareceu. Não o fez entrar para o escritório e conversou com ele de pé no corredor. O mesmo ar frio e impenetrável que o Egon já observara. Este disse ao que ia e que seu desejo era trabalhar num serviço de cirurgia da Santa Casa. Pedia sua boa vontade. O homem ouvia enterrando a cabeça no pescoço, quase sumindo dentro dos colarinhos — o que o fazia mais baixo ainda. Para fingir interesse pelo postulante fez-lhe várias perguntas. Em que ano se formara? Reprovações no curso? Ano repetido? Com quem estagiara? Quanto tempo? Quando chegara? Já fora visitar o senhor bispo? Quando o Egon contou que fora reprovado uma vez por puro azar, que repetira um ano por doença, o pescoço do Trancoso crescera de dois dedos brotando dos colarinhos — como o de tartaruga saindo do casco. Ao — não, ainda não fora visitar o bispo — foram mais dois dedos de acréscimo e o ar mais impenetrável ainda.
— Tomo nota do seu nome, meu caro doutor, e vou levá-lo à consideração da Mesa e da Comissão de Sindicância. Desses organismos depende tudo; de mim, nada, nada.
Quando o Egon viu sua pretensão deixando de ser cogitação de gente mas se despersonalizando e chegando às culminâncias obscuras e mágicas das decisões de ti, oh! Mesa! de vós, oh! Comissão de Sindicância! perdeu um pouco a tramontana. Que diabo! tudo se dificultava. Tratou de saber quais eram as figuras que compunham essas abstrações. Teve a lista dos nomes dada pelo Percival Aquino d’Aviz e verificou que Mesa e Comissão tinham o mesmo presidente — que aliás também o era da Sociedade dos Soldados de Santo Inácio — nem mais nem menos que o próprio, o mesmíssimo Lisuarte Taveira. Resolveu procurá-lo também. Este era homem diferente do Trancoso. Menos trancado. Muito inteligente e muito culto, escapava da regra geral dos “bons” do Desterro. Era conversador e aprazia-lhe deixar-se ir numa boa palestra, sobretudo se encontrava interlocutor inteligente — qualidade que ele, possuindo, sabia distinguir e valorizar nos outros. Era de pouca vista, usava óculos de vidro grosso que aumentavam o tamanho e com isto a doçura de seu olhar — a que dava expressão de franqueza. Moreno. Bigodes negros ao deus-dará e despencando à gaulesa nos dois lados da boca. Vestia-se sempre de preto, tinha voz agradável, algodoada, grave e muito mansa. Recebeu bem e cortesmente o Egon e logo conduziu a prosa para o que os americanos chamam “as amenidades” e que servem de aperitivo ao busílis do assunto.
— Muito prazer, dr. Egon, já o conhecia de nome e desde outro dia, na rua Schimmelfeld, de vista, quando m’o apontaram. Já sei que tomou parte no Movimento Modernista Mineiro. Acompanhei com muito interesse não só o que vinha publicado na Estética como o aparecido depois, na Revista de Belo Horizonte. Não! longe disso, não sou modernista mas acompanho a renovação de nossas escolas literárias. Não, não, não! Nenhum empenho estético. Antes a preocupação religiosa. E estou sempre atento a qualquer revolução para ver onde ela conduz no plano espiritual e sob o ponto de vista católico, apostólico, romano. De Minas passaram a São Paulo e o Lisuarte falou sobre Mário de Andrade com simpatia, com muita reserva sobre Oswald. Zina Aita e Anita Malfatti levaram para a pintura moderna. Aos quinze minutos certos dessa prosa solta, o Lisuarte reassumiu-se.
— Mas um homem ocupado como o senhor, dr. Egon, não veio aqui para ouvir minhas opiniões estéticas ou filosóficas. Quem? sou eu. Vamos ao que serve e em que posso? servir meu estimável conterrâneo.
O Egon entrou novamente nas suas pretensões e repetiu ao da “Mesa” e da “Sindicância”, o que já expusera ao chanceler.
— Muito justo seu desejo, dr. Egon. Só que não depende de mim em particular e sim da Mesa e da Sindicância. E o senhor compreende que não posso nem levar seu nome — porque esse gesto seria uma espécie de insinuação minha e o senhor adivinha…
O Egon adivinhou, ia sair mas o Lisuarte ainda o prendeu para um café durante o qual entre cada gole fazia uma pergunta. Em que ano se formara? Reprovações no curso? Ano repetido? Com quem estagiara? Quanto tempo? Quando chegara? já fora visitar o senhor bispo? Dois zeros, saiu pensando o Egon. Um do Trancoso e agora outro do Lisuarte. A coisa não estava indo direito. Seria preciso um pistolão. Procuraria o Roque Apolinário Cacilhas do Prado. Fora também amigo de seu pai. Era parente longe. Tinha serviço na Santa Casa. Quem sabe? ele convidá-lo-ia para assistente. Foi bater às portas do seu Serviço de Clínica Médica da Santa Casa. Estava decidido. Se o primo Roque Apolinário o convidasse para trabalhar com ele — adeus! suas ideias cirúrgicas e viva! a medicina interna. Tinha sido tangido dessa maneira — paciência! Chegou cedo ao hospital e caminhou de informação em informação até ao pavilhão-enfermaria do dr. Cacilhas do Prado — como lhe corrigiram na portaria quando ele o nomeara pelos prenomes. Já o encontrou trabalhando, indo de cama em cama. Fazia umas perguntas, palpava, percutia, auscultava, receitava e tocava pra diante sem explicação do caso ao Egon. Levaram nessa visita muda mais de hora e no fim da ala o Apolinário dissera ao moço médico — Agora um café e depois vou mostrar a enfermaria a você. O Egon estivera admirando a extraordinária figura que era a do parente. Moço, rosado, pele a ser invejada pelas mulheres mais exigentes — ele ostentava um perfil admirável, completado por bigodeira branca de guias galhardamente atiradas para os lados na forma de guidons de bicicleta. Cabeleira da mesma prata, uma cabeleira de poeta, basta, seca, luzidia, lisa, leve, fofa. Ele compunha um vulto de médico de rara majestade cuja maior força estava nos olhos mais verdes e límpidos que a esmeralda do chuveiro do seu fura-bolos direito. Desempenado, alto, voz agradável, ele realizava o tipo perfeito do prático de grande sucesso. Era convincente e dispunha de enorme clínica. Quando exagerava, disfarçava ou distorcia a verdade — a boca lhe descaía um pouco e seus olhos ficavam mais agudos — como se estivesse esperando uma palavra do interlocutor — pronto para bebê-la.
Pois foram fazer juntos o tour do pavilhão dentro da técnica que o Egon cansaria de ver durante seus longos anos de médico. Era a enumeração e a designação do óbvio. Aqui é a cozinha. Claro: os fogões e panelas comprovavam sobejamente que aquilo não era o gabinete do chefe. Aqui os sanitários: banheiros, latrinas e bidês diziam que sim. Aqui minha sala de exames. Vestiário dos médicos. Laboratório de rotina para pequenas análises. Rouparia. Sala de curativos. Arsenal. Salinha das irmãs de caridade. Aqui uma pequena biblioteca. O Egon aproximou-se e viu a livraria ali descarregada pelos médicos para desafogar a casa: revistas desemparelhadas, livros de que o mais recente era o venerável Bouchut nos seus Nouveaux éléments de pathologie générale, de 1882 — tão gabado pelo Lisboa como dos grandes clássicos daquela disciplina. Cruzaram com outros colegas e o Egon estranhou que o relacionamento deles com o dr. Cacilhas do Prado não tivesse o cunho assistente-chefe. Parecia mais um igual-pra-igual. Já estavam prontos para sair quando o moço bateu a brasa no mais velho. O desejo de entrar para a Santa Casa, que médico sem hospital não era médico, e tal e coisa, que por isso vinha pedir sua interferência junto aos donos da bola. O parente logo fez sumir a expressão de riso que tinha na fisionomia, entreabriu a boca e deixou pender as bochechas. Guardou um instante de silêncio e gravemente começou seu interrogatório.
— Bom. Já sei que você está formado há menos de ano e que chegou ao Desterro em maio. Agora diga-me uma coisa — reprovações no curso? Ano repetido?
Era uma chapa e o Egon logo recitou como quem responde litania que tomara bomba inexplicável em Química, que repetira seu segundo ano por doença, que estagiara em enfermarias praticamente desde seu primeiro ano de curso e que, caro parente! não fora visitar nem pretendia visitar o senhor bispo! A esta, o primo Apolinário começara a rir, o riso virou gargalhada e quando a dita esmoreceu — ele estava diante do moço olhando-o com atenção, afeto e uma ponta de tristeza. Deu-lhe o diminutivo carinhoso.
— Gonzinho, tou te compreendendo e te vendo como se você fosse de vidro. Você é igualzinho a seu pai. Independência, petulância, arrogância e essa espinha de não dobrar. Tenho a vaga impressão que seu lugar não é no Desterro. Aqui é visita ao bispo ou eu te devoro. Mas você conte sempre com meus pobres préstimos e com minha amizade de amigo, de parente, de compadre de seus pais. Agora: ajudar você, vai ser impossível porque é impossível espremer e achatar um homem de sua altura pra passar porta estreita e baixa. Só cortando a cabeça e… capando como o primo Antonico ameaçava fazer em vocês e nos meus meninos. Você apareça lá em casa. Mas faça ainda uma tentativa. Volte ao Trancoso. Ele tem um fundo de bondade escondido. Fale de novo com ele e olhe: diga que voltou para insistir a meu conselho. Vamos seguindo a pé por esta Silva Paranhos abaixo…
Separaram-se na esquina de Santíssima Trindade. O Egon antes do almoço ainda tinha tempo para um desabafo e um cafezinho com o primo Antonico. Lá chegando, encontrou-o na maior excitação, gritando a plenos pulmões pela Marieta pelas criadas, vizinhos, passantes, a torto e a direito e logo para ele.
— Já soube? da novidade, Gonzinho! O Trancoso!
— O quê?
— Morto no Rio, de repente, dentro do próprio carro, em Botafogo, a caminho da casa da irmã. Ontem depois do almoço. Chega embalsamado e enterra amanhã às cinco da tarde. Síncope, fulminado! Coitado do Trancoso! Aquilo era um santo! Estamos perdidos essa cidade sem ele que desgraça! Nossa Senhora! Que Deus nos acuda!
O Egon lamuriou um pouco com o primo, correu a almoçar e desceu em seguida uma Schimmelfeld consternada. Grupos se faziam e se desmanchavam, ninguém andava, todos corriam uns para os outros, gesticulavam falavam dois três ao mesmo tempo e no murmúrio geral indistinto da rua só se distinguiam as palavras Trancoso desgraça calamidade horror Trancoso cataclismo Trancoso fim de tudo. Os interlocutores de um instante se largavam iam a outros falavam se afastavam se reagrupavam iam e vinham subiam desciam como bandos de formigas tontas de que se cortou a correição com uma chaleirada dágua fervendo. Todos procuravam se convencer de sua desgraça e dor inconsolável. A cidade sucumbida parecia estar testemunhando e padecendo duma cheia, dum terremoto, duma erupção vulcânica, da certeza duma peste, uma guerra, invasão, bombardeio aéreo. Morrera o pai do povo Trancoso! Chegando ao Centro de Saúde, o dr. João Nogueira Pedroso Lucas declarou que ia mandar fechar as portas e considerar o dia como de ponto facultativo para seus funcionários confraternizarem com a mágoa da população. Informou ao Egon que todo o corpo clínico devia seguir em charola com a Sociedade de Medicina e Cirurgia para a estação do Registro onde esperariam o cortejo que vinha do Rio com o corpo do Trancoso. Esse encontro dar-se-ia pelas cinco ou seis da tarde. Ele e o Egon iam num carro que ele tomara. Talvez levassem o Audiovisto se ele conseguisse se controlar, coitado! Porque o Audiovisto lanceado de dor gemia e arrancava o resto dos cabelos no gabinete. O Dimas e a senhora iam na conversível deles.
— E vamos logo com isto, Egon! Mudar pra roupa escura e dentro de meia hora, outra vez aqui para batermos pro Registro.
Em ponto, trinta minutos depois se encontravam e se mandavam para a estação distante umas duas horas. Lá já toparam multidão do Desterro. Representantes docentes e discentes de todas as instituições de ensino, o beatério de todas as irmandades, fazendeiros sem-número, banqueiros, bancários, políticos, uma padraria acesa, o comando da Região Militar, toda a Sociedade de Medicina e Cirurgia, inteira a dos Soldados de Santo Inácio de Loiola, as redações do Diário Comercial e de O Fanal, os “homens bons” do município compungidos, curiosos da rua Schimmelfeld que tinham vindo ver e felicidade suprema para o Egon — entre estes curiosos — o Luisinho, o Percival e o Falcão que já deixara os companheiros de farda e viera confraternizar com os amigos. Toda a gente do Desterro se abordava, se cumprimentava, se dava condolências e nas conversas discutia-se muito como se daria o Encontro, como cada um procederia no Encontro, quanto tempo duraria a cerimônia do Encontro, que o Ezequiel Fortes seria o orador oficial da solenidade do Encontro. Repetia-se muito a palavra encontro que ao significado de um grande filho da terra sendo recebido fora dela pela população, juntava conotações religiosas, beirando as da Procissão do Encontro — quando Maria (símbolo do Desterro) deparava com seu Divino Filho (representação do Trancoso) gemendo sob a Cruz (figuração da Morte) mas já a caminho da Glória. O encontro. Mas a espera ia fazendo reentrar no natural os que tinham vindo do Desterro; conversava-se já sobre negócios, política local e até mesmo alguns mais corajosos tinham entrado numa espécie de bar para encherem os vácuos da espera com uma cervejinha bem gelada. O Registro era a única cidade de Minas onde não havia uma praça da Matriz. Esta ficava no meio de sua rua principal e nas suas vizinhanças é que se tinham aboletado os desterranos. Essa rua lembrava a sucessão de vértebras de um esqueleto de peixe de que as espinhas figuravam as ruas transversais. A estação e a ponte sobre o rio faziam de cabeça enquanto o cemitério, no outro extremo, era o rabo. Afinal apontou deste lado uma ambulância fechada adiantando-se lentamente, seguida duns seis carros que traziam o acompanhamento. O cortejo parou diante da multidão apinhada e deu-se o encontro. De dentro da ambulância desceu o Subtílio Trancoso que entendeu-se com os “homens bons”, que logo o cercaram explicando sua presença ali. Era para o encontro e para o corpo do velho Trancoso reintegrar sua cidade nos braços dos concidadãos. O Subtílio em lágrimas aquiesceu de cabeça e logo o luxuoso caixão foi descido da ambulância e carregado para a essa armada dentro da igreja. O vigário paramentado deu sua absolvição. Resmungados os latins e feitas as aspersões, o Ezequiel Fortes (conduzido pelo próprio pároco) galgou os degraus do púlpito. Era a primeira vez que ele falava de tal tribuna e seu pescoço alongava-se mais na satisfação que lhe dava semelhante elevação. O Ezequiel começou em voz baixa sua introdução. Fez sua costumeira chapa de elogio do Desterro, falando nos santos patriarcas de suas famílias, dos varões de virtudes plenos que alimentavam o espírito cívico e a piedade no coração dos desterranos, das mães, irmãs, esposas que os amparavam e animavam — todas seguindo o exemplo das Mulheres Fortes das Escrituras. Em seguida a louvação do Registro, cidade irmã da outra, xigófapas só separadas depois pelo escalpelo chapoprevostiano do progresso e da política (arrojada imagem que não arrancou palmas pois estavam num templo mas provocou vivos movimentos de cabeça — que sim! que sim! enquanto todos se entreolhavam entendidos e cheios de admiração). Mas de repente a voz do Ezequiel de baixa e sussurrada e lenta como se ele estivesse prestes a perder os sentidos — ergueu-se viva, altiva qual clarim canto de galo. Ele tinha esse costume, para criar um suspense nos auditórios: começava como se estivesse morto de desânimo e de repente uma furiosa força interior fazia-o literalmente gritar e esbravejar. É. Sua voz ergueu-se rápida, sonora e clara para perguntar o que estavam? fazendo ali.
— Sim! O que estamos? fazendo aqui. Elogiando? a virtude dum morto. Premiando? a bondade dum morto. Ressaltando? as qualidades dum morto. Oh! não! não! e não! Que ali não havia morto! Homens que nem o Trancoso não morrem — vivem sempre na irradiação de suas qualidades. Qualidades que são elevações, elevações que são ascensões, ascensões que são voos — busca da eternidade, eternidade que é perenidade, perenidade que é vida. Os Trancoso não morrem, repito. Vivem sempre nos nossos corações. Levai-o agora… Não sua chama que nos aquece mas só a forma em que ela habitou. Levade-lo… Não esqueçais o exemplo sublime deste que curava os pobres, vestia os esfarrapados, alimentava os famintos e iluminava as noites da nossa cidade. Tenho dito.
Pois levaram-no. Em silêncio todos retomaram seus lugares nos carros, o Subtílio dramaticamente ao lado do caixão do morto dentro da ambulância. Jazia ali um dos grandes proprietários do Desterro: dono de sua clínica interna, detentor de ações sem-número das fábricas de tecidos, senhor da indústria de laticínios e derivados, praticamente o majoritário da companhia de iluminação. Levaram-no até à porta de seus jardins no Cruzeiro de Cima. Só um pequeno grupo entrou para levar o caixão e só os parentes. Conduziram-no à essa. Amigos subalternos acenderam os tocheiros e ficaram velando enquanto a família ia se reconfortar com algum alimento pois estava assentado que o velório e a abertura de caixão seriam à noite, nove horas. Quando o Egon voltou às dez para acompanhar o seu chefe João Nogueira Pedroso Lucas — la veillée funèbre battait son plein. As pessoas de negro indo e vindo, as conversas baixinho nas salas da frente, aumentando de diapasão para os adentros, franca e alta na sala de jantar. Sobre a mesa garrafas de vinho do Porto substituídas assim que esvaziadas, bandejas e bandejas sempre renovadas de salgadinhos encomendados ao restaurante Papa-Goiabas. Na sala, os parentes e dignitários da cidade se revezando cada dez, quinze minutos num genuflexório colocado aos pés do ataúde. Cada quarto de hora uma das senhoras da família vinha em ponta de pés, beijava a testa do morto e baixava-lhe a pálpebra esquerda que lentamente, molemente ia se reabrindo até arregalar um bogalho matreiro de peixe assado. Novamente fechada, novamente se abrindo devagarinho. Para acabar com aquela teimosia do morto o Subtílio mandou buscar colódio, pincelou com ele as pestanas do defunto, segurou até que tudo secasse e soltou. Dessa vez os olhos ficaram fechados e o Trancoso um morto como os outros. O Egon assistiu à operação e depois foi andando casa adentro e examinando tudo numa curiosidade. Era uma residência belle époque e no escritório onde sentavam figuras gravíssimas havia aparelhos que interessaram profundamente o jovem médico — lembrando sua infância. Visores para as figurinhas espalhadas que vinham como brindes nos cigarros Veado e diascópios movidos à manivela passando fotografias em vidro. Ninguém falava alto ali. Impressionava a figura morena do Lisuarte Taveira. Ele conversava baixo com um padre de óculos pretos — em linguagem escolhida de homem de religião. Durante a conversa o jovem médico reparou que ele não usava certas maneiras de dizer como — hóstia, rezar a missa, São Tomás. Como grande iniciado empregava termos mais adequados — partícula, celebrar, Santo Tomás de Aquino. Ele estava, ao que o Egon percebeu, concertando as cerimônias religiosas para o dia seguinte, as missas de corpo presente, a encomendação, o enterro. Quando o reverendo foi puxar o rosário na sala ele abriu um livrão enorme tipo missal, corte de folhas vermelho, cheio de fitinhas marcas multicores — e engolfou-se. Cerca de uma hora toda a casa recendia a incenso, cera, flores murchando, empadinhas pastéis croquetes esfriados e a restos de vinho nos cálices. O Egon se esgueirou, disfarçou, saiu por varanda lateral, tomou o jardim e desceu direto para o Dia e Noite. Tinha combinado cear com o Luisinho. Acordou tarde na outra manhã e depois do almoço bateu-se para a casa do Trancoso: ia velar mais um pouco e acompanhar o enterro. Quando chegou eram umas três da tarde e custosamente se rompia a multidão comprimida nas varandas e cômodos de antes da câmara-ardente. Aí o ambiente era impressionante. Toda a sala cerrada e escura pulsava à luz avermelhada dos seis tocheiros e dos lustres — tão envolvido em crepe que mal deixava coar um pouco dos raios das lâmpadas elétricas. Perto da cabeceira da essa um grupo de cadeiras onde sentavam-se filhos e esposa do Trancoso. Esta, d. Cachucha (uma Taveira e irmã do Lisuarte) estava admirável. Era uma matrona sólida de formas, das mulheres ditas de tipo búfalo, pescoço atarracado, ombros largos, tórax volumoso e mameludo, cadeiras enxutas, pernas secas mas de panturrilhas válidas. Parecia um campeão. Tinha um buço forte que ela, para disfarçar, oxigenava e aquela espuma dourada sobre o lábio dava a impressão que acabara de chupar manga e de que se descuidara de limpar a boca. Tinha a fisionomia dramática e velazquiana da família e mostrava uma resignação exemplar. Não chorava. Rezava seu rosário sem parar e só se interrompia para encorajar com seu exemplo a mágoa dos que vinham dar os pêsames. A todos ela dizia transfigurada: Deus o deu, Deus o levou; louvado seja o santo Nome de Deus. E retomava suas preces, ora sentada, ora de pé — levantando o lenço que cobria a face do morto — ora no genuflexório. Confortava todos, mostrava-se exemplar e talvez estivesse tendo ali um dos seus momentos mais plenos e gratificantes — representava com todo talento histriônico, para a sociedade do Desterro, o seu grande número de “A Mulher Forte das Escrituras”. O Egon, fascinado, acompanhava sua mímica, seu gesto e sentia dentro de si mesmo um ímpeto esquisito que acabou descobrindo e pondo a nu — tinha vontade de aplaudir a pantomima de d. Cachucha. Quando chegou a hora das despedidas ela não desmereceu. Foi a derradeira. Sem lágrimas mas face decomposta, beijou e beijou e beijou a testa do defunto e murmurou longamente junto de seu ouvido as palavras de adeus. Foi quando o colódio ressecado estalou e o Trancoso lentamente reabriu o olho esquerdo. Logo o lenço da viúva caiu-lhe sobre a cara, a esposa deu dois passos para trás, os amigos oficiosos fecharam o caixão. Dentro dum silêncio mortal ecoaram as palavras finais.
— Vai! Parte, meu bem! para a mansão dos justos.
Numa alucinação, ao peso dos passos que saíam com a carga funerária — o Egon sem querer, enquadrou a frase nos compassos do Black Bottom e repetindo-a, cantava mentalmente.
Quando transpuseram o portão os seis carregadores já se preparavam para inserir o caixão no opulento coche funerário cheio de panejamentos franjados a ouro, cavalos emplumados de negro e recobertos de mantas da mesma cor — quando o Subtílio, que era quem parecia conduzir a pompa fúnebre, interrompeu.
— Não! Não precisa coche: vai nos braços do povo, dos desterranos amigos até à Matriz. Depois, sim: no coche, para o cemitério.
Ele próprio deu o exemplo e segurou a primeira alça esquerda — a que de direito pertence ao diádoco. E naquele momento como que ele apossou-se de todas as situações profissionais e prerrogativas do irmão mais velho. Aquilo foi tão patente para todos e tão solene como o pregão heráldico de “O rei morreu! Viva o rei!”. O cortejo foi descendo Silva Paranhos e subiu a escadaria da Matriz sempre carregado — os principais do establishment se disputando as alças. Depois da encomendação decidiu-se que a urna seguiria ainda a braços até defronte do casarão em que moravam as irmãs octogenárias e nonagenárias do Trancoso. E foi diante da fachada de portadas cerradas, em cujas gretas se lobrigavam os vultos das velhas, que finalmente o ataúde passou para o coche. Este seguiu a passo no ritmo da multidão que acompanhava a pé. Cobertas de negro, destacavam-se no cortejo três figuras impressionantes. Primeiro a do Ezequiel. Luto da cabeçaospés. Óculos defumados. Face biscornuta. Calvário vergado e ombros descaídos — todo ele era a imagem de profunda dor cívica religiosa municipal e diocesana. Seu sentimento dava a impressão de ser tão dorido que o Egon julgou-se na obrigação de aproximar-se dele e de tentar desanojá-lo. Foi recebido sem gesto senão cumprimento de cabeça lá muito do seco. Calado estava, calado ficou. Mesmo o médico teve a impressão dum apressar de passos e duma vibração nas bochechas verdes igual à que dá no couro das ancas dos cavalos quando espantam moscas insistentes. Logo deixou-se ficando para atrás enquanto o primo torto seguia dentro dum círculo alargado como um oh! se abrindo mais e mais — assim ondas que saem da superfície da água em que calhau caiu. Donde o Egon seguia, podia ver umenorme coroa rica em si e do símbolo das saudades perpétuas sempre-vivas e podia ler as letras douradas das vastas fitas negras — Imorredoura saudade de tua Esposa desolada. Também tinha ritmo do Black bottom e o moço retomou mentalmente o canto sincopado que começara ao início do enterro.
Vai — par — te — meu — bem
Pa — raa — mansão — dos — jus — tos.
I — mooor — edoura — sau — dadede
Tues — posa — des — olá! — dáaaa…
Marcava seus passos pela música que obsidiava, meneava por ela sua cabeça e olhava outros vultos de dó. Dois impressionavam-no fundamente. Demais. Emparelhou ao professor Eulálio Manso Conchais que também não perdia nada e perguntou quem eram.
— O mais alto e de pixaim grisalho é um pândego de Barbacena onde deixou fama como delegado de polícia violento e arbitrário. Veio para o Desterro advogar depois de processo que sofrera pelo esbordoamento dum surdo-mudo que aparecera vagando na cidade e que ele achou de responsabilizar por furto ocorrido na Santa Rita de Ibitipoca. Os grunhidos do pobre-diabo ele os tomava como despistamento e dobrava as pranchadas de refle no lombo, as cargas de borracha e as porradas de cassetete na sola dos pés. O desgraçado não resistiu e bateu a bota no dia em que chegavam os pais para procurá-lo e não se sabe por que artes do demônio foram dar com seu cadáver na horinha em que iam escamoteá-lo num enterro indigente. Eram fazendeiros influentes de Campolide e pergunta daqui pergunta dali acabaram descobrindo tudo. Moveram processo, a imprensa de Belo Horizonte tomara conta do caso e o homem que se chama Pânfilo Temente foi processado, condenado, demitido. Andara sumido até ser indultado pelo presidente do estado e logo depois apareceu na nossa comarca e empregou-se na Santa Casa. Fez-se muito do bispo, dos padres do Ateneu, do Prisco, do Trancoso, do Subtílio, do Lisuarte, do seu tio Pareto e hoje é um dos homens influentes da Inácio de Loiola e…
— Não me diga! professor.
— Pois é justamente o que lhe digo, meu doutor. Além do mais é também um dos grandes acionistas da Companhia Desterrana de Luz e Gás. Ele e o outro artista que está lhe chamando a atenção. O de junto do Ezequiel e do próprio Panfilo, aquele cor de terra, também de cabelo ruim mas com nome de inglês. É Mazegrave — que traduzido daria confusão e sepultura — que aliás lhe são adequados. É intrigante e triste. Futrica nas sacristias e é dum catolicismo austero e colérico de padre espanhol. Também dá as letras na Inácio de Loiola e também é grande acionista da Companhia. Tem com outros homens bons da cidade, casa de agiotagem a que deram o nome de Banco Charitas…
— Estou bobo, professor.
— Pois são os dois únicos, fora da parentela, admitidos no grupo e que sem uma gota de sangue fundador possuem ações dos iluminadores do povo…
Riram baixinho dentro dos lenços e subiram, dos últimos, as escadas do cemitério. O enterro foi rápido — que já anoitecia e o Ezequiel que viera preparado, foi bigodeado no segundo discurso que faria em homenagem ao gigante morto. Saíra da necrópole safado da vida pois escrevera noite toda e frases que haviam de fazer efeito. E perdê-las… Mas logo um lampejo de consolo: lembrara o primo Eugênio Romariz que estava nas últimas. Dito. Aproveitaria a oração fúnebre. E ela ia no caso como uma luva. Era noite fechada quando o Egon juntou-se ao Luisinho e ao Percival para voltarem para o centro indo em direção à Estação da Central e dali à de Schimmelfeld. O Luisinho aceso com o enterro propunha uma passada no bar do Riri Carozzo. E argumentava explicava por que precisamente no Riri.
— No Riri tomamos o aperitivo, jantamos e continuamos o resto da noite para desanuviar do funeral. Releitz… E o Riri está em ponto de bala, com uma dor de corno assanhada pela sua Valtesse.
— E quem diabo? é essa Valtesse que nos aparece agora ao apagar das luzes.
— Uma francesa da Glória, buchecheira emérita, de repente bancando de grande cocote — Valtesse d’Azincourt. O Riri mantinha ela de sociedade com o Crimson Faced — aquele bife do banco, cada um mais satisfeito, pensando que corneava o outro. Ela largou os dois por causa do trapezista desse circo que andou no largo do Riachuelo… O Riri tinha ficado… E quando dá nele a cachorra, fecha o bar pro público pra comer e beber o estoque só com os amigos. Ele é que me convidou. Garanto que nós vamos topar lá com a turma toda.
Pois o Percival e o Egon aceitaram o alvitre do Luisinho e subiram os três uma Schimmelfeld que começava a se animar. Chegados ao bar, encontraram-no hermeticamente fechado. Mas entraram pelo portãozinho do lado, numa passagem estreita toda escura e foram bater numa porta. O próprio Riri veio abri-la — no princípio uma greta e depois escancarando. Sucumbido, mandou que todos entrassem. O Egon mirou-o bem. Era um judeu italiano servido por bela face e cabeça calva que lhe davam antes, um ar de homem de ciência, de pesquisador, dum astrônomo, dum compositor — que o dum dono de bar. Era míope, usava pincenê e tinha um portentoso nariz fino e recurvo que nem foice. Olhos mais verdes ainda, das escleróticas avermelhadas pelo álcool ingurgitado e pelas lágrimas da dor de corno. Ele conduziu os amigos até à sala da frente que toda fechada, uma só lâmpada acesa, estava muito cozy, cheia de brilhos surdos das garrafas dispostas nas prateleiras e dos metais das torneiras do chope. Realmente o Luisinho não errara na previsão e ele, o Egon e o Percival já encontraram lá abancados o Antônio Falcão de Valadares, o Joel Martinho da Frota, o Luís Cesário Camareiro da Silva, o Lazarus Levy e o próprio Cornélio Hansen — já entrevisto no Papa-Goiabas em companhia do Ludovico Pareto e do Mister J. K. K. MacCrimson Faced, o poderoso diretor do Bank of York & South Brazil. Lazarus Levy era um primo do Riri, joalheiro no Rio de Janeiro. Esse era muito louro, cara de picareta e vivia enxugando as mãos que um suor teimoso tornava a ensopar. Os três chegados, que estavam sóbrios, notaram que os amigos que encontraram abancados já iam altos no embalo da mistura descoberta recém de champanha e uísque. Para se porem à altura, serviram-se largamente e em vinte minutos estavam todos conversando no mesmo pé. Foi quando bateram novamente à portinha da passagem, o Riri foi abrir e logo voltou trazendo consigo a Marimacho Homem Campelo que abancou-se sorridente, desabotoando o jaquetão e afrouxando o colarinho duro. O Riri trouxe-lhe uma taça e empurrou-lhe as bebidas.
A conversa continuou animada, alegre, ruidosa e assim foi indo até à hora da boia. Foi quando o dono da casa disse que tinha dispensado o pessoal de cozinha e que ele próprio iria improvisar um jantar frio. Oferecia de saída uma salada de alface tenra, faiscada com picles e pedaços de Edam holandês legítimo tudo generosamente untado de mostarda. Mas para isso tinham de parar com aquela misturada de champanha e uísque e passar para um Vouvray especial que ele tinha encomendado para seu uso e da Valtesse. Deu um suspiro e continuou a exposição da ementa. Passariam então para outro queijo ou outros queijos mais fortes — ele propunha uma travessa com Brie, Camembert bem maduro e um Roquefort especial — um Rigal que posto no prato começava a andar e as moscas a caírem dos fios. Ficassem tranquilos que ele se fornecera de pão fresquíssimo. Para acompanhar ele não tinha nada melhor senão um Medoc tinto, duro como pedra. A dor de corno do Riri não devia ter tamanho — em largo, alto e profundo — como está no soneto — testemunha aquela generosidade de queijos e vinhos com que ele ia brindar os amigos — até beber o botequim inteiro e passar-se para outros amores. O Luisinho contava que já ajudara o dono da casa em três rupturas de béguins e que tinha colaborado três vezes em liquidar o estoque da casa. Depois ele ia ao Rio, refornia suas caves de vinho, queijos e especiarias, fornecia-se de outra puta e esperava nova capela de chifres para liquidar o bar com amigos escolhidos. O indigitado, com ar de supliciado, preparava tudo numa mesa ao lado e à hora H os amigos só tiveram de mudar de lugar.
— Vamos, gente! Calma que o mundo não vai acabar. Vamos ao nosso jantar e para terminar vai ser um dedalzinho desse Marc da Borgonha. Aí cada um é livre para tomar seus caminhos da noite — cerveja ou volta ao uísque. Que falta a Valtesse tá me fazendo… Vamos comer e beber, porra!
O Riri deu um soco na mesa e aquele bumbo marcou o início de um dos melhores jantares que o Egon já tivera e teria na sua vida. Lamentou por dentro a ausência do Nava, do Cisalpino, do Sá Pires, do Cavalcanti, do Isador. Ergueu-lhes brindes tocando no copo do Luisinho, riram muito e dentro naquele bem-estar das libações e das ingestões das vitualhas o médico lembrou-se do defunto, àquela hora na grande treva — ficando maduro como o Camembert do Riri, pronto, ao ponto, para a vermes servir de mantimento. A essa ideia, aconchegou-se bem na cadeira, olhou seu copo contraluz, de boca cheia e foi ainda mastigando que começou a falar no Trancoso, coitado!
— Essa vida é mesmo uma boa merda! Basta estar nela pra morrer. Olhem o pobre do Trancoso. Assim, de repente. Vai passear no Rio e bumba! volta de pés pra frente. Mas sim, senhores! Que enterro. Assim valia a pena… Cidade inteira. Também não faziam mais que a obrigação. Aquilo era um cidadão benemérito, um justo, um santo varão.
O Egon falava no entusiasmo dos vinhos e dos queijos. Sim. Dos queijos também — que são o único alimento sólido que tem a difusibilidade dos álcoois e que é capaz de se expandir no sangue capitosamente. O Egon falava pois, naquela euforia da bonne chère — que facilita reconciliações e faz esquecer ou pelo menos amortecer agravos. Ele superava a maneira desdenhosa com que o homem o recebera na chancelaria da Santa Casa e influenciado pelo enterro, pelos latins da encomendação, pela opinião pública dirigida, pelo hábito da louvação desterrana, pelos mandamentos da Igreja ou pelo menos do senhor bispo, pelos mandamentos da Lei de Deus ou pelo menos do Deus de que se fazia ideia — o beatério da terra — só lembrava os encômios e elogios de que a cidade estava cheia desde que correra a primeira notícia da morte daquele homem dito o probo, o virtuoso, pietista, veracioso, justo e de tudo isto — reluzente espelho. O Trancoso. Serviu-se dum naco de Roquefort, mastigou até só ter na boca uma espécie de leite urticante que engoliuzinho gostoso como quem mama. Lavou depois as mucosas tornadas suscetíveis com um copo inteiro do tinto. Respirou, achou mesmo o Trancoso uma espécie de bem-aventurado e interpelou o Luisinho e a Marimacho que se cutucavam dentro duma espécie de riso contido e fungado — da causa daquela hilaridade. O primeiro é que respondeu chamando os filhos do Desterro ali presentes à la rescousse.
— Nego! pra responder transfiro sua pergunta ao Percival, ao xará Cesário, ao Antônio e ao Joel. Pessoal, o Egon tá querendo saber porquié que eu e a Marimacho tamos com vontade de rir dele estar santificando o Trancoso.
— Deixa pra lá, Luisinho! o homem tá morto — cortou o misericordioso Percival.
— Não, gente! Vam’esclarecer o Egon. Num é possível deixar amigo fazendo coro com a tapeação da cidade — tranchou o límpido Antônio.
— Isso! Isso! — reforçaram o Riri e o Lazarus estourando.
Houve um silêncio de expectativa, cada um olhando pro outro e esperando a abertura dos debates. Finalmente o Joel fez uma cara muito séria e abriu as cartas na mesa.
— Egonzinho, bem. Admira que você, daqui, nunca tenha ouvido nada de sua família que deixasse você arquinformado sobre o lixo que levamos hoje ao cemitério. Você já leu? Molière. Pois o Tartufo era pinto, criança de colo — comparado ao Trancoso. Vou fazer a você só o resumo da ópera… Há bem uns trinta anos ele passou pelas armas, no consultório, irmã aqui da nossa Marimacho. Instalou a mulher pros lados de Sobragipe e a amigação correu na moita anos e anos. Mas tudo acaba e quando ela fartou daqueles amores furtivos ele, para aproveitar sua cumplicidade e experiência, resolveu instalá-la no Rio. Tudo muito bem-feito. Ela abriu um randevu em Gomes Freire defronte duma oficina de veículos onde o Trancoso fazia revisar e guardar seu automóvel quando ia à capital. Essa oficina fora montada pelo irmão do chofer do Trancoso e tudo à custa do santarrão. Assim estava engatilhado o esquema de pândega, com três cumplicidades regiamente pagas: a da mana Chica da Marimacho — a do motorista e a do garagista. O Trancoso ia cada semana, cada dez dias ao Rio, arranjar dinheiro nos ministérios para nossas instituições culturais e de caridade. Fazia ação de presença e corria para a novidade com que cada vez era brindado pela Chica. Ora, o Trancoso era bom clínico e tomava suas cautelas. Sabia-se hipertenso e enchia-se de trinitrina desde a véspera desses festivais de cama. Ia em jejum. E todo mundo estava avisado do que tinha de fazer no caso dele sentir-se mal ou morrer. Vesti-lo, encostar o automóvel, levá-lo para dentro dele e tocar pra casa da irmã, em Botafogo. Era nesse caminho que ele devia morrer. E foi justo o que aconteceu. Outro dia ele estourou de morte macaca em cima duma mulata do balacobaco. Deu certo e ele foi posto na casa da mana e chamada a Assistência. Tudo devia ficar ignorado mas não ficou. A Morte desata as línguas mais amarradas e o motorista do Trancoso não resistiu. Já no velório se balbuciava alguma coisa e na volta do cemitério o troço foi badalado. Destrancaram o nosso Trancoso…
O Egon declarou-se bobo com o caso. Aquele santo… Uma gargalhada geral foi o parcesepultis do carolão e a Marimacho declarou que seguia no noturno daquela madrugada para saber todos os pormenores com a mana.
— Depois ponh’ocês a par.
— É por essas e outras que meu pai sempre diz que depois dos setenta duas coisas são sempre fatais ao velho: vento pelas costas e mulher pela frente — concluiu o Frota repetindo sentença do velho Martinho.
— E no fim os ruins somos nós — pontofinalou o Riri.
Depois da fase de bem-estar a conversa desceu da gritaria e das gargalhadas para o meio-tom das confidências, da puxada da angústia e da russificação. Não era só o Riri que sofria. Cada tinha sua queixa e dela lembrado (aguçadas as sensações ao paroxismo pelo vinho), gemia e chorava nesse vale de lágrimas. O Luisinho estimulado pelo caso do Trancoso contava o de há dois anos, sucedido no velório doutro santo. No melhor da festa a viúva que se rasgava e cobria de cinzas — viu aparecer a outra, a da mão esquerda do morto e inda mais com o acompanhamento de cinco filhos. O Egon dentro dum vapor denso, pegajoso da gordura dos queijos, sanguinolento da cor dos tintos, arrastara-se até a uma vitrola de corda que havia no bar do Riri e ouvia sem parar de repetir o Black bottom que lhe enfiava de oiças adentro a imprecação da d. Cachucha Trancoso e o dístico da coroa de viúva. E remoía aquela sujeira que seu espírito tomava como sacrílega e que ele queria recalcar para suas profundas como tinha recalcado outrora conhecimento diabólico que horrorizara sua infância. Cozinheira bruxa de sua casa, uma negra chamada Justina, tinha lhe dito que cobra, no princípio, andava com quatro patas feito lagartixa, camaleão, jacaré. Depois do caso do Paraíso e da Tentação é que fora condenada a se arrastar no pó e suas pernas tinham sido chupadas de corpo adentro. Mas reapareciam quando se mergulhava o bicho maldito em óleo santo de crisma e extremunção. Mas isso era pecado grande. Trazia poder para quem tinha coragem de praticá-lo. Muito. Mas poder só nesse mundo porque alma, essa, já pertencia ao Demônio. Cruz! canhoto!… Havia um silêncio em que todos degustavam seus mastigos ou sua bebida. Dentro dele a rêverie do Egon — já tão impregnado de Desterro que virava contra si mesmo (pelo pecado de reconhecê-las) as porcarias do morto. Só de considerá-las, e de nelas acreditar — vinha-lhe um sabor de culpa e a língua se lhe crescia dentro da boca como a dos sacrílegos e a dos blasfemos. Pois foi numa dessas pausas de silêncio que sucedem quando passam os anjos (ou os demônios) que começou a interrupção dos piados emitidos pelo Hansen. O Egon reparou melhor nele. Era figura que o tinha impressionado, naquele dia em que a vira tomando seu uísque com o Luisinho Pareto e o J. K. K. MacCrimson Faced no Papa-Goiabas. Guardara memória do seu ar, dos seus movimentos elegantes e fáceis de atleta em forma — os cabelos muito lisos dum castanho luminoso, os olhos escuros e ridentes, o riso triunfal dos dentes brancos, o perfil de pele-vermelha e o corado pernambucano — aquela cor especial de manga-rosa de pele morena feito a que tiveram no tempo Gilberto Freyre, Luís Jardim, Cícero Dias e principalmente o irmão deste, Manuel dos Santos Dias. Nem esquecera suas roupas das cores audaciosas que os anos 20 tinham posto em moda e estava bestificado! com a loque que tinha diante dele. Realmente, o Hansen trazia uma gravata enrolada como corda suja, camisa imunda, o terno amarrotado e daquele sebento especial de quem não o tira há uns três dias — nem para dormir, nem para banhar-se. As meias lhe sanfonavam nos tornozelos. Sapatos com todas as poeiras da cidade. E dele saía como um bafo — a morrinha, especial de suor secado e ressuado, a inhaca do corpo azedo e um hálito de álcool e de boca mal lavada. Agora começara! a produzir aqueles pios, aqueles soluços ritmados, aspirados violentamente pelos movimentos convulsos do diafragma e que faziam um estrídulo de sufoco nas cordas vocais contraídas. Agoniado, ele fabricava aqueles ruídos, ia amarelando e suando frio cada vez mais até, de repente, esvaziar o estômago duma vez, num vômito parabólico que foi até ao outro lado da salinha do Riri. Esse não se alterou. Foi ao fundo do seu negócio e voltou de lá munido dum saco de serragem com que soterrou o caminho do vômito. Deixou embeber bem e depois vassourou tudo para o canto. O Hansen aliviado, minguara na sua cadeira — dormindo e babando. O Egon perguntou o que diabo tinha havido com aquele homem alinhado para reduzi-lo assim, àquela última lona. O Riri sabia toda a estória.
— Aborrecimentos com a mulher. Imaginem vocês que ela saiu de casa há cinco dias e sumiu com o sacana do Osbundo Tabosa e…
— Tabosa? Hem? Luisinho — será? parente daquele que nós vimos no bordel da Malvina…
— Isso, nego. Irmão e um dos diretores do banco onde trabalha o Hansen…
— …ele quis achar ruim — continuou o Riri — chegou a armar-se para tirar um desforço mas fora intimado pelo próprio delegado regional que lhe confiscara a garrucha e o mantivera bem suas doze horas detido. Ele saiu da delegacia desmoralizado pela desfeita e pela dor de corno. Contivera-se, fora para casa e lá tinha recebido no dia seguinte o aviso de sua transferência para a agência que o banco abrira em Mato Grosso, em Cuiabá, no caralho. Isto trasantesdonte. Ele viera manhãzinha pro bar e não tinha saído ainda daquela mesa e de encostar-se como podia para dormir. Acordava e voltava a beber. Tá nisso…
— Coitado! Mas que sujeito sujo esse tal de Osbundo. Perseguir o pobre: além de corno, aperreado… Também um filho da puta destes não pode mais pôr a cara na rua Schimmelfeld…
— Não pode? Como? não pode? A família dele é uma das donas dum sem-número de empresas, fazendas e bancos do município. Quem não pode mais ficar na cidade é o Hansen. Nem seu banco consentiria ver um dos seus diretores ameaçado por um funcionário graduado, é verdade, mas subalterno à diretoria. O Hansen tinha de aguentar a chifralhada e ir de mansinho pra cucuia porque senão era ra-re-ri-ro-rua! e ia-se-lh’o emprego. O Osbundo vai ficar no choco uns dois meses, e quando passar o rabicho, começar a sentir falta dos sacramentos, volta. Despachava a madama pro Rio, bem aquinhoada de casinha na Tijuca. Fora assim que ele fizera com a do Pimenta, o Hemetério Pimenta, da Coletoria.
— E que tal? a mulher do Hansen.
— Menino…!
Calaram-se porque o Hansen dava sinais de estar acordando. Abriu um olho, encarou os amigos, recolocou-se na realidade e começou a chorar. Mas logo envergonhado levantou-se e sumiu na direção do toalete. Demorou mas voltou desemporcalhado do grosso, cara lavada, cabelos molhados e penteados, gravata ajeitada e roupa desempoeirada à tapa. Bochechara. Mesmo limpara as unhas. Começava a assumir. Todos com a maior paciência lhe fizeram lugar à mesa. O Riri estava mais que paternal — maternal, com o irmão em Menelau. Segundo o programa que ele traçara, todos tinham provado seu Marc, uns um, outros, dois cálices e se dado por entendidos. O patron recolocava o néctar num armário à chave e agora esvaziava as mesas dos restos de aperitivo, dos queijos, dos vinhos e fazia ambiente para a segunda parte das libações.
— E agora? filhos. Álcool ou a cervejinha? tinindo de gelada. E você, Hansen. Mineral?
Todos, inclusive o Hansen, foram pela cerveja. O Riri tirou duma prateleira fechada sua bateria de “pedras” especiais, das legítimas, trazidas da Baviera por suas mãos. Serviam nas grandes ocasiões. Eram dum cinza duro, cor de lioz, e tinham gravadas em azul timbre ilustre: um leão rompente e embaixo escrito — löwenbrü müenchen. Todos serviram-se e esperaram num silêncio beatífico o Riri (que não tinha conchas) descobrir uma compoteira para nela arrumar o que reclamara o Hansen — mistura jucunda — partes iguais de cerveja loura e cerveja preta. Os canecões tinham aljofrado durante a pausa e seu contorno perdera a dureza do grés para aparentar doçura de pelica azulada. O Hansen foi o primeiro a servir-se e tomou a primeira compoteirada duma vez — à la russe. E sem transição cantou.
The cats on the roofs,
The cats on the tiles,
Some with syphilis,
Some with piles,
With all their ace-holes
Writhed in smiles,
They revel in the joys
Of copulation…!
A música era lenta, majestosa e tinha cadências de hino luterano. O Hansen pediu que fizessem coro quando ele repetisse os últimos versos. Escandiu bem para que todos pegassem sílaba por sílaba: in — zi — jóis — óf — co — piu — lei — chon. Pronunciou assim mesmo, como ele achava que devesse ser nossa maneira canhestra porque o seu inglês era soberbo. Cumprimentei-o pela prenda e foi quando ele me informou que o pai era do Pará, casado com senhora pernambucana, filha de britânico e nacional. Sendo assim sua pronúncia vinha do berço e fora aperfeiçoada na Inglaterra, em Oxford, onde fizera dois anos do Magdalen College. De lá é que ele trouxera também seu repertório de canções de sacanagem.
— Não me diga! Povo tão pudibundo cantando destas indecências…
— É? Pois cantei apenas o princípio da conversa. Vamos passar à continuação e você verá.
Parecia que a bebedeira se lhe evaporara por completo. Ingeriu mais uma compoteira da sua mistura e vocalizou novamente.
The donkey in the common,
Is a miserable bloke,
For he very seldom
Gets any poke…
But when he does,
He lets it soak,
And revels in the joys
Of copulation…
O coro emendou com brio —
— In — zi — jóis — óf — co — piu — leeeeei — chon!
O Hansen antes da terceira copla foi a duas compoteiras espumantes e ostentava voz pastosa de bebedeira remontante quando passou à terceira parte.
The big white elephant,
So it seems —
Has very seldom
Any wet-dreams…
But when he does,
It comes in streams,
And he revels in the joys
Of copulation…!
Novamente o coro secundou com dignidade espalhando as notas que desceram Schimmelfeld e foram levadas pelo Paraibuna — àquela hora elevado à dignidade das águas ilustres do Cherwell-Thames.
— in — zi — jóis — óf — co — piu — leeeeei — chon!
Depois as coisas ficaram confusas, à altura da madrugada: mas todos se salvaram e foram para suas casas. No dia seguinte o Egon tomou o pulso do Desterro. A cidade sabia de como o Trancoso morrera de morte macaca. Sabia e fingia que não sabia. O mito do Justo era mais forte que o gosto humano de desmoralizar, sujar e empestar o que pode. Só que a coisa era sussurrada baixinho, em encontro de dois. Se chegava terceiro, logo o assunto sofria uma distorção de cento e oitenta graus e celebravam-se as virtudes do defunto. E a missa de sétimo dia, rezada pelo senhor bispo, tendo todos os padres do Ateneu Mercantil de concelebrantes — foi um triunfo da fé contra a impiedade dos caluniadores. Corria uma lista atendida de maneira pingue para a ereção da estátua corpinteiro do Trancoso em praça pública. Quando a embaixada passou pelo Centro de Saúde, o Egon assinou galhardamente 50$000.
O Egon tinha suas horas de Desterro muito bem distribuídas. Levantava geralmente cedo e de oito às onze, onze e meia, trabalhava nos ambulatórios do Centro de Saúde. Dava uma mãozinha ao Dimas Alvim na clínica interna e atendia seus casos de verminose, de tuberculose, de lepra, de doenças infecciosas crônicas ou agudas. Ia almoçar, sempre muito paparicado pela Sá-Menina. Voltava ao trabalho, passando um instante pelo Clube. Descia lentamente a rua Schimmelfeld, parando e dando um dedo de prosa nos grupos de senhores e rapazes de que ia se tornando costume. Passava hora e pouco novamente no Centro, despachando seu expediente e recebendo partes que vinham intimadas por infrações de Polícia Sanitária. Invariavelmente às três e meia estava no consultório que tinha alugado nos altos da casa comercial dos manos Medeiros. Entrava pela escada íngreme que dava na porta numerada 808 da rua Schimmelfeld. Atendia seus telefonemas (seu aparelho era o 462), fazia a venereologia dos parentes e amigos bombardeados por Vênus e cuidava duns escassos casos de varizes e de pipiatria. Tinha se anunciado assim. Clínica mesmo para valer, neres. Ganhava para o supérfluo. Se não havia cliente metia a cara nos livros escolhendo como assunto os relatos dos casos que lhe apareciam no consultório e no Centro de Saúde. Recordava a propedêutica de cada um, sua patologia, sua clínica e o mais profundamente possível, a terapêutica de cada. Tinha a impressão de estar cumprindo bem seu dever de médico. O diabo era a falta de hospital para frequentar… Pelo fim do dia saía para encontrar ora um, ora outro, ora todos da que ele chamava sua roda da tardinha. Subiam e desciam Schimmelfeld conversando sobre a cidade, sua gente, sua pré-história, sua história, sua crônica, seus médicos, sua medicina. Esses amigos eram todos mais velhos que o Egon, amizades herdadas do pai. O único conhecimento recente era o do professor Eulálio Manso Conchais — o mestre da Escola Normal e fino humanista. Os outros eram os drs. Josué Cesário Camareiro da Silva e Martinho da Frota. Quando o sereno começava e esses amigos se recolhiam, o Egon ia ao Papa-Goiabas ou ao Riri Carozzo onde topava o bando de sua idade — os dois Luíses, o Antônio Falcão de Valadares, o Percival Aquino d’Aviz, o Silvio d’Aquino, o Tristão de Aguirre, o Joel Martinho da Frota, o Oscar Videla e recentemente, o Lazarus Levy. Saudosos amigos. Uns perdidos de vista, outros permanecendo afeição fiel da vida inteira, a maioria desaparecida no grande sono… Saudade. Mas alguns deles não são apenas de referência. Nas suas notas, apontamentos, diários — o Egon dedicou-lhes palavras demoradas. Mereceriam livros… sua educação desterrana tinha sido feita por eles e mais pelo primo Antonico a quem o moço médico visitava pelo menos uma vez por semana.
O professor Conchais era dum moreno carregado que se disfarçava pela quase ausência de cabelos e pelo afinamento que a idade traz aos fios que vão perdendo a teima. Tinha, além disso, olhos gateados de sarará — que o arianizavam. Sua fisionomia era muito mansa. Andava sempre de roupas claras, ternos de brim ou casimiras dum cinza azulado. Colarinhos impecáveis jogando em brancura com as gravatas de fustão que eram de seu hábito. Tinha a voz agradável e a conversa saborosa. Abundava em anexins, apólogos e citações latinas cheias da maior oportunidade. Tinha grande cultura literária e trazia seu Rabelais — assim dizer — de cor. O Egon era fascinado por sua palestra e gostava de provocá-lo sobre os santarrões do Desterro. Ele fingia que não percebia a verrumação do moço e era por deleite próprio que contava as coisas escabrosas que apurara por conta própria ou de que recebera o relato por tradição, como um legado de família. E tinha sempre um nome da História e da Fábula para dar aos desterranos e desterranas cuja concupiscência, licenciosidade, furor de flancos, cornos, incontinência e hipocrisia — mereciam seu látego. Assim sua malícia cobria-se do manto da erudição. O Egon achava-o cheio de analogias com mestre Aurélio Pires que fora seu lente de farmacologia e arte de formular em Belo Horizonte. Confundia os dois num tipo só, cheio em doses iguais de suavidade e ironia, doçura e latim. Foi ao Conchais que o jovem médico ficou devendo um conhecimento melhor da literatura trovadoresca e cancioneira portuguesa — pouco menos superficial que o que trouxera do Colégio Pedro ii. E seu prazer era extremo quando a ele e ao Conchais unia-se, para peripatetizar, em Schimmelfeld, o dr. Josué Cesário Camareiro da Silva. Os dois velhotes eram mais ou menos da mesma idade e tinham vivido um Rio de Janeiro do fim do xix e inícios do século xx. La belle époque. E era uma capital federal prodigiosa que os dois evocavam quando falavam da mocidade. Eles recriavam um mundo machadiano… Nestas horas o Egon interessava-se ainda mais pelo Cesário e sua lembrança dos mestres de medicina de seu tempo. Dele aprendeu muito sobre Torres Homem, conhecimento que já lhe viera inculcado pelo seu primo Nava — que descobrira esse Hipócrates brasileiro na palavra de Abílio de Castro. Pois o Egon pegou a mesma mania e ainda velho, guardava os volumes que lhe dera do dr. Cesário — da obra desse maior clínico patrício de todos os tempos. A roda ficava completa quando descia a Schimmelfeld o dr. Martinho da Frota. Esse era, sem dúvida, o que mais atraía o moço médico. Guardaria de sua figura lembrança imorredoura. Ele era a respeitabilidade em pessoa. Impressionava pelo físico seco que tinha alguma coisa de britânico no seu compassado, nos modos medidos, na fleuma, na distinção impecável de verdadeiro gentil-homem. Nada disso impedia a exteriorização de seu humor, de sua graça, da palestra pitoresca — temperada aqui e ali da sua ponta de sarcasmo e ceticismo — que lhe vinham de uma longa vida, da sua enorme experiência de médico. Tinha-se a impressão de que ele olhava a humanidade nas suas ânsias, nas suas tentativas, nos seus ódios frequentes e raros instantes de armistício, como a um bando de clientes que mereciam dele, antes de mais nada, a piedade; quando possível, o conselho; — quase todos a camisa de força. Era duma tolerância exemplar e esse sentimento terá sido um dos frutos sazonados ao calor da sua prática. Para lidar com os homens tinha a sabedoria dada pela vida e a sapiência tirada dos livros. Ao Egon, médico moço, impressionou desde os primeiros contatos ouvir do velho Martinho não só as verdades eternas que fornece o exercício médico e que se armazenam como experiência, como a citação daquela que é colhida pelos mestres e obtida através da leitura — a que fica como experiência coletiva e corpus da doutrina hipocrática. Moravam na sua conversa os nomes dos autores clássicos. E o doutor calouro teve ocasião de apreciar tudo isto visitando Martinho da Frota como colega mais novo e frequentando seu consultório como doente. Porque logo o elegera no Desterro como ao clínico certo — para cuidar da gravidade do seu estado. Recém-formado, ainda cheirando aos bancos da faculdade, ele sofria nessa época daquilo que os livros franceses chamam “la maladie de l’étudiant en médecine”. Realmente, não podia ler o relato de uma hipertensão arterial sem começar a sentir os pródromos dum icto cerebral, os arrochos da angina e as aflições da crise vascular generalizada. Não abria livro sobre doenças do aparelho respiratório sem se julgar corroído de espeluncas. Os pulmões de superfície reduzida em escala geométrica pela progressão do enfisema. E em vez de deixar o cigarro — fumava de sufocar, de tanto medo de perder o ar… Também os tumores. Era tomar conhecimento de sua patologia e de imediato sentir-se queimar no fogo de artifício das metástases. Ora, assim padecente, sua presença era frequentíssima no consultório do velho Martinho. Este o ouvia com paciência exemplar, consignava o que devia no canhoto de seu receituário picotado, tomava a pressão máxima, média, mínima, o índice oscilométrico com seu aparelho de Pachon, auscultava, palpava e mandava o paciente neurótico em paz com a fórmula do bromureto de potássio ou de sódio em solução na água de tília, na de melissa, com xarope de groselha ou de cascas de laranjas amargas. E acrescentava que ele estava repetindo as moléstias do seu pai — que também quando chegara ao Desterro, formado de pouco em farmácia, andara às voltas com os padecimentos imaginários. O Egon pôde assim conhecer Martinho — um no consultório, indulgente, paternal, tranquilizador e cheio de segurança; outro, na Sociedade de Medicina e Cirurgia pleno de experiência, conhecimento, opiniões avisadas; outro, na rua, onde saía para espairecer subindo e descendo a rua Schimmelfeld. Era nessa hora o colega mais velho, recheado de casos, da memória dos acontecimentos, de comentários sobre os homens e a vida — que sabiam um pouco aos do Abbé Coignard. Eram impregnados de doce ironia e mansa descrença.
Amanhã serão graças
de museu.
Hoje são instrumentos de lavoura,
base veludosa do Império:
“anjinho”,
gargalheira,
vira-mundo.
Cana, café, boi
emergem ovantes dos suplícios.
O ferro modela espigas
maiores.
Brota das lágrimas e gritos
o abençoado feijão
da mesa baronal comendadora.
carlos drummond de andrade, “Agritortura”
Aos seus amigos de idade mais ou menos a mesma e aos mais velhos, como os drs. Cesário, Martinho, o professor Manso e o primo Antonico — o Egon ficou devendo profundo conhecimento do Desterro. Viu que aquilo tinha sido em tempos, cidade como as outras de Minas, que de repente se desportugalizara e passara a viver como se tivesse sido ocupada por duas forças: a espanhola, duma beatagem inquisitorial, feroz e obtusa — que esmagara sua velha e doce religião; a de cristãos-novos dum mercantilismo ávido, insaciável e impiedoso que amarrara sua antiga industriosidade e amor ao trabalho. As qualidades mineiras e brasileiras da coletividade continuavam a existir mas eram obscurecidas como os dias claros podem sê-lo pelos braseiros e pelas fumaças negras dum auto de fé armado em cada esquina de burgo medieval. A pirâmide oligárquica tinha no topo uma aristocracia de fazendeiros, industriais, banqueiros e comerciantes cheios de alianças e casamentos entre si. Eles eram os possuidores, os proprietários, os donos, os senhores de tudo na cidade — inclusive de suas forças morais — o pensamento, a opinião, o jornal, o púlpito. Eram os titulares dos cargos públicos preenchidos nas eleições a bico de pena ou, se dividiam esse poder com elementos de outras camadas — consentiam na sua meia existência, movendo-os como títeres ou absorvendo-os por matrimônios tramados nas sacristias e que davam vez às incasáveis. Eles eram cegamente apoiados pelo senhor bispo, pela padraria da cidade, pelas irmãs de caridade, pelos freires, pelas irmandades, pelos colégios religiosos, pelos vigários dos distritos — que introduziam Deus Nosso Senhor na jogada e em seu Nome mantinham o rebanho em estado de incuriosidade, admiração e devoção pelos emires. Por sua vez a casta senhorial era fidelíssima ao clero que lhe era fiel — era praticante, comungante, catecismante e sua piedade mostrava-se ostensivamente em instituições platônicas de assistência e educação. Abaixo do establishment e concordantes obrigatórios com ele, vinham os dependentes dos cumes da classe média — os das profissões liberais que aspiravam à subida, dos empregados nos bancos, indústria, comércio e lavoura. Depois e com todas as gradações — as camadas manuais mantidas no respeito, na gratidão e mesmo num sentimento de culpa e inferioridade pelas instituições de benemerência e caridade, pela religião ministrada em gota a gota contínuo por via endovenosa — quando era por bem. Agora, se era por mal, havia o delegado, a polícia e todo o aparato de força do estado. O banho duma boa surra de borracha nunca fez mal a ninguém. E que fizesse…
Quando o Egon andou pelo Desterro estas coisas funcionavam com a precisão dum patequifilipe. Iam começar a se desarranjar depois da Revolução de 30. E, como todas as coisas trazem em si sua própria contradição, já naquela época se falava em matéria que seria nefasta. E o curioso é que a ideia era do próprio establishment: a criação de institutos de ensino superior e sua reunião posterior numa universidade que fosse o orgulho da Zona da Mata. Digamos, invadindo um pouco o futuro, que estes fatos aconteceram e que os homens do Desterro autores dessas obras meritórias, — se se julgassem dentro do seu próprio ponto de vista, podiam limpar as mãos à parede. Porque iam introduzir com o ensino superior na cidade le loup dans la bergerie — na forma de dois demônios piores que Astarote, Belzebute, Asmodeu, Mamon e Belial. São o estudante e o professor. Ai! de ti, Desterro! porque o espírito de pergunta, indagação, dúvida, exame, pesquisa e conhecimento entrou em tuas portas e estabeleceu-se dentro de teus muros… Mas deixemos de misturar porvir e passado e fiquemos só com este — naquele Desterro ordenado e pacífico do fim dos vinte.
Uma coisa de que o Egon conversava com o professor Manso Conchais era a da criação muito desterrana de mitos antípodas de cento e oitenta graus à posição da verdade. Esse era exatamente um dos motivos de diversão do mestre da Normal e que depois virou também pilhéria do Egon. O Desterro por sua história, sua crônica, imprensa, opiniões, conversas e conceitos dava aos seus endeusados qualidade ou qualidades que os tornariam menos estimáveis se eles passassem pelo crivo duma crítica descompromissada e independente. Assim, por exemplo, se um quidam fizesse sua fortuna à custa de fornecer à cidade o gás necessário aos seus fogões e à sua iluminação — não se lhe criticava a política financeira, nem sua avidez no preço, nem os oiros que lhe atulhavam as canastras. Não. Ele era santificado e ungido como o benemérito que arrostando tudo e todos os tropeços se arrasara para dar à sua cidade a Luz e o Fogo. Era o Iluminador, o Refulgente. Os que se enriqueciam vendendo alimentos eram os merecedentes que matavam a fome do pobre. Nutridores ou Alimentadores do povo. Os que abriam bancos, empresas, companhias que lhes canalizavam o pataco eram os cidadãos prestantes que só faziam aquilo para empregar os moços pobres. Os Doadores. Os Esmoleres. Os que acumulavam via das lavouras de algodão, das fiações e fábricas de tecidos, não tinham outro interesse senão fazer o pano para vestir o nu. Eram os Agasalhadores, os que se desfaziam do próprio manto (quando velho e roto) para cobrir seus irmãos em Cristo, os desprotegidos. Havia ainda os Hospitalizadores, os Amortalhadores, os Enterradores — com interesse em casas de saúde e funerárias. Tudo. A eles toda a honra que merecem os que se sacrificam para praticar as Obras de Misericórdia. A história do Desterro só cuidava deste aspecto. Jamais dissera uma palavra em louvor do escravo, do negro, do homem do campo, do caixeiro, do bancário, do operário, do trabalhador — dos que tinham penado na sua condição de rebanho humano para tirar de sua desvivência e morte o ouro dos grandes. A estes Homens Bons toda a honra. Como bons e também filhos d’algo — fidalgos que representavam a tradição do Desterro, que descendiam de outros vultos ínclitos que haviam praticado largamente o bem e de cuja bondade se falava até hoje. Eram donos de cativos, eram. Mas adorados pelos seus negros. Eram outro mito — o mito do Bom Senhor. O Conchais ria e terminava.
— Veja só, Egon, o tamanho dessa patranha. O Bom Senhor! Bom senhor só poderia ser o que nunca tivesse tido escravos — o que lhe aliena de saída a qualidade de senhor. O homem nasceu com aparelhos admiráveis para se prover e para o prazer. Tem órgãos dos sentidos. Tem os genitais. Mas não foi dotado de roldanas, nem de polias, nem de engates e cremalheiras. Logo, não foi feito pra trabalhar. Trabalha, depois do “paraíso perdido”. Trabalha para si — para comer, gozar, amar. Para os outros — só trabalha numa condição: a do obrigado, oprimido, coagido. A essência do senhor eram a palmatória, o “bacalhau”, o vira-mundo, o “anjinho”, o tronco. Sem isso não haveria escravos nem donos de gente. Os barões do Império — bons senhores são uma extraordinária invenção. Extraordinária e cínica…
— Tem razão, professor Conchais, tem razão… E essa teoria é a defendida pelos bons da cidade… Agora a gente ruim tem outra opinião e a minha opinião é a dessa camada que não presta. A dos insubmissos. A sua, a do dr. Martinho, a do dr. Cesário, a do primo Antonico, a dos meus íntimos, dos amigos que fiz aqui — o Luisinho, o Percival e mais o Falcão de Valadares, o Tristão de Aguirre, Joel Martinho, Sílvio d’Aquino, outros, gente em que encontrei sinceridade e calor humano… mas que não vale no conceito da cidade ocupada cujas regras são diferentes do natural, do normal, do espontâneo, do que todos fazem: nós sabendo que usando um direito, eles com a impressão de estarem afanando e filando a vida… Tudo errado…
— Tudo errado, Egon. E até amanhã…
O Egon viu o velho mestre se afastar devagar em direção da sua casa modesta de letrado mal pago. Ficou ali parado no escuro. Viu acender-se uma janela. Abrirem-se suas bandeiras. A figura do Conchais aparecer já em mangas de camisa, debruçar um instante, pitar, depois atirar longe seu cigarro, fechar novamente o escritório. A luz continuava acesa. A leitura ia entrar de madrugada adentro. O moço veio subindo Santíssima Trindade, virou em Silva Paranhos e desceu em direção a sua pensão na rua do Santo Pretor. Na esquina de Schimmelfeld hesitou um instante. Resistiu à tentação e foi devagar para sua casa. Parou na esquina da rua do Rei e olhou com melancolia a fachada do tio torto Pareto. Pensou em Mário de Andrade e receitou baixinho aqueles versos das aristocracias cautelosas, dos barões lampiões, dos condes Joões e dos duques zurros que vivem dentro dos muros sem pulos… Seguiu meio desforrado para sua rua, entrou em casa, subiu em pontas de pés. Trancou-se no quarto. Como o Conchais, abriu a janela para acabar seu cigarrinho. Acendeu outro na bagana, ficou tragando, olhando a escuridão e quando acabou aquele deleitável Sans-Atout oval, atirou-o longe, acompanhou sua parábola em brasa até sua fagulhagem no telhado vizinho. Considerou bem as coisas e deu uma formidável banana em direção à noite fechada. Trancou sua janela, apagou a luz de cima, acendeu a da mesa, sentou, preparou o papel, começou uma de suas costumeiras e longas cartas ao amigo Cavalcanti. Abriu com sua fórmula consagrada. “Meu querido doutor, um abraço…”. Desabafou. Foi para cama, mas sono não vinha. Ficou deitado de costas, travesseiro alto, pensando no escuro, suando um suor ruim e aflito. E começou seu cinema imaginário e de associações desvairadas. Sombras passavam de galochas, sem se configurar. Pedaços de caras, orelhas, meios de corpo, pés de pato, munhecas de samambaia. Pros diabos! Vade retro. De repente lembrou o primo e amigo que estava em Juiz de Fora, Pedro Nava. Recebera a carta dele que falava da cidade, dividindo-a em duas: a da direita de quem descia a rua Halfeld — bem-pensante, ultramontana, dos homens do poder e do dinheiro e a da esquerda — contrincante, irreligiosa — dos intelectuais e da gente de nada que vive de pada e água. Pensando bem ele bem que podia aplicar essa ideia ao Desterro que era cortada em duas partes pela rua Schimmelfeld. O lado direito era o da encosta que terminava no cabeço chamado o Cruzeiro de Cima. O da esquerda, e até o Cruzeiro de Baixo, cujo nome pitoresco desaparecera, sendo substituído pelo dum benemérito da cidade — Saudosino Rodovalho Pedreira, simplificado para apenas Saudosino Rodovalho. O primeiro era o mais alto da cidade, sua zona mais fresca, de ares bons e ventos favoráveis. Quando da constituição da vila e depois da cidade, ficou sendo o lado dos palacetes e das chácaras dos homens de quantidade. Já o lado esquerdo, mais baixo, era a região pantanosa, cheia de lodaçais tremedais que à custa de aterros foi ficando habitável e onde concentrou a população braçal da cidade, a negrada, o proletariado, o puteiro e depois gente da classe média, das profissões liberais e os primeiros intelectuais — era o dos homens de qualidade. Tal como se fossem dois Desterros e como se a rua Schimmelfeld fosse um largo oceano. Uma invisível muralha tártara, uma cortina de ferro imaginária, um muro-da-vergonha convencional limitava os bairros mais altos da cidade — era um cinturão fortalecido pelas ameias da Lei de Deus e pelos torreões dos Mandamentos da Santa Madre Igreja. Ali vivia uma sociedade bramânica na sua maneira de considerar as classes e as castas e seu jeito de pensar fazia do Cruzeiro de Cima e adjacências, mais um estado de espírito que um conglomerado de bairros e ruas. E Egon teve uma profunda impressão com a revelação do grupo social que o habitava e conversando com o professor Conchais comparara tudo aquilo a The Lost World de Conan Doyle e dizia que tinha medo de ver um dia surgirem vindos dali revoadas de pterodáctilos e manadas de estegossauros. Estavam nessa tarde, o Conchais e o companheiro, subindo a rua da Santíssima Trindade. O professor sorria ouvindo-o falar do Cruzeiro de Cima mas de repente fê-lo parar, justo na esquina de Silva Paranhos e de olho brejeiro começou a falar.
— O amigo exagera um pouco. A fauna é diferente, mais simpática, até bonita. De cretáceo talvez tenha a mentalidade. Já por fora é outra coisa. Olhe ali…
O médico virou-se para o alto da encosta. Uma alegre cavalgada vinha descendo. Negros, baios, brancos e alazões montados pelo fino do fino da cidade. Eram o dr. João Prisco Filho, o Aristônio Masculiflório Sobrinho, o Isaltino Zebrão, o Pânfilo Temente — todos de sobrecasaca garance, casquetes de veludo negro, calças bufantes creme, botas de verniz preto. Passavam bem montados, num trote à inglesa que lhes fazia valer mais as vestes, a destreza no bem montar, os físicos senhoris — deles e dos cavalos. De amazonas pretas, sentadas de lado no silhão e apertadas na roupa bem-feita três senhoras e duas lindas moças. De cartola e véu branco esvoaçando. No meio delas, vestido como os cavaleiros da frente, vinha muito atento e muito amável o Audiovisto Munhoz. Um pouco mais para atrás, trajando também à caçadora mas de sobrecasacas azuis, o Tabosa Filho e seus rebentos — o Osbundo e o Radagázio Neto. Quando eles passaram e enquanto passavam o professor Conchais se mantivera desbarretado. Ia levar novamente o chapéu à cabeça quando suspendeu o gesto e cortejou com o Egon sua prima Fidélia Pareto que passava chispada na sua barata vermelha.
— Então? doutorzinho. Que tal? Não disse? que simpáticos e até bonitos. O primeiro que apareceu vestido assim aqui no Desterro foi o Prisco. Roupas trazidas da Europa e que ele se fizera para acompanhar uma caça à raposa do príncipe de Polignac que lhe mandara o botão. O próprio príncipe Bertrand Melchior Le Puy de Polignac. É o auge do chique… Ele foi logo imitado pelos parentes e amigos, variando alguns nas cores das sobrecasacas. Os Tabosas têm-n’as de azul, os Fortes de pardo-escuro. O seu colega Audiovisto está também de vermelho em cortesia ao Prisco — que é quem lhe mandou o botão…
— Mas… que botão?
— Também costume estrangeiro. De quem é convidado para a caçada de um nobre francês, diz-se que dele foi contemplado com o botão — o bouton de vénerie que dá direito a quem o recebe de adotar as equipagens do que o ofereceu para acompanhá-lo à caça. É um botão simbólico e uma frase feita. Mas aqui no Desterro foi adotado mesmo o sistema de se mandar junto com o convite um botão de verdade. Os do Prisco são de prata e ostentam um P cercado de estrelas. Os dos Tabosa são de vermeil com um cifrão ladeado de meias-luas. Já os bombeados dos Fortes são lisos mas de ouro puro. E você viu? a satisfação do seu colega Audiovisto de poder ostentar o botão do Prisco.
— Se vi… Estourando de orgulho.
— Mas quem estava linda, de baratinha, era sua prima Fidélia. Vamos esperar um pouco nesta esquina porque tem mais. A essa hora a elite sai para espanejar e mostrar os carros de luxo…
O Conchais não tinha acabado quando passou o Damasco Guarabiroba com a mulher, numa charrete. Ele gostava de dirigir seus cavalos e de exibir sua alemã — uma valquíria muito clara, cabelos muito vermelhos, boas carnes e dentes incisivos muito afastados na frente — o que em Minas é considerado sinal de mulher dadeira. Logo depois, de carro aberto e em direção contrária, o Demetério Sulfúrico com a senhora. Ambos fitando sua frente, sem olhar para os lados, sem cumprimentar ninguém. E já voltava dos lados do Desinfetório a barata descoberta da prima que tornou a saudar — levantando alto o braço direito, rindo muito enquanto só mantinha o volante com a mão esquerda. Jeito e gênero muito moderno, muito cinema — que lembraram ao Egon os de uma estrela de filme americano. Do mesmo lado voltava também o carrossel do Prisco. O Egon aproveitou para contar ao professor Conchais o caso escabroso com a mulher do Hansen, a bebedeira no boteco do Riri e o exílio do pobre coitado.
— O cúmulo, além de corno, aperreado. E este sacana agora se pavoneando na Silva Paranhos de sobrecasaca azul. Dá vontade de jogar em cima um bom patusco…
— Patusco? — estranhou o professor.
— Sim, um patusco, um pombo-sem-asa, um embrulho de merda… na cara desse adulterioso…
— Adultério, adultério, o dela sim. Agora ele, adulterioso, não! Isso não existe no Cruzeiro de Cima. E se há é esquecido quando os réus passam pelos sacramentos. Voltam logo à graça… E eu vi o Tabosinha comungando domingo passado, missa das dez, na Matriz. E com um’unção comovente. Já está no estado que se chama de “graça edificante”…
O Egon deitado via passar e repassar estas e outras figuras dos altos do Desterro. Estava mesmo completamente sem sono e conjecturava como seria aquele mundo fechado ao resto da cidade e fechado também duns para os outros, só se abrindo quando havia casamentos de família. Porque fora disto, mesmo primos, só se viam nos bancos, nas empresas, nas companhias. O mulherio nas costuras de caridade e nas missas. Só. No mais, moita. Viviam vida misteriosa cuidando de política, juros, fazendas, cavalos, caçadas e cachorrada de raça, tiro aos pombos, lucros, dividendos, ações, esgrima — a sabre e a florete. Praticavam a religião, tinham o esnobismo da religião e havia os que se deixavam envolver de tal maneira pelo ambiente farisaico e tartufo que acabavam… sinceramente crentes. Era outro gênero humano. O médico lembrou vagamente Vieira… Como era mesmo? Buscou no fundo da memória e trouxe: “Há fidalguia que é substância, porque alguns não têm mais substância que a sua fidalguia que é quantidade”. Quantidade, pensava o médico: quantidade — quantidade. E as outras fidalguias entre aspas? de que falava o padre subversivo. As do pensamento, das ações, da qualidade gente, da qualidade — qualidade. Essa estava, positivamente estava, nos lados da cidade considerados o brejo, o atoleiro, o lameiro das margens do rio que de ano em ano dava razão aos do Cruzeiro de Cima levantando seu dorso — inundando tudo e alagando casas fábricas tarecos da canalha. Mas nunca subia até os altos da virtude onde havia, como não havia? o Egon sabia pelos seus amigos que sim, que havia cadáveres nos armários. Mas defunto assim — mesmo trancado a sete chaves, empesta. Se empesta… qué vê? Basta olhar, atento, o cabeço e o brejal, o alto e o atoleiro, o cocuruto e o tremedal.
Cada vez mais agoniado, sono fugido, o Egon revolvia-se naquele mundo decalado no tempo. Mergulhava no seu passado e trazia-o para o presente — aderido à sua sensibilidade como a água ao corpo do nadador depois que sai do mergulho e ganha as margens. E ele via…
Pense à mon cas, trompant maint homme et femme:
Tout suis à Dieu: fors que le corps et l’âme.
pierre gringoire, “Moralité, Hypocrisie”
… via o debochado sair correndo do bordel para não perder a primeira missa, reconciliar-se rapidamente e comungar. Via o moço fazendeiro passando na vara as empregadas nas barbas da mulher; a câmara-ardente do santarrão perturbada pela entrada da concubina que ninguém suspeitava existir e mais da penca dos filhos adulterinos; via o pasmo da família do homem exemplar falecido depois de ungido e sacramentado, encontrando entre seus guardados um magnífico catrefas de borracha — provido dos correames de ajustar a peça no corpo; a sogra cheia de ferocidade internando nora adúltera num convento, revivendo, no Desterro do século xx, o Recolhimento das Órfãs e Desvalidas do Rio de Janeiro — incendiado nos nossos 1700. Via a sarabanda de todos os coitos possíveis, dos muros pulados, dos incestos, das perversões, dos estupros, dos pecados capitais, dos filhos naturais — em suma de tudo que existe em qualquer lugar do mundo e em qualquer lugar do mundo pode ser que seja pecado. Só que no Desterro nada disto contava ou alterava a virtude dos “homens bons” enquanto, se cometidos pela gentinha — recebiam os nomes que tinham e mais o enxoframento e as maldições da margem direita de Schimmelfeld. E o boicote.
Lento foi o sono a chegar e quando veio durou incompleto e o Egon, quando se deu conta do sol, só teve noção de que dormira ao lembrar de que entre as imagens incongruentes do acorda-não-acorda em que passara a noite, uma se destacava entre todas — a de Ronairsa com seus olhos de azul mutável e seu todo de rosa. É. Se tinha sonhado é porque passara ao menos por cochilo. Levantou-se de má vontade, não se sentiu gratificado com o banho nem com o café-nosso-de-cada-dia, vestiu-se e bateu para o trabalho. Desceu Santo Pretor mas quando ia tomando à direita, na esquina de Silva Paranhos, hesitou, parou. Estava sem disposição de passar frente à casa da tia, de encontrá-la na janela, ser obrigado a uma palavra de cortesia. Também a primeira parte de Schimmelfeld regurgitava de conhecidos e seria coagido a dar um dedinho de prosa a cada grupo. Assim resolveu seguir em frente para atravessar a parte mais humilde de sua rua, e ganhar Schimmelfeld, na sua parte baixa, passando por Precursório Ramos.
Durante todo o trajeto ia remoendo pensamentos de decepção, cólera e frustração contra seus parentes e o establishment local. Tinha razão o primo Roque Apolinário Cacilhas do Prado nas considerações e observações que tecera na conversa dos dois sobre ele, Egon e suas dificuldades (digamos impossibilidades) no Desterro. Parecia-lhe ter falhado na cidade. Sem dúvida fora rejeitado pelos tios. O Nariganga só lhe mostrara antipatia. As primas mais velhas e os maridos eram inabordáveis e tinham respondido suas tentativas de aproximação com uma cerimônia de superfície de esmalte ou de ágata — sem poros para a água de sua cordialidade. Sobrava a Fidélia, sempre amável apesar de também distante. E o tio Pareto e o Ezequiel eram trunfos na fortaleza das instituições locais. A uma palavra que quisessem dar — a ponte levadiça desceria e logo as portas da Santa Casa da cidade abrir-se-iam para ele. Mas não. Nenhum oferecimento. Só encontrara agasalho de parente na casa do primo Antonico. Não! A atitude dos tios, do Ezequiel e daquele bocó do Balbino era destas coisas que só com uma boa banana… Também, por ele, estavam soltos no pasto… Quanto aos do establishment, o jovem médico sentia-se sem jeito diante deles como pessoa que, de olho num microscópio ou num binóculo, não consegue pôr a imagem visada em foco. E o Desterro parecia-lhe cercado de muralhas mais intomáveis que escabelicastros. Quando virou em Schimmelfeld estava disposto a dar o fora na cidade que o repelia. Voltaria para Belo Horizonte, já que a ideia do Rio e da beira-mar pareciam coisas hipotéticas e cada vez mais longínquas. Quando entrou no Centro de Saúde foi direto ao gabinete do chefe. Deu os bons-dias e sem preâmbulos entrou no assunto.
— Dr. Pedroso Lucas, queria lhe pedir um favor…
— Diga.
— É que tenho urgência de ir a Belo Horizonte, coisa de quatro ou cinco dias e precisava sua autorização…
— O qué quiá?
— Nada não, dr. Lucas, negócios de família. Recebi um telegrama…
— Então vá. Eu mesmo substituo você no ambulatório, no mais. Quanto ao ponto, isto é com o chefe do posto e o chefe do posto é você… Eu sou só o diretor do Distrito Sanitário da Mata — respondeu o Lucas com uma de suas gargalhadas dentes brancos gengivas sadias.
— Muito obrigado. Então sigo hoje mesmo à tarde, pelo rápido e vou para casa cuidar de minha arrumação. Mais uma vez obrigado! dr. Lucas e até a semana que vem.
Em Belo Horizonte as coisas correram como se tivessem sido dispostas por Providência favorável. Falara ao José Olinda e ao Fábio, almoçara no Palácio da Liberdade, fizera seu pedido ao próprio presidente. Fora franco. Abriu o livro de suas queixas contra a cidade, o Ezequiel, o Balbino, o Nariganga. Queria, se possível, voltar para trabalhar em Belo Horizonte. Só tinha medo dalguma dificuldade por parte do Garrido Cadaval, do Argus… O Andrada riu muito das histórias do médico e foi logo anuindo.
— Perfeitamente… Quanto ao Cadaval e ao Terra, você fique tranquilo. Aqui o nosso Dudé fica autorizado a telefonar hoje mesmo para o Raul d’Almeida Magalhães dizendo que eu quero sua remoção para o Centro de Saúde da capital. E o mais depressa possível.
Realmente o Olinda já à noite dava a boa notícia. O Raul não tugira nem mugira. Dissera que ia mexer as pedras do tabuleiro da Saúde para dar com os costados do médico em Belo Horizonte, o mais tardar em fins de maio, princípios de junho. No dia seguinte o Egon tratou de fazer-lhe sua visita de cortesia. Foi admiravelmente bem recebido. O homem reiterou o que lhe dissera o Olinda e até tinha acrescentado frase sibilina cujo sentido o Egon penetrou lembrando as grosserias do Pareto e o destempero do dia de sua primeira visita.
— Você vá sossegado, Egon. Parece que o presidente já obteve de sua estadia no Desterro o efeito moral que queria… Ele me falou… Ele me falou… Nos primeiros dias de junho sua transferência será fato consumado. Digo mais: consumadíssimo porque são ordens do Palácio e ce que Dieu veult…
O médico podia voltar desde logo para o Desterro. Mas resolvera se dar mais um dia em Belo Horizonte para visitar seu mestre, o professor Santarém e rever sua filha Ronairsa. Fora. Antes não tivesse ido. Ele que era um tarimbado na vida grossa dos estudantes de Belo Horizonte, que desde moço fora audacioso e chegador em matéria amorosa, toda a vida sentira-se tolhido diante da linda moça. Jamais ousara atitude senão a de amigo, nunca sussurrara insinuação que fosse do que nutria por ela. Era alguma coisa de tão delicada e pura, de tão aérea e luminosa que ele tinha medo de corrompê-la só de fazê-la subir do coração à boca. Esse sentimento no princípio revelação de relâmpago fora se corporificando e virando dentro dele em paixão muda e inexpungível. Entrara em seu corpo, tomara conta de todo ele, pele músculos vísceras sentidos inteligência. E na medida em que esse amor profundo e enraizado o envultava — ao seu lado cresciam a timidez e um pudor que ele não conseguia vencer. Ficava inventando modas de tê-la sempre consigo no pensamento vendo-a revendo-a como a um retrato. Inventava esquemas, desenhos e figurações num diálogo que no fundo era consigo mesmo — que nem conversa de ventríloquo — amor esquisito, espécie de narcisismo. Mas quando Narciso olhava a água límpida e parada não se via e só via a ela — perdendo traços de criatura humana e virando numa flor sobrenatural de luz e letras que ele fendia, esvaziava pouco a pouco, escondendo sinal por sinal do centro miolo — para só deixar expandida e prodigiosa a rosa de fogo que o consumia. Era como mágica que ele fizesse despojando a amada do seu nome, da sua essência para só deixar no seu lugar as pétalas solares duma rosa de ouro.
ronairsa
ronaisa
ronasa
n
rosa
Ronairsa assumia para o Egon dimensões mais que humanas e ele só a via dentro do halo e incógnito proustianos. Os que o narrador usava para envolver os Guermantes, Odette, Gilberte — mistério prodigioso que fazia como se Ronairsa não tivesse compromisso com o tempo, como se vivesse livre dele num presente alargado e inconsútil, não decepável no seu nascimento seu passado ou nas dimensões de seu futuro sua morte. Futuro e passado — este sem marca inaugural e aquele sem os perigos desconhecidos dos aléns dos fins. Ela era a incorruptível, a incontingente, a libertada dos acasos, livre do fatum. E era insuscetível de gosto ou desgosto. Ela simplesmente era. Tal como espécie de eternidade, ou ideia divina. Assim o moço despetalava na sua caminhada para a casa do antigo mestre. Chegou, bateu, ela desabrochou à sua frente. O dia luminoso tornou-se ofuscante. Alumbramento. E a visita decorreu como tantas que ele já fizera àquela casa. Conversa com o mestre, com d. Lídia, com os irmãos e a irmã. Um lanche absolutamente o mesmo dos seus tempos de estudante. Levantando da mesa foram os últimos a se dirigirem pelo corredor à sala e a moça num gesto espontâneo e simples tomou o braço do médico. E onde ela pousou sua mão durante uns poucos segundos ficou alguma coisa de imperecível como tatuagem — invisível para todos e que o Egon sentiria sempre como se tivesse sido feita dindagora com ferro em brasa. Sentaram na sala e aquilo funcionou para todos como uma visita que se passa. Menos para o Egon que, em órbita, via movimentos de círculos cosmogônicos astros girando em torno dos sóis e tudo se deslocando vertiginosamente para as constelações mais distantes. Ele tinha ido visitar seu mestre. Antes não fosse pois a uma frase do velho Santarém, solta ao acaso (acaso?) foi que o Egon ficou informado de que Ronairsa estava noiva pela segunda vez. Ele sentiu o desabamento em que caía galáxias abaixo e só a rosa esplendeu e soltou as quatro letras pétalas que faziam o nome que vinha do da serva de Cleópatra, do da ninfa das fontes, da jovem, da cheia de frescor, do ponto abissal que se opõe ao zênite. Ficou na sua alma uma rosa. Rosa eterna roseternamente.
Chegado ao Desterro o Egon pôs o dr. João Nogueira Pedroso Lucas a par de suas conversas de Belo Horizonte e da decisão do presidente.
— Agora é só esperar, dr. Lucas, e ficar preparado para dar o fora. E o senhor acredite que uma de minhas boas lembranças do Desterro será sempre a de nossa convivência…
Começou então para o moço uma fase tão descuidada e cheia de disponibilidade — que lhe lembrava os tempos do Colégio Pedro ii. Todos os dias eram como sábados domingos antigos adolescentes. Maneirou no trabalho e foi passando para o Dimas Alvim a parte que lhe tocava no ambulatório. Ia à repartição só à tarde e assim tinha as manhãs livres para dormir. A noite lhe pertencia e aos seus companheiros habituais: o Luisinho Bracarense, o Percival d’Aviz, Antônio Falcão de Valadares, Teobaldo Miranda Santos, Lazarus Levy, Sílvio d’Aquino e a Marimacho Homem Campelo que se lhes agregara. E em grupo retomaram os hábitos de gandaia que tinham sido os do Egon como estudante. Nas noites dos dias ímpares iam à Valparaíso, nas dos pares, à Malvina Lícia. Esta já sabia — passava o cadeado no portão e ninguém mais lhe entrava no bordel, arrendado como barca ou bonde especiais. Aos domingos, Matriz, missa das dez, para ver passar o bailado das moças em grupos buquês de flores. Quem às vezes aderia, apesar de casado, era o jovem médico Joel da Frota sempre escoltado pelo seu primo, também doutor, chamado Sacanagildo Goiaba.
O Joel da Frota era um homem dos seus trinta e poucos àquela época mas cujo ar espigado e seco combinados a uma agilidade e elegância incomuns, faziam parecer um garotão de vinte e lá vai fumaça. Era alto, bem proporcionado, rosto de traços regulares e bonitos mas tão agudos e finos que lhe tinham valido a alcunha de “Cara de Alfinete”. Como de linhas, era atraente de cores: pele muito rosada, olhos, cabelos e bigodinho dum castanho tão vivo e incandescente como se tivessem sido tintos a henné. Ria sempre, mostrando a fileira de dentes bem implantados — inteiros, muito brancos e sadios. Só tinha destoantes as mãos enormes, largas e ossudas que pareciam mais as dum trabalhador de campo que as adequadas a seu mister delicado de lidar com criancinhas — pediatra que era. Mas se elas chamavam atenção pelo tamanho, com o hábito, a desproporção desaparecia porque eram ágeis, francas e expressivas na sua mímica. O Joel era um excelente médico, surdamente marginalizado pelo establishment por sua originalidade no pensar, sua engenhosidade, seus paradoxos, gosto literário, musical, artístico e pior do que isto — por ter casado com moça americana, filha dum pastor protestante e professor do Instituto O’Grady. Era o reverendo Tree e sua filha respondia pelo nome florido e vegetal de Rose Tree — Rose Tree da Frota pelo casamento.
Dos encontros do Egon com o Joel da Frota resultou uma excelente amizade que depois de algum tempo de convivência de rua, passou a ser também de dentro, desde o dia em que o segundo ofereceu um grande jantar em sua casa para aquele grupo que se formara. Essa festança foi o início das sessões de palestra semanais na residência do Joel, à rua da Santíssima Trindade. Sua morada era uma simpática construção assobradada, três janelas de frente e com a fachada ostentando pintura que imitava tijolos coloridos em branco, ocre, laranja e vermelho. Ficava vizinha à idêntica e um pouco maior do seu pai — o respeitado clínico dr. Martinho da Frota. A essas reuniões do moço pediatra compareciam o Egon e seus amigos às sextas-feiras. Ora todos, ora uns poucos, mas invariavelmente o Egon e o Luisinho. Começavam depois do jantar, pelas nove, nove e meia e iam até de madrugada com animada conversa, com mistura de música clássica e popular na vitrola de dar corda com manivela e muita cerveja respaldada a conhaque. Esses encontros não eram bem-vistos pela sociedade local que estranhava a dona da casa tomar parte “em semelhantes rega-bofes”. A má vontade desterrana pelo Joel (aliás paga por ele na mesma moeda), o Egon a compreendeu melhor quando o visitou pela primeira vez. Sua sala de visitas era forrada com papel dum roxo escuro de equimose, dotada de sofá e cadeiras pretas de espaldar muito alto e tinha como móvel principal enorme arca polida e negra como o resto da mobília — toda tauxiada de pregos com enorme cabeça dourada — o que fora a origem do se dizer na cidade que ele tinha um caixão de defunto ornamentando sua sala de visitas. Alguns diziam que o dito não estava vazio e que continha o respectivo cadáver mumificado e convidado imóvel das partidas sacrílegas que ali se davam às sextas-feiras. Nesse dia o Egon, depois do jantar, seguia devagar para a casa do amigo e sempre parava um pouco para ver a arquitetura do Colégio Turris Eburnea — educandário religioso para moças e meninas. Não que o prédio fosse bonito. Era até duma arquitetura que queria ser gótica e que não era coisa alguma com seus dois pavilhões laterais, sua torre de igreja no da direita e entre os dois, uma espécie de dianteiras de catedral mambembe. Mas sua fachada sempre trancada e escura, tinha uma sugestão de mistério que preparava o Egon para a câmara-ardente que ele ia encontrar no Joel. Ele seguia para a casa hospitaleira como a do primo Antonico — as únicas que se tinham aberto francamente para ele no Desterro. Lá já encontrava o Luisinho. Se eram só eles, ficavam no gabinete do Joel e se a sessão era plenária a palestra ia decorrer na famosa sala de visitas. O que nela havia de realmente fabuloso eram quadros de Ismael Nery ornando suas paredes. Todos a óleo e de grande tamanho. Entre vários nus femininos, duma fase em que o pintor estava sendo muito influenciado pelos cubistas, figuravam como telas mais importantes um Dante e Beatriz destacando dum fundo fuliginoso suas faces e mãos cor de cera e o famoso Homem azul que mais tarde pertenceu ao Egon. Foi dado por ele a pessoa de sua família que o negociou por oito mil contos para um terceiro que o vendeu em São Paulo por cento e cinquenta. Esses preços são antigos. Atualmente a obra deve valer aí por perto do seu milhão de cruzeiros. E sua curiosidade é o fato de recobrir outra pintura do Ismael que aparece aqui e ali (numa sombra indecisa que mostra uma coxa gloriosa e seios nascentes que podem ser também os peitorais dum Baco ou dum Antínoo) dentro da camada superficial do nu masculino, feito só a negro, branco e sobretudo do azul donde veio o nome do quadro. Foi nessa sala que o Egon conheceu os primeiros Nerys e teve notícia desse pintor que seria mais tarde seu cliente, de seu temperamento orgulhoso e difícil, de seu gênio para a dança tão alto quanto para a pintura.
— Você não imagina, Egon, o dançarino fabuloso que o Ismael seria se quisesse. Um segundo Nijínski. Mas briga quando se fala nisso. Eu sou um dos poucos que viu sua dança. Eu e o Murilo — bradava entusiasmado o Joel.
— Quem? Murilo…
— Outro que você precisa conhecer urgentemente: Murilo Mendes, aliás Murilo Monteiro Mendes, um poeta fundamental. Ele é de Juiz de Fora…
Assim o Egon conheceu de nome Ismael e Adalgisa Nery, Murilo Mendes e Moacyr Deabreu. Todos amigos do Joel e por intermédio de quem ele próprio tomaria contato pessoal alguns anos mais tarde. De todo esse grupinho os mais fiéis à casa do Joel eram o próprio Egon, o Luisinho, o Falcão e o Percival. Justamente os amigos que o destino reservaria para continuarem seus sentimentos fraternais no Rio de Janeiro onde por via diversa todos acabariam dando com os costados.
O Antônio Falcão de Valadares era militar, nesse tempo sediado na região do Desterro. Primeiro-tenente. Era um rapaz de boa altura, espadaúdo, cabelos dum castanho quase louro contrastando com sobrancelhas e olhos muito pretos figura muito risonha quando à paisana — o que mudava quando aparecia fardado, amarrando a cara, descendo o cenho, avançando o queixo e cerrando a boca que ficava — já foi contado — igual ao desenho de um V maiúsculo. Era originário de velhos troncos mineiros da zona do Paracatu do Príncipe — muito ligados aos Martins Ferreira. Apesar de militar tinha apreço pelos civis entre os quais escolheu seus melhores amigos que eram o Luisinho, o Percival, Vitorino Freire e seu cunhado Alberto Araújo. Para entrar um pouco pelo futuro, repetimos que ele tomou parte ativa nas conspirações dos Tenentes, fez a Revolução de 30 e exerceu interventoria no Norte do país. Não se deixou tentar pela política e depois de uma administração feliz, voltou para o Sul e continuou sua carreira até ao generalato. Nunca mudou seu gênio, toda vida foi afável, tolerante e alegre. Tinha e usava sua ponta de humor — que temperou certa cena a que assisti entre ele e um seu colega de farda. Este era partidário de considerar sua classe como casta, argumentava neste sentido e terminava sua exposição dizendo-se militar cem por cento, sem mistura de casaca e civil. É que era bisneto de brigadeiro dos inícios do Brasil independente, neto de marechal veterano da Guerra do Paraguai, filho de general exemplarmente fiel a Floriano e ferido heroicamente, ainda nos tempos de cadete, no Combate da Armação. Tinha a quem sair e por isso é que se honrava em ser todo ele militar.
— Quanto a isto de militar cem por cento — retrucou-lhe o Falcão — ponho minhas objeções e vou demonstrar que você o é apenas pela metade…
— E por quê? vamos, diga por quê?
— Porque sua bisavó, sua avó e a senhora sua mãe, ao que posso supor, eram civis… Sim, senhor. As mulheres pertencem à classe civil ou pelo menos pertenciam até pouco tempo…
Assim como para o Falcão de Valadares quero repetir também alguma coisa sobre o Percival de Aquino. Não é repetir batendo na mesma tecla é antes subindo a nota musical de mais uma oitava, é ênfase dada a quem merece, é como um grifo que chama atenção e dá mais peso à frase escrita. Percival. Que nome bem escolhido, nome paladino, o dado a este gentil-homem do Desterro — como Bayard, sem medo e sem mácula. Já descrevemos seu aspecto físico mas devemos voltar às qualidades morais que o completavam como a um ser absolutamente excepcional. Todas elas tendiam no sentido de fazer dele o melhor filho, o melhor pai, o melhor esposo, o melhor irmão e sobretudo o melhor amigo que se possa imaginar. Felizes aqueles que, como o Egon, contaram com sua fraternidade pela vida afora, da mocidade à velhice. Sua amizade era e é fiel, sem reservas, atuante e sempre se demonstrando pela mais atenta prestimosidade. Era e é dotado de uma agudez excepcional para desvendar as dificuldades dos amigos e socorrê-los antes da queixa e da confidência — com dinheiro, companhia, visita, conselho, consolo. Podem depor sobre isto todos os que conviveram com ele no Desterro, depois em Juiz de Fora e finalmente no Rio de Janeiro. E ao lado das qualidades afetivas os outros predicados como sua discrição de túmulo, sua bravura moral só igualada por sua bravura física. E com tudo isto o homem mais simples do mundo. De família era um desterrano de duzentos anos, descendente por linha materna dos mesmos Fortes do Alferes Zoroastro Fortes.
Seria injustiça se não insistíssemos um pouco na personalidade do Luisinho Bracarense. Já ficaram descritos seu físico, família, idade, seus curingas do vocabulário — os choobs, os rrrr-releitz, os tuc-tó. Seu jeito carinhoso de tratar todo mundo por nego ou nega. Já falamos sobre seus parentescos com a gente do Desterro e sobre sua alucinada bravura. Mas ainda resta muita coisa para contar de sua legenda, seu fabulário, do folclore que ficou aderido a sua pessoa de homem dos mais interessantes que o Egon tinha conhecido. Tanto que ele ficou imortalizado por seus dois maiores cronistas: Rachel de Queiroz** e Francisco Martins de Almeida.*** A primeira considera-o como “o derradeiro romântico” — e realmente ele foi na sua geração o elo dessa corrente que vinha de Byron, Musset, dos boêmios de Coimbra e das Arcadas de São Paulo. Ele era Álvares de Azevedo e era Afonso Henriques de Lima Barreto. A escritora que já o conheceu homem maduro, guardou lembrança inapagável de sua personalidade fabulosa, do seu “rosto gasto”, de sua voz cheia de doçura — “surda, rouca, jamais gritada”. Já Martins de Almeida chama-o “amigado com a vida” e também “Príncipe da Renascença”. Todos têm razão porque ele era múltiplo, era um espelho poliédrico, era trezentos, 350. Menino-e-moço o Luisinho tinha sido aluno do O’Grady onde foi companheiro de Cesarino Rangel, de José Martinho da Rocha, dos seus primos Joel Martinho da Frota e Sacanagildo Goiaba. Foi sua época de aprendizado dos primeiros anos ginasiais e de intensa vida esportiva como tenista insigne e o extraordinário craque do futebol que tanta impressão deixou em Rodrigo Melo Franco de Andrade — por sua tenacidade no campo, sua elegância, agilidade, combatividade e invenção prodigiosa no jogo. Essa época durou pouco, como seria passageira sua fase família de dançarino de tango nos bailes da sociedade. Foi a ocasião de sua paixão devastadora por desterrana bela, dum namoro quase noivado subitamente interrompido pela morte da amada. O Luisinho escorregou nessa ocasião, começou a experimentar o álcool e viu que era bom. Iniciou sua vida bordelenga e achou ainda melhor. Foi quando conheceu a Zenith, putalta e graciosa que fê-lo esquecer a noiva. Esquecer não se pode dizer — mas fazê-la recuar para os confins da memória de onde às vezes ela surgia inteira, chamada pelo espírito de vinho. Tinham acabado para ele os bailes da fazenda de Aribert Duarte e sido abertos os caminhos das pistas dos cabarés. E ele deu-se então, completamente, ao trabalho de gozar a vida, de explorá-la em todos seus segredos, de vivê-la integralmente, sem deixar nada — como quem passa cana na engenhoca, bebe o caldo, torna a passar o bagaço para sorver até a última gota. Essa ocupação com sua existência, esse full time de viver — impediram que ele procurasse seguir mais estudos, uma carreira, ter uma ocupação. Cadê tempo? para isto se a vida continuava lá fora. Emprego? Rrrr-releitz… Ambição? Tuc-tó… Dinheiro? Chooobs… Donzelas e moças de família passaram a ser-lhe tão distantes como Sírius. Adorava-as por serem mulheres. Agora, para o amor, putas. Isto sim. Tinha por estas, além do amor, o respeito que mostrava por todas do sexo. Conforme ele deixava entender, via em cada uma um pouco de d. Loló, sua mãe, de Laurinda, sua irmã. E isso inundava-o duma compaixão que era vaga mais alta, sobrepujando as ondas do seu amor. E era o amante perfeito — ia desde a ternura simples e menineira às últimas violências do amour vache. Era namorado e apache. O álcool não lhe abrandava nem amortecia o tesão — antes o estimulava e ele era, como o declarava a Chica do Padre — “um filho da puta na cama”.
No capítulo bebida, desprezava os vinhos e só admitia, como Prudente de Moraes, neto, a cerveja e os álcoois fortes. Gostava de intercalá-los e sempre respaldava (o termo era dele) cada quatro chopes duplos com um conhaque, uma pingota ou uma dose bem carabinada de Steinhäger. E nunca ficava de porre como é entendida a palavra — no sentido de cair, provocar, brigar, babar, vomitar e boquirrotar inconveniências. Não. O álcool aprumava mais seu andar e o riste do pescoço galináceo, tornava seu ânimo conciliador e amigo de confraternizar, mantinha sua linha e aumentava (se possível) a polícia de sua língua. Nele mentia o in vino veritas pois não o fazia soltar uma inconveniência, uma indiscrição, dizer palavra que fosse, além do que queria. Confraternizar era verbo muito dele. Era estabelecer contato com todos. Confraternizava nos bondes, nos ônibus, nas barcas, nos pontos de espera, nos bares. Quando simpatizava com um cara qualquer que estivesse em mesa vizinha ele o olhava firme com o seu olho são, não o tirava mais do irmão da opa e quando este notava a coisa e parecia querer estranhar, o Luisinho abria-se no melhor sorriso, levantava seu copo em saúde, era invariavelmente correspondido e aí ia abraçar o novo conhecido como só ele sabia abraçar. Abraços a um tempo carinhosos e duma veemência de quebrar óculos e caneta-tinteiro no bolso do abraçado. E ele logo atraía.
— Então? nego, quê cocê tá fazendo aí sozinho. Passa pra nossa mesa. Vam’conversar. Beber sem companheiro é sinal de decadência. Rrrr-releitz…
Essa tendência a confraternizar não excluía suas cóleras. Mas quase sempre elas se desencadeavam quando estava abstêmio. O Egon lembrava uma delas, já no Rio, quando ele perdeu sua mãe. Ela tinha sido sua cliente, ele a desenganara e indicara operação com muito pouca chance de salvá-la. Para isto a velhinha foi internada no Hospital Gaffré-Guinle, onde uma crise hipertensiva seguida de hemorragia cerebral com inundação ventricular deram cabo dela sem ser preciso a colaboração dos cirurgiões. O Luisinho e a irmã chamaram logo o médico para as providências, para o atestado. O Egon lembrava que tinha chegado ao hospital já bem escuro, tardinha e que fora achá-los no necrotério. A defunta estava sobre mesa de mármore, coberta por lençol e longe dela, sentados num banco, agarrados um ao outro, o Luisinho e a mana. O amigo esperou um pouco e vendo-os sempre calados, foi à portaria buscar a folha para escrever a notificação. Quando voltava, atravessando o pátio, é que ouviu a gritaria que vinha do velório. Imaginou a Laurinda numa crise de nervos e apertou o passo. Nada disto: o que encontrou foi o Luisinho lívido de raiva, correndo atrás de uma irmã de caridade e sovando-a com vela de metro já toda partida em roletes aguentados pelo pavio e que faziam na padecente o som abafado de atingir-lhe o lombo por sobre tantas dobras e folhas e panos de hábito. Bestificado, ele segurou o Luisinho enquanto a freira, touca de lado, fugia como lebre acossada pela matilha.
— O que é? isto, Luisinho… Ocê tá doido…
— Nego, não pude mais. Essa sacana dessa freira deve tá’ssociada ao papa-defunto e já me encheu os colhões para escolher caixão assim e assado e mais aquilo e tocheiros de primeira melhor com vela de metro que de sessenta centímetros. Isso buzinado na hora que a gente quer ficar sozinho com quem gosta. Foi quando não pude mais e esfreguei-lhe as costelas com o tal círio de metro… Grande filha duma puta…
Pelo contado vê-se que o Luisinho estava mudado para o Rio. É. Tinha vindo com a mãe e a irmã aí pelos fins dos anos 20, mais certo princípio dos 30. Ido morar numa das clássicas pensões instaladas nos casarões imperiais da Tijuca. A deles ficava em Conde de Bonfim 159. Ali viveram Luisinho, Laurinda e d. Loló até a morte desta ocorrida a 17 de novembro de 1938. Foi quando mano e mana mudaram para a Ilha do Governador. Mas voltemos ao Luisinho, como ele era no Desterro, e às suas qualidades. Era o amigo exemplar. E punha a serviço de quem gostava tudo que podia e tudo que sabia. Não há nenhum dos que o sobreviveram que não tenha em casa vestígio das suas habilidades. Porque o Luisinho era um bricoleur com lampejos de gênio — que o levavam até perto da invenção à Thomas Edison. Não chegou até lá. Ficou em pequenos maquinismos, alavancas especiais, pregos inarrancáveis, gavetas invioláveis mas deixou incompleto o seu grande projeto do aparelho automático para abotoar botinas: abandonou o dito quando a moda acabou com estes calçados e homens e mulheres passaram a só usar sapatos.
Curiosa era a atração que exerciam sobre o Luisinho os homens de letras, os artistas. E a viceversação disto no interesse na curiosidade inevitável que sentiam por ele todos os intelectuais. Cito ao acaso Rachel de Queiroz, Rodrigo Melo Franco de Andrade, Murilo Mendes, Ismael Nery, Francisco Martins de Almeida, Moacyr Deabreu — que eram fascinados pelo imprevisto da qualidade da sua inteligência — feita duma percepção psicológica que o fazia pegar qualquer balda de qualquer um à primeira vista, duma delicadeza de sentimentos que fazia dele uma espécie de cavaleiro andante dos amigos e de todas as mulheres, dum descuido absoluto por toda espécie de interesse pessoal, sua total irresponsabilidade, seu descompromisso e completa disponibilidade. Estava para tudo e para todos a qualquer hora e para o que desse e viesse. Era dum incalculável bom humor e um perfeito afastador de tristezas. Era o tipo acabado do antifossa, como se diria em linguagem de hoje. E deixou um anedotário, uma série de casos, de saídas imprevistas que o transformaram, ainda em vida, de pessoa em personagem. Suas estórias, suas palavras curinga, seu “Vá tomá banho, nego” dito em tom carinhoso aos amigos quando estavam em situações inverossímeis ou exemplares e seu vátomábanho gritado para os que o desagradavam, que era equivalente a um puta-que-o-pariu e estava a um centímetro da bofetada, da rasteira, do pontapé no saco e do bolo de “pernas e braços na calçada”. As primeiras, suas estórias, não serão retomadas aqui porque as melhores já foram contadas por Rachel de Queiroz e Francisco Martins de Almeida. Apenas mencionaremos a do leão que fugiu do Circo Queirolo e que entrou madrugada alta num botequim onde o Luisinho bebia confraternizado com noctâmbulos: todos sumiram menos o nosso herói que desconcertou a besta tratando-a como a um gato — pssst… pssst bichaninho gato bichaninho gato pssst… pssst… bichinho… bichinho… bich’gatinho — e dando para ser lambida sua mão cheia das gorduras e do cheiro das mortadelas. Ao lado desse clássico, figuram o caso do ônibus quando ele confraternizou com motorista e trocador, porrou-os, acarretou a demissão dos dois e sua reintegração pela mão do próprio MacCrimson, da Light & Power procurado pelo Luisinho e conversa vai conversa vem — confraternizaram os dois. O do português e do relógio. Os da sua fase de loucuras milionárias quando se associou a um comércio de aves ovos carvoaria que ele levou naturalmente à insolvência e à falência. Seu caso com o Cyro Moabreu em Santa Teresa. O do despacho feito ao meio-dia dum dia útil, ao pé da estátua de Tiradentes, frente à antiga Câmara dos Deputados. Sua participação no Congresso de Escritores, de São Paulo, 1945, para onde foi arrastado por Francisco Martins de Almeida e onde ele lançou seus cajus ao éter ou à cachaça — que confeccionava estufando a polpa da fruta com agulha de injeção e seringa carregada dum ou doutro daqueles inebriantes. Serve-se bem gelado. Mais: o caso de como ele conheceu e tornou-se amigo de outro russo, outro personagem de Dostoiévski, outro inocente, outro anjo chamado Aldo Borgatti e de como os dois confraternizando, perderam e resgataram, na Lapa, certos livros de manuscritos preciosos do Mosteiro de São Bento — confiados ao segundo, para restauração, por Rodrigo Melo Franco de Andrade.
Meu amigo Pedro Nava
regressou de Juiz de Fora.
Parabéns a Pedro Nava,
parabéns a Juiz de Fora.
carlos drummond de andrade, “Parabéns”
Aquela manhã o Egon foi acordado com telefonema do Pedroso Lucas: queria dar a notícia de que o último Minas Gerais recebido trazia o expediente de sua remoção do Centro de Saúde do Desterro para a sede da Secretaria, em Belo Horizonte. Enfim… O Egon despertado de todo, resolveu logo meter mãos à obra, começar as despedidas e as providências para a viagem. Já banhado, barbeado, de terno e gravata é que sentou-se à mesa da sala de jantar, em cuja cabeceira a Sá-Menina tricotava. Depois de forrar-se de café com leite, pão alemão com manteiga — é que o médico pôs a senhoria a par do que se passava.
— Ora essa! dr. Jos’Egon… na mamparra, preparando tudo sem prevenir… pegando a gente de supetão, hem? Logo agora qu’eu estava tecendo os pauzinhos dum casamentão pro senhor…
— Uai! com quem? Sá-Menina…
— Uma das primas… linda e ouruda… mas num adianta o senhor nem saber… agor’étard’Inêsemorta…
No Centro de Saúde os colegas mostraram também grande surpresa. O Pedroso Lucas, desde o primeiro momento na confidência, ria muito, mostrando seus dentes perfeitos.
— Pois vá se arrumando, seu Egon, que assim que chegar a correspondência a seu respeito, preparo logo o memorando…
Já ao fim da tarde o médico dava por encerrado seu primeiro consultório — Schimmelfeld número 808. Vendera todo o mobiliário ao Dimas que andava ampliando sua clínica. Quase dado, tuta e meia, reservando-se só giratória que teria o destino de acompanhá-lo vida toda. À tardinha, quando ia para casa, passara na telefônica e determinara a retirada do seu aparelho (que era o 462). À noite, antes do cinema, cientificou os amigos da panelinha do que acontecia. Combinaram despedida para noite-que-vem com grande ceia no Riri Carozzo. Depois fosse o que Deus quisesse… Na manhã seguinte seus livros já estavam encaixotados e despachados para Belo Horizonte. Todo seu tempo agora era para as despedidas. Assim, começou a correr coxia. Fora à casa dos amigos mais velhos — drs. Cesário, Martinho, Cacilhas e mestre Conchais; à dos companheiros de trabalho — Pedroso Lucas, Dimas, Jarina, Audiovisto; à do excelente seu Onésime Cresylol. Tarde inteira com o primo Antonico. Ficaram faltando os outros parentes. Os mais próximos, paradoxalmente os mais distantes.
A ceia no Riri fora pagodeira magna. O Riri sobrexceleu, surpassou-se naquilo em que era imbatível: o vinho certo com o queijo certo, em gradações que iam dos brancos com os fracos, mantinham um momento seu altiplano e depois desciam dos tintos mais duros, aos brandos, aos rosês, cada um vestido pelo queijo adequado. Depois a passagem (já desacompanhada de queijo de qualquer sorte) para os destilados. Foi à sua altura que o Luisinho entrou em estado nirvânico de paz absoluta, serenidade, amor pelo próximo, confraternização incondicional, erotismo enternecido. Seu vocabulário reduzia-se na razão inversa do seu sentimento amorável que abrangia elisabetebarretianamente tudo que existe no mundo e ai! quanto! em largo, alto e profundo sualmalcançava… Ele estava mais escarlate que um coquelicô, o olho e os óculos embaçados, não falava, era como se suspirasse, sua rouquidão baixara aos registros do veludo, das claras de ovo para suspiro batidas com muito açúcar, aos oleosos mais densos. Mal sussurrava e se o fazia era em frase de duas, três palavras ponto final ou ponto de exclamação. Ele estava ao lado do Egon e seu pensamento imenso mal saía, na sua distocia, da distância que vai do imaginado à palavra que é seu símbolo. Aos poucos o médico percebeu que ele queria se referir aos genitais femininos, para o conjunto dos quais alvitrava comparações. E não dizia que eles se pareciam com, que fossem como, que lembrassem taliti-qual isso ou aquilo. Tudo fora substituído pela palavra negócio. E ele segredava que boceta era negócio mesmo de concha, nego! negócio de tinhorão, nego! de begônia, de orquídea, de antúrio…! Alguma associação passou nos visgos de sua ideação porque virou-se de repente e imantou-se para o lado da Marimacho Campelo.
— Xavê o seu, nega…
— O meu quê?
— Seu antúrio, seu antúrio, seu grelão, nega…
— Quando ocê quisé, filhinho… Mas só p’r’olhá. Usá mesmo não qui eu, graças a Deus, até hoje tenho passado ao largo de pica.
A despedida dos tais parentes mais próximos ficara para o dia do embarque. O Egon reservara-os para a última hora, já malas no carro, passagem rápida, entrar, sair, até um dia, não posso demorar que tenho o automóvel à porta e daqui a trinta minutos é hora do trem. Fora assim mesmo. Despedira-se num átimo da Fidélia, da tia.
— Pois já vou indo. Lembranças à Carminda — minha prima churrigueresca…
— Xu o quê? Gonzinho — estranhara a tia.
— Churrigueresca, tia, ultrabarroca…
— Você sempre com suas bobagens…
Um instante o Egon parou querendo explicar aquela expressão, dizer do excesso do ornato rompendo a linha funcional do módulo e sugerindo como que diluição da forma — sua pulverização em claros, sombras, volumes que se desgastam, que levam o ultrabarroco churrigueresco a um paroxismo análogo ao que sucede no gótico flamboaiante — fachada da Catedral de Zacatecas, fachadas e frontões de São Francisco de São João d’El-Rei. Saint-Michel e Chartres. Reims, Amiens, Ely, Westminster. Mas não adiantava querer empurrar essas coisas cabeça adentro da tia Felisberta.
— Bobagem não, tia. Churrigueresca e ultrabarroca querem dizer que sua filha é uma das coisas mais lindas que já vi.
— Juízo, Gonzinho… Vam’falá com seu tio que tá trancado no escritório há mais de hora com uma constituinte… Aproveito para tomar alturas da cara dela.
Foram. O Nariganga entrabriu a porta, fez uma fenda avara e por ali é que passou sua munheca de samambaia para ser apertada pela do sobrinho torto. E o Egon nunca mais enxergaria aquele desagradável afim que rabujaria ainda seus bons nove anos. Morreu a 27 de dezembro de 1938. O médico saiu correndo e bateu para a estação. Ninguém para o bota-fora pois ele odiava as despedidas de plataforma, os protestos de amizade, os escreva, dê notícias… Por isso não tinha precisado o dia do seu embarque e raspava-se incógnito naquela tarde de 7 de junho de 1929, data em que horas mais tarde desembarcaria em Belo Horizonte. Milagrosamente o rápido não vinha com atraso e pontualmente, às duas e quarenta, saiu à pequena velocidade — que tinha de parar na estaçãozinha suburbana de Saudosino Rodovalho. Depois, já a toda velocidade, deu ao Egon a visão da Alódia, Balbino e meninos na escadaria da casa que o Pareto lhes dava para morar — na sua fazenda da Creosotagem de Cima. Aquela volta para Belo Horizonte enchia-o de pensamentos vagos e contraditórios que viravam em coisa duma tristeza enjoativa, espécie de náusea — que o enchia de angústia e depressão. Estava satisfeito de voltar para Belo Horizonte, estava… Mas ao mesmo tempo sentia que aquilo o afastava da Beira-Mar e que sua mudança para o Rio ia se tornando cada vez mais hipotética e longínqua. Sebo! E se ficasse? em Belo Horizonte. Se decidisse? esse passo. Vamos ver… Em Barbacena, trem parado e chiando um assovio de vapor que não cessava — o ruído contínuo ia virando num aflitivo cirro de agonizante. Para fugir dele, resolveu ir se dar o consolo duma cerveja no vagão-restaurante. Foi atravessando carro depois de carro, cheios de gente de cara esvaziada pelo tédio da viagem e mal abriu a portinha do que para onde ia — deu um berro, logo correspondido por outro. Ambos eram cheios de surpresa e de que alegria!
— Nava!
— Zegão!
— O que cocê vai fazer? no Belorizonte.
— Fui removido do Desterro, volto para a sede sanitária!
— Puta merda! esta é de arrebimb’o malho! Eu também venho transferido do Juiz de Fora para o Centro de Saúde de lá… Tamo juntos outra vez.
— Que maravilha! Vamos comemorar…
Começaram a comemorar quando o trem largou da Barbacena, começou a subir encostas, a descer valados, ora se precipitando nos declives, ora paraparando se arrastando nas ladeiras. Tudo isto dentro dum dia que acabava gloriosamente flamejando como bandeira solo verde e céu laranja que eram as cores que predominavam no bojo da hora que passava. Os dois primos não estavam como se olhassem um pôr de sol no horizonte, ao longe. Era como se eles e o trem de ferro estivessem passando por dentro do próprio ocaso, como se mergulhassem e se consumissem num mar metal em fusão. A noite se aproximava e a luminosidade prodigiosa desaparecia aos poucos sem diminuir sua intensidade. Esta ardia sempre idêntica só que por trás de cortinas de gaze preta que iam caindo de uma em uma. Só quando a noite se completou é que os moços tiraram os olhos da janela e se olharam com agrado. Ambos consideraram que tinham engordado um pouquinho. Riam à toa e ajudados pela cerveja passaram a uma conversa íntima e vagarosa. O Egon contava a Pedro Nava, em termos de lucros e perdas, sua estadia no Desterro. Lucrara com as amizades que lá fizera. Lá isso, lucrara. Os drs. Cesário, Martinho, Cacilhas, seu chefe Lucas, seu auxiliar Cresylol tinham valido a pena. E que dizer dos íntimos, do Luisinho, do Percival, do Falcão de Valadares, do casal Frota — o Joel e sua bionda americana — Rose Tree da Frota. Isso pra não falar do primo Antonico.
— Você não faz ideia, Nava, do pitoresco e do inesperado das saídas, das tiradas do primo Antonico. Que grande figura. Só essa gente justifica o Desterro.
O Egon falava agora de outras vantagens que lhe dera sua cidade. Ganhara experiência vendo o que muitos médicos de sua idade não tinham visto ainda ou não veriam nunca. Uma epidemia de febre amarela. Medira-se com ela, ajudara a erradicá-la da cidade. Chefiara colegas pela primeira vez e sentira as asperezas desse abacaxi e a dureza das espículas da sua coroa. Começara a aprender consigo mesmo e ia aperfeiçoando cada dia a profissionalidade — isto é, a maneira de como se colocar sempre, de proceder com o doente, de falar, até o modo de vestir-se que logo indiquem a presença dum homem da arte, do médico. Não só na máscara, no exterior, como na essência e na responsabilidade. Esse atributo não é fácil de obter porque depende do apuro e do afinamento de várias virtudes do coração, da inteligência, da sensibilidade. O Egon tinha razão e veria sua teoria comprovada muitos anos depois, quando viajou e pôde apreciar a modelagem por que passam os médicos nos países onde existe uma verdadeira Medicina — bastante diferente do que seja uma medicina cafajeste. França, Inglaterra, Estados Unidos — entre os países que conhecera — onde os médicos-brancos, moldados por sistemas e escolas, são maioria separada da minoria dos médicos-marrons. Ele achava que o médico tinha a obrigação do decoro diante do doente e de ser para este a coisa vedada, incógnita e tabu — dentro daquele halo de que se cercava — por exemplo, Laennec.
— Assim que desencaixotar meus livros em Belo Horizonte, Nava, vou passar a você a biografia desse monstro de trabalho, sofrimento, estudo e contenção de atitudes… Que homem fantástico! Que médico! Que espécie de santo!
E o Egon continuava a enumerar as vantagens que obtivera de sua estadia na terra de nascimento. Vira abundantemente no seu ambulatório e escassamente, no seu consultório de principiante, não só os doentes de cujo contato o médico aproveita de cada um o pouco do peso, dos miligramas que se acumulando no decorrer de sua vida vão constituir esta coisa sem preço que é a experiência — só avaliável como quantidade medindo-se-lhe as unidades ponderais no seu termo de arrobas. Nesses doentes tivera contato essencialmente com uns poucos remediados e multidão de gente pobre, gente do povo de que retirara outra espécie de conhecimento que fora o de um grupo social — o da chamada indignamente classe baixa e dentro das quais vivem latentes as maiores qualidades da nossa gente.
— Classe baixa nem nada! São sempre infinitamente superiores aos chupins que exploram e sugam o sangue dessorado dessa pobreza de todas as cores — parecendo branca, amarela da opilação e da cruza, parda clara, parda escura, cabocla, mulata, puri, cafuza, preta. Aliás os mais clarificados são da mesma cor dos seus mandões — só que estes vivem cheios de orgulho e titica de galinha como diziam os nossos amigos Isador e Cavalcanti…
— Tou achando que você tá vindo do Desterro meio maximalista…
— Se estou, isto também foi tirado de minha vivência profissional. O médico é empurrado por sua formação em duas direções. Se é burro e saca de sua anatomia e fisiologia uma falsa ideia dessa hierarquia biológica da mão melhor que o pé, do cérebro melhor que o coração, deste melhor que o estômago e o resto — irá obrigatoriamente ser um conservador da pior espécie. Se é um pouquinho melhor e com os diabos! — creio que estamos nesse grupo, tira do povo, desse povo “vasto hospital” do mestre Miguel Pereira — sua lição. E esta lição vai condicionar o oposicionista, o insubmisso, o revolucionário, o anarquista, o dinamiteiro.
— Falei só por falar… Acho que você tem carradas de razão… Também sou contra o filhodaputismo da nossa sociedade…
Mas o Egon euforizado pela cervejamiga não deixava o primo falar. Queria fazê-lo continuando a contar de sua prática com a massa. Lembrava ao Nava autor que eles tinham descoberto no princípio dos 20 por indicação de Aníbal Machado — Marcel Proust. Lembrava a impressão do narrador sobre os Guermantes — raça extraordinária, de hábitos desconhecidos, vida misteriosa, cercada por uma espécie de incognoscível que era intangível, imponderável e invisível mas que a separava como casca de ovo que fosse impenetrável como o aço, mais intransponível que a matéria em estado absoluto, sem poros e sem as distâncias intermoleculares ou interatômicas que permitem reduzir o cometa de Halley ao volume dum copo d’água. Ia-se perdendo, perguntav’onde estávamos? Ah! sim na impressão do narrador maravilhando-se com os Guermantes. Mas ele olhava essa classe alta, da sua mediania, de baixo para cima. Fiz o contrário, olhando da minha posição média, os que estão mais para baixo na escala social — essa pobre gente sem nome, desindividualizada, que só pode ser entendida tomada em termos coletivos e compactos. Dizia que no contato com os coitados do seu ambulatório pressentira, mais adivinhara que propriamente pudera comprovar a formidável maçonaria de classe que existia na patuleia. Sentira as ameias raciais e de solidariedade na miséria que encouraçam e tornam inexpugnáveis a vida do pobre com suas opiniões, religião de classe comandada pelos feiticeiros; sua medicina de classe dirigida por seus curandeiros. Para ter uma ideia exata da força da rafameia basta olhá-la em termos de nossa arte popular, de nossa música popular. Tudo nelas são bandeira e clarim revolucionários.
— Num sei quando é que essa cagada vai estourar, Pedrinho… Só sei que não quero estar presente na hora da cobrança à vista. Quecocê acha?
— Eu? Você já esqueceu? que nós nunc’estamos em desacordo… Uai… tou contigo, filho…
Àquela hora o trem passava vagarosamente numas ribas. Eles olharam para fora. Só a noite do mato grosso das Minas. A noite e um estrondo dáguas caindo e fluindo no escurão, se compondo com sinfonia dos ruídos do trem de ferro fazendo fuco-fuco feito na canção da Maria Rosa do Cisalpino — seus chiados de vapor e aqui ali silvapitos cortando a noite. Só a noite.
— Isso tá com jeito de já ser o Propeba… Tamos perto… Mais um pouquinho, é o Barreiro e depois, Belorizonte…
Foi durante longa paragem no dito Barreiro que o Egon acabou de fazer seu relatório. Falava agora dos colegas do Desterro. Duas variedades. A dos médicos independentes indo mais ou menos na sua luta de franco-atiradores e os ligados prosperamente ao establishment. Estes viviam no seu mundo mais incomunicável que o dos cegos, o dos surdo-mudos — ou o mundo mudo túnel dos esquizofrênicos. Ele, Egon, deixava o Desterro porque não conseguira penetrar nos seus hospitais. Os donos da bola tinham evasivado e ele acabara desistindo. E vinha embora porque sem hospital não se faz o médico — segundo referia sempre mestre Ari Ferreira. Mas o jogo porco de que fora vítima em sua própria terra era o jogo geral de todos os médicos, de todos os lugares. O jogo de fechar, deter, criar obstáculos para que o colega, o próximo, o concorrente — não melhore, não se instrua, não tenha vez, nem chance, nem oportunidade… Ah! os colegas do Desterro… Iguais aos de todo o mundo, aos da Europa, da China, do resto do Brasil. Mas mesmo com toda sua estupidez, sua burrice solene, sua inveja, suas línguas de víbora — havia que amá-los pelo lado positivo de suas vidas.
— Cá por mim não tenho rancor dos obstáculos do Desterro. Eles são, no seu lado negativo, mais uma lição que aprendi na minha cidade. Ao menos, em Belo Horizonte, tenho certeza de que o Ari vai tornar a me ajudar a abrir as portas da Santa Casa. E aqui o juro, Navão, e você pode escrever. Se algum dia eu for chefe de serviço — ele estará sempre escancarado para todo e qualquer que queira aprender comigo e dos meus doentes.
— Isso, Zegão, farei também.
(Eles realmente fariam isso um dia e comeriam o pão cheio de cinza que essa liberalidade custa aos médicos e mestres de boa vontade.)
— Mas falando e falando, Pedrinho, não perguntei se você gostou de sua estadia em Juiz de Fora. Então?
— Uai! Gostei. Minha terra, num é? Lá naquele quadrado feito por Santo Antônio, Imperador dum lado, São Sebastião do outro e Direita pela frente, meu umbigo ficou enterrado ao pé duma jabuticabeira e meu primeiro dente de leite que soltou, foi jogado nos telhados da “casa-velha” do velho Halfeld…
Mas o trem, vagarzinho, começou a bater sinos de chegada no caminho cheio de estrelas do Calafate. Mais uma curva, rentearam o Arrudas e pararam solavancando na estação. O mesmo carregador para as malas dos dois.
— Agora, Navícula, vou tomar um táxi e você outro. Vou ficar no Hotel Globo…
— Agora, Zegão, você vai primeiro tomar onde as galinhas tomam e depois o mesmo táxi que eu, porque você vai ficar é comigo, casa de minha mãe — sua prima Diva, seu idiota…
Tomaram o automóvel que era o do veterano Matafeio. Emocionados, respirando o ar perfumado e doce de Belo Horizonte, atravessaram a praça da Estação toda incrustada de lembranças. Numa adivinhação o motorista entrou por Guaicurus movimentada como uma feira. Depois foram São Paulo e Afonso Pena, passando pelo Bar do Ponto, pelo Automóvel Clube todo iluminado, pelo Palácio da Justiça todo escuro e fechado. Finalmente, Padre Rolim 778. Os dois primos amigos estavam virando mais uma página de suas vidas. Eram as onze horas da noite daquele dia 7 de junho de 1929. Desceram com as malas. Ficaram batendo longamente na porta da casa apagada. Finalmente a voz materna perguntou de dentro.
— Quem é?