Capítulo ii

Belorizonte Belo

 

 

 

 

 

 

 

tão diferente hoje, tão desumanizada, tão violentamente progressista — tão outra na sua população que não sei se ainda possa dar a essa zona de Belo Horizonte seu antigo e doce nome de bairro dos Funcionários. Nome quieto, cheio de pachorra burocrática, do perfume dos jardins, das árvores, das sombras, da humanidade dos muros de adobe — pesados, cor de pó de café — em cujas frestas os escorpiões faziam seus ninhos. Nome de coisas íntimas, de horas lerdas e das voltas sentimentais de Ceará e Pernambuco — namorados apinhados nos bondes para surpreenderem um instante só, segundo que fosse, do vulto das amadas das estelas furtivas entreabertas janelas. Tudo tão Mariana, tão ribeirão do Carmo, tão Ouro Preto… A primitiva Boa Viagem ainda se erguia como último adeus do Curral dentro da maré montante da cidade americana que começava. O velho vento do Cercado — livre de arranha-céus obstáculos — ainda passava dedos macios na cabeleira do dr. Lourenço, nas barbas de mestre Aurélio, nos bigodes do Raimundo Felicíssimo… Hoje, para fazer nascer da lembrança as velhas casas, as varandas, suas escadas, seus telhados; a recordação das ruas vazias em que o sol sertanejo fazia fulgurar a poeira de ferrugem; dos vultos raros dos funcionários à hora do crepúsculo e das beatas nas madrugadas de missa — é preciso um esforço, um afinco, um trabalho que nem o de quem está parindo. Mas acaba vindo e as gentes de outros tempos ainda veem os vultos da Chichica, de d. Milota e do dr. Nélson — em Santa Rita Durão; do dr. Pimentel e do desembargador Rafael na rua Paraíba; de Pedro Nava e José Egon Barros da Cunha — moços, moços! descendo Padre Rolim ou subindo Padre Rolim.

Esse logradouro corta o bairro e a cidade na direção lestoeste, desaguando, lado oriente, na avenida do Contorno e lado ocidente, na avenida Mantiqueira. Essa posição lhe dá sol dia inteiro e ela fica cor de ouro branco pela manhã, de ouro fino à luz zênite, de ouro vermelho à tarde e de ouro preto à noite. Se tem lua — então, fica de prata. Sua luminosidade contrasta com o tom acobreado e crepuscular da avenida Bernardo Monteiro ainda cheia dos velhos fícus de outrora. São estes e a terra da alameda central do logradouro — que dão ao lugar seus coloridos especiais. Duas cores só — o verde e o marrom — mas ambos com todas as nuanças graduadas pelas estações, pelas noites claras ou de breu, pelos dias limpos ou de chuva, pela hora do nascente, do meio-dia, do poente. Pois foi quase à esquina de Padre Rolim e Bernardo Monteiro que aqueles moços foram morar, chegando um do Desterro e outro da Juiz de Fora. Era onde ficava a habitação da prima de um e mãe do outro. Número 778 — casa da funcionária dos Telégrafos d. Diva Jaguaribe Nava. No coração do velho bairro, em cima dos alicerces soterrados das vivendas da paróquia de Nossa Senhora da Boa Viagem do Curral-d’El-Rey. Alegre era a construção na fachada caiada de amarelo-claro com suas três janelas abertas pintadas de branco e de verde-escuro por onde entravam o dia, os ruídos da rua e o pregão das mulheres de Piteiras, Gorduras, do Onça, de mais longe ainda — do Jatobá, do João Grosso, até de Santa Quitéria, até de Sabará e Vila Nova de Lima, com seus jacás de galinha, suas cestas de ovos enrolados em palha, suas ervas de preceito, suas mandiocas, mang’e milho verde. Alegres seus portões — o de madeira, da direita, por onde entravam as negras e mulatas para seus negócios e o de serralheria, da esquerda, por onde passavam a gente da casa e as amigas das irmãs do Nava na Escola Normal e no Conservatório de Música. Moças em flor. Chegavam isoladas, às duas, em ramo ou corimbo. Eram as primas Pinto Coelho — Nair, Abigail (Bigue), Carmem, Judith — no princípio sós e depois, a primeira e a última arrastando os noivos — Luís (Lulu) Xavier e José Maria dos Mares Guia. Eram as Passos bem nomeadas, cujas graças lembravam nomes de fruta do mato, de sabonete, extrato fino, bala-de-licor: Gercy, Hercy, Dercy, Nercy, Percy, Lercy; as Coelho Júnior: Ambrosina (Zinah), Elza, Áurea, Ilza, Amarilis, Leda e Neuza — das quais a segunda era escultora e todas cantavam. Eram irmãs do Diderot Coelho Júnior meu amigo íntimo só de cumprimento e em cujos olhos profundos o destino já se refletia gigantescamente. Ay! d’elle, coitado… Vinham também mais velhas, amigas da dona da casa, mas tão alegres que pareciam outras meninas. Eram Odete Melo e as diamantinenses Dulce Pimenta, Lavínia Alves Pereira e Estela Mourão Prado (Tetela). E a casa cascateava de tanto canto e tanto riso, do piano de Flora Paz, das vozes cantoras e da vitrola portátil com os discos mais lindos de Estefânia Macedo e o “Fox-trot de las Campanas”. Quando todas iam simbora as irmãs Ana e Maria Luísa ainda tinham o que fazer, copiando em Braille romances e poesias para os ceguinhos do Instituto São Rafael. Faziam-no com estiletes rombudos sobre tábuas com furinhos em negativo, nuns papéis esquisitos — grossos como folhas de mata-borrão.

A casa dava a impressão de sempre cheia e não seria das visitas. Toda a família sentia isso e ela só parecia esvaziar, até que diminuir o número de cômodos, seu tamanho — murchar — quando d. Diva saía para seu trabalho ou para fazer suas visitas. Nisto ela era muito exclusiva e praticamente só frequentava a irmã Risoleta, sua tia Joaninha e o que lá restava de parentes depois da morte do Júlio Pinto e da ida da Marianinha para o convento; suas amigas d. Alice Neves, d. Julina do seu Lafayette, d. Rosalina do seu Avelino Fernandes. E bastava porque suas visitas eram longas e ela as saboreava com sua fabulosa capacidade de gostar e ser amiga. Ela era a vitalidade e o movimento em pessoa — fazia todos os seus negócios, ia ela mesma pagar suas contas na padaria do seu Menin, as do açougue, do armazém do Viana & Irmão, da Eletricidade, em cada loja onde devia suas prestações e na Telefônica — porque essa novidade entrara pela primeira vez em sua casa para alterar — como em toda parte — modo de vida, relacionamento com o próximo — toda uma cultura baseada no ir e vir, no recado, no bilhetinho, na carta, no quem-quer-vai-e-quem-não-quer manda. Suas idas a esses deveres e ao seu trabalho eram feitas com a alegria e o proveito afetivo que ela tirava de cada coisa e de todos. Para tudo ela era a competência personificada — tratava nossas doenças como se fosse ser anfíbio de médico-enfermeira, tricotava, fazia crochê, frivolité, bordado e costurava como se fosse profissional em cada dessas prendas. Cozinhava como um maître — das virtuosidades do forno e fogão, ao trivial fino, ao trivial nosso de cada dia — que sempre sabia ao que o paladar possa figurar de mais requintado. Porque é nesse trivial que se conhece o dedo dos e das cucas. Assim sempre foram iguarias em sua casa o feijão-mulatinho mineiro, o angu, o arroz, os picadinhos de carnes com chuchu, com abobra; a couve cortada rente ou simplesmente rasgada, os assados, os bifes, a almôndega, o croquete. Frango e galinha, só do seu galinheiro: comprava, deixava um mês inteiro a milho e resto de comida e só mandava matar quando o bicho estava completamente limpo das porcarias de fora. Fazia qualquer doce mas primava nos costumeiros. Inútil, ninguém fazia melado igual ao seu. Nem doce de abóbora em calda, pasta ou seco igual ao seu. Nem de batata-doce, batata-roxa, idem, idem, ibidem. E vidrado! Os de coco e as cocadas. E principalmente os de mamão verde que eram como se fossem água-marinha — quer ralados, quer finolaminados. E jamais imitava ou plagiava. Receita de salgado ou doce que ela quisesse fazer era lida, criticada e apurada. Nenhuma era repetida, todas eram recriadas.

— Quê isso? Só uma xícara de farinha de trigo? Muito pouco. Tem de ser xícara e duas colheres de chá. Senão fica mole demais. E não precisa tanto fermento assim. Forno, forno… não é assim que se diz. Tem de explicar tudo tintim por tintim. Nesse caso é forno brando, muito brando mesmo e demorado…

E seus ovos? O que ela fazia com essa joia da natureza! Fazia omelete bem batida, cortava aos pedaços e esses fragmentos esponjosos é que iam se misturar à farinha — porque farofa de ovo com o dito apenas mexido fica é uma reverenda porcaria. E essa coisa banal, que parece banal, mas dificílima que são os ovos estalados. Os dela eram torrados na borda, clara cozida no contorno, meio crua em caminho do centro e neste a gema real ouro vermelho como um sol descambante coberto como de fina bruma por película da clara aderente posta ao ponto com colheradas de banha de porco derramadas sobre o astro. E o tempero exato. O alho socado com sal segundo a receita ancestral. E a cebola certa no lugar certo. Assim também a malagueta e a pimenta-do-reino. E todas as outras tafularias de tempero, as especiarias da Índia nos casos em que se tornam indispensáveis, compulsórias — sem o que um prato figura tal un conte sans amour. É o preceito de Anatole avessado e que ele proclamava ser chose insipide

Pensam que acabou? Era da cozinha à sala e aí a d. Diva fazia renascer as graças da sinhá Pequena da rua Direita, na Juiz de Fora. Tocava velhas cavatinas ao bandolim. Suas pontinhas de clássico ao piano mas principalmente tango argentino e todo o nosso Nazareth. Velhas músicas do repertório romântico das serenatas mineiras à lua cheia. E cantava. Gostava que fosse em coro — polifonia em torno ao seu Rud. Ibach Sohn. Ah! Onde? andarão as músicas de antanho…

Menina ainda, tempos do Bom Jesus d. Diva tinha tido de viajar para o Rio de Janeiro consultar o dr. Moura Brasil. Ele fora categórico. Depois dos colírios dera a higiene a seguir.

— Quarto escuro durante dois meses. E parar os estudos para não forçar a vista. De ler, nem jornal…

— Até quando? doutor.

— Até sempre.

— Mas doutor…

Assim ela tivera de interromper o colégio da d. Onofrina Hungria e só tinha estudado o seu primário. Mas sua observação da vida, sua inteligência tinham feito o resto. Depois de grande, lera pouco. Mas tinha feito isto como ninguém e os livros que tinham passado por suas mãos eram devorados, ruminados, relidos, extrarrelidos. Ela falava e citava sempre o Quo Vadis?, Paulo e Virgínia, os Últimos dias de Pompeia, Aves de arribação do cunhado Antônio Salles, a Imitação de Cristo, os versos do seu Belmiro, as poesias de Casimiro, Fagundes Varela, Luís Guimarães, Cardoso de Oliveira, Raimundo Correa, Júlio Salusse, do primo Brant Horta, de Mendes Martins, Francisco Otaviano, Gonçalves Crespo, Bilac — “Ora (direis) ouvir estrelas!” — e Maciel Monteiro. Este, raros outros, ela tinha de cor e recitava alto, com certo ritmo grandioso e antiquado pedindo os acompanhamentos ao piano, tempos de Dalila (“Formosa, qual pincel em tela fina”). Lera pouco, a d. Diva, mas aproveitara o que tinha lido como muito erudito não se vale de biblioteca inteira. Falava um pouco alto, num admirável dialeto mineiro, melhor, no subdialeto de Juiz de Fora que, com o de Diamantina, são as favelas mais requintadas de toda Minas. Tinha uma vasta sabedoria que externava citando com a-propósito infalível dezenas de anexins, ditos, rifões, provérbios, brocardos e frases feitas.

O Egon que acabara por ficar morando com os primos em Padre Rolim passava horas, fingindo que lia um jornal para ouvi-la conversar com visita, amiga, vizinha que entrava. Deleitava-se com seus termos da língua minas mais vernácula: tafularia, gangento, briquitar, tretar-relar, imbericicar, a-la-gordaça, botá-corpo, eta! ferro que matou cigano… Subia ao sétimo céu sobretudo quando escutava a prima discutindo fazendas com a d. Estela Mourão Prado e enumerando tudo que é pano que já não se tece mais: pongi, nanzuque, molmol, luizine, zefir, merinó, belbutina, cassa, cassa de salpico, cassa de risco. Qual o que era melhor e prestava-se mais para vestido de senhora, de mocinha, camisolinha de pagão, de criança, corpinho, saia branca, calça de moça. O que mais encantava o Egon era ouvir a prima contar seus casos de menina, da escravidão, da velha Juiz de Fora, os de assombração que herdara da mãe e do pai, do avô visconde com seus piqueniques de aniversário, todo cercado de netos, no Jardim Botânico. De sua chácara no Rocha. E mais do homem que matara a mulher a tesouradas, das cheias do Paraibuna, do outro avô Luís da Cunha e de sua brabeza.

— Esse não vi mas conheço de fama…

— Prima Diva, narrando como você narra, com o chiste e o drama que tira de tudo e tanto à sua moda, você devia escrever esses casos…

— Quem sou eu? Gonzinho. Não sei escrever direito nem minhas cartas quanto mais meus casos… Nem são meus… Ouvi de minha mãe, meu pai, tia Regina… Deles é que são essa lenga-lenga que eu só faço passar pra diante…

— Pois fique sabendo, prima, que guardo ela toda, até tomo notas… Quem sabe? um dia escrevo tudo que você me contou… Faço a crônica da família…

— Vê lá, primo… Nem pensar… Vai mexer em caixa de marimbondo-mangangá…

O Egon insistia, fazia repetir, pedia detalhes, guardava tudo e quando era coisa de data — tomava nota num papelzinho e jogava dentro duma pasta velha. E realmente considerava que a prima era uma vocação literária sem oportunidade de ter se realizado. Ele admirava sobretudo a polícia de sua linguagem e as perífrases, os contornos descritos para evitar o inconveniente de certas palavras, os duplos sentidos, os assuntos tabus. Realmente, além de língua limpa, d. Diva obrigava a todos em casa e mais às visitas a muita tenência. Mal o assunto parecia querer resvalar e ela logo punha ponto final.

— Cuidado, gente, olha que tem moça solteira na sala…

Mas o que realmente bestificava o Egon na personalidade de sua prima não era sua inteligência, sua capacidade de trabalho, seu tino em fazer de dois vinténs um tostão, sua argúcia levando a que ela mostrasse o angu pronto e quente a quem se lhe chegava oferecendo espigas de milho no pé, seu espírito de sacrifício pela família — dos filhos aos primos mais remotos, sua espantosa prestimosidade, sua larga bondade e nenhuma concessão ou permissividade de comportamento consigo mesma — sim, ela poder aliar e conciliar tudo isto com a mais vasta tolerância. Tolerância filha da piedade infalível que ela sentia pelos errados, pelos diferentes, pelos humildes. Tinha pena deles. Pena das putas, pena dos ladrões, dos vigaristas, dos malandros, dos assassinos. Sim, até dos assassinos — como no caso de uma sua criada, vistosa mulata chamada Pardina de Jesus que embeiçada por certo João Crioulo, dera-lhe o que para dar-se fez a natureza. Emprenhou, escondeu a pança, apertou-se, espartilhou-se, pariu em sua casa e sufocou o filho. O infanticídio clássico. Teve de ser presa, ser submetida a exame pericial e o recém-nascido a autópsia. Passaram-se meses e a pobre coitada presa numa delegacia. D. Diva ia visitá-la e encontrava-a sempre em lágrimas, morria de pena e um dia perdeu a paciência e foi até o delegado e disse-lhe redondamente que era melhor que ele largasse mão de tanta patacoada e soltasse sua empregada que estava mais que arrependida. E o extraordinário é que o delegado, que não era um bruto e também tinha lá suas ideias, concordou.

— Tá muito bem, d. Diva. A senhora tenha a paciência de deixar passar o movimento do dia na delegacia e venha cá por volta das seis da tarde que eu lhe entrego sua mucama. E vou rasgar o processo…

Pois a criminosa foi solta, a papelada da culpa destruída. Esse bom delegado chamava-se…

 

 

 

Parva domus, magna quies.

Essa divisa não se sabe bem de quem, o dr. Davi Rabelo tinha em placa de esmalte pregada numa estante do seu escritório. Lá o Egon, ainda estudante e consultando seu mestre, a tinha lido e admirado seu sentido. Agora, cheio de costume com a casa da prima Diva, aconselhara que ela tomasse a frase para definir seu lar. Explicara o símbolo, Artur Resende em punho — casa pequena, grande tranquilidade. A prima rira respondendo que quando pudesse mandaria fazer tabuleta igual à do médico amigo da casa. Ou ia bordar suas letras na tira de feltro que forrava as teclas do piano. Realmente a Padre Rolim 778 inspirava esse sentimento de paz que sempre se entranha nas paredes, nos tetos, nas portas, nas janelas, nos móveis das residências onde as famílias têm destes períodos felizes de nenhum aborrecimento, saúde presente e morte distante. O Egon além de perguntador era curioso, reparador e o período que passou ali com os parentes (que contagiaram-no de quietude e alegria) ficou na sua lembrança indestrinçável dos detalhes da moradia. Da sala acolhedora com o piano, os dunquerques, o grupo amarelo arnuvô com seus estofados verdes cujo veludo lavrado se gastava e amarelava do uso e da esfregação da limpeza. Da de jantar com o buffet-crédence, as cadeiras austríacas pretas em roda duma mesa mais que centenária, daquelas redondas com um círculo de madeira elevado e giratório onde se põem os pratos: cada que quer servir-se, roda a parte superior do móvel até ter o desejado à sua frente. Uma cadeira de balanço. O telefone de parede. Uma porta altíssima, arco em cima e dotada de batentes de vaivém de madeira clara e vidro fosco: dava pros lá-dentro de casa. Anos e anos ele reencontraria dois desses móveis na casa dos parentes. A mesa, com a prima Leda Gontijo, a cadeira de balanço, com o primo Paulo Nava, na Serra — era aquela para onde tinha sido arrastada a vó deste, em Juiz de Fora, quando o ataque apoplético cortara-a pelo meio. Uma sala de almoço, atrás, onde o moço gostava de fumar seu cigarrinho de depois de comer, namoriscando vizinha que aparecia no terreiro dela com longa vara para derrubar os mamões de vez dum mamoeiro solitário. Ele comparava interligava frutos e seios e procurava imagens. Gostava também de ver o galinheiro quieto ao sol, os cacarejos preguiçosos do bem-estar das galinhas, as corridas do galo cobrindo todas uma em uma e refletia na torpeza biológica da ave que deixara de voar, desistira do azul, demitira-se dos altos ares, atrofiara as asas e voltara a um pra-lá-pra-cá de pernas feito as de gente. Mereciam mesmo virar canja, ensopado, terem seus ovos (sua descendência) estalados ou postos em omelete. Fumava e ia para o escritório do lado ou para o quarto grande ao fundo, as duas peças que ele passara a partilhar com seu primo Pedro Nava. Havia mais dois quartos, o banheiro reformado de novo, cozinha, varanda de trás e no fim do terreno os mais quartos independentes e instalações que a prima construíra para alugar a estudantes. Lá ele conheceu os que se sucediam e entre eles um futuro grande neurocirurgião: Renato Moretzsohn Barbosa. E os fundos dos outros vizinhos com o patético dos varais e das roupas desfraldadas. Calças de mulher, corpinhos que o vento estufava, fazendo coxas passageiras, maminhas transitórias. Outro lugar da casa que ficaria para sempre na sua lembrança era a varanda comprida da frente (para cujas colunas a prima Diva já puxara o caule do seu sempiterno pé de estefanotes) e que se lhe gravara duma noite em que ele ficara em casa sozinho com as almas. Era Carnaval e ele não podia sair pois convalescia de um dos seus frequentes ataques de amigdalite aguda. Este terminara em abscesso aberto por desagradável otorrino — um ser muito distante, muito cerimonioso, muito casmurro, decerto puto da vida com aquele osso que lhe desabara em cima, enchendo de nada o tempo de sua rendosa clínica numerosa. Tirara sua forra abrindo o foco periamigdaliano com ferocidade e a frio, enterrando nele pinça rombuda que abriu dentro e que empurrada pelo próprio paciente na defesa instintiva rasgou tudo e fez jorrar o pus. E ainda resmungou entremostrando sorrisinho de mofa.

— Obrigado. Era o que eu queria…

Ganhou nada do colega, evidente — mas sua estupidez deu-lhe inimigo para sempre. Vai-te embora, bruto!

Todos tinham saído. Ele não. Ainda estava bastante doente para carnaval mas não tanto que não pudesse arrastar uma cadeira para a varanda e ali passar um pouco de sua noite sentindo o vento refrescante e ouvindo distantes zabumbas de zé-pereira, agudos de clarim. Na rua o deserto era total e o silêncio tão grande que deixava passar em Padre Rolim aqueles ruídos ao longe — que vinham do Centro, pulavam por cima do parque, das ruas e dos quarteirões para serem captados naquela varanda. Por dentro da noite esses sons chegavam sem arestas — como se as tivessem perdido atravessando cortinas de veludo inumeráveis. Deles e do escuro — descia aos poucos sobre o médico um sentimento de solidão tão absoluta que concorreu para transfigurar psicodelicamente a noite valorizada, a rua dum oco de túnel, as casas fantasmais, à frente, tudo apagado e, de luz — só a vermelha dum poste coada através da árvore que deitou raízes na sua lembrança além das que espalhava pastadeiramente no chão da rua. Ficava rente à fachada — em a qual roçavam folhas e pontas de galho. Seu tronco ainda novo é agora marco desse lugar, hoje que a casa foi demolida, seu local ocupado por construção acachapada e modernizante que conserva o número 778: é a sede da Editora Casa de Minas. A árvore lá está, o galho que ia para as janelas foi decepado, a casca ficou rugosa e negra e toda ela é cacunda e inclinada como velha coisa, as raízes sem número trançadas como enorme feixe varicoso, chupando daquele chão de ferro do bairro dos Funcionários a seiva devolvida em verde de folhas e ares puros da clorofila balão de oxigênio. O moço médico olhava aquela paisagem noturna tornada irreal e de que lembraria, cada vez futura em que avistasse uma gravura de Oswaldo Goeldi — aquelas gravuras duras de madeira, duras sim, entretanto cheias de um finito e duma solidão como da morte, da tumba. Foi o que ele ficou longamente sentindo e a beber como se sua sensação fosse um vinho raro para ser degustado de gole em golinho. E ele renova sua impressão passada sempre que vai a Belo Horizonte visitar os lugares onde foi Troia, a casa dos primos e ver a baliza vegetal que marca seu lugar e traz de roldão as lembranças daquela noite de nada. Só d’estrelas, do céu de veludo e de vagos ruídos dum Carnaval remoto…

Pois era justamente dessa varanda ou das janelas da sala que o Egon gostava de ficar apreciando de dia, o movimento da rua e a passagem dos vizinhos. Deles, seu Peçanha — o respeitável secretário da Escola Normal, era sempre visto, pela manhã, pela tarde, a todas as horas do dia, indo e vindo do estabelecimento de ensino situado a uns quarteirões da sua casa. Essa ficava na esquina de Bernardo Monteiro e Padre Rolim, encostada à do seu filho casado, Franklin Peçanha, que morava em frente à nossa. A de seu pai era construção baixa e ampla, cheia de janelas para os dois logradouros e com entrada lateral pelo primeiro. Sua caiação, de um amarelo estridente, combinava com os cabelos radiosamente louros das filhas Maria e Rachel — sempre preparadas e postadas numa das janelas onde esplendiam como girassóis. Entre as duas, mal se distinguia a terceira, Beatriz, modesta violeta entre aquelas flores exuberantes. O seu Peçanha dava a impressão de não parar em casa nem na Normal — era verdadeira lançadeira entre essas extremidades do seu itinerário. Só se o compreendia nesse ir e vir, alto, muito magro, cor macilenta, pele fina, translúcida como as opalinas, olhos pequenos, azulados, encovados dentro de órbitas a cujos contornos ósseos a pele parecia aderida; cílios, sobrancelhas, cabelos e bigodinho não grisalhos mas cinzentos mesmo, um nariz imenso — fino de ponta como bico d’ave e que fazia linha de ouro com a direção das abas do seu chapéu-coco muito puxado para a frente. Usava sempre gravata, colete, sapatos e calças negras — tudo complementado pelo fraque da mesma noite, colado a suas costas mas de abas farfalhantes. Quando havia ventania, tinha-se a impressão que o seu Peçanha, de tão leve, ia ser levantado por ela — coisa imponderável, dentro da nuvem de poeira e de folhas secas. Ele andava sempre depressinha, braços um pouco afastados do corpo, com um ar de travessura e de matreirice como o de quem vai dar um flagrante ou fazer uma surpresa. Mais ágil que no vento, ele o era na dança. A d. Diva, seus filhos e o Egon testemunhavam tê-lo visto em flagrante de baile em casa da sinhá Rosalina do comendador Avelino. Ele estava ponderoso e grave, conversando com o dono da casa, o Olinto Ribeiro, seu filho Waldemar, o Pedro Paulo Pereira e o Benjaminzinho Miranda Lima. Eis senão quando começaram a tocar a “Saudade de Ouro Preto” e suas notas (como as dum clarim tocando fogo numa soldadesca) deram logo com o seu Peçanha na sala e dirigindo-se ao ramalhete de moças, num canto, onde colheu a mais linda flor para com ela rodopiar ao compasso ternário da valsa. Ele a dançava largamente — ora bóston, ora vienense, ora varsoviana, levantando e abaixando seu braço e o da dama ao ritmo da música, como se usava nas velhas eras desse excelente funcionário, nas noites de gala do Palácio dos Governadores, em tempos da Vila Rica. À esquerda do 778 só havia uma casa na direção de Bernardo Monteiro, exatamente na esquina e fronteira à do seu Peçanha — que vimos sucessivamente ocupada primeiro pelo seu Oduvaldo; depois pela d. Natalina do seu Raul Guimarães, que era de Sabará e prima do José Figueiredo Silva — companheiro do Pedro Nava e do Egon na antiga Diretoria de Higiene do Estado. Finalmente morou ali o Ismael Faria, cujo riso contagioso e alegria epidêmica — faziam dele o vizinho mais simpático daquele canto do bairro. Ele era farmacêutico e andava à época pelo seu quinto ano de medicina. Formar-se-ia na turma de 1930, com Guilherme Soares, Rodolfo Herbster, Edmundo Haas, Domingos Justino Ribeiro, Alysson de Abreu e João Guimarães Rosa. Em frente à casa do Ismael, sempre esquina de Bernardo Monteiro, ficava o bangalô da d. Belinha Cadaval e seus filhos — gente do Maranhão. Já para o lado direito do 778 havia moradias até à esquina de Rio Grande do Norte, sucessivamente ocupadas por famílias de arribação que não esquentavam lugar. Em pouco tempo o Egon passou a conhecer toda essa vizinhança de cumprimento e boas palavras trocadas durante seus itinerários. Mais longe da casa onde ele estava residindo com os parentes, ele ainda conhecia o seu Menin da padaria da esquina de Bernardo Monteiro — diagonal à que faziam as fachadas do Colégio Arnaldo. E ainda em Bernardo Monteiro mas em direção oposta, ficava o portão do César Burnier. O seu Menin nunca sairia da cachola do Egon a ela ligado pela gratificante lembrança de certos cachorros-quentes imaginados pela prima Diva. Ela gostava de comprar linguiças escolhidas de carne de porco e toucinho que eram confiadas ao dono da padaria para inseri-las em pães que ficavam prontos com a primeira fornada das onze da noite. Chegavam quentes, dourados, cheirando a campo ensolarado e a trigais maduros, bons de começar a roer pelos bicos, progredir vagarinho naquela massa crustilhante por fora, na casca torrada e macia por dentro, no miolo mais tenro e oloroso que flor carnuda como a da magnólia — progredir cuidadosamente até dar numa das pontas da linguiça que logo vinha com seu gosto eloquente e o ardido de sua pimenta — complementar o sabor mais brando do pão que a envolvia. Essa moda da d. Diva pegou no bairro e seu Menin já não tinha mãos a medir com as encomendas. Outro que ficaria na lembrança do Egon, e para sempre, era o referido César Burnier. Ainda vinha a ser seu parente longe pois filho da que ele se acostumara a chamar de prima Nhanhã — que era a esposa do engenheiro Clorindo Burnier Pessoa de Melo, de Juiz de Fora. O César fora apresentado ao Egon pelo Nava e tinham ficado muito companheiros durante a vida de estudantes pois os dois gostavam da palestra e da poesia do primeiro.

Os itinerários do Egon eram obrigatórios. Ele se acostumara a fazê-los a pé. Pela manhã, para ir à Santa Casa, continuava Padre Rolim até à esquina de Ceará, onde dobrava à esquerda e batia dois quarteirões e meio até aos pórticos do hospital. Quando não tomava esse caminho, descia Bernardo Monteiro e caía direto na praça Quinze. Ao seu fundo, dominava a massa do nosocômio. Quando depois do almoço, saía para o Centro de Saúde — sua era a direção poente da Padre Rolim. Desembocava em Mantiqueira, atravessava suas larguras, descia a rampa de Carandaí. Se tinha pressa, pegava Guajajaras até João Pinheiro. Se estava em ânimo de flanar, seguia Afonso Pena, dobrava em Álvares Cabral, transpunha Afonso Arinos e subia João Pinheiro até sua repartição. Findo o expediente, era por Goiás que chegava ao quarteirão por excelência de Bahia e logo ao Bar do Ponto e Afonso Pena até à praça Sete onde dava volta na esquina de Rio de Janeiro e chegava ao consultório. Manhã, quando decidia ir à Santa Casa por Ceará, só esse propósito já era bastante para a criação das resultantes físicas da angústia antecipada do que ele ia passar. É que tinha de despir seu presente, anular sua experiência e reassumir estado de espírito infantil — porque os dois quarteirões desta rua (de Padre Rolim à praça Quinze) tinham sido descobertos nos seus onze, doze anos — numa manhã de escapula cidade afora. Isto lhe era minuciosamente devolvido pela recriação do tempo passado — tão cedo ele fazia pião e entrava em Ceará. Ah! ofegava do peito, palpitava do coração, suava frio de testa e mãos — fios dágua escorrendo pelas costas na mesma angústia desmoronamento fragor e rugir de chamas que Stevenson pôs no Doutor Jekyl à hora em que ele virava no Mister Hyde. Um pânico inglês também tomava o Egon na transformação em que ele dava seu último passo de adulto em Padre Rolim e já punha pés pueris na esquina de Ceará. E ele marchava na claridade que despencava em catadupas do sol de assombro, retomava a impressão desértica que lhe sugeriam os baldios e os muros mortos daquela ponta de rua. Tinha a impressão de estar num areal, numa estepe, num pampa infindável onde o dia jamais teria fim com aquele sol estacado ao gesto mágico dum Josué. O céu era outro descampado imenso, imóvel da parada do astro e da falta dos ventos — duro e mineral — calota de turquesa inexorável. E ele tremia no claro dia — tiritava e tremia à ambiência de horror sem causa aparente que se lhe transfundiria depois na alma — idêntico! — à leitura de O escaravelho de ouro — a novela cheia da lógica geométrica e treslida, do vácuo de insólito e despenho e da precisão incisiva e onírica nela postos por Edgar Allan Poe. E as duas coisas misturar-se-iam na sua alma. Lendo ou relendo o conto do escritor americano, ele tinha-se outra vez o menino espavorido no dia hiante da rua Ceará. Descendo esse logradouro ele era atirado de chofre na prodigiosa ficção. Aquilo era inevitável mas — graças a Deus! — só durava distância de dois quarteirões. Ao fim destes, as palmeiras-imperiais da frente da Santa Casa logo varriam todas as fantasmagorias do azul do céu logo posto em movimento. O dia prosseguia no tempo e os sons recomeçavam suas escalas. Apareciam nuvens de passarinhos. E sua infância derretia novamente, ele se reassumia, enquanto o trom da velha concha morria morria morriainho moído moinho inho… inho…

O caminho por Bernardo Monteiro era repousante como banho de imersão nas sombras verdes aquários de seus fícus gigantescos. Tal impressão líquida é tão grande que se estranhava quando ave esvoaçava entre galhos raios de sol — entre molezas de algas. Não vê? se esperava é peixes deslizando… Nas mãos de mil dedos dos fícus o tempo não passa e Belo Horizonte permanece segura naqueles enovelados de galhos. Encantada ali. A luz do dia coleia desvia ziguezagueia até o solo que ela mosqueia — o solo pardo. Talitiqual os pelos amarelos fazem ao couro roupagem real dos tigres. Essa via era a opção do Egon quando ele tinha de ir à Faculdade de Medicina, ao Hospital São Vicente. Ambos, hoje, só lembrança porque inexplicavelmente demolidos como se houvesse o propósito de exorcismar aqueles lugares das sombras favoráveis de Cícero Ferreira, Aurélio Pires, Marques Lisboa, Carleto Pinheiro Chagas que habitavam as paredes derrubadas da primitiva faculdade; as de Davi Rabelo, Zoroastro e Melo Teixeira — as do antigo São Vicente. E onde acolher-se-ão? as de Borges da Costa, Luís Adelmo Lodi e Mário Penna — quando a picareta inimiga da memória médica da capital de Minas fizer ruir os muros do Instituto de Radium. Verdade, verdade, nada disto — tampouco Pronto-Socorro, Hospital Carlos Chagas, Faculdade de Ciências Médicas, Hospital da Previdência, o Maria Guimarães, o Dispensário Central de Lepra, as dependências do Ministério da Agricultura que ocupam mais de uma quarta parte do que seria o parque Municipal (de cuja área os governadores do estado e os prefeitos de Belo Horizonte dispuseram ao seu belprazer como se se tratasse dos terreiros de suas casas) — nada, nada devia ter sido ali construído. Mas foram… Então deixá-los ficar… Não arrumar mais como foi feito na outra quarta parte (a da margem direita do Arrudas) onde Assis Chateaubriand e Francisco Sales limitam os quarteirões formados por Andradas, Conselheiro Rocha, Itambé, Aquiles Lobo e Geraldo Teixeira da Costa — que tudo devia ser parque nos tempos de Belo Horizonte mas que hoje ajudam a compor a paisagem urbana do “Triste Horizonte” de Drummond e de todos que curtem a cidade que foi tão amorável… É só não continuar a desfigurar e deixar ficar o que já não tem remédio.

Os caminhos do Egon para o Centro de Saúde davam-lhe todo o parque para rentear desde a zona de Mantiqueira onde fora a Limpeza Pública e tinham antes os Esportes Higiênicos — clube que florescera nos anos 10 e que ficava naquela avenida mais ou menos onde hoje, o Pronto-Socorro. O médico gravou de tal maneira aquela paisagem urbana que mesmo tudo mudado como está, ele recoloca nos seus devidos lugares e com a alma antiga o que vinha ao seu encontro quando ele ia de casa para o Centro de Saúde e descia deste para o consultório. Essa ressurreição se processa sempre que ele volta a Belo Horizonte e põe suas solas sobre trecho de Mantiqueira cujas calçadas conservam a mesma pavimentação de há mais de meio século. São uns ladrilhos toscamente feitos a cimento. Têm no centro um octógono prolongado para cima e para os lados por quatro retângulos que se continuam com os do outro ladrilho vizinho. Nos quatro cantos de cada, as quatro bricas alongadas que somadas às que existem nos outros, compõem uma estrela de quatro pontas. Todo o centro do octógono é cheio de depressões que quando chove e seca — deixam desenhos brilhantes de poças dágua dispostas geometricamente no chão. Cada, um centímetro quadrado de espelho cortado regularmente com a ponta dum diamante de que ficasse um pouco — dissolvido naquele líquido. Até hoje quando o Egon põe seus velhos passos nestes ladrilhos vai chamando mentalmente os antigos moradores das casas quase todas mortas e de que algumas milagrosamente estão de pé balizando e dando distâncias exatas e lugares certos para o das recordações — que de chofre se erguem, como em filme de terremoto rodado às avessas. E o médico só passa hoje, ali, de alma antiga e com desejo de saudar pessoas e casas com o bom dia! de antanho. Bom dia! Grupo Escolar D. Pedro ii. Bom dia! Gás Pobre, Distribuidora, casa do dr. Orozimbo, casa do maestro Flores, do dr. Balena. Bom dia! Fórum — que pena! a reforma que aviltou tua cúpula. E saudar assim o Automóvel Clube, a outra Delegacia Fiscal — os dois que faziam os pórticos de Álvares Cabral. E praça Afonso Arinos, a casa do senador no 19, as casinhas pequenas que vizinhavam com ela, subindo uma João Pinheiro cheirosa das suas magnólias ainda. Por Goiás, as casas do Bié Prata, de d. Alice Neves, o quarteirão mais importante de Bahia. E Bar do Ponto e o túnel dos fícus derrubados por artes dum mouro fazedor de deserto. Velha Matriz de São José com o céu por trás. Ah! que belo horizonte — cada vez empurrado para mais longe, mais longe e hoje só visível como antigamente, pelos que viajam até as distâncias suburbanas de Laguna, Ressaca, Serrano… Ah! Esses nomes até que são bonitos, mas não são nomes do Belorizonte do Egon, de Carlos Drummond, do Emílio, do Almeida, do Nava, do Cavalcanti, do Chico Pires… Ah! é outra cidade. Saudade…

 

 

A intenção inicial do Egon quando viera transferido do Desterro para Belo Horizonte era morar em hotel. Seu encontro com o Nava no trem levara-o a aceitar a hospedagem que lhe oferecia o primo em Padre Rolim. Sempre dizia que tinha de ficar sozinho, sempre instado pelos parentes a mais uns dias, quando deu conta de si, estava mesmo era instalado na casa da prima Diva, atraído pela convivência do primo e grande amigo, das suas manas Isa e Nete e pela dona da casa que fora logo tomando conta de suas coisas, pregando-lhe os botões, costurando-lhe as injúrias da roupa branca, das meias e paparicando aquele filho mais que lhe entrara em casa. Quando foi dos abscessos periamigdalianos que o afligiram no princípio de 30, a d. Diva se desdobrara — espoando-lhe as comidas, reduzindo-as a sopas e purés deglutíveis pela garganta sensibilíssima, preparando-lhe as compressas de água fria e os gargarejos quase a ferver, medicando-o a tempo e a hora. Aquela bondade tocara o Egon e ele um dia, brincando, chamara-a ao jeito de tratá-la dos sobrinhos dela, filhos da Risoleta. Chamavam-na de mãe — simplesmente, deixando o “mamãe” para os filhos.

— Prima Diva, acho que dagora em diante vou começar a tratar você do jeito dos filhos da prima Zoleta. Vou chamar também de mãe. Só que para ficar diferente deles vou conservar o prima. Mãe-prima fica ótimo…

A d. Diva aprovou, riu muito e mãe-prima ficou sendo.

— Pois então já estreio hoje dando minhas ordens. O sapato que você mandou jogar fora não vai pro lixo não. Vai é botar meia-sola e rosto novo que fica como se tivesse chegado da loja.

D. Diva era a economia em pessoa e fazia durar um sapato o tempo de vida de três a quatro pares nas mãos… digo, nos pés de outros. Em vão as filhas faziam-lhe ver que aquele negócio de rosto novo, meia-sola, salto novo, sola inteira — acabavam por fazer o primitivo calçado virar noutro, ao jeito das facas quebra lâmina-muda lâmina, quebra cabo-muda cabo, quebra lâmina…

— No terceiro concerto já não é mais a mesma faca…

Pois a d. Diva não entregava os pontos. Em torno dela tudo tinha de fiar fino naquela sua ideia de aproveitar o máximo de cada coisa. Elle se coupait ses liards en quatre. Não por sovinaria mas por economia.

— Pois o sapato vai para o remendão e tem mais. Essa noite vamos todos ver tia Joaninha que a Marocas mandou dizer que não está bem e o seu Egon vai conosco conhecer essa parenta que é mais dele do que nossa porque era prima-irmã do primo Elisiário.

Pois à noite bateram-se todos para a Floresta. A tia Joaninha era prima da mãe de d. Diva. Morara sempre à Floresta, com a família do coronel Júlio César Pinto Coelho. Com o falecimento deste em 1916, sua filha Mariana Carolina (Marianinha) que professava, como o pai, um ateísmo desenfreado e proclamava-se anticlerical convicta, aos poucos fora fraquejando, indo à missa vez que outra, depois todos os domingos. Começara a receber visitas de filhas de Maria da Floresta, das dominicanas do Santa Maria, da Mrs. Dobson irlandesa católica e agregada ao colégio dessas irmãs e finalmente a Anita Monteiro Machado dobrara-lhe as últimas resistências e fizera-a filha de Maria aí por volta de 1918 ou 19. Começara, a partir de então, vida cada vez mais devota, a princípio com missas diárias, depois com comunhões diárias. Abandonara completamente suas atividades culinárias, suas virtuosidades musicais e agora não saía mais das irmandades, e era assídua em visitas às dominicanas, às irmãs da Santa Casa, às do Sagrado Coração, às do Orfanato Santo Antônio. E punha no beatério o mesmo entusiasmo que pusera outrora na negação de Deus. Empreendera demorada viagem para consultar seu parente o padre Carlos Carmelo de Vasconcelos Mota e em 1921 estourou a bomba. Viajou secretamente para a Bahia, sem acompanhantes e sem se despedir de ninguém. Deixou uma carta à sua prima Diva em que anunciava que, desiludida de tudo, ia professar no Bom Pastor, passar o resto de sua vida em penitência pelos pecados dos seus — que eram a cruz que tomava sobre os ombros. Deixava a tia Joaninha com casa para morar e boa pensão garantida pela Ordem do Bom Pastor. As irmãs dessa ordem a tanto tinham se comprometido — mas não cumpriram o trato. Primeiro mudaram a velha Pinto Coelho da casa que lhe ficara para moradia, para outra menor. Depois cortaram a mesada e forneciam-lhe apenas marmitas de comida contada que eram entregues cada vez em menos e pior — como esmola dada de má vontade. Toda a fortuna milionária do velho Júlio Pinto passara para a ordem e a tia Joaninha ficara a neném. Safava-se mal e mal com uns restos de economias que tinha, o aluguel dum chalé que possuía. A Melila Elisa, sua sobrinha, fora obrigada a empregar-se e era funcionária da Estrada de Ferro Oeste de Minas. Moravam as quatro juntas, tia Joaninha, a Melila, a Marocas e sua irmã Nina. Era tudo o que restava da casa cheia do coronel Júlio Pinto…

D. Joana Carolina Pinto Coelho Júnior (como ela se assinava) era filha de Modesto José Pinto Coelho da Cunha e de d. Joana Carolina (Pereira da Silva) Pinto Coelho. Devia ter nascido pelos anos 50 do século xix e ia neste 1929, à ocasião da visita que lhe faziam os primos, pelos seus setenta e lá vai beirada. Era solteira, pessoa muito inteligente, mãos de fada para coser, bordar, fazer flores com veludos e sedas velhas, ramos de folhas e retratos com cabelos de defunta; grande doceira para peças secas ou em calda. Memória de anjo, sabia toda a crônica familiar, era linhagista reputada. Tinha o título de normalista — uma das primeiras dessa qualidade em Minas. Exerceu o magistério, tendo tido um colégio em Juiz de Fora. Sua mãe depois de viúva e ela tinham ido para Belo Horizonte, onde moraram sempre com o coronel Júlio Pinto e sua filha Marianinha — respectivamente sobrinho de uma das Joanas Carolinas e primo muito próximo da outra. Primo carnal, como se diz, por serem filhos de dois irmãos casados com duas irmãs. Morta sua mãe a 11 de fevereiro de 1909 e o Júlio Pinto a 6 de março de 1916 — a tia Joaninha, muito apegada à Marianinha, continuou parte daquele resto da família do seu tio Luís da Cunha, apesar de ter outros irmãos que eram de nome Modesto, Carlos, Modestina, Elisabeth (siá Beta). O Nava, no bonde da Floresta ia explicando ao Egon essa lenga-lenga de parentes para ele se situar bem quando conhecesse aquela velha prima-irmã do farmacêutico Elisiário — seu pai.

— É sua prima em segundo grau, mais perto do que minha que é em terceiro. Mas você não deixe de chamá-la de tia Joaninha — senão ela implica… E olhe que é velha brava e que gosta de dizer a cada um as suas verdades… Todo cuidado é pouco… Mas no fundo boa pessoa, muito parenteira e sempre pronta a servir sobrinhos, primos, agregados como é o caso atual da Marocas e da Nina. Só que não é desta época. Ela age e vive como se estivesse em Santa Bárbara do Mato Dentro, tempos de sua avó ou no Ribeirão do Carmo da bisavó. Minha avó d. Lourença, minha bisavó d. Maria Corda — diz ela. As duas são nossas antepassadas do tempo da Colônia. A última é Córdula mas não há meio da língua dela dizer assim: é sempre Corda.

— Que nome horrendo! Córdula! Faz parelha com Úrsula, Tareja, Urraca, Memoranda…

— No princípio também achei. Até quis saber o significado e a origem. Perguntei ao mestre Aurélio. Ele deu busca nos seus dicionários mas encontrou nada. Depois disse que pelo rumo devia significar cordata, a que concorda, a que aceita. Seria talvez uma invocação da Virgem da Anunciação — quando conformando-se à ordem do Senhor trazida pelo Anjo… Ecce ancilla… Assim fica bonito. Se é que é assim — porque o nosso professor disse que era apenas hipótese dele, sem fundamento em texto…

Ao entrarem em casa da prima, o Nava que há muito lá não ia, ficou espantado com o aspecto gasto, usado, desbotado de tudo que ele outrora conhecera escarolado, polido e reluzente na casa do Júlio Pinto. As poltronas no fio, os quadros com os retratos a óleo caminhando para uma cor uniforme, um pardo dado pelo bolor e pela poeira. Passando na sala de jantar, reparou no aparador vazio sem a famosa prataria dos tempos da abastança. Foram encontrar a velha prima deitada, cabelos separados no meio, postos em dois amarrados, um de cada lado. Testa lisa e nua. E ela estava, assim, o retrato da sua avó d. Lourença, cujo daguerre pendia à sua cabeceira. Depois dos cumprimentos ela quis logo saber quem era o Egon. D. Diva respondeu.

— Filho do seu primo primeiro Elisiário, tia Joaninha…

— Ah! Já sei, o do Desterro, o que casou com nortista… Hum!… Como isso deu que falar, gente… Também, era o segundo Pinto Coelho que casava fora de Minas. Depois o costume pegou. A primeirona tinha sido a Inhazinha, depois suas filhas, uma neta. Olha a Iaiá, a Jandira, a Alódia, ocê, sá d. Diva — tudo misturando com cabeça-chata e dando gente sem tipo da nossa família… Tudo morenão… Tudo cara esparramada…

Como de costume a velha parenta disse o que queria e ninguém contestou. Mas falava sem sua antiga voz autoritária, interrompendo-se muito da falta de folgo. Estava cor dos marfins antigos e os seus olhos, dum azul duro de conta, pareciam cobertos da mesma fina poeira que pousara sobre os móveis, os quadros e que lhes impusera tons de cinza. Deu notícias de todos os outros parentes, deteve-se mais sobre o primo Juquita e tornou-se interminável quando falou da Marianinha de quem ela retirara esse nome e só chamava a nossa irmã Maria do Santo Tabernáculo. Depois queixou-se do Bom Pastor de Belo Horizonte, do nada que lhe davam, da qualidade da comida que lhe forneciam.

— Basta dizer que estou comendo da mesma panela das penitentes… Tem ano que não sei o que é um ovo… Pra vocês acabarem de crer…

— Por que que a senhora não manda contar tudo isto à Marianinha?

— Adianta? A Tabernáculo mandava no convento antes de entrar, montada na cobreira do Júlio que deu depois pra irmandade. Agora que ela não tem mais nada, é soldado raso sem voz ativa. Mas deixa pra lá qu’estou purpouco… Tem importância não…

Desse dia em diante a d. Diva passou a visitar a prima quase todos os dias e se faltava a esse dever que se dera era dia sim, outro não. O Pedro Nava ia com a mãe ou só, revezando-se à cabeceira da doente com outro primo médico, o Oswaldo Pinto Coelho, que era sobrinho, filho do mano Modesto. Quando as coisas começaram a ficar pretas, a doente a cair em sonolência e sua úlcera crônica do pé a dar uma supurina de mau caráter o Nava quis chamar o Ari Ferreira. Mas predominou a ideia dos que preferiam o professor Tubarone. Esse fez-se esperar uns dois dias e apareceu no dia 29 de julho. Examinou sumariamente a doente já em coma e aproveitou para ministrar uma lição, mostrar sua erudição.

— Não partilho da opinião dos meus queridos discípulos. Não acho o caso tão grave assim. É preciso principalmente tratar essa supuração do pé. Vou dar para isto o Electrargol que é prata e mais moderno que o nitrato de prata que Trousseau preconizava aos seus diabéticos. Dois coelhos duma cajadada… Um pouco do arrenal, que era caro a Siredey; um tantinho de sesquicarbonato de amoníaco, como está no método de Hodges, e o cloreto de sódio, base da terapêutica de Nasse — mas na forma atualizada do soro salino hipertônico na veia. Que acham vocês?

— O dr. Ari Ferreira está dando insulina com muito bons resultados nestes casos e se o professor consentir… — começou o Nava.

— De maneira nenhuma. Sobretudo nada de insulina ou não me responsabilizo por coisa alguma. Façam o que lhes diz seu professor e garanto que a doente em dias estará sentada.

O Egon ficou com aquele nome de Trousseau tão repisado pelo Tubarone e foi a esse autor assim que chegou em casa. Encontrou todo o processo de tratamento do Tubarone no Traité de thérapeutique et de matière médicale daquele autor e Pidoux — na edição venerável de Asselin, de 1877. Boas múmias… — pensou. O tratamento do Tubarone instituído, a doente já nas primeiras horas começou a inchar, a apresentar abalos musculares e a respirar num Cheyne-Stokes de livro, destes de mostrar em aula. Ficou assim até à madrugada de 31 de julho para 1o de agosto em que aquele ritmo respiratório desapareceu de repente. A Melila quis aproveitar a melhora para ajeitar a cama e aproximou-se. Sua tia já era com Deus. Seu enterro foi no dia 1o de agosto de 1929. Tudo quanto era parente de Belo Horizonte, Sabará e Santa Bárbara apareceu para o velório e o funeral. O féretro saiu às quatro horas e a encomendação foi feita na igreja de Nossa Senhora das Dores, na Floresta, que dava um lado para a rua Silva Jardim e para a casa do Carlos Drummond. O Nava considerou isto e lembrou-se da tarde que passara com o amigo no galinheiro dele. Era um fim de dia como aquele. Tudo meio nevoento — que agosto estava entrando e o tempo da fumaça. No Bonfim, a tia Joaninha foi levada para a cova, o Nava e o Egon fazendo questão de segurar as alças do caixão. Revezavam-se com outros primos, com o Nelo, porque a sepultura era longe — quadra 13, carneiro 61. A cova estava aberta à espera de mais carne de Pinto Coelho pra comer. Já se saciara com outras cujos restos estavam ali espalhados no monte da terra que corroera de ferrugem os baús de ossos que derramavam seus conteúdos. O corpo da tia Joaninha, amortalhado no hábito do Bom Pastor, ia sumir ali e virar ossos iguais aos que se viam de mistura com a terra vermelha. Eram os de sua mãe, a primeira Joana Carolina, de sua irmã siá Beta, do sobrinho Durval e os do primo Napoleão Bonaparte Mentzerg. A d. Diva, seu filho mais velho e o Egon não arredaram pé até ao fim, fiscalizando que não ficasse de fora nenhum dos restos ali jogados. Já todos tinham ido embora e ela fez questão de serem da sua bolsa as notas de 10$000 dadas uma a cada dos quatro coveiros. Quando tomaram o bonde Bonfim para voltarem para a cidade, ainda havia riscos de vermelhão no horizonte. Mas as lâmpadas da iluminação pública já estavam acesas. Chegaram a Padre Rolim noite fechada. O jantar foi triste. As meninas e os moços calados apesar dum Chianti que o Egon tinha ido buscar no botequim da esquina de Álvares Cabral com a praça.

— Para levantar o moral, mãe-prima.

Esta, durante a refeição, fora a única a falar. Lembrando o que lhe ocorria da morta. Sua beleza em moça. Seus tempos de Juiz de Fora com o colégio, a pimenta-malagueta passada na ponta dos dedos de quem roía unha, o cocô de galinha no cabo dos lápis e canetas dos que tinham o hábito de levá-lo à boca. Sua lendária severidade com os deslizes da carne. O espírito gregário e parenteiro da defunta em cuja casa havia sempre visita de primo.

— Pois é, ela foi o último elo que prendia porção de parentes uns nos outros. Acabada sua casa vocês vão ver. Cada um pro seu lado e os primos sumindo. Um eu faço questão de cultivar — o primo Juquita. Pra mim ele e a prima Rosinha são mesma coisa que irmãos.

O primeiro serviço dado ao Egon na Secretaria de Saúde, em Belo Horizonte, não foi bem tarefa de médico mas de veterinário. O dr. Aires Alarcão Garrido de Cadaval recebera-o amavelmente, rindo como sempre — y siempre con su aire milonguero guapo, y compadron. Depois de fazê-lo sentar, do clássico cafezinho — desfechou-lhe a tacapada na cabeça.

— Pois é, meu caro doutor — estou muito satisfeito com sua volta para a sede. Ontem mesmo estive conversando com o Argus e combinando onde vamos lotá-lo. Um lugarzinho que é verdadeiro privilégio… Trabalho leve, só pela manhã, o resto do dia folgado… Quando falo o resto do dia devia dizer é o resto da manhã, já que seu trabalho vai só de cinco às sete horas. Pode frequentar seu hospital, descansar de dia, noite livre…

— Não diga, dr. Garrido! Que pechincha é esta?

— O Matadouro. Fiscalizar o abate, examinar as vísceras, ver as condições de sanidade dos bois abatidos…

— Não esquecendo das senhoras vacas — soltou o médico, para mostrar que não estava entrando naquele carrinho de deboche do seu vistoso chefe. Este, não dando o braço a torcer, fez-se muito sério. Continuou.

— Sim, de todas as reses e afastar severamente toda carne suspeita, fazendo-a inutilizar imediatamente com querosene, pelo seu guarda sanitário…

— Que estou certo será o meu velho cambono Anacleto Severo…

— Acertou em cheio, meu bom doutor. Amanhã às cinco menos um quarto ele passará na sua porta com viatura posta à sua disposição… só para o serviço — ou seja, entre cinco e sete.

— Pois acredite o caro chefe que estou encantado com as novas funções. Será uma boa ocasião de recordar um pouco da minha anatomia patológica in anima vaccae… Vou fazer o meu possível — mas o meu possível mesmo!, para responder, à altura, tanta gentileza sua e do meu, do nosso — querido amigo o dr. Argus Terra. Os meus respeitos, dr. Garrido de Cadaval — terminou o jovem médico levantando-se.

— Os meus pa-pa-pa-parabéns, dr. Egon.

Como sempre, o médico desceu para desabafar com seu velho amigo Cisalpino. Em Cláudio Manuel, encontrou-o de saída para o Instituto Raul Soares. Então iriam juntos até lá.

— Ótimo, Cisalpininho. Vou com você. Boa ocasião para topar o Galba, o Sílvio Cunha. E como vão? suas relações com o Lopes Rodrigues.

— No momento bem. Estamos em fase de alta na nossa convivência “maníaco-depressiva”. E você como vai ficar? na Saúde.

— Adivinha, Cisalpino. Te dou um doce.

E o Egon desabafou numa torrente de injúrias ao Bicho Cadavalargus. No Matadouro. Em horário que me esculhamba a noite de véspera e o dia seguinte. Estou sem saber como sair dessa enrascada.

— Se eu fosse você ia logo ao Olinda, ao Fabinho…

— Não. Não serve. Não posso ficar eternamente de choro no colo do presidente. Isto não fica assim. Ainda não sei bem de que maneira, mas prometi e vou dar o troco dessa sacanagem àqueles putos. Alguma saída hei de achar.

No outro dia, madrugada, estava uma das piores furrecas da Secretaria à porta de Padre Rolim 778. O Egon já banhado, vestido e café tomado, esperava à varanda, fumando um cigarrinho. O motorista, seu velho conhecido, saudou risonhamente. O seu Anacleto foi sério e respeitoso. Bateram-se para as bandas do Quartel, desceram Álvares Maciel, depois a atual Ponta Porã até perderem-se nuns poeirões sem calçamento das margens do Arrudas — onde ficava o velho Matadouro. Mas qual Matadouro, nem meio Matadouro. Eram uns currais sórdidos de onde eram tocadas as reses mugindo — a ferrão e porretada na direção de uma passagem cercada onde os bichos tinham de entrar em fila de um. No fim estavam encarapitados em tábuas laterais uns latagões descalços, descamisados e calças arregaçadas armados de malho de quebrar pedras. Os bichos iam desfilando até seu alcance. À primeira porrada pra trás dos chifres, trocavam as pernas, à segunda arriavam e eram arrastados pelos espostejadores até um sistema de traves em que eram içados pelas patas posteriores e um bando armado de facalhões e machetes ia logo sangrando, esfolando, abrindo, eviscerando e espostejando num átimo. Os bois não estavam mortos, ainda arquejavam de flanco e já o ferro afiado lhes descia daltabaixo, abria rendengues, fazendo rolar tripas, fígados, rins, corações e bofes. O Egon notou um grupo de escaveirados sentados por perto a quem eram servidos copázios de sangue fresco logo bebidos sofregamente como vida. Eram tuberculosos, opilados, papudos e anêmicos de todas as anemias fazendo sua medicação primitiva e dracular. Saltavam chifres e tampos de crânio e miolos de marfim iam se juntar às vísceras no chão do lungarrudas. Uma lama de sangue escorria para dentro do ribeirão, logo mais vermelha e engrossada por afluentes de sangue vivo. Entre mugidos, coágulos, gritos dos magarefes, o Egon — sem paletó, a que o seu Anacleto passara um avental de pano grosso e outro de borracha feito o dos radiologistas, chapéu na cabeça, luvas de Chaput, ia dando cortes ao acaso em vísceras e músculos. Bofes tuberculosos identificara em três abatidos.

— Querosene na carne destes, seu Anacleto…

O guarda com lata de tampa furada inutilizava as postas.

— Mas, doutor, isto é um crime, esta carne está boa, tem nada…

— Quem é o senhor? Trabalha aqui?

— Não senhor, seu doutor, sou açougueiro do bairro e também conheço muito bem doença de bicho… Não é de hoje que frequento o Matadouro…

— E aqueles outros? seu Anacleto.

— Também são carniceiros, doutor, e vêm aqui para…

O Egon compreendeu perfeitamente que ali havia marosca para passar carne deteriorada ou dormida mais barato àqueles fregueses. Que devia correr gorjeta naquilo tudo. Teve no primeiro ímpeto a ideia de correr com os estranhos de dentro do que se chamava matadouro. Mas logo ideia luminosa passou-lhe pela cabeça e ele viu como poderia se safar daquele trabalho de merda que lhe tinham dado. Foi depois às postas de carne, abrindo-lhes longos lanhos com seu facalhão. Já nem se dava ao trabalho de dar explicações e fazia ouvidos de mercador aos protestos dos carniceiros e às observações dos empregados da matança.

— Fora com esse quarto, seu Anacleto. Pra beira do rio e querosene em cima a valer. Pra encharcar…

— Mas, doutor…

— Mais esta carcaça toda, seu Anacleto. Querosene.

Afinal pelas sete e meia o serviço estava acabado. O médico meio tonto da hecatombe, do cheiro do sangue, da bosta de boi, da carne crua foi a um barracão tirar o avental de borracha, o de brim, as luvas. Vendo que uma espécie de capataz daquela porcariada ia pendurar nuns pregos da parede suas luvas e coberturas de trabalho chamou-o às falas.

— Não, senhor! Roupa suja com tudo isto e luvas e protetor de borracha muito bem lavados e secos para amanhã. Tudo limpo.

— Mas, doutor! tem muda não. Os que vinham aqui olhavam de longe e nem vestiam avental. O guarda é que fazia o serviço, isto mesmo à distância deixava marcados o que nós devíamos inutilizar com querosene. Hoje o senhor gastou duas latas e só temos de reserva mais uma. São três por mês e…

— Pois o senhor requisite mais querosene e mais aventais agora e entregue a requisição ao seu Anacleto. Até amanhã… O senhor pegue os papéis, seu Anacleto. Tou lhe esperando no carro.

Dez minutos depois seu Anacleto aparecia com a mão carregada de papagaios. Tocaram outra vez para Padre Rolim.

— Até amanhã. E essas requisições para o Almoxarifado hoje mesmo, seu Anacleto. Quero esse material no carro amanhã. E essa draga um pouco mais cedo, esperando na minha porta e não eu, na varanda de casa, esperando pelo automóvel.

Chegando em casa o moço foi a outro banho, outra roupa, que queria ficar livre da morrinha do Matadouro. Almoçou com ar de quem tinha descoberto a pólvora e a prima Diva vendo-lhe o semblante satisfeito ainda brincou.

— Você tá com cara de quem viu passarinho verde, menino. Aconteceu alguma de boa no novo trabalho.

— Sim, senhora, mãe-prima. Descobri o meio certo de me livrar daquela porcariada e de dar uma rasteira no Cadaval e no Argus — das de não esquecer e que eles vão guardar na cachola o resto da vida. Grandes bestas…

— Olha, Gonzinho, cuidado! Com chefe não se brinca…

— Deixe por minha conta.

Depois do almoço o médico trancou-se no escritório e pôs-se a rascunhar uma produção laboriosa, tal o número de chamadas laterais, de hesitações na escrita, correções no texto e idas ao dicionário. Como de seu jeito ele só começava outro período depois de ter corrigido e dado a forma menos ruim e menos obscura possível ao anterior. Assim tudo que ele fazia era lento e de composição arrastada. Como ele próprio dizia, às vezes, uma frase levava semana para parecer-lhe compreensível e sua escrita era demorada como um parto distócico. Ele sempre declarava que não daria nunca para jornalista. Levou uma semana naquele esboçar, em ler o que escrevera, ao Nava, receber dele sugestões, riscar, substituir, cortar aqui, emendar acolá, acrescentar mais adiante. Toda madrugada ia para o Matadouro assistir o massacre. Voltava, limpava-se e ia trabalhar. A prima Diva nunca deixava de brincar.

— O Gonzinho tá escrevendo um romance do tamanho do Quo Vadis

— Maior e melhor, mãe-prima. Quando estiver pronto, mostro…

Mostrou, depois de ter levado a coisa para ser passada a limpo e tirados três originais cada um com duas cópias na filial da Escola Remington de Belo Horizonte. Estava pois com nove exemplares do calhamaço de oito páginas — espécie de relatório sobre o que ele observara no Matadouro. À noite leu alto para os primos. Era uma exposição que ele pedia licença para apresentar na qualidade de crítica construtiva, visando a proteção da saúde do povo de Belo Horizonte e denunciando tudo o que vira no lugar de sacrifício das reses. Descrevia a imundície e o rudimentar do cercado onde se dava a matança, o cheiro nauseabundo, as revoadas de urubus que limpavam restos de carcaça, a lama de sangue escorrendo para o Arrudas, os animais ainda vivos e sendo já espostejados, os compradores de carne doente ou de sobras de véspera, que iam vendê-las como material recente, o escândalo dos açougueiros intervindo na matança, seu mais que provável conluio com os encarregados do abate das reses. Para este ponto ele esclarecia que requeria abertura de inquérito administrativo que pudesse apurar a veracidade ou engano de suas suspeitas. Mais, que pedia seu afastamento provisório do Matadouro Municipal até a tomada de medidas consentâneas. O seu ofício era dirigido ao excelentíssimo senhor dr. Raul d’Almeida Magalhães, dd. secretário de Saúde do Estado de Minas Gerais e terminava bombasticamente pelo clássico — Queira vossa excelência receber as expressões de meu maior respeito, superior admiração e distinta consideração.

— E agora, Navinha, preste atenção ao que vem depois de minha assinatura, no rodapé da última página e seguido de minha rubrica jebc. In cauda venenum — como diria nosso mestre Aurélio. Tá qui o gancho do escorpião: com cópias para sua excelência o senhor presidente do estado, para o presidente da Sociedade de Medicina e Cirurgia de Belo Horizonte, o presidente da Sociedade Protetora dos Animais (sucursal de Minas Gerais), o presidente do Centro Acadêmico Cícero Ferreira (da Faculdade de Medicina da Universidade de Minas Gerais), para o dr. Rodrigo Melo Franco de Andrade, redator de O Jornal do Rio de Janeiro, para a redação de O Estado de Minas de Belo Horizonte — aos cuidados do dr. Afonso Arinos de Melo Franco. O exemplar para o Secretário Raul d’Almeida Magalhães vou entregar amanhã, à alimária do Cadaval. E para rimar: que tal?

— Está ótimo. Sua jogada é perigosa mas é a única possível. Ou as bestas do Cadaval e do Argus metem o rabo entre as pernas e o papel não chega nem ao Raul e você ganha a parada ou eles rebifam, dão seguimento ao caso e desta vez o Argus manda você pra Teófilo Ottoni. Mas a jogada vale a pena e se você vencer eles jamais pensarão em aporrinhar outra vez. Arrisque, Gonzinho…

Foi ainda a mesma opinião que emitiram o Chico Pires e o Cisalpino, consultados. No dia seguinte o Egon bateu-se para o gabinete do dr. Cadaval. Encontrou-o resplandecente de júbilo, vestido de claro, manicurado de fresco e exalando cheiro recente de barbearia, massagem e brilhantina. Muito satisfeito mesmo. Contou ao Egon que fora eleito membro honorário da Sociedade de Medicina e Cirurgia de Juiz de Fora e que breve seguiria para lá para o banquete que lhe ofereciam, a sessão solene e a entrega do diploma.

— O quê? Dr. Cadaval, que ótimo, hem? Meus parabéns, meus dobrados parabéns… E o senhor sabe? que não é título fácil de obter. É preciso muito valor mesmo e muita virtude. É uma espécie de canonização em vida… Há tempos foi negado a um médico, filho da terra, só porque num escrito ele ousara criticar certo figurão da política local. O caso até tomou aspecto desagradável porque o cientista Lobo Leite Cecê — solidário com o colega leviano — recusou-se à honra que agora lhe estão conferindo. Depois tudo esqueceu… Mas olha, dr. Cadaval — que já é distinção a que lhe fazem… Sim, senhor!… Mais uma vez, meus cumprimentos!

— Obrigado. Mas o que manda? o meu jovem colega. Vamos sentar. Às suas ordens — sou todo ouvidos…

— Nada demais ou que preocupe o caro chefe. São as irregularidades e deslizes que encontrei no Matadouro e de que dou ciência ao secretário, naturalmente por seu intermédio e deixando a decisão ao senhor mesmo sobre se deve fazer o papel subir ou se toma em pessoa as providências que peço. É por esse motivo que ouso insistir em que o senhor leia tudo com cuidado. Até minha assinatura e o que vem no rodapé só com minha rubrica.

O Cadaval olhou interrogativamente o moço, ao fim de sua frase sibilina, mas já este se levantava, despedia, pedia desculpas de tomar tempo e dava o fora. Na porta de vaivém atropelou-se com o Argus que entrava. Deu boas-tardes calorosas e contou ao que viera.

— Tinha até vontade que o senhor também tomasse conhecimento do relatório que eu trouxe para nosso chefe. Sobre o Matadouro. Até falo no nosso Anacleto. Pois muito prazer, dr. Argus. Até à vista…

O Egon foi para casa e começou a arder numa expectativa ansiosa. Um dia. Dois dias, três… e nada. Virava na cabeça todas as hipóteses. Chamava o primo para raciocinar com ele. A conclusão era sempre a mesma e os dois acordavam na perspectiva única.

— Se o Cadaval e o Argus não forem os cagões que eu estou pensando e se enfrentam o escândalo — estou fodido — dizia o Egon.

— E mal pago — rematava o Nava.

Mas ao quarto dia, à hora do almoço, estalaram palmas na porta da rua. O Egon correu, deu de cara com o próprio seu Anacleto — todo dourado na reverberação do dia de ouro.

— Boa tarde, dr. Egon. Tenho um recado. O dr. Cadaval mandou pedir para o senhor passar agora às duas da tarde no gabinete dele. E disse que é favor passar na hora certa. Até logo, doutor…

O Egon teve de conter-se para não ir imediatamente para a Secretaria. E precisou de uma energia sobre-humana para deixar-se atrasar um pouco e só entrar no gabinete do chefe às duas e um quarto. Fê-lo afetando um ar de nonchalance e deu com o Cadaval em pé, andando de lá pra cá e com um Argus — o mesmo ar concentrado com que o tinha visto antes, olho vivo e atento, o indicador direito atravessado debaixo das ventas como se estivesse sustentando um naso despencante.

— Boa tarde, dr. Cadaval. Às suas ordens. Olá! dr. Argus, o senhor por aqui? prazer em vê-lo…

O Cadaval impaciente e sôfrego foi logo entrando no assunto. Pegou o Argus por um braço e o Egon pelo outro e adiantou-se com eles para o grupo de couro. Foi logo perguntando.

— Dr. Egon, o senhor já distribuiu? as cópias que mencionou no relatório que me entregou para fazer chegar às mãos do Secretário.

— Não senhor, dr. Cadaval. E só o faria diante de hipóteses absolutamente impossíveis, isto é, primeiro o senhor não fazer subir meu ofício ao dr. Raul, segundo, o dr. Raul não tomar nenhuma providência diante da gravidade dos fatos que denunciei. Esperando, ainda não entreguei…

Os dois chefes do Egon (assim lhe pareceu) tiveram uma leve mudança de atitude, leve posto que perceptível — no sentido do alívio e da descontração. O Cadaval apertou um botão elétrico. Surgiu um servente a quem foi ordenado o café. Foi depois de saboreá-lo que largaram mão de falar no dia lindo, da temperatura adorável e voltaram ao assunto da conversa,

— Foi ótimo não ter distribuído, dr. Egon. Assim evita muita amolação para o nosso dr. Raul que já vive abarbado de problemas — coitado. Um inferno a situação política e os consequentes atrasos nas verbas federais da Profilaxia Rural. O que fizermos para poupá-lo será sempre pouco. E mais esse caso do Matadouro… Se a imprensa se apossa desse pratinho e mais os jornais da oposição e a folha do Carvalho Brito, estamos perdidos… Foi mesmo muito bom o senhor ter guardado as cópias do seu ofício, muito bom… Estive conversando com o Argus e agora nós dois queremos sua anuência. Que tal? suprimirmos seu relatório e nós mesmos tomarmos as providências que cabem? Hem?

— Sei não, dr. Cadaval… Olhe que estão vendendo carne doente e meio podre ao povo de Belo Horizonte e me aborreci muito verificando isto…

— Então o senhor não está satisfeito com a tarefa que lhe dei — não é?

— Não estou não, senhor. Aquilo é trabalho de veterinário. Eu sou médico e há um veterinário na Secretaria, nomeado para fazer o que me deram como tarefa e que está à disposição do gabinete do dr. Argus. O Borges, o Teobaldo Demóstenes de Miranda Borges.

— Eu tinha acabado de conversar com o Argus a este respeito. E vamos acertar o cochilo que houve trocando o senhor com o Teobaldo que estava no Centro de Saúde fazendo o Serviço de Polícia Sanitária. O Argus faz questão de corrigir esse equívoco e hoje mesmo vou proceder às duas transferências. Amanhã o senhor já estará de memorandum em punho. Está satisfeito?

— Muito satisfeito e grato, dr. Cadaval.

— Pois agradeça aí ao Argus que foi quem teve a ideia de fazê-lo delegado de Polícia Sanitária da capital.

— Resta agora o caso do Matadouro. Não será melhor esquecermos seu ofício e esperar agora as propostas de reforma partidas do próprio Teobaldo? Fica melhor para ele, é mais delicado de nossa parte. E evitamos aborrecer nosso chefe de todos, o dr. Raul d’Almeida Magalhães. Basta o que ele já tem como sarna pra se coçar… Ora graças a Deus! Entre mortos e feridos salvaram-se todos. Outro cafezinho?

O Egon saiu triunfante do gabinete do Bicho Cadavalargus. Pisou leve a praça, desceu João Pinheiro, o pedacinho de Álvares Cabral e pegou Afonso Pena na esquina do Automóvel Clube. Atravessou-a na altura da casa do maestro Flores e dali, sempre a pé, até Padre Rolim. Ia devagar pensando na facilidade com que o Cadaval e o Argus tinham caído na esparrela que ele lhes aprontara. Sentia-se assim meio ao jeito de envergonhado e achando que praticara uma vaga chantagem. Mas que diabo! tinha de se defender e se os dois tinham sido vítimas do conto é que das duas uma — ou tinham culpas em cartório ou queriam proteger subordinados amigos, gente da sua rede policial, atolada na marotagem até o pescoço. Todos sabiam de sua amizade com os Melo Franco. E as duas cópias mandadas a dois jornalistas da família eram bem capazes de sair na imprensa da capital de Minas e na do Rio. Além do mais, dois finórios como o Cadaval e o Argus deviam perceber que os tempos estavam mudando, que todos aqueles antigos e desprezados futuristas inclusive ele, Egon, eram amigos do Chico Campos, do Mário Matos, do Gudesteu Pires, do José Oswaldo e de vários outros que estavam se adiantando na raia e chegando à primeira linha política. Mais ainda: os nomes de Mílton Campos, Abgar Renault, Carlos Drummond, Gustavo Capanema, Emílio Moura e Gabriel Passos — todos futuristas, todos amigos também do Egon — estavam aparecendo nas conversas do Automóvel Clube e do Bar do Ponto como os de futuros deputados estaduais, quiçá secretários de governo. E aquela súcia do Egon, do Nava e do Chico Pires era para ser melhor tratada — acochados como eram do Olinda e do Fabinho, com acesso fácil ao presidente. Os dois sacanas deviam ter pensado nisto — monologava o jovem médico se absolvendo do vigarismo em que se julgara incurso. Concluía com alívio que durante muito tempo Cadavalargus ficaria de casco quebrado e sem poder escoucear. E… ora porra! Fodam-se todos que eu preciso é de cuidar de minha vida. E tenho de ir ao Ari o mais breve possível…

Dois dias depois o Minas Gerais publicava a permuta do dr. José Egon Barros da Cunha, do Matadouro da Capital para o Centro de Saúde e a do veterinário Teobaldo Demóstenes de Miranda Borges viceversando, deste para aquele. Logo o Egon tratou de ir apanhar seu memorandum, fê-lo, desceu correndo João Pinheiro e vinte minutos depois estava entregando o papelucho nas próprias mãos do doravante seu chefe, o dr. Argus Terra. Encontrou-o outro homem: mudado, mais acessível, cordato, flexível, maniável, complacente — souple comme un gant

— Estava à sua espera, dr. Egon. Já tinha separado os regulamentos para sua leitura. Enquanto o senhor se enfronha na legislação, irei fazendo seu trabalho e o senhor assistindo. Muito fácil, porque sua mesa fica neste gabinete. É aquela perto da janela, ao lado da do Cirne, que é a do canto. Ficaremos os três aqui, recebendo as partes. O senhor logo vai ver o meu sistema. É preciso não ter contemplação nenhuma e multar o mais possível — que é disto que vive nosso estado. Multar é patriotismo… O nosso Cirne ocupa-se das notificações compulsórias das doenças infecciosas… Mas é benevolente demais: a uma porção de casos ele faz vista grossa, sem punir os colegas que têm obrigação de dar parte à autoridade de tudo quanto é doença dita de notificação compulsória que por negligência e por agrado aos clientes eles vão deixando passar. Na hora em que um ou dois forem suspensos do exercício por seus três meses a coisa muda de figura. Mas o Cirne é bom demais. O senhor conhece?

— Como não? dr. Argus. Fui seu aluno de obstetrícia e tenho a honra de ser seu amigo ao lado da de ter sido seu discípulo. É um colega de primeira categoria.

— É… só que como eu disse complacente demais…

— Nunca se é bom em demasia, dr. Argus. O melhor dos homens ainda é um oceano de iniquidade comparado ao ideal de perfeição com que sonhamos…

— Já estou vendo de que escola é o senhor… Um dia verá que está errado… Os homens precisam ser tratados com vara de ferrão… Em suma, vamos ficar os três nesta sala e o senhor tome conta de sua mesa. Já está equipada e sua papelada, seus talões de multa, tudo nas gavetas. Vamos ficar apertados, vamos. Pudera. Não seguiram meu alvitre de derrubar essa porcaria de casa velha e construírem no seu lugar um Centro de Saúde modelo… É tudo tão difícil…

— Pois já venho já, dr. Argus, tomar conta de minha mesa. Vou primeiro dar uma voltinha para conhecer a casa, dar um abraço nos colegas e com licença da palavra — verter.

Saindo do gabinete que ia ser o seu (em condomínio com o Cirne e o Argus) o Egon deu na peça larga que servia de entrada da dependência sanitária instalada na antiga casa de David Moretzsohn Campista. Ele percebeu pela disposição dos cômodos que ia trabalhar no que fora a sala de visitas, que agora estava no hall do prédio e que logo adiante, o cômodo amplo cheio de funcionários e máquinas de escrever teria sido o refeitório do político de carreira rápida, curta, brilhante e logo decepada pelo velho e tradicional horror que Minas tem (mais apurado que no resto do Brasil) pelos estadistas inteligentes. Seu xodó é mesmo, como dizia Cesário Alvim — pelos “bacuraus de voo curto”. As outras peças eram os corredores, quartos, sanitários, cozinha e despensa. Isto no andar que abria janelas para João Pinheiro. Estas tinham como correspondentes, por baixo, “óculos” ou respiradouros gradeados dando para o porão. Como o terreno da casa fosse em declive até os limites das traseiras dos lotes de Sergipe, o então Centro de Saúde tinha por trás dois andares, tal o pé-direito do porão habitável onde estavam instalados os ambulatórios médicos. Era um belo tipo de prédio da belle époque, fachada cheia dos rococós considerados horríveis até os anos 50 e que depois vêm sendo reabilitados na riqueza e na própria gratuidade de seus ornatos estilo tênia que os arquitetos de então andaram a buscar nas sinuosidades luxuosas e por assim dizer quase barrocas dos cartazes e pinturas de Alfons Mucha. Às suas belas linhas, a casa de David Campista juntava a amplitude de cômodos, as larguezas, os espaços tão característicos da construção mineira. E mais: toda a sala de visitas, o vestíbulo e a sala de jantar eram pintados a óleo em tonalidades verdes muito claras, com divisões formando os painéis da autoria do dono da casa que ao gosto político juntava o da pintura. Eram composições ao jeito clássico — aves e flores nos aposentos de recepção e naturezas-mortas com frutos, cenas campestres e panóplias venatórias na sala de jantar. Tudo isto devia ter sido resguardado como uma das construções mais lindas da Belo Horizonte do princípio do século. Mas não: a picareta do progresso e da desmemória veio e pôs tudo abaixo. Hoje lá está com o número 161 — ampla, funcional, bem planejada e muito feia a sede da Associação Médica de Minas Gerais. Provisoriamente — já que de poucos andares e aquele terreno está a calhar para um prédio de vinte pisos, depois para um de quarenta e assim por diante em partidas dobradas — até não ficar mais nada senão o fechado e obliterado “triste horizonte” de Drummond nos planos, valados e alturas onde um dia existiu, amorável, uma cidade que respondia pela graça de Belo Horizonte… Foi um prazer para o jovem médico encontrar os colegas com quem ia trabalhar no Centro de Saúde. Por um destes acasos favoráveis, em se tratando de médicos, os que estavam ali eram só homens bem-educados, reservados, conviventes, cavalheiros e bons profissionais, cada qual na sua especialidade. Essa última qualidade — o preparo e o amor ao estudo — é que faz os doutores mais cheios de coleguismo e comportamento confraternal. O duro que dão em cima dos livros, o trabalho que dá o bem saber — fazem-nos valorizar essas qualidades nos outros e o tempo passado debruçados nos livros e nos doentes não tem intervalos de folga para a mexida, a fofoca, o dizquedisse, a intrigalhada, a perfídia, a calúnia. A certeza do próprio valor cria os tolerantes com o valor alheio. E eram assim os colegas que o Egon encontrou no Centro de Saúde. Foi vê-los de consultório em consultório e abraçá-los que todos eram velhos conhecidos de seus tempos de estudante. Eram o Casimiro Laborne Tavares, o primeiro médico que recebera o grau na primeira turma da faculdade da terra, em 1917; seu querido amigo Rivadávia Versiani Murta de Gusmão, também da mesma turma, um monstro de memória que se prestava a curiosa experiência: mandava ler para ele um texto do Testut ou do Testut & Jacob, ia ouvindo de olhos fechados, de repente dizia para! que já tinha tomado pé e continuava o período onde o outro estacara — sem omissão de palavra ou erro de vírgula, ponto e vírgula, ponto final. Anatomia daquele jeito só ele e o Lodi! Havia dois colegas formados no Rio mas ambos de Minas — eram o Gentil Sales e o Joaquim Martins Vieira que tinha lecionado otorrino para o quinto ano do Egon. Este subira para o gabinete ainda sorridente dos encontros e dos abraços quando neste encontrou o melhor: o do seu mestre de obstetrícia e amigo da rodinha do Galba e do Iago — Otto Pires Cirne. Esse excelente pernambucano radicado em Minas era uma das fortes cabeças da Congregação da Faculdade onde entrara, depois de movimentado concurso. Era excelente didata, muito fino de espírito, cheio de um humour britânico. Um pince sans rire. Fazia no Centro de Saúde o ambulatório de obstetrícia e, como foi dito antes, o controle das notificações das doenças infectocontagiosas. Quando o Egon entrou no gabinete que iam partilhar daquele dia em diante, foi uma alegria de encontro e a retomada da velha conversa e de amizade bem plantada desde o curso.

— Professor! que prazer essa vizinhança de nossas mesas que é promessa de convivência…

— Pra mim também, mestre Egon, poder entre parte e outra trocar uns dedinhos de prosa com essa mocidade. Então? Como foi você de Desterro? Quais são? seus planos para aqui. Vai continuar? com o Ari.

— Se ele me quiser, professor.

— Ora! deixe-se de papeatas. Quem é que não quer? Um assistente do seu tope. Vamos, diga lá.

— No Desterro não me quiseram, professor. A Santa Casa de lá parece fechada a arame farpado. Mais fácil investir Verdun…

Riram mais no gosto de se encontrarem e o Egon olhava com simpatia o mestre muito magro, louro como uma espiga, vermelho como um lacre. O Cirne era magro, alto, fisionomia muito séria, iluminada de vez que quando por um sorriso — nunca por gargalhadas — melhor que fosse o caso que lhe contassem. O Egon não cabia em si de contente de estar ali, despachando com e como o seu antigo professor. Sentia uma elevação. Na sua mesa, muito sério, o Argus fiscalizava-os de rabo de olho — um tanto agastado com aquelas manifestações de boa vontade dum com o outro. O Egon adivinhou-lhe os pensamentos de Luís xi frustrado. Naquele Centro de Saúde ele só encontrara amigos… exceção feita do Argus. Mas o moço ia pensando que uma andorinha só… andorinha não! imaginem… que um corvo só não faz inverno.

Ao fim de dois dias de assistir aos destampatórios do Argus com os infratores de disposições sanitárias e de vê-lo acachapar com multas Deus e todo mundo, o Egon foi a ele e disse que já estava apto a começar a exercer suas funções. Vira o seu modo de agir. Já tinha de cor e salteado o regulamento draconiano das infrações e das multas. Arriscou até uma pilhéria.

— É uma pena o estado não poder multar o estado, dr. Argus…

— Por quê? doutor Egon.

— Porque eu tinha uma vontade doida de desabar no Matadouro, interditar aquela porcaria e estourar o crânio do responsável com multas dobráveis de vinte e quatro em vinte e quatro horas.

Muito carrancudo, o Argus não deu resposta e engolfou-se na papelada do inquérito que estava estudando dum desvio de material num dos distritos sanitários.

 

 

Uma das primeiras coisas que o Egon fez depois de instalado no seu novo gabinete foi aquilo que ele chamava “sua integração no todo universal”. Consistia em corresponder a casa em que estava com os pontos cardeais, sua vizinhança, sua posição na paisagem. A antiga residência de David Campista dava para o poente — recebendo assim sol pela frente durante as tardes. Entre um despacho de papel, o estudo dos relatórios diários dos guardas sanitários — só ou com o esclarecimento desses subordinados e a recepção das partes intimadas ou que apareciam espontaneamente, o jovem médico tinha tempo para uma prosa com o Cirne e com todos os outros médicos do Centro de Saúde que acorriam à sala do chefe à hora cordial do cafezinho; ou para uma chegada a sua janela que despejava num João Pinheiro em que a passagem de pedestre ou outro subindo ou descendo era quase um acontecimento. Ele estudava para cima o casarão para onde viria o Arquivo Público Mineiro, as fachadas da casa do dr. Joaquim de Paula e para baixo os verdes da praça Afonso Arinos. Dessa janela o Egon tinha uma visada muito boa para os antigos prédios da Câmara Estadual e da fachada principal e da esquerda de quem entrava — da Faculdade de Direito de Belo Horizonte. É a mesma localização do prédio da atual — só que este ocupa maior superfície. Mas antigo e novo — virados para a velha praça onde o bebedouro tinha desaparecido, o arruamento virado ajardinamento, em cujo centro fora inaugurado o monumento de granito tendo dum lado o medalhão com a face serena do autor de Pelo sertão e do outro, o baixo-relevo dum buriti. Alegoria ao “Buriti perdido”.

O Egon primeiro lia as partes dos guardas. Nelas punha — sempre se apoiando no Regulamento, a decisão cabível ou senão a que lhe parecia mais justa e benevolente. Mandava arquivar as relativas a exigências descabidas ou que lhe pareciam idiotas ou demasiado policialescas e só multava, e sempre no mínimo, os duplamente reincidentes, isto é, os que tinham tido reiteração de exigência e depois intimação de comparecimento em dia e hora marcados. Recebia-os imediatamente, explicava o motivo da ordenação higiênica, tentava convencê-los e com esse sistema só não era obedecido por muito poucos. Quando recebia as partes fazia-as sentar, conversava com elas reservadamente e em tom de confessionário, punha-se de pé para recebê-las ou despedi-las e invariavelmente dava-lhes a mão a apertar. Tudo isto merecia a maior reprovação do dr. Argus.

— Dr. Egon! O senhor põe esta gente a perder… Parte chamada à repartição tem de mofar na sala de espera pelo menos duas horas… Além do sabão, da multa, deve ter o prejuízo do trabalho perdido… Queda e coice. E o senhor manda sentar a seu lado! Dá um tempão a cada um! Desculpa tudo! Assim a autoridade não se impõe…

— Mas, dr. Argus, eu sou pago com o dinheiro do povo e tenho de receber com decência os que me procuram ou que eu intimo… O dinheiro é deles e eles como contribuintes é que são os nossos verdadeiros patrões.

— Ora, dr. Egon! E o senhor a me dar de contribuinte em cima… Sou capaz de jurar e apostar que o senhor aprendeu esta de americano com o maluco do Baeta Viana. Saiba o senhor que nós não estamos nos Estados Unidos mas no Brasil e graças a Deus em Minas. Quem lhe paga é o estado, o dinheiro é do estado e sua obrigação é a de servi-lo aumentando sua renda — multando o mais possível!

— Peço desculpas, dr. Argus. Mas estou dentro do Regulamento e trato de atendê-lo. Mas quero estar de bem com o meu próprio regulamento…

— Que próprio regulamento é esse?

— O da minha consciência e o da minha tolerância.

O Argus furibundo recolhia-se a um silêncio chocado e ia despachar sua papelada com redobrada fúria para compensar com sua severidade a frouxidão daqueles dois bananas que trabalhavam na sua sala. Eram o Egon e o Cirne — farinhas do mesmo saco e vinhos da mesma pipa — agindo tão identicamente que o Argus tinha a impressão de que havia combinação entre eles. Já se queixara muito em particular, via oficiosa, com o dr. Aires Alarcão Garrido de Cadaval, que lhe aconselhara a não passar recibo. Maneirar e mineirar — completara rindo muito com o trocadilho besta que achara e que o pusera encantado.

— Paciência e caldo de galinha, Argus… O Cirne é médico da família do Gudesteu, é professor da faculdade… O outro é bafejado pelo presidente… Um dia a casa cai. É esperar a ocasião… e então — Tioflotoni neles…

E o Argus seguia essa política. O Garrido não deixava de ter razão. E pensava nisto com redobrada cautela depois que surpreendera correspondência do Palácio para o Egon. É que a senhora do presidente era assediada por pedidos de lugar em hospital ou ambulatório pela pobreza da cidade e sempre apelava ora para o Cisalpino, ora para o Nava, ora para o Egon — amigos de seus filhos — para auxiliá-la nessas caridades. Fazia-o sempre em cartões atenciosos que o Egon, de propósito, deixava em sua mesa, em cima da pasta, presos sob o pé do cinzeiro — certo de que o Argus devia dar batidas e ler tudo que lhe caísse sob os olhos — antes ou depois do expediente. Era o que acontecia e era o que lhe dava “imunidades” perante os dois compadres xifopagados no Bicho Cadavalargus. Mas da parte do Argus era duro aguentar aquelas. Sua ira não conheceu limites no dia em que o Egon recebera a Olímpia Vasques como a uma senhora.

— Faz favor de sentar, d. Olímpia — em que posso? servi-la.

— En todo, Egonsito. Mira que hay una multa para mi como se mi casa fuera un hotel. Aquelo no es el Maletta. No es sino un bordel. Y figurese usted las bromas con que me han venido. Que las toajitas de lecho también deben ser presentadas con cinta comprobante de esterilización. Usted que conoce mi casa intimamente digamelo — es justo esto?

— Não, d. Olímpia. A senhora tem razão. Pra que? toalhinha esterilizada. Só se fosse possível autoclavar primeiro suas hóspedes — no todo ou em parte. Vou mandar anular a intimação. A senhora não será mais incomodada…

— Muchas gracias, Egonsito. Y que la Macarena lo tenga en su proteción. Y que hace? usted que no se le ha visto mas.

Aquele gralhar dum castelhano suspeito em sons agudos, os risos, o modo íntimo da caftina e do Egon tinham posto o Argus tão fora de si que ele naquele dia retirou-se mais cedo para ir despachar e desabafar com o Cadaval. Dessa vez o Cirne não sorriu apenas. Quando se pilhou só com o Egon, acompanhou a gargalhada deste com outra bem sonora e redobrada. E à hora da saída desceram juntos para verem se ainda apanhavam o Galba, o Iago e o Sá Pires no Trianon.

 

 

Pelos anos 20 foram asfaltadas, a partir de Goiás, as primeiras ruas de Belo Horizonte a ganharem tal pavimentação. A concorrência da prefeitura favoreceu a Empresa de Engenheiros Empreiteiros cujo escritório ficava à rua da Bahia, em prédio que ainda existe no lado ímpar e altos da Confeitaria Fioravanti. Seus diretores eram Temístocles de Freitas e Otávio Costa Rodrigues. O primeiro um homenzarrão alto, pletórico, dentes magníficos, risada todo-poderosa e simpatia irresistível. Andaria ali pelos seus cinquenta anos e era duma plenitude magnífica: só que sua corpulência de atleta começava a se arredondar na da obesidade. E era parecidíssimo com Balzac. O segundo, mais baixo, vermelhão como o companheiro, tinha o crânio revestido duma cabeleira densa, dura e de neve a contrastar com as sobrancelhas cerradas e dum negrume de azeviche. Cara fechada aos primeiros contatos. Mas quando tomava costume com as pessoas, ficava tão aberto como o seu companheiro Temístocles. E como ele, era um conversador admirável, além de melômano do maior bom gosto. Apesar das cãs não teria mais de sessenta — se é que os tivesse. Eles logo de início admitiram na sua companhia como outro diretor, o Nelo Selmi Dei — tio do Nava e primo do Egon. De acordo com as boas regras brasileiras, apesar do parentesco deles ser de pura afinidade — contratou os dois como médicos da Empresa de Engenheiros Empreiteiros. Os dois moços atendiam dia sim dia não os numerosos acidentados do trabalho operário. O Egon adquiriu o hábito de passar diariamente no escritório, quando descia do Centro de Saúde, para o cafezinho e atraído pela boa prosa dos dois diretores rapidamente tornados seus amigos. Aquele emprego fora-lhe um maná e metia-lhe bolso adentro mais 800$000 por mês — o que naquela época, somado ao ordenado de médico do estado, dava ao moço as possibilidades de esperar que lhe chegasse clínica, com toda tranquilidade. Para bem se desempenhar destas funções o Egon e o Nava tinham aberto consultório e retomado seus serviços na Santa Casa — estabelecendo com esta contrato em nome da companhia. A vida do Egon corria-lhe assim trabalhosa, mas lucrativa e seu único espinho eram os nhenhenhéns, as picuinhas, as observações e os casos que lhe criava na repartição o sacana do Argus. Mas tudo coisa tão miudinha que não dava para atrapalhar sua vida. Apenas enchia-lhe o saco e ele se prometia vagamente tomar quando pudesse a sua forra. Pois não é? que esta ocasião se apresentou e um puro contratempo não interrompeu? o que o médico tinha prometido fazer — para comer bem fria a sua desforra. Vale a pena contar esse fato e para isto dar um pulo enorme até os anos 70. Nessa década concorreram à mesma vaga de membro honorário da Academia Nacional de Medicina Argus Terra e Tristão Sarcófago, companheiro do Egon nos bancos da Faculdade de Medicina de Belo Horizonte. Este, que era membro titular da agremiação, daria seu voto ao candidato dos tempos escolares. Pois um resfriado-monstro pregou-o na cama. Resultado do pleito — empate dos candidatos. Se ele não estivesse doente o Sarcófago ganharia de um com o seu voto e o Argus provavelmente jamais se candidataria ao título que desta vez conquistou, favorecido por escrutínio de desempate, que levou em conta sua idade quase nonagenária. Nunca resfriado fez tanto mal ao Egon. Na hora em que ele ia saborear a ambrosia de uma vingança esperando meio século, a taça se lhe quebrava nas mãos! Como no apólogo chinês, ele teve de voltar para a ponte onde, debruçado, se espera ver passar rolando nas águas o cadáver do inimigo. Pois um belo dia, viu… ah! viu.

Voltando à época em que estávamos — nunca outra foi tão fácil para o Egon e pensando nessa fase de sua vida sempre ele retoma a paisagem que mais incisivamente lhe ficou desses tempos descuidados. A paisagem física recuada no tempo e que nada é capaz de fazer ressurgir senão a memória onipotente. Ele saía do Centro de Saúde na tarde dourada Belo Horizonte. Já em Afonso Arinos os fícus de frente à casa do senador Virgílio funcionavam como a esmeralda de Nero esverdeando as outras cores do arco-íris latentes na brancura do dia ainda poderoso. Parava um instante. Se resolvia seguir por Goiás até Bahia entrava dentro das irisações duma concha cor de pérola rosada e de rosa pele de mocinha. Se descia mais um pouco para tomar Afonso Pena, já começava um cinza espoado dentro do azulado das sombras e as cores da avenida eram um verde especial de árvores onde se envolviam, leves como fumaça, gazes de cambiantes pompadour. Na esquina da Delegacia Fiscal, ao pé dum dos dois braços da escadaria ou no seu alto, um soldado do Doze estava de sentinela no próprio federal. Cada dia era um — que parecia sempre o mesmo ao Egon e que farejando nele um funcionário graduado (como outros que desciam João Pinheiro e Álvares Cabral àquela hora) — à sua passagem, deixava sua posição de descansar e perfilava-se juntando ao corpo seu fuzil. O Egon gostava daquela cortesia, dava civilmente seu boa-tarde ao moço e ia batendo em direção do Bar do Ponto. Ei! Fulano. Ei! Beltrano. Ei! Sicrano. E seguia para o consultório. Já encontrava as torres de São José contornadas de vermeil e o obelisco da praça Sete como que tendo seu granito em ponto de brasa e virado num bloco de pórfiro. Era quando ele torcia à esquerda e todo envolto pelo crepúsculo — entrava (como já foi dito antes) no seu consultório, logo ali, depois da esquina, na rua Rio de Janeiro número 615.

Era um cômodo amplo e bem mobiliado situado nos baixos da residência dum colega: o José de Miranda. O Miranda era um homem de seus quarenta anos, talvez menos, que fora interno de Miguel Couto por quem nutria não admiração e amizade, mas religião e idolatria — uma e outra postas em paroxismos de fanatismo. Ele tinha um tom especial de voz para dizer mais alto que o resto da frase — o professor miguel couto — e mencionar caso ou opinião que queria salientar do grande mestre. E ai! de quem se referisse a Couto apenas com respeito e acatamento dizendo, por exemplo, que ele era um grande clínico, um bom professor. O Miranda logo protestava como se alguém estivesse insultando ou menosprezando seu ídolo.

— O quê? o quê? o professor miguel couto um grande clínico? um bom professor? Ora esta! Dobre esta língua… o professor miguel couto é o maior clínico que o Brasil já teve, tem e duvido que nasça outro igual. E é o maior professor que já houve na Praia. E que há. E que jamais terá quem possa substituí-lo!

O Miranda clinicara no interior, fizera-o com felicidade, angariara boa clientela, enchera seu pé-de-meia e viera exercer no Belo Horizonte. Alugara aquela casa, cujo andar superior era até grande demais para sua família e abrira seu consultório no térreo do prédio, cujas outras salas sublocava a escritórios comerciais — entre os quais as dependências ocupadas por Ageu Pio Sobrinho e José Baeta Viana, que tinham constituído firma farmacêutica para a exploração de sal de bismuto sintetizado por eles — o iodureto de bismutila — pouco tóxico, absorvível em solução oleosa, praticamente sem contraindicações e um espirilicida de ação poderosa. Seu valor antissifilítico foi comprovado nas enfermarias de Aleixo, Balena e Libânio e os estudantes dos primeiros anos 20 lembram das empolas ainda não comercializadas de que foram os primeiros experimentadores na capital de Minas. Sua potencialidade era enorme. Ministrava-se a solução oleosa que suspendia fino pó cor de tijolo, por via muscular, em injeções de três em três dias ou, se necessário, mais apertado, de dois em dois. Um cancro duro fechava na terceira e as vergonhosas manifestações cutâneas do secundarismo eram lavadas na quarta ou quinta. Uma maravilha de produto. Apareceu lançado comercialmente com o nome de Bismoiodan — e foi um fracasso. Ninguém queria remédio com aquele nome e os próprios médicos que tinham usado o sal nas enfermarias esqueciam o nome esdrúxulo e feioso. Seria pelas associações daquele oio — aboio boi-central? O fato é que a coisa parecia destinada à ruína quando o nosso Miranda (que tornara-se tão fanático do Baeta quanto do Couto — apesar de Baeta não suportar Couto) resolveu arriscar e deu suporte financeiro para um relançamento do produto. Ele reapareceu com o nome de Iodobisman e foi um sucesso farmacêutico no Brasil inteiro e o alto negócio que deu à razão Baeta-Pio-Miranda os maiores lucros e a cada um a fortuna. Abri esse parêntese para mostrar a importância desse name-appeal em indústria farmacêutica. O Bismoiodan não dera nada. A simples inversão dos dois complexos da palavra para Iodobisman fizera um verdadeiro milagre. Foi injetado às toneladas, caiu no gosto de médicos e doentes e logo em que época! naquela do “em medicina é preciso sempre pensar sifiliticamente”…

Com o sucesso do produto o Miranda desinteressou-se da clínica e cedera ao Egon o seu bem instalado consultório de Rio de Janeiro 615. Esse prédio foi demolido depois e o lugar que ele ocupava — está encantado em alguma parte do que o cobriu — o enorme bloco do Banco Real que enche o ângulo formado por grande parte da avenida Afonso Pena e Rio de Janeiro. Pois foi nesse consultório, onde exercia a clínica às segundas, quartas e sextas, de quatro, quatro e meia às seis e meia, sete da noite — é que José Egon Barros da Cunha começou na vida dura de quem quer fazer clientela. Ia e cumpria religiosamente o horário — tivesse ou não clientes. Esses foram primeiro os operários da Empresa de Engenheiros Empreiteiros e seus dependentes. Logo se lhe agregaram amigos do Bar do Ponto para tomarem suas injeções, queixarem-se de pequenos males ou dos maiores que Vênus dá. Inculcados pelos empregados da companhia e pelos ossos, começaram a surgir os primeiros clientes pagantes. Eram raros. Mas um ia trazendo outro e a bola de neve começou a se fazer. O consultório era amplo, iluminado por duas janelas gradeadas que davam no jardim do Miranda, boa secretária, giratória, cadeira de braços para os doentes, poltronas para os acompanhantes, mesa de exames, mesinha auxiliar para os instrumentos que sempre o Egon usou ao seu lado. Aparelho de pressão de coluna de mercúrio, estetoscópio, martelo de Dejerine, fita métrica, pesos de várias escalas, estiletes rombudos para examinar a sensibilidade, lanterna elétrica, tubos de ensaio para água fria e água quente, diapasão, dinamômetro. Outra mesinha para o esterilizador a álcool. Uma terceira para o aparelho de Forlanini-Kuss do pneumotórax artificial que ele encomendara na Casa Moreno, ali na rua da Bahia 1044. Armarinho com algodão, antissépticos, pinça de língua, abridor de boca. Estante de livros onde os seus tratados logo se misturaram aos do Miranda. Na parede uns quadros pertencentes a este (um Cristo, o do médico de avental amparando uma doente e rechaçando o Esqueleto da Morte) e um telefone dos antigos. Era dos de manivela. Jamais o moço poderia esquecê-lo pois pelo seu receptor ouviu pela primeira vez a voz que o concitou para os momentos mais espantosos da sua mocidade. Logo se verá que alumbramento foi esse. Tudo começou por meia dúzia de palavras naquele telefone. Seu número era 275…

Desde o primeiro doente que viu em clínica privada, o jovem médico passou a registrá-los num grande caderno. Quando deixou Belo Horizonte ele destruiu esse princípio de arquivo, como teria o destino de destruir outros a cada rodada de sua vida. Lembrar-se-ia para sempre, particularmente de quatro doentes. Primeiro caso, o duma moça do interior de cuja tuberculose ele tratara. Deu-lhe sanocrisina, colabou-lhe o pulmão durante meses, fê-la comer como um ogre. Deus a curou. Deu-lhe alta, autorizou-a a voltar para o interior, contanto que voltasse para revisão de seis em seis meses. Acreditam? que ela fez isto anos e anos, indo vê-lo no interior de São Paulo e depois no Rio — tal a confiança que o médico lhe inspirou. Fez isso uns dez anos. De repente sumiu. O Egon escreveu perguntando. O marido respondeu contando sua morte de parto. Quinto parto. Segundo: o de um português parecido com Antônio Nobre, muito pálido, muito branco, sempre metido num grosso gabão bom para as nevascas da serra da Estrela. Andava com ele em Belo Horizonte fizesse frio ou calor, sol ou chuva. Ele entrava no consultório aos ais! Um dia o Egon perguntou-lhe onde? doía. Nas costas? Nos peitos?

— Lugare nenhum não xinhoire dotoire. Estou assim a gemere para agradaire a bossa excelência…

O moço pasmava da imagem estranha que os doentes se fazem dum médico. Agradar com gemidos! Um dos seus motoristas perguntou-lhe um dia se ele nunca tinha matado um doente, matado só pelo prazer de matar. O rapaz caiu das nuvens. Que bruxos? que demônios? pensam os leigos ignorantes que são os curões. Matar pelo prazer… Agora — pensaria ele vida afora — matar sem querer, a questão seria de difícil responder. Quantos vão? desta para melhor por sua incúria, sua ignorância — até sem que os médicos o percebam. É o que se dizia o Egon nos anos maduros, sondando bem a fundo sua consciência. E que o que se julgasse livre dessa ideia lhe atirasse a primeira pedra. Pois o pobre português assim a gemere foi-se também a emagrescere a tossire apesar do pneumotórax, da sanocrisina, da codeína, do óleo de fígado de bacalhau. Lá está no Cemitério do Bonfim. Foi o primeiro atestado de óbito do Egon. E como lhe pesou a compaixão que até hoje sente pelo pobre do lusíada, coitado… Terceiro caso, o do primo Jucapitão nos primeiros passos da sua hipertensão. Como ele o tivesse conhecido menino e moleque, o Egon foi com ele parenteiro, interessado mas sem risos e nenhuma ponta de familiaridade. Depois da anamnese deitou-o na mesa de exame — ele já um pouco pálido. Quando passou-lhe a braçadeira do aparelho de tensão ele virou os olhos e caiu numa lipotimia clássica. Suores, palidez, desmaio. Quando voltou a si o doutor perguntou por que? diabos ele tinha tido aquele chilique.

— Porque quando você começou a apertar no braço fiquei com medo do golpe…

— Que golpe? Juca.

— Não posso explicar. Do golpe. Dum golpe…

O último caso que o marcou foi o dum “choque pleural”. Ele estava só no consultório. Era a terceira ou quarta aplicação do moço. Quando ia fazer-lhe a clássica picada de estovaína antecedente à passagem da agulha mais grossa do pneu, picada que levava sempre um pouco fundo até cerca da pleura — ele não quis.

— Doutor, não precisa essa injeção não. Isso não dói nada. E que doesse um pouco — não sou maricas… Pode fazer a insuflação direto…

Pois o médico concordou por concordar. Introduziu a agulha e começou. Teria sido? a falta do amortecimento pleural. O fato é que o rapaz de repente apagou, ficou cianótico e a respiração foi parando. O primeiro impulso do médico foi o de abrir a porta e pedir socorro. Chamar pelo Miranda, pelo Baeta, pelo Ageu. Mas logo viu que não podia perder tempo e que em vez de socorro ele ia criar uma balbúrdia que podia ser fatal ao doente. Correu ao armário. Abridor de boca, pinça de língua, trações ritmadas com a mão esquerda enquanto a direita apertava e afrouxava aquele tórax esfriando. Não havia respiração; só uma espécie de estrídulo à entrada e saída do ar às compressão descompressão compressão descompressão com… Nada! Só… mas num tísico! Sua hesitação foi curta e num desespero foi ao boca a boca. Aspirava aquele bafo morrente e mortal, soprava o seu hausto cheio de moço são. Seis, sete vezes — enquanto apertava os peitos parados. Sentia na sua boca aquela língua fria, a dureza da pinça, o gosto do sangue ruim. Olhava querendo chorar. Nada. Recomeçava invocando os santos. Olhava. Abocava de novo com medo de perder os sentidos. Afinal sentiu como um soprinho que já era do paciente, suas costelas mexendo, sua cor passando do arroxado ao pálido, do pálido à normalização e aquela respiração cansada e superficial ritmando e ficando mais funda mais funda agora praticamente normal. Uns olhos cansados dentro da cara úmida não largavam os seus e o que ele estava fazendo, não o largavam os olhos — como mãos sôfregas atracadas numa tábua de salvação. O médico tirou a pinça da língua cheia de sangue. Cambaleando atirou-a à pia, lavou-se, bochechou longamente com água e sabão mastigado. Depois com álcool puro. Já o doente queria levantar. Foi empurrado — ficasse deitado. Mal se tendo nas pernas o Egon arrastou uma cadeira, sentou perto, segurou o pulso e ficou sentindo aquela vida batendo batendo — que o tranquilizava e cujas vibrações eram como que isócronas às do seu coração que ele sentia percutindo como malhos nas têmporas. Saiu de repente do seu fatigado estupor. Uma voz normal se dirigia a ele.

— O senhor já está melhor? doutor. Eu não estou sentindo mais nada. Só esta língua e os peitos doendo muito… Já posso sentar.

Sentou. Estava bem. Saíram juntos do consultório noite fechada. O Egon foi levá-lo de táxi ao Calafate. Voltou para casa esfalfado satisfeito e orgulhoso. Era sua primeira enrascada e ele se saíra “fazendo o necessário” — como está no Aforismo i da Seção 1 do Pai da Medicina. Chegando em casa olhou-se longamente no espelho do banheiro. Tinha olheiras até o meio da cara como se tivesse cometido um excesso, saído de uma orgia. Ardia-lhe a boca queimada. Teve a impressão dum vinco feito pela contração das sobrancelhas que não queria desmanchar. Passou o dedo. Ele persistia. Era uma dobrinha muito leve. Indicação do lugar de ruga por vir. Já era um sinal, marca, rastro duma passagem, dum acontecimento. Respirou fundo olhando a si mesmo e olhos nos olhos, sem pilhéria nem dramaticidade pensou baixinho se encarando: tu és médico. Batismo. Crismou quatro dias depois, no consultório, retomando no doente a insuflação interrompida pelo acidente. E ele não se acovardara. Mas seu armário agora estava enriquecido da bateria das empolas de esparteína, cafeína, óleo canforado e daquela coisa novidade revolucionária naqueles tempos: lobelina. Quem se lembra? hoje, desses remédios. Ele dera mais um passo na profissionalidade. Já se falou atrás sobre essa palavra. É um americanismo que diz tudo. Distingue o profissional dos de fora, dos leigos e mais — o verdadeiro profissional, que o é na alma, do profissional sub — que só tem disto o título e a casca. Por dentro está oco porque ainda não foi ocupado pela noção de sua própria profissão e das mudanças que ela imprime até no físico do indivíduo. Este se acomoda criando mais um sentido que capta o que se deve aprender da parte mímica do exercício médico, do seu lado ator, artista. Seu comportamento. Já se disse como esse gênero é impressionante nos médicos dos países onde existe uma verdadeira medicina. Tomo por exemplo — os médicos franceses, médicos americanos. Para dar uma ideia do que se quer dizer serão citados alguns médicos brasileiros, só dos falecidos, em que essa profissionalidade ia da cabeça aos pés. Quais são os velhíssimos de hoje que não se lembram? de Miguel Couto, Miguel Pereira, Pedro de Almeida Magalhães, João Marinho… E de Aloysio de Castro, Raul David de Sanson, Augusto Brandão Filho, Augusto Paulino entre os menos velhos. Onde está? a fôrma que modelava profissionais iguais a estes… Será que quebrou? Partiu-se?

 

 

Quando havia carência de doentes o Egon tratava de fazer o que todo profissional novo deve fazer em tempo de espera. Lia. Seus companheiros dessas tardes eram três saudosos amigos — mãos cheias com o que tinham para dar: pão, pão de espírito. Eram Martinet com seus monumentais Diagnostic clinique — que lhe forneceu os elementos para a criação do seu método — e a Énergétique clinique que lhe deu os de aglutinação do organismo num todo único e a ideia da abrangência e inter-relação de cada parte do mesmo; Cardarelli com as suas prodigiosas Lezioni Scelte ensinando a ter como elemento principal da clínica, acima das virtuosidades dos processos auxiliares do diagnóstico, a observação — esse ramo da semiologia ainda numa espécie de limbo porque até hoje ainda não teve o seu Claude Bernard a dar-lhe as leis encontradas para a experimentação; e Gaston Lyon no ilustríssimo tratado a que deu o nome de Traité élémentaire de clinique thérapeutique. Elementar… Chamar de elementar um cartapácio de 1383 páginas atochadas de letra miúda e sabedoria cerrada. Quando não lhe chegavam doentes, o Egon fechava a porta, evitava o bonde da sala do Iodobisman e povoava seu consultório desses mestres. Lia-os qualquer e ao acaso da página aberta — como os católicos nos seus embaraços fazem à Imitação de Cristo porque sabem que lá vão achar a resposta para a angústia que os punge no momento. Pois os três tratadistas sempre davam uma resposta, a resposta para a incerteza, a dúvida, a hesitação de cada instante e faziam-no segurar — como à Fortuna por seu cabelo fio único — a oportunidade, a ocasião passageira — occasio praeceps — do aforismo fundamental. Até hoje ficou-lhe o gosto de folhear às vezes suas páginas caducas (caducas?). Elas lhe restituem sempre um jovem médico cheio de entusiasmo cuja convivência é útil ao velho cético que o substituiu. Trazem a volta de uma vaga crença e de ondas de passado em perfumes e coisas mortas. Sim, coisas mortas (como outro dia contava ao Nava): encontrara dentro do Gaston Lyon o fecho de uma carteira de Liberty oval marcando os ensinamentos sobre a terapêutica do tétano. Lembrara logo da doente vista há mais de meio século, do lugar de sua cama na enfermaria, de sua figura esquálida e incerta quando começou a curar e sentou a primeira vez na cama, amparada pelo Ari e por ele. E tinha relido fulgurado, o que convém fazer em cada fase do tétano e vira que ainda estava certo o que os ajudara a salvar uma vida humana. As letras de fogo diziam:

 

À la première, l’antisepsie de la plaie, ou mieux l’exerese du foyer où le poison s’élabore; à la seconde, la sérothérapie préventive qui neutralise le poison virulent; à la troisième, le traitement palliatif par les antispasmodiques: chloral, bromure, etc., et la sérothérapie curative bien que l’éfficacité de cette dernière soit très inconstante, à tel point qu’elle a été nié pendant longtemps.

À hora de sua saída do consultório geralmente lhe apareciam o João Gomes Teixeira e o César Damasceno — ambos no gênero de sua disponibilidade total. Juntos saíam por Afonso Pena, andando devagar, vendo as vitrines, as moças — o Egon pisando amorosamente os dois quarteirões que o separavam do Bar do Ponto. Pagava um café rápido para os amigos e cada um tomava seu caminho de casa para o jantar. Podem ser um pouco datadas essas recordações. Elas vêm do segundo semestre de 1929 e justamente os fatos que se desenrolavam no país estavam imprimindo às ruas de Belo Horizonte modificações especiais que não se notam bem no momento que está — mas que tornam-se evidentes e explicadas à sucessão dos presentes e às perspectivas tomadas dos momentos que vêm, que vêm, que vieram e já passaram como automóveis nas estradas obscuras e tendo seus refletores virados para trás. Então se compreende o acontecido, vê-se claramente vista a verdade que se suspeitara e o contorno inteiro dos fatos duvidados num dia — que depois se percebe que eram verdade e que sua presença invisível é que trouxera as transformações que mal apontavam — entretanto presentes no tempo e no espaço de Belo Horizonte de Minas do Brasil. E justamente o Teixeira, o Damasceno e o amigo médico tomavam o pulso da cidade por pequenos sinais — quase imperceptíveis. Era político demais chegando e saindo, era o Palácio da Liberdade ou a Secretaria de Segurança tudo aceso e iluminado noitinteira era um tom mais acalorado das conversas nas ruas, nos clubes, nos cafés. Era muito oficial do Exército nos logradouros, contingentes e contingentes da força federal aumentando os efetivos do Doze, eram tenentes, capitães, majores em traje de campanha e parabélum à cintura subindo e descendo desafiadoramente Bahia e quando os quartéis da União já não eram suficientes para conter tanta praça chegando aos poucos cada dia — eles começaram a acampar em torno aos pavilhões da caserna do 12o Regimento de Infantaria. É que estava sendo efetivada a intervenção branca em Minas Gerais e chegara a hora em que o Andrada teria de esgrimir como ninguém. A nossa Polícia Militar tornara-se de repente invisível. Raro era o dia sem um pequeno comício na praça Sete, nas bases do Pirulito como era chamado o Obelisco Comemorativo do Centenário da Independência — subitamente transformado em altar ao autonomismo mineiro. Pois os três amigos cheiravam no ar certo bafo de pólvora. E era. Mas suas hipóteses vinham desmentidas pelo tom de cordura adotado pelo presidente do Estado. E de repente, no mineiro desconfiado e bairrista — aquele amor pela Paraíba do Norte e pelo Rio Grande do Sul… Mas ainda é cedo para entrar nesse assunto e só lá para fins de 29 e princípios de 30 é que íamos ver que muita coisa pensada tinha mesmo acontecido e acontecido gravemente, como é grave, por exemplo, dedo premindo devagar um gatilho. Quando se ouve o disparo o gesto já está longe. Mas aconteceu e sucedeu… E nós captávamos vagamente que estavam sobrevindo a cada minuto coisas, gestos, palavras extremamente consequentes… Mas, como foi dito — ainda era cedo para entrar nesse período de narrativa. Por enquanto fiquemos simplesmente nessa coisa sem importância que é a saída de um jovem médico deixando seu consultório depois dum dia de pouco ou nenhum trabalho. Fechava o seu livro, se os amigos estavam na sala de espera ou no escritório do Iodobisman, saíam juntos. Se não vinham, o Egon saía só… E nesses dias em vez de ir na direção do Bar do Ponto, seguia Afonso Pena em direção oposta, jamais pelas calçadas e sempre debaixo da sombra maior dos fícus… Descia… Ele resolvera levar em Belo Horizonte vida muito diferente da que tivera como estudante e da que continuara a levar naquele desamparo em que se sentira no Desterro. Tornara-se raro no clube, vasqueiro nos cafés, bissexto nos bares, inexistente nos cabarés e sua vida era manhãs nas enfermarias, dias no Centro de Saúde, tardes no consultório, noites em casa ou num cinema honesto, Amém.

 

 

A cantar pastorais em pleno coito.

joão carlos teixeira gomes, “Abril”

 

 

Mais ne jugez point avec légèreté celles que vous appelez des malheureuses, et qui devraient être sacrées, puisqu’elles sont malheureuses. La fille méprisée et perdue, c’est l’argile docile au doigt du potier divin: c’est la victime expiatoire et l’autel del’holocauste. Les prostituées sont plus près de Dieu que les femmes honnêtes: elles ont perdu la superbe et dépouillé l’orgueil. Elles ne se glorifient pas du néant dont la matrone s’honore. […] Elles sont comme nous des coupables, mais la honte coule sur leur crime comme un baume, la souffrance les purifie comme un charbon ardent.

anatole france, Palavras de Choulette em Le lys rouge

 

Nós somos as testemunhas de Deus.

(Palavras ouvidas por josé egon barros da cunha
a um grande pecador)

O Luisinho, do Desterro, julgava nossas irmãs, as decaídas, assim mesmo como seu malungo Choulette — fossem elas altas e grandiosas cortesãs ou míseras e mesquinhas batedoras noturnas das longas calçadas dentro dos escuros de mais visgo. Elas assim — de alto coturno ou baixo mister — acumulavam-se em Belo Horizonte nas casas mais baratas mais caras que compunham os quarteirões que Oiapoque e Guaicurus formavam com suas transversais de entre as praças da estação e do mercado. Hoje, este é um dos pontos mais movimentados da cidade, ocupado pelas larguras onde ficam vizinhas dependências da Secretaria de Agricultura e a estação rodoviária. Outrora, quem chegava noitantemente ao bico onde se encontravam as avenidas Paraná, Afonso Pena e Comércio dava num mundo de trevas mal rompido aqui e ali por distantes postes de iluminação cuja fraca luz só servia para dar tonalidades azul-negras e verde-escuras à arborização e ao ar — se entranhando, fazendo corpo com ela — tudo de uma densidade tão pesada, tão táctil, tão sensível, tão profunda que tinha-se a impressão — quem a fendia — de ter penetrado num aquário cortado aqui e ali por passantes silenciosos — deslizando como grandes peixes que fugissem. Realmente fugiam e se escondiam. Eram vultos de tabeliães, magistrados, viúvos de respeito, protonotários, coronéis da briosa, senadores estaduais, solteirões virtuosos, proprietários, banqueiros piranhas, comendadores lambaris, onzenários piaus, vigários bagres — cujos óculos luziam como pires — olhos glaucos de íctios nadando, aparecendo um instante num raio de luz casual e logo sumindo na tinta noturna. Seus cardumes embitesgavam para Oiapoque e Guaicurus onde a iluminação maior levava-os a carregar para os olhos os chapéus desabados ou arvorar óculos escuros, esconder os bigodes e as nucas dentro do cartucho dos cachenês empurrados por mãos previdentes até as orelhas narizes. Andavam sem barulho como se estivessem transpondo o solo duma nave a pontas de pés. Estavam descendo. Se se cruzavam, mesmo se se adivinhassem íntimos não se viam nem se conheciam. Ni vu, ni connu — envolvidos na cumplicidade tácita — cada um ignorando o momento de vida perigosa que iam vivendo, iam viver, talvez morrer da morte alta dos foguetes que sobem sobem de repente estouram. Eram homens de entre cinquenta e setenta que se roçavam ali — hipertensos, cardiorrenais, esclerosos, superglicêmicos, uremiantes — que se roçavam ali — entre lobo e cão levando resto de força que lhes deixara a natureza — não como benefício mas como a maldição de sentir mais agudamente poderem realizar dificilmente dentro da “incapacidade instrumental” montante, da impossibilidade do que com que e que, para chegarem dificilmente — chegavam roçando a morte. Qui vult capere, capiat. Entre eles passavam leves e rápidos uns raros moços, só que estes vestidos de hipocrisia. Aliás todos. Aproveitavam a hora em que naqueles tempos Belo Horizonte jantava e suas ruas se esvaziavam na noite que começava. Sumiam os olhos indiscretos da tradicional família mineira, enquanto aqueles escravos fugidos corriam desfrutando um instante de liberdade. E o dr. José Egon Barros da Cunha quando sumia nos escuros da praça do mercado fazia-o com as lépidas passadas do estudante Zegão — que ele queria matar dentro de si mas que tantas vezes renascia e revivia naquelas ruas de que conhecia todos os segredos. Doctor Jekyll and Mr. Hyde. O gênero de cada casa, as especialidades de suas moradoras, sua dose de sábia experiência no amor laborioso dos velhos, no ardor pecaminoso e porco que tinham para a sofreguidão dos moços. E de todos a vigilante consciência de muito se olhando não se envergonharem. O que era preciso é não haver escândalo. O resto que se lixasse. E os cardumes que vinham do golfo da praça do mercado diluíam-se naquelas ruas adjacentes que os chupavam como as ventosas de tentáculos de gigantesco polvo onde ficava a seiva que desalestava os jovens, gratificando-os e desvivia os dirty old men que voltavam trôpegos para a convalescença e o preparo catuaba da recaída hebdomadária.

Talvez aquela fosse a hora mais curiosa daqueles quarteirões. A cidade provinciana, rigorista, comprimida e complexada se relaxava de repente e recebia as mensagens mais corruptas das capitais do mundo gastas por todas as sensações. As embaixadoras de velhas civilizações exaustas afinavam os homens novos e provectos das Gerais. A Poupée de Marny trouxera de seus parises aqueles finos rebenques para cães e era nua como as deusas antigas, os pés rosados munidos de esporas de prata — que cavalgava galopes cansados sobre tapetes fofos. E seu bridão era uma liga de seda verde passada na boca do animal estimulado pelos tztztzbi muxoxados por sua língua seus beiços para o pulo do último obstáculo e do corcovo sobre a cama: cavaleira desmontada e o cavalo agora montando mal que mal para um chouto triste de jumento exausto. E quando terminavam como podiam o steeplechase e se estatalavam a montaria e o monteiro, ela nunca deixava de mostrar no longo espelho baixo o monstro de duas cabeças e oito patas, grifando a situação com a canalhice enternecida do seu — Mais regarde donc, m’amour, dans quelle gentille position nous sommes… E havia sorrisos pálidos florindo dentro de dispneias. A nacional Mimi Selvagem era mais severa e aos silvos meio simbólicos do fouet da francesa substituía as talatadas de sua tala de barbatana de baleia-brandida para valer e levantando vergões que davam repentes de brio a qualquer carne bamb’e lassa criada na escola de mestre Sacher-Masoch. A italiana Pieretta d’Azzuri trazia das suburras romanas toda uma parafernália auxiliar — pulseirinhas de couro delicadas como um cintinho de boneca ou microgarrotes revestidos de seda — tudo para passar pela base da natureza impedindo o retorno do sangue, e a fazê-las tam monstruosas que a dureza artificial ainda durava depois das penetrações penosas e da precisa retirada do laço — agora! bem, agora! agurinhaaaah — na hora justa transbordante do se vir. E a triste tromba zorô saía por si mesma toda úmida da chuvinha rala que guspira pracima e que lhe recaíra sobre a outra calva.

Naquele tempo não havia ambiente em Belo Horizonte tampouco no mundo para a exposição pública, a venda, a compra e a leitura como de material sério e educativo de um livro tal a obra-prima de Legman,a que me foi comunicada por Odylo Costa, filho. Entretanto ele não escreveu nada de novo — senão que coligiu práticas milenárias e universais exercidas miudamente e negadas por todos de pés juntos ou admitidas só exequíveis como as imundícies bíblicas do homem ou da mulher. O psicólogo erótico americano avalia em 14 288 400 as posições e modalidades em que pode haver o encontro da boca, dos lábios e da língua com os melindres ou a pássara cega. Entretanto a certas virtuosidades citadas como as Pattes d’araigné, o Fire Drill, Les Affaires sont les affaires, The Oyster Supper, L’Éternelle idole, The Naughty Boy, The Catapult e The Metronome — talvez a sabedoria mineira da Geralda Jacaré e da Dorcelice pudessem juntar a sua modesta contribuição de dois outros voos. É claro que elas encontravam parceiros e mesmo eram disputadas por eles. A Dorcelice era uma puri de Montes Claros estabelecida como dona de um bordel barato nos baixos de Curitiba. Pois ela era a precursora e quiçá a verdadeira inventora das carícias itinerantes e andeiras de lábios moles, duras dentadas e logo língua balsâmica — que assustam, surpreendem e desencadeiam reflexos inesperados: o que os erotólogos americanos descreveram depois como o Around the World — viagem que a mineira conduzia como ninguém. E sua variante frente a frente em que o número sem sinônimos e traduzido em todas as línguas no seu ipsisverbismo comportava dois modismos: o curto, ou corriqueiro e o longo que terminava no curto mas que tinha um comprido caminho a percorrer em que o par simultaneamente se mordicava os pés, calcanhares, se punia os joelhos, coxas e parava para se empenharem, apenas um pouco mais alto. Se Around the World tinha bilhete de ida e volta, o passeio mineiro era retilíneo e só comportava a ida por face única da lua. E nos ires e vires desse passeio a mesma peça dos sentidos era sucessiva e variável: adquiria a superfície larga e os coleios de uma pétala folha de rosa ou a decisão, o resoluto, a penetrabilidade duma cabeça de víbora. Assim falava Dorcelice… A outra autora citada — Geralda Jacaré — não dispensava a participação duma espécie de negro mastino goelas em fogo — que nem o “Cão dos Baskerville”. Ela viciara a alimária com o sabor adocicado da glicerina e desta enchia partes cavitárias do seu corpo e untava as superfícies mais agudamente sensíveis. E como ao da glicerina, ela Geralda, preferisse o gosto do licor de cacau, era com ele que açucarava o ceguinho renitente e transformava em favos o que em carqueja lhe nascia em rod’ao tronco. E os três cães no princípio rosnavam baixinho, auliam depois e acabavam uivando à lua à morte à podridão dos campos de batalha. Assim latia a negra cadela que ia calando aos poucos para terminar com o chorinho que Blaise Cendrars pôs na goela dos aligatores — “un vagissement assez semblable à celui d’un enfant nouveau-né […]”. Pobre Geralda causticada pela perversão como por brasa ardente, a brasardente da epígrafe que a purificava e curava como fazem os bálsamos… Mas… que diabo de palavra foi esta, usada? Perversão, perversão — ça c’est un trop gros mot. Pode-se falar em perversão sexual? Há mesmo a possibilidade de existir? uma perversão sexual. Certo que não, se considerarmos que o erotismo é uma pesquisa permanente, lenta, gradual, paciente, dolorida e sempre insatisfeita — que pertence a todos os sentidos e a cada milímetro quadrado do corpo. Só? Digamos a cada milímetro cúbico do soma do homem e da mulher — sobretudo quando em flor. Nessa vastidão científica não há nada ilegítimo e qualquer coisa é permitida e a palavra perversão tem de ser substituída pela de indagação amorosa. E nesse terreno a moralidade de cada um tem de ser posta para lá dos limites galaxiais da própria imaginação, da própria curiosidade auto, homo, heterotópica. Da curiosidade pelas bestas barranqueiras e pelos troncos suaves das bananeiras. Tudo que é pensável pode ser possível: dinheiro haja, seu barão…

As duas casas ficavam em Guaicurus, entre São Paulo e Rio de Janeiro, parece que lado par, pelo menos o lado que dava fundos para as direções do Arrudas. Eram de parede-meia, fachadas dum róseo e dum branco angelicais. Afinal a dona dum lado passou sua parte à do outro e de dois alcouces de terceira fizera-se um bordel de segunda classe. Chegara mesmo a seus tempos de primeira quando lá morara a nunca esquecida Odete Monedero, que ali mesmo se matara com vinte bonecos de cocaína dissolvidos numa garrafa de Veuve Clicquot. Todos os velhos belorizontinos de hoje que vêm dos princípios dos anos 20 lembram sua câmara-ardente ali armada, depois das formalidades de polícia, necrotério e autópsia, do seu jacente cor dos mármores sem manchas como os de Paros e Carrara, seu enterro de chefe de Estado, os cabarés fechados como num dó nacional, do luto de uma zona inteira a meio pau. Depois da fase de glória em que abrigara esta grande hetaira, a instituição caíra definitivamente para segunda classe — isto é, a de pensão onde o michê era de vinte. Era conhecida como a “Casa das Três Meninas” não em homenagem a Schubert ou porque ali habitassem só três mas porque, das componentes do staff, uma trinca se destacava que valia ela só por zona inteira. Eram uma lusíada chamada Olinda, uma cabocla que respondia por Maria do Pipiripau e uma mulata açafroada e aça conhecida como Indaiá, por ser natural de Dores. Essa, além do mais, era vesga, o que logo se verá tinha importância em Belo Horizonte. Seu corpo exímio era capaz das posições mais inconcebíveis e na transa sua coluna vertebral era como a das suçuaranas. Ela se arcobotava, se retorcia, pinchava e peneirava de rebentar enxergão. Sua cama tinha o reforço de pés centrais. E entretanto ela era leve, leve, ágil e precisa. E gritava de amotinar o quarteirão. Uma espécie de sucção natural da musculatura da sua pelve segurava em movimentos involuntários como se fossem arrocho de nó canino. E finalmente ela ia morrendo da periferia para o centro que era o último a deixar de pulsar, o garrote afrouxando aos poucos vagar, vagaral, vagaralhamente. Sua armadilha desatracava e soltava o obelisco preso reduzido molezas de minhoca. E brilhante do suor ela luzia do âmbar polido da pele que tinha a cor dos seus cabelos que não se desarrumavam. Sim, seu penteado era como esculpido. Ela dividia a cabeça, do rodamoinho à testa, fontes, nuca — em gomos como os duma laranja seleta. Fazia assim triângulos dum cabelo bostinha de rola, dourado que começava a trançar de cima para baixo. Quando ficavam prontos ela os rebatia para o alto onde as tranças inumeráveis eram amarradas. Aí suas pontas eram riçadas e dissolviam-se qual chama perenemente reacesa finas roscas sumindo, do mesmo jeito da pulverulência dourada que se enrodilhava no pixaim mais curto que nascia na fímbria onde o couro cabeludo virava pele lisa da cara fontes cerviz. E chegou a hora de retomar a vesgueira da Indaiá. Era o que lhe trazia freguesia porque na Belo Horizonte daquele tempo ligava-se muito certas propriedades e autonomias das musculaturas pudendas e defeito do olho. Se é zara é que é de jogo bruto. E o estrabismo funcionava como indicador e farol. Multiplicavam-se os exemplos: tinha havido também uma certa Alzira Caolha que era um verdadeiro quebra-nozes.

A cabocla do Pipiripau era duma seriedade hierática e tinha, além disso, alguma coisa de conotação patriótica. Sua mania era o verde e muito da sisuda, não havia meios de receber os clientes em pelo. Sempre naquela camisinha curta que quando ela se punha de pé deixava ver as franjinhas do chamisco. Não tinha defeito pra esconder mas lá isso nua, de jeito nenhum… Apesar das nádegas venusinas, do ventre reteso e dos seios admiráveis que as alças amarelas da roupa do ofício deixavam ver ora um, ora outro. E as aréolas soberbas como rosas negras. E ela entregava-se com ar severo e concentrado que lhe punha no rosto mímica expectante, que lembrava o meio sorriso da Gioconda ou máscara de teatro chinês. E de repente dentro daquela veste que a luz do sol encerra — ela explodia, literalmente explodia, envolta em verde e amarelo e nas promessas divinas da esp’rança… E era toda, ela própria, um corpo de feriado nacional. E a artilharia salvava…

Mas Olinda era a mais linda flor lusa luzindo. Era toda em branco e negro como as bandeiras do Atlético. Branca da pele duma palidez lisa de pelica só que sem nenhum fosco — antes polida como os velhos marfins. Negra, dos cabelos tanto mais escuros e lustrosos quanto mais íntimos. Tão decididos, firmes e certos na sua direção que pareciam fios de aço fino pré-moldados. Escorridos na cabeça e caindo-lhe sobre a testa, escondendo os olhos, tapando faces e orelhas como as cerdas luxuosas dum poodle e deles roubando aquele negromineral profundo, tão intenso que vira na cor da barba do Barbazul. Olinda era meio teúda, semimanteúda pelo Conselheiro, nessa época ainda bem verde e não o velhote triste e nostálgico que apareceria mais tarde num conto profético de João Alphonsus.b Por ele e um pouco pela incontinência verbal que é sintomática do aparecimento freudiano do “protesto viril”, pelo seu gabo é que se sabiam melhor certas preferências da amante, detalhes do seu corpo e peculiaridades do seu comportamento — os quais armavam de telescópios os olhos e aumentavam a argúcia com que ele a detalhava e a possuía com todos os sentidos magnificados por um desejo — meu Deus! — daqueles desejos do amor enormenorme. Assim sabia-se que era prazer sutil arquipluriextragentil examinar-lhe as zonas em que os cabeludos do corpo se encontram com os glabros cutâneos com que confinam — desenhando nesses limites os mesmos contornos onde se fabricam mais as densidades da onda morrendo sobre areia clara. A vag’acaba, estaca, para, recua, retrocede e nisto vai crescendo em esverdeado leve, logo mais profundo ganhando profundamente em cor que — progressiva — se azulina escurece sob camadas, camadas sob camadas e mais camadas. Assim sua pele branca no liso se sombreava dum cinza, dum azul que se dissolvia sumia p’r’acabar fazendo corpo com o escurum dos muitos fios da cabeça e das borboletas negras e aves toutinegras que faziam manchas e riscos adejos de sable em campo de prata branca. O Conselheiro começava na testa, na ponta do bico de viúva que era como seta apontando para baixo. Acompanhava os relevos laterais empurrando vagarinho os cabelos para cima, estudando sua linha, a mudança de direção do seu implante, a descida aos dois lados da face, diante das conchas das orelhas, afinando afinando sumindo numa sombra extraordinariamente doce. Por trás a pele se esticava sobre a mastoide como pelica dum tambor orlada duma linha de nascida de cabelos tão regular que parecia mais uma intenção, coisa deliberada, que propriamente desenho dos acasos naturais. Arrepiando a nuca a contrapelo, aparecia a pele mais fina — a que pedia a flor da ponta dos dedos antes do toque dos lábios e da gustação da língua. Sabia a longínquo salino e esta sugestão marinha era perfeita doutra sugestão — agu’aromal — floresta da ilha do couro cabeludo. Era um cheiro natural oleoso e raro de sândalo que se casava à cor e à movimentação daqueles cabelos fortes e sedosos desordenados e negros. Nenhum perfume artificial maculava ou falsificava o aroma animal da cabeça de Olinda. E o Conselheiro virava-a, virava-se para contornar o modelo com a atenção do escultor que vai fazer um busto e busca mil de miles posições em roda para reproduzir o modelo em cada instante das épuras capazes dele partirem. Sob a testa curta as sobrancelhas de nanquim conhecidas fio por fio atraentes sobretudo — os menos densos se juntados na raiz nasal com os análogos do outro lado e que abriam, os dois, envergadura de ave planando. Encorpavam-se principalmente logo depois do centro, onde havia os que vinham de baixo das arcadas orbitárias e que subiam afinavam e abriam suas asas prodigiosas. E sombreavam as pálpebras de azul e roxo, os olhos sempre numa expressão de descoberta, surpresa e desapontamento de criança maltratada pela vida. O Conselheiro descia à boca pequena, virginal — surpreendente pelo que sabia fazer. Mandava abrir como num exame clínico. Era forrada internamente pela cortina de púrpura das bochechas, continha dentes: os perfeitos, os obturados a ouro, os chumbados a amálgama de mercúrio e prata. A ogiva palatina. E escondia a miraculosa língua. Mostrava os lábios um pouco amuados. E o prodigioso era o de que tudo isto era capaz quando se coordenava depois dos beijos na boca, nos olhos, corpo afora até chegar à felação preparatória. No lábio de cima de cada lado apenas sombreado um pouco mais visível do buço. O resto da pele das faces e do queixo era puro pêssego, pele de pêssego.

— Vir’um pouco de costas, minha Linda…

— Pra quê? meu bem…

— Nada não, amor, só pra ver sua pele nas costas.

E olhava cada centímetro quadrado detalhando policialmente. Depois, no conjunto: nas saliências, nas depressões, nos evasados. Ela ficava de costas na sua passividade paciência costumeiras até que o amante acompanhasse um por um fios duma penugem apenas visível que se juntava em ângulo sobre as vértebras e escorria como fio de tisna que se engrossasse ao de leve — recebendo os afluentes que acorriam para mergulharem todos juntos no misterioso rego. Aos seus lados duas metades de lua se molgando um pouco outra na outra e continuando a descer numa reta que súbito projetava-se sumia como os rios subterrâneos. Esse encontro nas nádegas não era riscado como num desenho de nanquim mas como se fosse um fusain trabalhado pacientemente a esfuminho que destruísse todos os contornos violentos e só desse àquele vale sombra, indecisão e mistério. Tudo isto era ainda capricho devido à convergência duma penugem mais fina e sedosa e volátil — picumã que a fuligem soma a teias de aranha muito raras e muito tênues.

— Agora de costas, Lindinha, barriga pra cima… Não, assim, não. Mãos na nuca para descobrir bem os sovacos e levantar os peitinhos…

Olinda com a cedência costumeira e seu impudor puríssimo e não calculado tomava cada posição imposta pelo amante. Pouco se lhe davam janelas portas abertas gente no corredor. O Conselheiro zeloso de si mesmo é que corria os ferrolhos para ter paz absoluta no seu prazer solitário de voyeur experiente. Sempre aquele branco e negro, aquela pele aqueles pelos. Curiosos, os axelhos. Raros, lisos e pouco densos — em contraste às outras zonas de mais roupagem natural. Pareciam estames e estilos escuros da grande flor branca e escavada. Iam para duas direções assumindo a forma de chamas de velas antagônicas — ponta para o braço, ponta para o lado de cada seio pequenino e de mamilos tão pouco salientes que era preciso sempre trazê-los à tona com prolongadas sucções. O Conselheiro devorava com os olhos. Acamava colando-os com beijos úmidos os axelhos delicados, dali a pouco secos, se desprendendo logo da pele e em instantes se erguendo como patinhas vivas de insetos microscópicos. Sem querer, o Conselheiro começava por ali a sua órbita, mas descia pelo prumo risco do centro até à flor do umbigo oloroso. Provava do seu entre acre e acerbo. Demorava um pouco e novamente seguia risca de menos em menos tênue até à prodigiosa sarça. Esta parecia vir de trás — vinha de trás, adivinhava-se que a linha esfumada de que se falou tinha se dividido em duas, tornara a se juntar, ganhara forças e levantava-se literalmente na forma duma caranguejeira, dum polvo milhão milhões de tentáculos, um tufo, uma fogueira que ardia sem clarão e que fosse só negrume de carvão, uma explosão levantando o cogumelo da rosa negra de Hiroshima… Tinha essa forma, tinha. Mas só que tudo parecia figuração bordada a relevo com novelos e novelos de seda metálica pretume de fios de ferro sobre um cetim que ondulava — mar todo branco. Todo branco… E aquele desenho espesso descia lado a lado para sumir na raiz das coxas, um pouco baixo na raiz das coxas. Esperava-se então ver novamente a pele brancalabastro. Mas ainda não, porque fina penugem subia que encontrava o trançado grosso de cima. Entretanto a pele glabra vencia de cada lado, atirando duas digitações simétricas e muito claras — irrompendo para dentro da pororoca das duas zonas de cabelo e pelo e penugem. A geografia deste par de pontas se adiantando tão lisos e polidos como pedaços iguais de concha — era a figuração do inexplicável para o Conselheiro que perdia o ar — da curiosidade daqueles claros-escuros: por que? aqui o claro, por que? mais lá tão escuro, tão clarescuro, mas agora tão claro, tão claro, tão branco, tão puro tão marca de lugar onde cabe a boca à direita, depois à esquerda. À direita…

— Olinda!

— O quê?

— Por que? cocê chama Olinda. Por quê? Tu num é pernambucana nem nada. Você mesmo me disse que era portuguesa…

— Portuguesa mesmo, bem. Meu pai era Danilo. Com as letras do nome dele fez o nome duma irmã que eu tinha chamada Oldina — coitadinha! Pra mim deu Olinda.

— Ondé? que tá seu pai… esse prinspe Danilo.

— Ah! brinca não, bem… Morreu. Desastre de caminhão. Escapou ninguém.

— E você tem mais família?

— Tenho.

— Onde?

— Ah! bem… Chega de preguntare. Deita.

— Não que ainda não cheguei aos pezinhos. Mas antes levant’um instantinho. Ficali naquele canto, na frente do armário. Não, da porta de espelho não! da porta escura.

Humilde, santa e canina ela ia e o repentino camafeu relumbrava. Tomava as atitudes que ele queria. Olhava para o alto. Agora para baixo. Dava os braços para ele passar a mão. Os antebraços.

— Puxa! Olinda. Como você é cabeluda… Devia mandar água oxigenada nesse capinzal ou então raspar…

— Não posso, bem. Quase todos gostam. Até que em Salvador eu tinha ap’lido de p’luda. Aqui é que virei Linda, Lindinha. Tudo serve.

Em pé, levantando os cabelos com as duas mãos seu contorno de corpo era uma sucessão ora de linhas de desenho e ora de lindes de estatuária. Sua silhueta era esculpida aqui por limites duros e nítidos ali pelos que a continuavam mas borrando o contorno, esbatendo-o por indetalhável penugem. Torso liso de estátua marmórea, joelhos duros, maléolos, pulsos, mãos — pegando-se partes nas outras por segmentos intermediários desenhados os contornos amolecidos por sombras geradas nos próprios locais e vindas duma pilosidade fazendo tatuagem tão tênue que dava a impressão de — se soprada — ir embora de sobre a pele. Assim, em pé, ela girava sobre si mesma ao capricho das ordens do amante que ele aos poucos arriava no chão. Ela já sabia que aquilo era para ela vir se chegando, sentar na cama e pôr os pés sobre as coxas do macho donde ele levantava um depois o outro, examinando-os dedo por dedo como a pétalas duma flor. Mesmo que ele ria mei’ofegante, envergava separando um por um dos pododáctilos, brincando de malmequer, bem-me-quer. Eram uns pés delicados, precisos, cambrês numa arcada de arquitetura mais invejável que a dada por Ingres às solas do seu Édipo. O Conselheiro que nunca tinha atentado nisto, descobria-se de repente fetichista dos pés e manipulava os de Olinda principalmente movendo para cima e para baixo o antepé que ela possuía ágil e hipermóvel. E um dorso só correspondido pelo côncavo perfeito do arco longitudinal. Ela gostava de se mostrar em conjunto e se oferecer em detalhe a cabeça alta e bem-posta sobre o pescoço cujo elance dava-lhe a cada movimento, ar mais vigilante e atento ao que ele sustentava: sua cabeça divina. E implantava-se sobre um tronco ousado, peitos altos e salientes, talvez um pouco longo para a altura das pernas de brevilínea redonda e musculada mas sem gorduras supérfluas. Suas proporções e índices corpóreos construíam movimentos de uma inevitável elegância e cada gesto seu parecia um momento de balé. Ela era sucessiva e ia saindo de si mesma quando trocava seus passos decisivos e ovantes. Era saudável, tanto vegetal como animalesca, lembrava um lírio subindo rompente e floral ao mesmo tempo que um trote de potranca — potranca, não: de cavalinho, de potrinho — bando de potrinhos de Teruz nascendo uns dos outros como figuras sucessivas e se completantes dum filme feliz. Não tinha um movimento desafortunado. Nem fisicamente, na simples dinâmica, nem quando esta se empenhava e começava a tomar parte na sucessão dos atos eróticos. Ela não tinha nenhuma imoralidade pela razão muito simples de ser um bichinho inteiramente amoral e instintivo. E toda a explicação de sua passividade obediência submissão ao Conselheiro (ou a outro freguês de acaso) era a intenção de levá-lo até a ponto de arreitamento em que ele ficasse inteiramente nas suas mãos. Ela podia então — sem indignar o macho — investir-se no papel ativo que gostava de assumir no coito. Nessa hora ela tornava-se absolutamente senhora de tudo. Independente, cuidava só de si como se aquilo fosse cena bilaquiana dos amores de aranha e amores de abelha. Ela era todo um contraste entre o ar pudibundo, a palavra medida habituais e o modo como de repente consentia e fazia tudo para excitar. Sim fazia tudo — mesmo da própria boca — que seus amantes olhavam como a um outro órgão genital. Sua sucção e a virtuosidade de sua língua eram eruditas e oportunas. E no instante preciso ela atirava-se sobre o homem deitado de costas, sujigava-o (mãos nos ombros como na vitória de uma luta romana) e possuía-o à turca: como quem monta numa sela turca. E naquele momento, apesar de desligar-se da participação do companheiro e de entregar-se a uma espécie de masturbação sobre a haste em que se empalava até ao Douglas é que ela tornava-se mais excitante. Ficava toda visível nas contrações da musculatura do ventre, na paisagem movente dos seios que pareciam autônomos e principalmente no espetáculo tenso e terrível de sua fisionomia. As sobrancelhas espessas subiam num ângulo agudo de testacima como para tocarem o seu bico de viúva. Os olhos não piscavam mais, entreabertos e pálpebras imóveis viam-se seus globos desviados para a direita e para o nadir — olhando um certo ponto, sempre o mesmo mágico ponto embaixo dos pés da cama — como se esperasse ansiosamente que dali fossem surgir uma explosão, a erupção de um repuxo de rosas e de raios, o estouro duma manada de centauros, uma daquelas revoadas de anjos centrifugados por Gustave Doré. Uma palidez maior a cobria e metade do lábio superior direito entrava em contração que lhe dava generosidade de curva barroca, o de baixo acompanhava e os dois deixavam aparecer os dentes de fera onde a luz fazia nascer estrelas inesperadas dum pivô incrustado noiro. Depois era como se lhe parasse o coração sumisse a respiração e envolvida na mortalha dum suor gelado caía mal tendo força para entregar os lábios ao pobre amante vencido e sesvaindosse. Parava um instante (ou milênios) e depois ressurgia dentre os mortos se enxugando e enxugando como verônica caridosa o que tinha de enxugar por obrigação de ofício e dever de carinho caridade. Ainda nua em pelo tomava seu ar de inocência e pucelagem. E não permitia sequer alusão ao minuto que lá caíra, defunto. Mas a hora melhor para o Conselheiro era a do repouso do depois. Olinda levantava primeiro e nua, natural e casta ia proceder a suas abluções na bacia de louça do toalete e ao semicúpio no clássico bidé portátil. E o bom era vê-la enxugar-se e nessa oportunidade redetalhar redecorar seu miraculoso corpo. E o Conselheiro debruçava-se sobre esses insondáveis em curvas, movimentos, graça, agilidade, pele e fâneros. Compreendia os cabelos da cabeça como um casco protetor, toda a roupagem pilosa dos braços e pernas como agasalho natural, as sobrancelhas, pestanas e pelos nasais como guardas defendendo cavidades delicadas contra poeiras e agressões do exterior. Estendia esse papel aos pelegos em forma de borboleta, morcego, pássara, folhas simétricas, catleias, fusos, losangos: eram paliçadas em torno aos genitais e mandando ainda um pouco de suas reservas de lasca afora para fazer anel custódio já fininho, depois mais grosso, espesso, fornido ou arame farpado em torno ao sedal. Isso o Conselheiro compreendia. Mas mistério para ele, mistério insondável como a ideia da gravitação e a concepção do infinito é de como a natureza tivera intuição ornamental tamanha — no verdadeiro ato gratuito que fora pilosear o prodígio dos sovacos já de si tão resguardados gruta funda. Por que? o capricho daqueles cabelos, cabelhos de axila — axelhos — existindo ali, de cada lado, como duas chamas se pegando pelos pés, dois lepidópteros de asas ora negras, ora castanhas, ora vermelhas, ora de ouro puro saindo em direções impostas pela nascida dos fios opostos, dos grupos de fios contrários: um, alerão braquial e um, alerão peitoral. E o porquê do potencial de erotismo que é contido por sua vista, sua seda, seu gosto de mar, seu cheiro de ventos de terra — um dos mais excitantes e deleitáveis dos odores naturais de todo o corpo humano. O cheiro do corpo humano… E isso é lá assunto de que se trate? É preciso uma explicação às almas delicadas que procuram disfarçar seu próprio cheiro encobrindo-o dos perfumes mais baratos, mais caros — cujos fixadores são feitos com essências tiradas dos genitais da cobra ou das glândulas imundas da pança do almiscareiro. E sabeis? que as flores são nem mais nem menos os órgãos sexuais das plantas femininas, masculinas e hermafroditas. As notas mandadas pelo Egon a Pedro Nava e donde ele tirou essa narrativa, estão cheias de reflexões do primeiro sobre o assunto. Ele conta que cheiro é presença. Deus, a Mãe de Deus, seus anjos e seus santos são precedidos na sua aparição por perfume delicioso. Os endemoninhados sentem a possessão do seu dono torto pelo bafo de enxofre e peidão que a precede. A infância, a adolescência, a mocidade, a saúde e a beleza sempre cheiram bem. A aca, o bodum, a catinga, o xexéu, a inhaca, o chulé e o fartum são os fedores corrompidos da maturidade, da velhice, do desgaste, da doença, dos pré-cadáveres. O cheiro do corpo normal é parte do halo sexual das criaturas. O corpo humano na sua superfície e cavidades acessíveis é tão profundo e complexo como a alma que dizem que o habita como sopro de vida ou divino. Ambos são difíceis de explorar; mas o primeiro tem de sê-lo com todos os sentidos: tato, vista, gosto, ouvido, olfato. Os cheiros do macho ou da fêmea são viceversamente afrodisíacos. Nesse caso o dos pés deve ter o mesmo papel do dos genitais. Compreenda-se nessa afirmativa do Egon o cheiro normal, não o corrompido pela idade, doença e pela prisão nas sapatrancas e nas botinas em que aparece — como as infecções que são favorecidas nas cavidades fechadas. É de duvidar que fedessem os pés que calçaram as sandálias gregas e as calígulas romanas. Estavam meio nus e expostos aos ares como os pés dos deuses pagãos de pouca roupa. O olor dum pé normal deve ser afrodisíaco porque a natureza o torna mais forte e perceptível com a puberdade e persistente durante a atividade da vida sexual. Alteram-se, azedam e se vão desengraçando com a menopausa e a andropausa. Seu papel deve ser dos mais importantes na vida sexual já que ele se projeta se irradia com a mesma energia com que se expandem os sovacos e os órgãos genitais na turgência do desejo, mais seus anexos secreções dobras que os protegem (ou embelezam?). Poderia? o Conselheiro amante fetichista de pés — que lhes conhecia a forma pela vista, que os escutava no estalar das juntas e na batida firme no chão, que sabia das saliências e depressões pelo tato — poderia o Conselheiro exilar desta festa o sentido mais agudo e que mais auxilia a erotização? É preciso dizer essas coisas às almas hipócritas e antinaturais que se proclamam delicadas quando são apenas estúpidas. Pois aprendei, almas inglesas, mais uma que é de estabelecer dúvidas terríveis na consciência do bem e do mal. Sabei que estudos recentes de embriogenia comparada ensinam que as glândulas de Bartholin que se escondem nas plicaturas da vulva são restos milenares de seios onde mamavam os homínidos filhos de nossas avós pré-quaternárias que ainda estavam pra lá das macacas e que tinham duas fileiras de seios como hoje as ostentam as cadelas. Isso perturba muito mas explica e justifica tanta coisa…

Quando o Conselheiro saiu do quarto da Olinda deu de cara, em cheio, com o dr. José Egon Barros da Cunha que se despedia duma mulata na porta fronteira do corredor. Apesar de companheiros do clube, de serem o que comumente se chama amigos, não se cumprimentaram. O primeiro tomou um ar vago por trás da muralha dos óculos negros, carregou mais o chapelão desabado sobre o nariz, ajeitou o cachenê por cima do queixo e saiu na frente, passos apressados. O segundo fez de distraído, de preocupado com as horas, ficou a olhá-las, seguindo o corréu com o rabo de olho, deu tempo ao tempo e pirou minutos depois. (Mas vira claramente vista a Olinda nua e tranquila e ali mesmo prometeu-se firmemente cornear o nosso Conselheiro.) Tomou Guaicurus que se iluminava e abria suas janelas para o turno da noite que descia. Seguiu em direção à praça do Mercado precedido, ladeado, seguido dos outros farsantes da procissão diária de entre lobo-e-cão. Os que ainda esta noite dariam opiniões ponderosas nos salões do Automóvel e do Jockey Club, no dia seguinte dariam suas aulas, assinariam seus pareceres, seus récipes, seus acórdãos; diriam suas missas, ouviriam em confissão, absolveriam; fariam seus partos, suas intervenções cirúrgicas, suas percussões; chancelariam, assinariam e dariam fé tabelioamente; desenhariam plantas de pontes e traçados de estradas; abençoariam os filhos, os netinhos e segurariam o braço gordo ou seco das cônjuges. Também os moços bem-comportados fariam mímica de honra e honestidade com aquelas mesmas mãos que alguns recheiravam assustados conferindo se a lavação tinha mesmo limpado das impurezas de todos os cheiros. E segurariam, exemplares, varas de andores de procissão ou do pálio do senhor bispo. E meteriam aqueles dedos nas pias de água benta e se persignariam… Depois do jantar, em casa, o Egon comentava isso com o Nava.

— Nesta hora eu me pergunto onde andaram e que fizeram? aquelas munhecas…

A pergunta tatuou-se dentro da cabeça do segundo naquela noite de 1929. Exatamente nove anos depois, completar-se-ia a gravidez de “O defunto” e o primo do Egon escreveria na noite lancinante da Urca o poema que o habitara desde a infância.

 

— Meus amigos! olhem as mãos!

Onde andaram, que fizeram,

em que sexos se demoraram

seus sabidos quirodáctilos?

Foram nelas esboçados

todos os gestos malditos:

até furtos fracassados

e interrompidos assassinatos.

[…]

 

Gestos malditos? ou simples gestos de pobre humano se segurando na vida roída pelos sessenta ratos de cada minuto…

 

 

 

Personne ne fait de prodiges… moi pas plus qu’un autre. Je réfléchis, je
déduis, je conclus, mais je ne devine pas. II n’y a que les imbéciles qui
devinent.

maurice leblanc, Arsène Lupin contre Herlock Sholmès, “La lampe juive”

Não. Não é vergonha nenhuma não, tomar para epígrafe uma boa frase de escritor popular. E vai ser contada debaixo da que encima esse subcapítulo, anedota que concorda com esta afirmação. É a que corria na Santa Casa carioca — atribuída a Miguel Couto. O Egon a ouvira de Aloysio de Castro, nos saudosos tempos em que fora seu assistente, na Quarta. Fato que teria ocorrido no princípio do século, logo depois de 1901 e do investimento do grande mestre na cadeira de clínica propedêutica. Um encrencoma tinha dado entrada na enfermaria. Doente avaro de sintomas: uma dor epigástrica invencível, um emagrecimento progressivo, uma febrinha irregular, anemia crescente e mais nada. Todos debruçados sobre o quebra-cabeça, chefe e assistentes, professor e alunos, diariamente empenhando os cinco sentidos sobre aquela barriga enigmática. E o homem a piorar, a piorar até chegar à caquexia, à anemia grave, aos edemas discrásicos, à antevéspera da morte, à “fácies hipocrática”. E nada de diagnóstico. As vísceras abdominais mudas e sem responder com seus sinais maiores ou seus sintomas decisivos. Todos, do grande Couto ao último interno, apenas com diagnósticos sintomáticos. Laboratório? naqueles tempos: incipiente e pobre. Raios X? Neres. Laparotomia exploradora? Qual era? o pintado para ousar tanto. Quem ia contar a história era a autópsia. Todos tinham hipóteses, Couto, dúvidas. Só um destes turistas de enfermaria, destes médicos ou estudantes que vão ao hospital para dar seu passeio, tomar seu café, pitar seu cigarrinho, palestrar à hora da rubiácea, só um — e no caso um estudante repetente — que nunca interrogara, palpara ou percutira o paciente, tinha dado sua sentença desde o primeiro momento em que o vira de relance.

— Professor! isto é um tumor maligno da retrocavidade dos epíploons — não lhe parece? E não é muito volumoso. Não será o volume que faz estes distúrbios gerais e sim sua malignidade. Pra mim tá claro…

O polido Couto fazia um sinal de cabeça, um jeito de ombros, de mãos, um meio sorriso e ia sem responder. E o moço a dar-lhe todos os dias com o seu tumor. Pois o doente morreu. Sala de autópsia à cunha. Abertura do tórax. Nada. Abdômen explorado e lá estava o filho duma égua dum tumor da retrocavidade dos epíploons — nada volumoso — mas extenso em superfície, difuso, profundo, tão pastoso que não se deixava localizar. O autor do diagnóstico, triunfante, acercou-se do mestre para receber as palmas da vitória.

— Viu? professor. Eu não disse? Ah! Tive certeza desde o primeiro instante que assisti o senhor examinar.

Dizem que Couto demorou a responder. Fixou muito tempo os olhos mansos, cercados das famosas olheiras, na cara do imbecil que tinha adivinhado e fez apenas uma pergunta, antes de virar as costas e sair.

— Meu filho! me dig’uma coisa: por que? você não faz cada dia seu palpite no jogo do bicho.

Verdade ou invenção, acho o caso exemplar. Contém lição que deve sempre ser lembrada para escarmento dos vaidosos, dos infalíveis. Pode-se acertar um diagnóstico por tolice, como errá-lo ou não fazê-lo por querer ficar dentro da regra do jogo e da técnica. Isso era de ontem, sem recursos auxiliares suficientes, como ainda é de hoje, com as máquinas de diagnóstico mais sofisticadas e os mais finos recursos do laboratório e da anatomia patológica. O erro é permanente e chega para todos. Não há doutor sem seu cadáver no armário. Ou seus muitos cadáveres nos armários…

A necessidade de uma interpretação exata dos sinais e sintomas colhidos, seu cotejo, sua inter-relação são a chave dum diagnóstico. Este era justamente o assunto que naquela manhã o Ari Ferreira, o Nava e o Egon discutiam em torno dum leito da Segunda Enfermaria de Clínica Médica de Mulheres da Santa Casa de Belo Horizonte. Sim, porque os dois primos tinham voltado a trabalhar onde o faziam como estudantes e agora, como assistentes. Tudo tinha acontecido facilmente — como que disposto por uma providência favorável. Uns dias depois da chegada a Belo Horizonte eles tinham ido sondar o terreno. Saíram de casa um pouco tarde, calculando chegar à Segunda, hora do café, quando o grosso do trabalho já estava feito. Era a hora em que o Ari descia para o Pavilhão Koch e lá eles conversariam melhor. Tinham vindo por Bernardo Monteiro e dado logo com a vista no velho hospital que tanto amavam. Tinha sido festa na portaria com a irmã Madalena, outra à entrada da enfermaria com a irmã Salésia e a Conceição. Quando eles chegaram em torno à mesa do chefe, onde estava a bandeja, caíram nos braços do Laborne, do Ari e do Paulo Sousa Lima, agora assistente efetivo, em substituição ao Oswaldo Melo Campos, transferido para os galarins de Catedrático de Clínica Médica.

— É verdade, o Oswaldo. E onde é o serviço dele?

— Continua usando o material de nossa enfermaria. Nem foi dela desligado. Está agora no anfiteatro novo, dando aula, curso notável. Vocês querem? ir até lá. Ele começou há uns quinze minutos. Ainda pegam quase tudo…

— Fica para outro dia, Paulo, mas nós viemos aqui hoje para dar uma conversinha com o Ari. Foi propositalmente que chegamos agora. Sabíamos que era hora dele descer para o Pavilhão e se é que ele vai pra lá, vamos com ele…

— Só acabar o café e vamos pralá.

Os primos saborearam seu cafezinho, acenderam seus cigarros, conversaram mais um pouco com o Laborne e o Paulo, este chamou para perto um moço de pouca altura, riso muito aberto, dentes oferecidos e muito brancos, olhos rasgados, cabeçudo. Apresentou.

— Esse é o meu interno, Mário Pires…

— Muito prazer…

— Não é? o parente do mestre Aurélio, o filho do Zoroastro Pires.

Era. E esse fato acabou de reintegrar os dois primos no ambiente onde tinham vivido quatro anos como estudantes. Reassumiram o cheiro da enfermaria e tinham a impressão de que as doentes eram as mesmas que eles tinham deixado ali, prostradas nas caminhas metálicas pintadas de verde, em fins de 27. Havia outros internos, fazendo o que eles tinham feito tanto tempo. Um manejava o Potain, outro tirava a pressão demorada com o laborioso Pachon, um terceiro metia seu trocater num globo abdominal e logo a parábola dourada do líquido ascítico foi projetar-se no balde branco colocado no lugar certo. Um quarto estava por trás de uma doente sentada na cama, costas descobertas — onde ele corria os dedos ponto por ponto, explorando o frêmito toracovocal.

— Diga trinta e três, minha filha. Não, assim não, um pouco mais alto e bem devagar. Preste atenção, assim — trintai-três-trintai-três — vamos. Assim mesmo, isso, assim mesmo, vá dizendo.

— Parece até que estamos em tempos do Laennec — disse o Nava.

— Só que ele não mandava dizer trinta e três — retrucou o Ari.

— Evidente, tinha de ser trente-et-trois — soltou d’alto o Egon.

— Oh! sua besta! Será que você não sabe que era Ker…

O Ari quase tapou a boca do Nava. Queria gozar a besteira do Egon. Mas esse logo se reabilitou, dizendo francamente que se não era trente-et-trois ele entregava os pontos. Não sabia.

— Trinta e três foi a solução luso-brasileira — disse o Ari. — Esse número bem escandido com seus rr e tt, faz vibrar bem a parede torácica durante a fala. Mas Laennec tinha escolhido para isso o nome rascante duma cidade de sua geografia sentimental. Mandava dizer Kerrr-loua-nec, Kerlouanec, com vários rr e o estacato bem nítido do C final, cidade do Finisterra onde, por sinal, acabou sua vida…

— O primo não acertou porque ainda não abriu um volumezinho que lhe emprestei, tem uns dias, sobre a vida desse homem fantástico. É um gênio: ausculta, processo anatomoclínico… Foi o criador da clínica moderna. Não vejo outro.

Mas entravam no Pavilhão Koch e o Ari seguido pelos seus antigos internos foi direto ao seu pequeno gabinete. Um cheiro de creolina reambientava os dois rapazes que logo se explicaram. O Egon com a palavra.

— Mestre Ari, vamos ficar em Belo Horizonte e daríamos tudo para voltar ao trabalho em sua companhia… se você ainda nos quiser…

— Ora esta! Não quero saber de outra coisa. Parece que eu tinha adivinhado essa “volta à casa paterna”. Tinha uma espécie de pressentimento. Só que vocês agora não vão “ficar comigo”, como disseram. Vão ficar como assistentes e sendo assim, vamos ficar é juntos, os três. Amanhã mesmo falo ao Marcelo e tenho certeza que é tiro e queda. Quando entrarem, faremos uma redistribuição de leitos na enfermaria. Aqui, no Pavilhão é metade para um, metade para o outro. No mais, tudo como dantes…

— …no velho quartel de Abrantes — completaram os primos.

Agradeceram muito, combinados que começariam o trabalho logo no dia seguinte. Para eles foi como se um segmento luxado dos seus membros tivesse sido reencaixado no devido lugar da articulação. Nem parecia que tinham passado o ano e tanto no Desterro e em Juiz de Fora. Cada coisa que eles olhavam era uma espécie de restituição: o jardim interno com seus canteiros altos, suas aleias vermelhas de minério de ferro, a grama cabelinho, as flores de todo o ano e no centro, erguendo-se dentro do colorido dos verdes variados e das flores azuis, amarelas, róseas, vermelhas e rosicler — a velha Caixa d’Água recortava-se tão nítida, tão negra, tão precisa que parecia uma incisão cruel de gravura em madeira. E ela parecia maior, na sua estrutura — a única que não deixava sua forma esbater-se dentro da luz poderosa da manhã que antes a definia mais, e mais salientava seus contornos metálicos. Alongando a vista por sobre o jardim viam-se, do outro lado, as janelas da enfermaria do Werneck e seu vulto indo e vindo no meio da coorte dos seus acólitos. Em julho os moços puderam marcar duas datas memoráveis de suas vidas. A 4, a nomeação para assistentes voluntários da Segunda Cadeira de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da Universidade de Minas Gerais. A 14, dia da tomada da Bastilha, para assistentes efetivos da Segunda Enfermaria de Clínica Médica de Mulheres da Santa Casa de Misericórdia de Belo Horizonte. Tinham subido o degrau mais difícil, o primeiro da carreira magistral. Tudo trabalho do Ari Ferreira. Como o Samuel aparecesse pouco na sua enfermaria e o Marcelo só viesse para dar suas aulas, a parte administrativa do serviço era resolvida de comum acordo entre os assistentes efetivos. Assim não houve nenhuma dificuldade no remanejamento dos leitos e os dois novos tiveram sob sua responsabilidade cinco camas, fora as que lhes cabiam metade a metade no Pavilhão Koch. Competia-lhes perante a Santa Casa a exclusiva assistência das doentes. Já perante a faculdade, essa somava-se a deveres para com o professor e para com os alunos. Tinham de preparar com o maior cuidado as observações e reunir todos os exames subsidiários para cada doente motivo das aulas do catedrático. Isso dava muito trabalho porque nenhum deixava de ter a vaidade de querer apresentar sempre casos completamente esmiuçados e com o diagnóstico já feito. Quando estavam nestas condições, sua lista era apresentada ao professor que olhava o cardápio, escolhia com antecedência e semana seguinte era a preleção para os alunos, em aula de anfiteatro. Preleção que no fundo era uma aula de patologia interna. Porque aulas propriamente de clínica médica eram as que davam os assistentes, de surpresa, recebendo as doentes à vista dos estudantes, examinando-as pela primeira vez aos seus olhos, dizendo por que faziam isto ou aquilo, assim ou assado, que o diagnóstico provável era este, que a doença pedia para confirmação tais e tais provas subsidiárias, interpretá-las sob a fiscalização nem sempre benévola dos jovens principiantes, apontar as entidades que podiam se confundir com a que estava em mira, dar os princípios de como proceder a um diagnóstico diferencial. Depois o tratamento e o porquê de cada remédio. Mostrar como se acompanha um caso, como se o reexamina cada dia para armar a “atalaia da Vida contra as emboscadas da Morte” — querendo falar como falava o velho Curvo Semedo. Como se julga uma evolução favoravelmente ou prevendo um desfecho sombrio. Errar, confessar que errou, que todos erram, estudar as causas do erro com os próprios alunos, fazer uma sincera autocrítica, bater nos peitos e sussurrar seu mea-culpa — por pressa, desatenção, ideia preconcebida, ignorância. O Egon adotara esse sistema e parece que isso agradava, porque à hora de sua visita já tinha seu pequeno séquito fiel de três, quatro, cinco estudantes a acompanhá-lo e já a tomá-lo como conselheiro. Ele levava extremamente a sério o ensinar a bem examinar — como aprendera do Ari — e sobretudo dava ênfase à observação — à arte de vasculhar o doente com todos os sentidos levados ao pleno do alerta. O ímpeto de “virar a natureza pelo avesso” como dizia Couto, de Austregésilo. Sua vida de professor, que foi longa, teve começo em junho, julho de 1929 na Segunda Enfermaria da Santa Casa de Belo Horizonte.

Além das verdades, procurava transmitir a seus primeiros discípulos as dúvidas que já o assaltavam. Em pouco tempo de estudo e exercício já assistira mutações, modas ascendentes, modas em declínio. Já sabia que a verdade de hoje pode ser o erro de amanhã. Que quase sempre é assim. Que toda a arte médica estando em constante reformulação e reforma, tudo que é atual e moderno é duvidoso e esconde uma mentira ou um engano que os tempos vão tornar aparentes. Que a medicina é, assim, instável — a construção duma cidade sobre solo em terremoto permanente. Que disso nascem a insegurança íntima do médico e uma espécie de angústia ruim que o habita — e altera sua alma. Quando ele leu aquela história de Villiers de l’Isle-Adam — num de seus “contos cruéis” — “Le Secret de l’Église”, ficou com aquilo por dentro e descobriu que a medicina também tem seus segredos, seu segredo. O conto do escritor francês é a história dum padre jogador que, tendo perdido todo seu dinheiro e todas suas posses, queria continuar a jogar. Apostou os vasos, os cibórios, candelabros, ostensórios da sua paróquia, suas alfaias — e perdeu. Quando se viu a neném arriscou contra tudo o que perdera, o “segredo da Igreja” — que ele, sacrílego, revelaria ali. Os parceiros aceitaram e mais uma vez o reverendo perdeu. A muito custo e muita instância, ameaçado e apertado, teve de pagar, ou seja, revelar o segredo maior, o extra, suprassegredo da sua religião. Lívido ele o soltou. “Le secret de l’Église c’est qu’il n’y a pas de Purgatoire.” Os parceiros riram no princípio mas quando a ideia da irremissibilidade e de condenação imediata e sem apelo contida na frase os penetrou, ficaram mais sem sangue que o sacerdote indigno. E o Egon pensava no desamparo que seria o da humanidade no dia em que ela soubesse do nosso segredo e que alguém tivesse bastante coragem para dizer também — o segredo da medicina é que todas as doenças são incuráveis. A cura, a cicatriz já pode ser outra doença. Uma válvula cardíaca inflama, cura, cicatriza e se retrai e é nessa cura paradoxal que vai se entaipar a morte paciente esperando os efeitos a longo prazo da insuficiência e da estenose. Um simples resfriado deixa seu rastrinho de nada. Mas deixa. Indelével… O cirurgião que tira um pedaço do corpo e com ele a doença, deixa atrás de si uma falta que, em sã consciência, devia impedi-lo de usar a expressão “alta curado”. Um amputado das pernas, das duas pernas, escapa, cicatriza. Tem a dita alta curado. Mas já não é um homem. É uma variedade d’homem — é um mutilado. O Egon infiltrava com seus ensinamentos, essas pastilhas de veneno. Mas dava também o antídoto. Ensinava, honestamente, que as doenças não têm cura mas que todas têm tratamento. Este é outro segredo do médico. Auxiliar o equilíbrio somático acompanhando a natureza na sua reconstrução provisória. Nunca remando contra a maré. Sabendo desde o princípio que toda a medicina é o ato gratuito de saber diagnosticar. Depois medicar pouco e na hora, não ser ativista terapêutico. Entender o doente. Conversar com o doente. Saber ouvi-lo com paciência. Amparar com o remédio sintomático. Consolar com a presença, a palavra oportuna, a bendita mentira, o santo perjúrio. Ser bom e simples. Guardar e repetir a cada instante a melhor coisa que ensinou Miguel Couto em frase um pouco rebuscada: “Se toda a medicina não está na bondade, menos vale dela separada”.c

A manhã de ouro daquela segunda-feira parecia dominical. Tudo tão maio, tão claro, tão refulgente, tão levelevitando-se que parecia que as coisas tinham passado por transmutações cores se desmaterializando e aparecendo aqui só luz, mais adiante cada folha fin’esmalte, cada tronco moldado em cinza, mais leve que a cinza que parece que vai voar. A rua resplandecia. O pátio central da Santa Casa era festa de flores líquidas como pingos coloridos sobre a água verde da grama. Ao centro, nem a caixa-d’água era mais de ferro feio pesando sobre estruturas metálicas de sustentação. Seu bojo negro pulverizado de ouro, arredondava e dir-se-ia aeróstato a desprender-se das ferragens trançadas mais retesas que as amarras dum balão cativo que vai deixar de ser cativo, vai soltar-se voar consumir-se no ouro e no azul dos altos onde correm os balões de prata das nuvens cúmulos. O sol era como se tivesse entrado nas próprias sombras da Segunda Enfermaria, nos cantos, debaixo das camas e no escuro de todos os dentros só podia existir claridade. Ela se insinuava, para levar o dia glorioso, pelas frinchas mais estreitas, pelos pertuitos mais finos. Que nem um levantar de sol, o professor Samuel transpôs a porta acompanhado da figura mitológica dum adolescente cuja cabeça coruscava como os olhos — aquela dum broscarrê feito de fios de fogo, estes dum verde longínquo, gonçalvino, marítimo e alencarino. Logo o chefe do serviço tomou lugar à sua mesa, fez sentar o moço à sua direita e ele mesmo serviu-lhe o café da bandeja reluzente que a Conceição fizera baixar entre eles. E mandou que ela virasse som e fosse ela própria um toque de reunir.

— D. Conceição, faça o favor de chamar todos os assistentes, os internos, veja se o professor Oswaldo já acabou sua aula. Para virem falar comigo. Logo que possam, se possível, imediatamente, já, agora… A irmã Salésia também.

Nem cinco minutos eram passados que rodeavam-no todos os que trabalhavam na Segunda. A cada que chegava o professor recebia com o melhor sorriso, trocava umas palavras. Quando viu todos reunidos, fez uma espécie de pausa, virou-se um pouco para o moço que o acompanhara e este logo se pôs de pé. O chefe dirigiu-se primeiro a ele. Não pediu propriamente licença para apresentar os presentes mas sua mímica exprimia a proeminência emprestada ao visitante.

— Meu querido Evandro, quero apresentar a você o professor Oswaldo de Melo Campos, nosso novo catedrático, o professor Marcelo dos Santos Libânio e mais todos meus colaboradores no Serviço da Segunda Cadeira: assistentes Ari Ferreira, Eliseu Laborne e Vale, Paulo Sousa Lima, assistentes voluntários Pedro da Silva Nava e José Egon Barros da Cunha. E essa mocidade que os acompanha são os nossos laboriosos internos. E aqui a alma da enfermaria, nossa virtuosa irmã Salésia. Meus senhores, irmã, tenho a honra de apresentá-los ao professor Evandro Serafim Lobo Chagas, filho e seguidor da tradição gloriosa do Cláudio Bernardo brasileiro — o nosso grande cientista Carlos Ribeiro Justiniano das Chagas.

O mestre quisera dar solenidade à apresentação mas, infelizmente, o que foi acima e que ele soltou sem se interromper, fora tumultuado pelo Oswaldo e pelo Ari que não esperaram o fecho de ouro para caírem nos braços do visitante. O primeiro já o conhecia de Manguinhos, dos tempos que lá estagiaram com Chagas e o velho Lutz. O segundo, de toda vida, pois eram parentes — sua mãe prima chegada do individualizador da Tripanossomíase americana. Foi só depois das efusões do Oswaldo, do Ari e do Evandro que os outros, em ordem, como os nomeara o chefe, desfilaram diante do moço — cada um para o seu muito prazer em conhecê-lo. O Egon deixara-se ficar para o fim, estudando a figura e os modos do apresentado. Admirava-se do Samuel ter dado o título de professor àquele garotão com cara de estudante. Depois é que viu que estava tudo muito certo pois Evandro Chagas já era, desde 1928 — professor contratado de Clínica de Doenças Infecciosas e Tropicais da Escola de Medicina e Cirurgia do Instituto Hahnemanniano do Rio de Janeiro. Nascido a 10 de agosto de 1905, pusera os pés no tablado onde assentam as cátedras, com a idade de vinte e dois para vinte e três anos. Era um recorde na história do ensino da medicina no Brasil!

O Egon olhava com curiosidade aquele quase adolescente de rosto magro e longo, terminando num queixo oval, cuja doçura de linha diminuía a dureza de certa angulosidade de suas bossas frontais, muito descobertas pela inserção alta dos cabelos que lhe faziam testa ampla, larga, franca — uma destas testas eloquentes, no caso, tanto quanto o era a força do olhar que saía debaixo dela. Um olhar a um tempo manso e doloroso, uma expressão que mesmo num moço já mostrava a passagem das tempestades da vida. Adivinhava-se que algum drama houvera ali desempenhado seu papel de amadurecedor à força dos pobres humanos… Seu nariz era fino, bem-feito, como a boca bem talhada. Entre os dois um bigode inexplicável, não mais largo que a largura que ia duma narina à outra, bigode cheio, espesso, eriçado, tufudo — um bigode à Charles Chaplin e que mais tarde seria imitado por Adolf Hitler. Tinha um pescoço atlético metido num colarinho um seu tanto folgado. Gravata-borboleta misturando várias cores e gritando de estar junto ao terno dum cinza cor de chumbo, também de corte amplo. Usava uns sapatões esportivos, sola dupla, salto muito sólido. Tudo que se podia imaginar do mais normal e corriqueiro, em pessoa bem-vestida mas sem pretensão. Só aquele broscarrê, o bigode e a gravata davam na vista e pareciam um quid de originalidade, uma espécie de marca pessoal, uma assinatura de peculiaridade que o Egon compreenderia mais tarde quando tivesse conhecido e praticado a gente de Manguinhos — que timbrava em se apresentar sempre em sociedade com um toque que os diferençasse a eles, cientistas puros, da malta inope e superficial dos médicos — esses clínicos ignaros, cirurgiões broncos e parteiros ineptos. Do mesmo modo eles se vestiam para o trabalho com aventais cheios de manchas propositais de corantes, rasgados aqui e ali, gastos pela força dos álcalis e ácidos — ao jeito que a mocidade de hoje descora de modo desigual suas calças de brim e tré azuis tratados à água sanitária. Era uma espécie de gênero da casa, importado da rue de l’Ulm e do Instituto Pasteur de Paris, onde certo desleixo era justamente a nota elegante dos Roux e dos Calmette.

Reparando nestas coisas que compreenderia depois, o Egon sentia pelo Evandro uma curiosidade e uma simpatia que anunciavam a amizade que nasceria imediata e sincera da primeira convivência. Foi o que aconteceu depois, no Rio de Janeiro, onde trabalhariam em tarefa empolgante e comum. Mas… não adiantemos. Fiquemos na Segunda Enfermaria da Santa Casa de Belo Horizonte nestes tempos de 1929 quase 30 quando por ali foi ter o Evandro, vindo do Rio e de passagem para Lassance onde ia fazer certas verificações e colher material para os trabalhos do pai. Mas já o professor Libânio retomava a palavra, agora junto ao leito de uma mitral que ia ser examinada pelo filho do seu grande amigo Chagas. Depois da apresentação oficial ele fazia uma espécie de exposição do curriculum vitae daquele jovem colega já tão cheio de títulos como qualquer pesquisador envelhecido no metiê.

— Imaginem os senhores que aqui o nosso Evandro começou a frequentar Manguinhos pelos seus sete a dez anos. Ia lá em companhia do pai e passava o dia no biotério vendo os bichos. E quem lhe dava assim, tintas de lições de coisas, eram homens como Lutz, Gaspar Viana, Artur Neiva, Eurico Vilela, Miguel Osório…

O nosso Libânio prosseguia mostrando Evandro no Colégio Resende da rua Bambina, onde tinha se preparado para tirar os preparatórios pelo sistema dos exames parcelados. Fizera os doze em 1918, 1919, 1920 e com quinze para dezesseis anos ingressara na Faculdade da Praia. Primeiranista em 1921, tem seu contato inaugural com a medicina e seus problemas práticos, acompanhando o pai, como secretário, nesse ano, aos Estados Unidos, onde o mesmo ia para buscar o que seria útil adaptar no Brasil em matéria de organização sanitária e profilaxia rural. Como é de maior alcance, ainda como primeiranista, aquele prodigioso moço ingressa como interno no Serviço de Clínica Médica de mestre Eurico Vilela, no Hospital de São Francisco de Assis. Em 1924, com dezenove anos, vemo-lo no vale do rio São Francisco, em estudos da epidemiologia da malária e investigando, nas zonas percorridas, a existência ou não da doença de Chagas. Em 1925, com vinte anos acompanha o pai à França e Alemanha, frequenta os serviços de Boclair, Donzelot, Vaquez no primeiro país e de Muehlens, Hegler, Munk e Hiss (júnior) no segundo — interessando-se pelo que lhe foi facultado ver de radiologia, cardiologia clínica e patologia das infecções. Tem contato com o grande mundo médico de Berlim e Hamburgo lendo as conferências do pai que ele, Evandro, passara para a língua deles que falava perfeitamente e que Chagas pai não dominava. Forma-se aos vinte e um anos, em 1926, e logo é nomeado assistente do Hospital de Doenças Infecciosas e Tropicais do Instituto Oswaldo Cruz e vai ser um dos comandantes da campanha antimalárica da Baixada Fluminense que visava amparar os operários da Estrada de Rodagem Rio-Petrópolis. Resultado: consegue entre 1926 e 1927 proteger noventa por cento desses trabalhadores, mercê da quininização sistemática e da luta antilarvária. Ainda em 1926 realiza viagens ao vale do rio das Velhas para estudar a Tripanossomíase americana, é nomeado assistente de clínica médica propedêutica do professor Rocha Vaz, estreia-se no magistério fazendo quatro conferências no Hospital São Francisco e, homem que queria viver depressa — casa-se. Em 1927, publica seu primeiro trabalho escrito a este seguindo-se mais sete até a época da viagem que está sendo narrada a Lassance — via Belo Horizonte. Dois deles tinham sido publicados no estrangeiro — um na França, outro nos Estados Unidos. O 1928 trar-lhe-ia mais três empregos contratados no Instituto Oswaldo Cruz: adjunto de assistente, radiologista e técnico. Em 1929, o de assistente efetivo da cadeira de Clínica de Doenças Tropicais e Infecciosas a cargo de seu ilustre pai. Tudo isto o nosso chefe o declarou com vênias ao moço imóvel e impassível que víamos ao lado da paciente cardíaca em que a presente narração o tinha deixado. Foi então que ele tomou a palavra. Agradeceu a recepção dos colegas e principalmente “a do sábio que tínhamos como chefe” e disse que queria nos mostrar um aparelho de sua criação. Mostrou. Era um estetoscópio modificado no sentido de captar os sons da ausculta não só por via auditiva como através da vibração óssea que eles acarretavam. O aparelho era ajustado à cabeça e tinha, adaptando-se à região frontal, uma placa de metal suscetível a qualquer ruído que fosse ter a uma espécie de caixa acústica de que a dita placa servia de fundo. Desse recipiente saía um receptor do tamanho e da embocadura dos estetoscópios obstétricos e os tubos de borracha que iam ter aos dois auriculares do instrumento. Todos, em ordem hierárquica experimentamos o engenho. Realmente, a transmissão óssea ligada à estetacusia — ampliava e de muito os ruídos patológicos surpreendidos. O próprio Evandro chamou-nos a atenção para o único inconveniente do aparelho. Obrigava o observador a atitudes mais que penosas já que ele é que tinha de adaptar sua cabeça às posições que a doença vai cominar ao paciente. Terminou rindo de leve e dizendo que o objeto de sua invenção só podia ser usado por gente magra e moça. Riu mais, calou e ficou um instante imóvel como se quisesse dar o exemplo, com sua figura de atleta jovem. Esse episódio recordado aqui mostra o valor que, nestas eras desaparelhadas da medicina, se dava à semiologia auscultatória clássica. O Egon entusiasmou-se tanto que na mesma tarde adquiriu um daqueles estetoscópios na Casa Moreno. Sua simpatia pelo Evandro era enorme. Mal sabia ele que mais tarde reencontrá-lo-ia no Rio, que tornar-se-iam amigos, trabalhariam juntos e que essa amizade só seria interrompida pela Indesejada das Gentes no dia em que ela feriu, no ar, aquele Ariel da medicina brasileira. Ele caiu e despedaçou-se. O que nele havia de nome despencou aos poucos. Primeiro caiu pesadamente o Lobo. Depois numa chuva amarela vieram vibrando as pétalas aladas das Chagas — já que esse nome pode significar ferida aberta, incisão, mas ser também o da flor dourada da capuchinha.d Mais devagar o nimo Evandro desceu oscilando ao capricho dos ventos, sacudido com o papel de seda multicor das pandorgas a que subitamente rompeu-se o fio. Só um nome ficou no ar porque esse nome é hierarquia, principado, trono, dominação, guarda, custódio, mensageiro anunciático, espírito imaterial, luz puraluz sóluz: serafim. Mas tudo isto eram coisas ainda por vir, futuros desacontecidos e estamos nos 29 caminhando para os anos 30.

Pouco depois da passagem de Evandro Chagas na Enfermaria, outras chagas o Serviço daria ao Egon, sangrando e doendo e durando — não na carne — mas na alma. Foi no Pavilhão Koch. Àquele dia o jovem médico entrara no mesmo à hora costumeira. Logo ouvira o aviso da irmã Salésia.

— Dr. Egon, tem doente nova do seu lado.

— Pode levar para a sala de exames, irmã. Fica pra depois da visita às veteranas.

Acabada a rotina das pacientes antigas, o doutor fora direto ao cômodo que servia para o primeiro contato médico com as tuberculosas entradas recém. Ninguém. Saiu a indagar.

— Então? irmã. Cadê? a nova goiaba bichada.

— Tá dando um histérico, doutor. Cobriu a cabeça, enrolou-se toda e diz que pelo senhor não quer ser examinada. Só levando à força. E quer alta a todo o transe…

— E ela está mal? irmã. Tem? alguma urgência.

— Nada de mais. Só pele e ossos e aquela febre…

— Então, hoje vou fazer só o pedido de raio X e a senhora vê se amansa essa fera p’r’eu ver amanhã. E pode dar a codeína com louro-cereja e as pílulas de criogenina. Por seguro, não passar de sessenta centigramos…

Só que no dia seguinte fora a mesma coisa. A doente intratável metera a cabeça numa verdadeira trouxa de roupa de cama lençol colcha — aquilo só podia ser arrancado à força e ela defendia-se contra quem queria descobri-la a unhadas e com energia inesperada naquele pobre esqueleto a arder e coberto só de pelancas. Desse dia para o seguinte escarrara sangue a noite inteira. A radiografia era a pior possível. Aquele animal selvagem tinha de ser examinado de qualquer jeito. O Egon logo que chegara ao serviço dera suas ordens.

— A senhora faz favor, irmã, de requisitar da farmácia um vidro de intrato de valeriana de Dausse e mandar dar à nossa fúria uma colherinha de café de meia em meia hora. Nágua com açúcar. São oito e quinze. Eu vou vê-la depois de dez e meia e pode ser que com cinco doses ela amoleça um pouco. E ponhela direto na salinha de exames.

Às quinze para as onze o Egon desceu descuidado as escadas perto da enfermaria do Werneck. Tomou pelo caminho habitual por baixo do passadiço, passou diante da porta da enfermaria do Otaviano. Atravessou a horta das irmãs, parou um instante para falar com sua antiga vítima, o sacristão dos seus tempos de interno, agora acumulando suas funções com as de hortelão.

— Ei! Laurinho… tá bom?

— Graças a Deus, doutor. E o senhor?

— Tocando pra diante.

A manhã tinia de tão dourada como se a luz sacudisse guizos no ar. O moço doutor parou um instante para olhar o céu, o verde das hortaliças, o vermelho rico daquela terra só de ferro e o arfar duma mangueira gigantesca que ficava perto do necrotério. Entrou no Pavilhão rindo e dando bom-dia às tísicas que Deus lhe dera. O cheiro de fora — de água, planta, vento e rega — foi substituído pelo penetrante da creolina das escarradeiras. Foi direto à salinha de exames. Na mesa, a doente dormia. Sua cabeça molhada de suor, pesando no travesseiro, mostrava restos rarefeitos dum cabelo que devia ter sido louro e que agora era só dum amarelo sujo e embaçado. Sua pele parecia pergaminho esticado sobre o rosto, as narinas afiladas e dava a impressão de ser curta para recobrir os dentes intactos que luziam brancos e duma espécie de transparência de opalina. Toda sua caveira se adivinhava nas saliências dos rebordos orbitários, dos zigomas, na depressão das têmporas, nos lábios finos, entretanto pendentes para o lado que ela inclinava a cara e amarelos como a língua que se via. Sua palidez era a um tempo esverdeada e cor de cinza… As narinas batiam. Fácies hipocrática… labra pendente, morte iminente — pensou o médico ao mesmo tempo que o invadia um mal-estar, uma opressão no peito, uma emoção igual à que sentira quando calouro de enfermaria — e fazia-o tremer um pouco. Isto e mais uma sensação insuportável de já visto como as auras mentais que se tem de repente. Adiantou-se fez seu primeiro gesto de exame: e tocou numa testa molhada dum intervalo de defervescência, espantou da cariciosidade que lhe ia na mão que ele sentia tremendo e tão gelada como as extremidades pés e quiros daquele quase cadáver que tinha à sua frente. Foi quando a doente abriu os olhos que ele sentiu-se vacilar. Como ele os conhecia e reconhecia — largos, negros, veludosos, intactos na sua beleza — os olhos que ele não via desde a rua Niquelina.

— Biluca…

— Ah! Gonzinho, eu num queria que tu me visse assim. Por isso é que eu num queria ser examinada…

— Agor’eu já vi, meu bem! Cê tá linda como sempre. Agora deix’eu texaminar. Vou chamar a Conceição pra tirar sua blusa…

Chamou. A servente veio e tirou a blusa. Cobriu o pobre esqueleto do peito onde um par de muxibas anunciava onde tinham sido os seios que como no verso do poeta — outrora! — podiam ter servido de molde para taça de Menelau.

— Faz favor? Conceição. Fic’aí que eu posso precisar de você…

Baixou os ouvidos sobre as regiões de baixo da clavícula. Em ambos os pontos ele sentiu como vento dum furacão ao longe — o sopro cavernoso.

— Agora deita de lad’um pouco, minha filha, primeiro, lado direito, depois esquerdo, pr’eu escutar tuas costas.

O minha filha dito com extrema doçura não atritou os ouvidos suspicazes da Conceição porque esse minha filha era o tratamento dos médicos com todas as doentes. Automático. Só que o Egon o dizia com uma doçura de coração amante paterno. Repetindo por gosto.

— Tosse um pouco, minha filha. Diz trintaitrês, minha filha. Alto, minha filha. Mais alto, minha filha. Agora baixinho, minha filha. Mais baixinho, minha filha, como se você estivesse me dizendo um segredo … só pra mim — minha filha…

Quando a irmã Salésia entrou, a doente estava com os olhos cheios de lágrimas e o médico enxugava os seus num lenço e assoava com estrondo.

— Qué? isso, gente! a doente e o médico chorando. Que que houve? por aqui…

— Nada não, irmã. É qu’eu estou num destes resfriados daqueles, pondo água sem parar pelos olhos e pelo nariz. E a nossa doentinha tá fazendo manha… Logo ela, que daqui a uns quinze dias vai tá de pé. Não é? minha filha…

— Pneumotórax? doutor.

— Nem precisa, irmã.

— Posso começar? a sanocrisina.

— Também não, irmã. Também num precisa. Só um pouco de cálcio, as gotas de codeína e prela não tossir de noite, morfina. Até pode dar de doze em doze horas. O sangue foi da tosse. E muita comida pra dentro, tá escutando? minha filha

A irmã entendeu. Mandou levar a doente para a enfermaria. Acompanhou, para tirá-la, com a Conceição, da maca pra cama. O Egon saiu ouvindo indignado a irmã Salésia mandar a Conceição pedir à irmã Madalena que telefonasse para o padre José. Saiu depressa para poder deixar na travessia do pátio seus olhos chorarem livremente. A manhã estava dum dourado de matar… No dia seguinte, quando o Egon chegou para sua visita encontrou uma cama vazia e o colchão dobrado arejando. Para não dar na vista, só quando acabou é que interpelou a irmã.

— Então? Irmã, nossa doentinha…

— Morreu de madrugada, dr. Egon. Já foi pra faculdade.

— Até amanhã, irmã.

— Até amanhã, dr. Egon. Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo.

— Para sempre seja louvado tão bom Senhor.

O médico voou para a faculdade. Berrou no corredor pelo Joaquim.

— Joaquim! onde está? o cadáver duma mulher loura que veio esta noite do Pavilhão Koch… Muito acabada mas ainda meio moça…

— Ih! doutor… já foi. Veio aqui de manhã um bando de putas pra reclamar o corpo e o dr. Lodi mandou entregar. Justo na hora que eu ia começar a tosar a cabeleira.

— Putas? Joaquim. De que pensão?

— Parece que do Curral das Vacas…

O Egon precipitou-se. Queria ir buscar o Nava, o Sá Pires, o Cisalpino. Mandaria uma coroa. Velaria. Faria vesti-la de Noiva, de Virgem. Acompanharia o enterro com os amigos. Descendo Mantiqueira, foi acalmando. Subiu de fato Cláudio Manuel até ao Chico Pires. Mas o psiquiatra sossegou o clínico.

— Deixa disso, Egon. Não faz besteira não. Olh’os jornais… Deixa. Deixa tudo ao coração das putas que sempre é muito grande. Juro que ela vai ter enterro com caixão de primeira e o puteiro inteiro pra acompanhar. A rua Niquelina é passado e o passado, como Lázaro, não deve ser ressuscitado. Pode feder…

— Ah! Chico… mas que dói, dói…

 

 

Já foram contadas as modificações por que estava passando Belo Horizonte nesse 1929. Sempre muita gente nas ruas, mais grupos conversando, comícios quase diários ao pé do Pirulito, discussões acaloradas, aumento dos efetivos federais, uma como que evaporação da Polícia Militar do Estado, a maré montante dos boatos. Tudo isto acentuar-se-ia a partir da data histórica de 30 de julho. Nesse dia chegam a Belo Horizonte, para tomarem parte na reunião da Tarasca, Júlio Bueno Brandão, Alfredo Sá, Artur Bernardes, Afonso Pena Júnior, Alaor Prata, José Bonifácio e Adiel Diniz Filho. Com esses nomes a Comissão Executiva do prm estava ao completo para decidir. Uma multidão, praticamente Belo Horizonte inteira, lotava a praça da Estação e os logradouros vizinhos. À sua frente e esperando o comboio, o presidente Antônio Carlos com todo seu secretariado e tudo quanto é político mineiro, gaúcho e paraibano que enchia nessa época os hotéis da capital de Minas. Improvisou-se manifestação-monstro que teve como orador, por parte do povo, a figura intemerata de Magalhães Drummond. Respondeu em nome dos políticos da cúpula partidária montanhesa — Fernando de Melo Viana. Na mesma tarde soube-se da decisão da Executiva reunida no Palácio da Liberdade: fora homologada a atitude de Antônio Carlos rompendo com o Catete e decidida a encampação da candidatura Vargas. Dessa data em diante começam a chegar, para confabulações, políticos dos outros estados — entre os quais mais se fizeram notar Oswaldo Aranha e João Neves da Fontoura, como delegados da Aliança Liberal. Depois Pires Rebelo, João Simplício, Assis Brasil, Batista Luzardo. Cada um motivo de curiosidade, de manifestações populares — com sua participação — na praça Sete, no rostrum do Grande Hotel, nos tamboretes comiciais do Bar do Ponto. Chega também do Rio Mário Brant — que solidário a Minas, tinha se demitido da diretoria do Banco do Brasil. Para esperá-lo, o povo na estação. Discursos de Noraldino Lima e de elementos da classe estudantil. Delírio popular. Virgílio de Melo Franco e Francisco Campos não paravam: Rio-Belo Horizonte, Belo Horizonte-Rio para encontros e tecendo a rede da conspiração. O último, além de conspirar, divertia-se, como de hábito à custa do próximo. Ficou famosa certa peça que ele pregou em João Neves, convocado para um encontro ultrassecreto com o famigerado Horácio de Matos. Finalidade da conversa: a conflagração, em momento oportuno, dos sertões da Bahia com a criação de um ou dois novos Canudos. Dizem que a entrevista se deu com as cautelas clássicas das conspirações de romance, num porão do Calafate, iluminado a lamparinas de querosene, com senha e contrassenha à entrada. Um amigo de Campos fora buscar João Neves no hotel. Trocaram duas vezes de veículo — para maior cautela — e o político gaúcho afinal deu de cara com o famoso senhor das caatingas. Segredaram longamente, traçaram planos, combinaram datas, adotaram cifra especial de comunicação e quando João Neves ia se retirar — caem subitamente a capa que embuçava, os óculos pretos e as barbas postiças do pseudo-Horácio de Matos — para dar lugar à cara em gargalhadas do nosso Chico Campos. Dizem que João Neves encordoou e teve ímpetos de voltar para o Rio Grande, deixando de lado toda e qualquer conversa com esses diabos de mineiros que ninguém sabia quando pilheriavam ou falavam direito. Gente mais sem seriedade — barbaridade!

Paralela a esses conciliábulos políticos começou a ser uma inflação de entusiasmo como que promovida — pela Polícia Militar do Estado. Iniciou-se no desfile da Independência, no Sete de Setembro, em que as forças federais desfilaram dentro do silêncio de uma multidão carrancuda e hostil enquanto as da polícia passavam dentro duma apoteose de flores atiradas pela Mulher Mineira e dos vivas frenéticos dum populacho que interrompia a ordem militar dos pelotões — invadindo suas filas para abraçar e confraternizar com as praças do estado. Diante do Palácio foi um delírio de hinos, cânticos, clarins, tropel de cavalos, vivas a Antônio Carlos, Getúlio Vargas, João Pessoa; a Minas, ao Rio Grande e à “pequenina e heroica Paraíba”. Os oficiais da Polícia eram aplaudidos na rua. Mas já entrava outubro que assistiria a fatos extremamente consequentes para nossa história. No dia 20 desse mês a Tarasca indica, respectivamente, para presidente e vice-presidente do estado, o velho Olegário Dias Maciel e Pedro Marques de Almeida. Foi uma espécie de journée des dupes. Para os que pensavam que eleito, o velho Olegário não tomaria posse dentro das confusões de uma revolução no seu provável fastígio, ou que tomaria posse mas que velho e gagasto seria governado ao talante destes ou daqueles grupos — que já se constituíam para a espécie de curatela que queriam impingir no político de Patos.

A facção que era ligada a Pedro Marques, contava nada mais nada menos que com o funeral do venerando mineiro e com o último a dirigi-lo, consternado e já de posse da sucessão. Ledo engano. Pedro Marques morreria primeiro que Olegário e os agudos estadistas que o tinham indicado — podiam limpar as mãos à parede: estavam longe de imaginar que seu conclave elegera o Sisto v da política mineira — e que enquanto foi vivo, na ronha, na mamparra e na teimosia empacada só fez o que muito bem entendia. O velho era mole não… Conta-se em Minas uma história que mostra bem sua psicologia, sua manha. Não sei se ela é verdadeira ou inventada. Mas se inventada — é quase verdade de tão verossímil. Que ele tinha sido procurado por um destes bandidos do sertão que sem rodeios vinha lhe fazer a proposta de tocaiar e dar cabo de um dos seus adversários políticos. Olegário ouviu calado os planos do matador e quando este já se julgava aceito pela espécie de sorriso entremostrado na fenda dos olhos míopes do interlocutor — caiu das nuvens ao escutar sua resposta.

— Não aceito nada disso não, porque seu plano é mesmo dum cabra safado e muito burro. Você devia matar primeiro e por sua conta. Depois é que vinh’aqui pra pedir escundrijo e se apadrinhar comigo. Do jeito qu’ocê falou eu vou ter de mandar buscar a autoridade pra te meter no xilindró.

Pois chamou o delegado e entregou o meliante que foi comer cadeia primeiro pra sumir depois. Ser tapado assim no meio dos infernos… Mas voltando à indicação. Ela foi solenizada com imponente comício no Pirulito, em torno do qual uma multidão ululante ouviu o verbo inflamado de Gudesteu Pires, Pedro Aleixo, Bilac Pinto, Adolfo Viana, João Leal e outros, mais outros, muitos outros… Mas o pior desse dia 20 foi o de Melo Viana. Vendo burladas suas pretensões de ser o sucessor do Andrada — rompe ostensivamente com a situação mineira e retira-se da reunião da Tarasca acompanhado dos seus correligionários. Isto daria pano pra mangas — essa passagem dum dos maiores chefes montanheses, assim de armas e bagagens para a Concentração Conservadora e para as hostes do nosso Brito.

 

 

Foi justamente nesse período de vibração patriótica e meio idiota de Minas e do Brasil, parte da população dum lado, parte do outro, em que a ambição, o desinteresse pelo povo, a teimosia boçal dumas dezenas de políticos lutando por suas ricas pessoas, ia desencadear a tolice de 30 e uma desordem arremedando a verdadeira revolução que ainda dos nuncas chegou a nossa terra — que coube ao Egon viver um período incomparável de sua vida no sentido de convivência cheia de finura, de sentimentos livres de qualquer vulgaridade, de aprendizado antiprovinciano, de romance sentimental e de relações com um homem verdadeiramente superior. Tudo isto lhe veio da intimidade que logrou do senador Adiel Diniz Filho e sua família. Em fins de 1929 a existência começou a tornar-se penosa para os políticos mineiros residentes no Rio por força de seus mandatos ou funções. Tinham sempre o sobressalto da guerra de nervos dos trotes telefônicos, o vexame da espionagem policial ostensiva em suas casas, as pessoas de suas famílias e eles próprios constantemente seguidos por tiralhada insolente e rente. A situação insustentável e a ameaça de prisão faziam com que os chefes mineiros cuja presença na capital não era indispensável se recolhessem ao aconchego materno de suas montanhas. Assim vieram parar em Belo Horizonte, entre outros, Afonso Pena Júnior e Adiel Diniz Filho com suas respectivas famílias. O último, como o primeiro, eram conterrâneos, nascidos em Santo Antônio do Ribeirão de Santa Bárbara. Adiel era um natalino, pois viera ao mundo a 25 de dezembro de 1879. Além dessa predestinação de data, a repetição do nome do pai representava outra invocação favorável pois, etimologicamente, adi quer dizer “meu ornamento” e El é “Deus”. Era realmente, pelo espírito, pelo caráter e pela bondade — um eleito, um ser ornado pelas qualidades que elevam o homem de sua condição de simples mamífero e lhe permitem, como aos heróis antigos — a entrada nas raças divinas. Ele contava, na ocasião em que está sendo lembrado, quarenta e nove para os cinquenta anos que completaria umas semanas depois. Pertencia a uma família de juristas, professores, intelectuais e chefes políticos da zona do ouro e era homem de formação tipicamente mineira. Seus estudos primários tinham sido feitos na Vila Rica. Para as humanidades o pai mandara-o inicialmente ao Caraça, onde ele foi contemporâneo de Artur Bernardes, Raul Soares, Afonso Pena Júnior e de outras futuras personalidades do cenário público mineiro. Terminaria seu curso de ciências e letras em Barbacena — onde conviveria com Antônio Carlos, seu mano José Bonifácio, com Afonso Arinos, Afrânio de Melo Franco e Rodrigo Bretas de Andrade. Com a transferência da capital para Belo Horizonte, sua família vem para esta cidade, onde seu pai seria diretor da Faculdade de Direito, de que ele, Adiel, viria também a ser professor. Poeta simbolista, foi amigo do príncipe Alphonsus e teve brilhante atividade literária na mocidade e nos intervalos que lhe permitiam sua participação na política e na coisa pública. Ele deixaria considerável espólio em nossas letras, onde se destacam estudos de exegese crítica que decidiriam de maneira irrefutável dois assuntos — até então sempre polêmicos na cultura brasileira. Adiel foi quem provou que o livro famoso Da destreza no rapiar não era da autoria do padre Antoneido das Conchas e que, fora de qualquer dúvida, As mensagens de Santiago tinham sido escritas por outro Antoneido — Antoneido Tomaga de Gonzas. Esse intelectual de imenso valor que, no futuro, pertenceria às Academias Mineira e Brasileira de Letras, a quem o Egon já estava unido por via da gratidão devida por velhos favores que lhe fizera o político durante sua vida de estudante — fascinou-o literalmente ao se lhe oferecer a oportunidade de conviver mais de perto com ele. Essa aproximação se deu quando o senador Adiel veio para Belo Horizonte com a família — farto de ser espionado e filado pelos agentes do Barbado. Antônio Carlos hospedou-o numa residência do governo — a casa do Horto Florestal — e encarregou seu filho Fábio de visitá-lo com frequência a ver se nada faltava e se tudo corria bem. Como o senador estivesse acompanhado de sua esposa d. Marieta Salvaterra Diniz, de suas filhas Amabel e Carmosina, além dos filhos Heliodoro e Gil — o Fábio convocara seus amigos Egon, Cisalpino e Isador para ajudá-lo a organizar programas para a senhora, as moças e os rapazes, enquanto o senador Adiel conspirava e ia ajudando a preparar o movimento que já parecia inevitável e que estouraria em outubro de 1930. Foi assim que José Egon Barros da Cunha começou a frequentar o Horto, tornou-se amigo dos Diniz e ficou conhecendo de perto alguns componentes desta família. O senador foi dos homens mais inteligentes com quem seria dado ao Egon relacionar-se. Não era apenas um político comum como a maioria dos nossos homens públicos. Tinha a marca também do estadista na sua visão em profundo e na sua aguda previsão histórica dos acontecimentos. E tinha algo mais que faltava geralmente aos chosards seus copartidários do prm: profissão, trabalho. Foi grande jurista e advogado com prósperas bancas em todos os lugares onde se instalou — como Belo Horizonte e depois o Rio. E a inteligência que lhe assinalamos acima excedia a simples acepção dessa qualidade: Adiel era um intelectual na grande acepção do termo, um humanista, um filósofo e um letrado cuja cultura foi uma das mais largas e abrangentes dentre os de sua geração ou de qualquer tempo da história da inteligência brasileira. Era um tanto cético, possuía espírito mordaz e sabia exercer essa mordacidade no momento oportuno — tal como mostrou nas polêmicas em que se envolveu, em correspondências políticas mandadas sob pseudônimo para a Folha de Minas mas onde se sentia a ponta de sua pena lanhando e fazendo sangrar, nos conceitos às vezes um tanto francos com que fisgava seus contemporâneos — principalmente os politicastros das alterosas. Nenhuma dessas qualidades de espírito foi útil à sua vida política. Apesar de ter sido em tempos o grão-mestre do prm, deputado, senador, secretário de Estado e ministro — o que é uma carreira de aspecto brilhante — ele foi sempre uma espécie de marginal dentro do seu próprio partido e nunca logrou ser o que deveria ter sido numa terra onde realmente se valorizasse a intelligentsia: presidente — do seu estado e da República. Ele foi uma das incontáveis vítimas da preferência que não é só de Minas mas dos Brasis, pelos que outro marginalizado — José Cesário de Faria Alvim, chamaria “os bacuraus de voo curto”. Ora, o nosso Adiel era justo o antônimo dessas carcaças raspando a poeira e seu lugar era nos grandes ares rasgados pela asa poderosa e régia dos aquilinos. Adiel era moreno, cabelos e bigodes muito negros, expressão concentrada e severa (tinha cara de porteira fechada, como ele próprio dizia, brincando) mas que alguma coisa desmentia. Reparando bem, era a cor dos olhos — um âmbar puxando para o esverdeado — que não condizia com a seriedade de sua fisionomia mas combinava, completava e tornava-se inseparável da mesma, quando esta se abria em sorrisos, mais, no riso e completamente, na gargalhada franca e como que luminosa com que o senador pontuava seus inumeráveis casos pitorescos ou de humor negro — trazidos da meninice do Caraça, em Ouro Preto, Barbacena. De Belo Horizonte, da faculdade, da Tarasca. Sobretudo da política de Santa Bárbara — com anedotas sobre a própria família, sobre o Pena, os Mota, os Pinto Coelho da Cunha — sempre empenhados naquele entredevorar municipal. Costumava temperar o que dizia com a citação, a propósito, dos autores que ele parecia ter de cor: Shakespeare e o dr. Johnson, Rabelais e Montaigne e mais os clássicos gregos, os latinos, o suprassumo de cada cultura e da inteligência de cada povo. O Egon ficaria bestificado com o que ele conhecia de medicina histórica e de como ele (para usar expressão muito do seu agrado) “nadava de braçada” na obra de Hipócrates. Mesmo que deixara escapar o seu entusiasmo.

— Dr. Adiel, igual ao senhor só conheci meu mestre do Pedro ii, o velho João Ribeiro. O senhor pode discutir matemática com os matemáticos, filologia com os filólogos, filosofia com os filósofos e até medicina com os médicos. O que estou ouvindo de sua boca sobre Hipócrates me deixa de queixo caído. Vou tomar vergonha e ler sua obra — já que estou acabando de ver provar que toda a medicina moderna tem sua origem nas suas sentenças e aforismos… Qual é? mesmo a tradução que o senhor disse que tem…

— A bilíngue grego-francês de Littré, Émile Littré, lexicógrafo, polígrafo, médico e helenista daqueles que só a França sabe fabricar. É edição da Baillière e você vá preparando os dentes porque são dez volumes…

— Garanto que sou capaz de atravessá-los de cabo a rabo numa leitura de seis a sete meses…

— Sete meses? Põe leitura de toda a vida, menino — se é que você aceita minha opinião de velho carimbamba…

A mulher do senador Adiel chamara-se de solteira Marieta Salvaterra. Era filha do dr. João Salvaterra, médico baiano, o segundo profissional a fixar-se em Belo Horizonte, onde exerceu larga clínica e foi professor de medicina legal da Faculdade de Direito. Em sua cidade de adoção pertenceu ao Conselho Deliberativo Municipal e foi elemento atuante na fundação da Santa Casa e da Sociedade de Medicina, Cirurgia e Farmácia. À época desta sua volta a Belo Horizonte e instalação no Horto Florestal, d. Marieta era uma senhora ainda bastante moça, muito clara, cabelos pretos, olhos expressivos e rasgados. Fina e elegante, cheia de espírito e alegria, parecia mais a irmã que a mãe do grupo de filhos que viera com os pais para a capital de Minas. Esses eram dois rapazes e duas moças. Dos primeiros, o Heliodoro teria seus quinze para dezesseis e Gil ano a menos. Já foi dito o nome de suas irmãs — Amabel e Carmosina — resta dar o retrato de cada uma. Carmosina, a mais nova, era clara de pele, olhos muito verdes, cabelos dum castanho apanhado e maduro, naturalmente crespos. Respirava alegria, era tão alegre e tão viva que não parava de rir, de falar, juntando as duas coisas, falando ao mesmo tempo que ria pela rosa boca, pelos lindos dentes, pelos olhos, por cada uma das expressões sucessivas do rosto — na história que contava, nas respostas que dava. Se sentava, demorava pouco sentada. Logo tinha de levantar, ir de interlocutor a outro que a chamava — rápida, simultânea, ubíqua — feito uma abelha, que nem faísca — não como as imagens de um filme de poses sequentes mas como a impressão, na mesma chapa fotográfica, duma vertical ou dum ponto que corressem deixando suas imagens gravadas em separado no espaço e até no tempo percorridos. Ela era a graça em flor. E assim em movimento permanente, Carmosina era trezentas, trezentas e cinquenta — mariandradinamente ao mesmo tempo. Ai! tempo aquele…

Em colorido sua irmã era seu contrário. Tinha os cabelos dum negro absoluto outro lado da lua noite escura fim das profundidades abismos marinhos. Morena clara. E os olhos mais prodigiosos. Olhos a lhe fazerem desaparecer o resto da face, enormes pupilas enormes; pretas, se vistas de longe e perto — desbotando para o âmbar, dia claro ou para o esverdeado, se era noite fechada. E não era só cor o seu mistério. Era o seu infindo de corredores que entravam e atraíam como as espirais para lá dela, para atrás, para os horizontes mais distantes adivinhados nos aléns de sua presença. E com que agudeza Amabel usava seu poder de ver, analisar, separar, criticar, escolher e decidir. Eles serviam na composição pictórica do seu rosto, mas, principalmente eram os aparelhos de precisão adequados à sua penetração psicológica e ao serviço da inteligência meditativa e poderosa que do pai — refletia-se nela como num espelho e com força tal que nenhum dos seus irmãos tinha repetido ao modo como ela a replicava. Sua conversa era como a do senador. Nem palavra de menos nem de mais. Eram justas e as necessárias para dar do seu pensamento o que ela achava que devia ou podia dar. Não havia quem a pegasse sem ramo verde. O Egon que gostava de praticá-la, saía-se (a seu próprio ver) sempre mal e em posição de vencido. Não que discutissem e tivessem pontos de vista diferentes. O que havia de antagônico neles dois era a maneira como chegavam muitas vezes a um mesmo resultado e até aos acordos. Onde ele punha impulsividade, ela usava reflexão. Seus julgamentos imediatos e passionais encontravam do outro lado as decisões dependentes de análises elaboradas posto que rápidas. Uma frase inteira e toda atropelada que lhe saísse da boca era posta xeque-mate com uma palavra de Amabel. O que as duas irmãs tinham em comum era a graça frágil com que a natureza miniaturista se esmera fazendo suas obras-primas mais delicadas: os cristais microscópicos, as hexagonias das moléculas da água congelando, os musgos, as avencas, as libélulas, as mariposas, as joaninhas, as menores borboletas; a graça, a graça frágil com que a arte — seguindo a natureza — realizou as figurinhas de Tanagra, a delicadeza e o galbo das linhas pré-rafaelitas, as estilizações de Aubrey Vincent Beardsley.

Aquela obrigação do Fábio — a de velar pelo bem-estar dos Diniz — acabou virando tarefa de toda sua roda. E como era deleitável! a convivência com aquela gente agradável, simples, educada, inteligente e sensível. De manhã e durante o dia tinham programas como ir a Sabará, correr igreja por igreja, mostrar o Aleijadinho e o barroco — tudo tão redescoberto há pouco tempo — àquelas mineiras há tanto fora de Minas. Inventavam-se excursões. Inesquecível a sensacional que fizeram à serra do Cipó, na manhã toda algodoada pela corrubiana. Fábio dirigindo a cem por hora, vestido de culotes e botas como se fosse montar e arvorando um capacete de aviador como se dirigisse não a sua Erskine verde mas aerostoplano interplanetário. O Egon e o Cisalpino de terno e gravata como se estivessem não no campo, mas participando da cerimônia dum casamento. As únicas pessoas trajadas adequadamente para o passeio eram d. Marieta, Amabel, Carmosina, a Dedée — sobrinha de d. Julieta Andrada, seu futuro marido Oswaldo Horta Sampaio e Clarisse Giffoni, já quase noiva do Fábio. De lembrar, como se fosse hoje, a paisagem vista de sobre as montanhas — o chão de ferro das minas ondulado em altos e baixos feito terra pobre e seca perto da gente mas mar azul e agitado à medida que a lonjura e a perspectiva adoçavam os contrafortes, destruíam sua dureza e lhes conferiam a moleza das vagas do oceano. Havia um azul prodigioso, extrazul, que se esbatia ao longe noutro mais feérico que era o do céu e terra sencontrandosse. Voavam todos noutro planeta, paravam para descer leitos de riachões secos cheios de pedras calcinadas levantando-se em formas certas e geométricas de cristais apagados ou erigindo-se arredondadas como os monumentos fálicos duma ilha de Delos, perdida nos descampados onde ficava uma fazenda do coronel Jorge Davis cujo solo maninho ele dizia servir para coisa nenhuma.

— Aquilo não dá nem cabra…

— Mas então passaram-lhe uma pinoia, coronel!

— Não é pinoia não, filhinho. Vai lá. Só a vista vale dinheiro moendo…

E valia. Ali tudo valia. Sustenia, persistia em cada um a impressão de navegar num mundo de azul de maricéu só interrompido cem metros à roda como se as pegadas mortais e os pneus dos carros carregassem com eles a desolação e o deserto que transpostos por olhos mágicos construíam-se em paisagens de ilhas habitadas pelas divindades fodazes das mitologias amáveis — corfus, cefalônias, zantes, milos, naxos, samos só que mais numerosas; ilhazinhas sem fim banhando-se em jônicos, egeus, mares cretenses só que mais vastos — toda Minas se alastrando aos olhos deslumbrados e deixando para andar no seu dorso precioso só a nesga de terra ruim ressecada num cerrado fantasmal que corria como pedaço de deserto virado em barco tapete mágico. Quando não era Cipó ou Sabará ou Caeté ou Morro Velho, o programa mais frequente era Lagoa Santa, nesse período começando a ser centro de excursionismo devido ao esforço de Marques Lisboa que conseguira despertar nos moços de Belo Horizonte o gosto pela natação pelo remo pelo velejar. Não faltava onda nem vento e aquele aguão marca zona que deve ter sido das mais remotamente habitadas das Américas. As recentes descobertas de pinturas rupestres na serra do Cipó abonam essa hipótese. E nunca houve quem tentasse escavar as margens ou drenovasculhar o fundo da “prodigiosa lagoa” divulgada nas suas virtudes médicas por estudioso de que se perdeu o nome, em livro publicado na oficina de imprimissão de Miguel Manuel da Costa, Lisboa, no ano de 1749. Depois disso por lá andou o dr. Lund — Peter Wilhelm Lund, que estudou o pleistocênico do quaternário brasileiro. Está enterrado no cemitério de Lagoa Santa. Dizem desse dinamarquês que ele é o pai de filha muito fraquinha, coitada! — a paleontologia brasileira — que não cresce devido à insensibilidade dos nossos homens públicos. Pois a “prodigiosa lagoa” ia ser zona elegante da capital mineira mas foi ofuscada quando Kubitschek pôs em moda a Pampulha. Antes dessa represa as águas naturais eram o lugar preferido para os passeios. Uma destas excursões ficou na lembrança. Para lá bateu-se cedo o grupo de moças e rapazes mencionado antes. Ficara resolvido que cada marmanjo levaria um prato para o piquenique. Coube ao Egon fornecer um pernil que ele mandou preparar no Estrela. Levou-o preciosamente envolto em papel prateado — pronto para brilhar como a melhor iguaria do almoço campestre. Foi um tremendo fracasso. Por fora, uma beleza: lustroso da gordura e dum belo pardo tostado pelos fornos do Simeão. A própria d. Marieta fez questão de trinchá-lo e foi tirando com maestria fatias primeiro mais escuras, depois dum corado brando e todo íntimo, quando, súbito, esbarrou numa espécie de cavitação cheia duma matéria espessa e puriforme — como se ela estivesse cortando não obra-prima de culinária mas uma das peças da anatomia patológica do Carleto. Parecia um abscesso, era decerto um abscesso resultante de epizootia, duma imundície de peste qualquer. Teve de ser jogado fora. O almoço salvou-se graças às contribuições do Sá Pires, do Cisalpino, do Oswaldo Sampaio, e principalmente graças ao Fábio para quem o Lisboa, mordomo presidencial, tinha reservado do que havia de melhor da ucharia e da frasqueira do Palácio da Liberdade. Há pequenas coisas que parecem não ter importância. Mas essa perna de porco teve e muita, para o Egon. Ele ficou profundamente vexado e sua vergonha veio aumentar as arrobas do complexo de inferioridade que ele sentia diante da moça Amabel e das gargalhadas dela — que faziam chorar e tornarem-se mais lindos seus olhos preciosos.

Estava um dia cinza — não de chuva mas daquela névoa surda dentro da qual se sente o sol diluído, tão característica do chamado, em Minas, o “tempo da fumaça”. O astro nasce e morre como disco vermelho que só no pino brilha uns instantes. No mais é aquela alegoria japonesa amortecendo as distâncias, suprimindo as durezas e suavizando os horizontes de prata embaçada. O grupo, depois do seu Déjeuner sur l’herbe, foi andando devagar para as construções ainda mais que rústicas do Iate Clube. Lá encontrou o Fernando Conde de passagem e vindo verificar o estado das embarcações. Generoso, ele pôs à disposição dos visitantes os barcos necessários a um passeio pela lagoa. Numa lancha com motor e cobertura saíram d. Marieta, Fábio, Clarisse, Cisalpino, Sá Pires e os rapazes Diniz — Heliodoro e Gil. Mais dois botes. Num o Oswaldo remava para a Dedé e no outro o Egon para Amabel. E remavam docemente conversando pouco com a boca e mais com os olhos. A embarcação maior foi em direção do “lagrimal da lagoa” onde atracou numa espécie de flutuante com toldo de lona, ali ancorado. Lá se via o fundo e as águas nascentes saindo das pedras na sua pureza absoluta. Tomando o sol que baixava como reparo percebia-se que o Oswaldo metera sua proa para o sul e o Egon virara para sudoeste a ver se descobria o vazadouro por onde aquelas águas descem para encontrar o rio das Velhas. Várias vezes durante o passeio a dois (“l’occasion, l’herbe tendre”), o jovem médico teve a tentação de parar de remar, de vogar apenas e abrir sualma seu coração. Parava de clapotear na água, seus sentimentos iam chegar a sua boca, sua língua, se exteriorizar nas palavras mais lindas — meu Deus! — tudo só delicadeza mas sentia uma paralisia e um medo que o arrolhavam sob a forma de uma extrassístole daquelas — as que parecem um tropicão dentro do peito. Tinha pura e simplesmente horror de parecer ridículo e ficava rodando dentro de sua cabeça tudo que se eriçava entre ele e a amada bela Amabel. A gargalhada diante do pernil estragado… Como ela riria no mesmo cascatear, se ele ousasse… Realmente, se a simpatia os unia, tudo que faz a opinião do mundo era antagonismo patente, a separá-los. Socialmente, ninguém mais alto que a moça na sua situação de filha de um futuro presidente do estado e da República (naquele tempo, a posição do Diniz dentro da política mineira fazia considerar essas ascensões como favas contadas) e ele, Egon, mediquinho leguelhé à mercê de ser desterrado para Teófilo Otoni a um coice da besta Cadavalargus; ela era financeiramente um grande partido enquanto que ele — pobrete alegrete — labutava em dois empreguinhos e dava escassas consultas a 20$000 no porão da casa do colega Miranda; intelectualmente, ele pondo de lado a modéstia, julgava-se da mesma força da eleita mas como caráter… Sim, caráter — no sentido de característica — ele tornava a perder: onde ela era segurança ele era só timidez, complexo de inferioridade que tentava disfarçar atacando a golpes de petulância, insolência, alfinetadas, chalaças e chiste (o engraçado, para os psicanalistas é um agressivo). Até fisicamente eram disparatados. Linda, ela tinha a graça ligeira das coisas pequeninas que a natureza cria como a mostrar que todas as perfeições lhe são possíveis. E ele? Não era? alto demais, desengonçado demais, traços grossos mal-acabados, feioso e além de tudo mais — suspeitando-se da maior antipatia… Assim ele remava engolindo suas palavras. Faz mal não, esper’outrocasião, amanhã tomo coragem, digo tudo. Amabel parara de fazer as observações que soltava de quando em quando. Mudara até de ar e fisionomia. Assumira o aspecto de quem parou de esperar alguma coisa que entrevira e não se manifestava. Deixara a mão direita pender e riscar a superfície enquanto olhav’o fundo das águas translúcidas e acompanhava o lampejamento a cada instante dos peixes que desciam e subiam como pássaros dentro da trança das ervas subaquáticas. Com o cair da tarde a cor do dia, que parecia dum esbranquiçado uniforme, ia mudando para o cinza e a face líquida parecia feita dum azougue. Súbito eles perceberam vulto maior nadando em direção ao barco. No princípio parecera um peixe grande, um espadarte, mas chegando perto via-se que era o Heliodoro empurrando as águas com seu crául perfeito. Virava torso e face para um lado, para outro, respirava rente à superfície, seus braços batiam circularmente em movimentos isócronos e uma esteira de espuma nascia de seus destros pés. Ao sol poente ele chegou perto, gritou, mudou de rumo, tomou a direção do “olho da Lagoa”, para subir no flutuante. À medida que ele afastava — seu vulto lembrava o dum tritão de bronze se destacando e fendendo chapa prateada. A ocasião perdida revoltava o Egon. Devia ter falado, aberto seu coração. Mas aquela mordaça da timidez… Mas aquele medo do ridículo… Rápido, ele remava de raiva e quando iam chegando perto da ponte tosca de atracação, deu-lhe o repente de voltar e gritar bem alto o que sentia. Prendeu um remo acima da superfície das águas e nelas bateu com o do outro lado — já o barco girava quando chegou-lhe aos ouvidos o protesto de todo o bando apinhado na margem.

— Chega, voltem, o dia tá morrendo… Vamossimbora…

Voltaram chispados para Belo Horizonte. O Egon lembrava que fizera o percurso no mesmo carro que Amabel, seu irmão Gil, o Cisalpino, d. Marieta. As duas atrás com o Gil. Ele e o Cisalpino comprimidos no banco do motorista. A noite caíra e a matagem contorcida e sem crescimento do cerrado fazia mancha negra destacando-se ao longe num céu fumacento e embaçado contra o qual a luz dum minguante espoado fazia distinguir a linha anfractuosa, sofrida, escura e coagida dum horizonte que tinha alguma coisa da imobilidade de um lutador derrubado. Silêncio em todos, nada mais. Depois o menino cortou ele pelo meio com sua observação.

— Que horizonte perigoso! Dá medo. Não sei por quê — mas é assim quieu imagino a África…

O Egon olhou a fímbria ao longe, pralém da Taprobana… África… E pensou que era um Cipião de merda. Tinha medo e logo de quê? Duns belos olhos…

 

 

Ah! a estadia dos Diniz em Belo Horizonte marcou para aqueles moços da roda do Fábio um período de dias e noites exemplares. Principalmente pela camaradagem com moças — coisa inusitada em Belo Horizonte. Tirada do seu ambiente do Rio, posta naqueles longes do Horto, enquanto o senador conspirava o dia inteiro, sua família ficava numa disponibilidade total, sem ter o que fazer senão divertir-se com o que os novos amigos improvisavam. Sabará, Alto da Serra, Vila Nova de Lima, Caeté, Lagoa Santa. Crepúsculos suntuosos e luas cheias duma magnificência absurda — vistos de todos os altos ângulos adequados perspectivas favoráveis da cidade. Mas havia outras diversões noturnas. Cinema ou então Horto Florestal e palestra até desoras.

No tocante ao cinema caberia ao grupo assistir à revolução causada pela chegada a Minas do falado, com a Broadway Melody. Foi passado no Cinema Avenida, primeiro numa matinê especial, a 10 de janeiro de 1930, depois para o grande público, na mesma sala, a partir do dia seguinte. O Egon apreciador chapliniano do cinema como arte pantomímica e conhecendo as histórias das tentativas anteriores de juntar imagem e som — sempre seguidas de fracasso, desde a combinação com o fonógrafo até às tentativas pioneiras de Henri Joly, em 1905, fazendo o registro fotográfico do som sobre a película — lá entrou no cinema de má vontade. Ao fim de quinze minutos de projeção era um convertido. Assistira ao filme entre o Sá Pires e Amabel, os três não contendo seu entusiasmo. Realmente estavam testemunhando coisa que teria as maiores consequências no mundo artístico e social — com a espantosa mobilidade das cenas, as dublagens sonoridade-e-gesto, a onda invasora do jazz, a criação de novos gêneros e estilos cinematográficos. A sensibilidade de uma geração estava marcada e torná-la-ia eternamente moderna no sentido de aceitação e boa vontade com as reformulações que culminariam até no sentido social com a música e sua repercussão no comportamento dos moços dos anos 60 aos que correm hoje. Logo depois viria outra revelação do falado com o Deus Branco. As notas deixadas pelo Egon referentes a esse período e postas em ordem por Pedro Nava mostram que ele assistiu ao seu espetáculo de lançamento, sempre no Avenida e sempre com os mesmos companheiros. Deste filme, parece que estrelado por Monte Blue, veio o gosto de uma geração inteira pelas ilhas do Sul, pelas polinésias e pelas músicas de guitarra havaiana. Nenhum dos moços daquele tempo pode ouvir as plangências daqueles sons doces e acerbos como as caldas frutas de suaves espinhos penetrantes como dardos — sem respirar fundo e sem ser transportado magicamente ao mundo dos 20, dos 30. Quem não se puser a lembrar ao gemido vibrante do uquelele é porque esqueceu de si mesmo, da melhor parte de si mesmo… Quatro moças mágicas ficaram morando no bojo dos uqueleles e eternamente sempre durando — primeiro no coração dum moço depois no do cansado velho que tomou seu lugar. Nenhuma delas envelheceu, nem mesmo as duas que morreram (morreram, nada não! como a Virgem Santíssima, elas entraram foi em dormição). E o velho amanhece ao som de uma voz distante prometendo…

 

If you like a uquelele-lady,

Uquelele-lady will like a’you…

If you ling’ ’a uquelele-lady,

Uquelele-lady will ling’ ’a’you…

 

Ninguém mais sabe fazer nascer os sons dessa música senão o Egon. E para ouvi-la ele tem de passar só, na noite de Belo Horizonte, batendo o compasso pelos passos nas calçadas de Ceará, Bahia e na de Afonso Pena as esquinas ubi kinavenida fuit. E as idades renascem…

Quando não havia idas ao cinema ou correrias de automóvel ficavam todos no Horto com luas sobre folhas molhadas da chuva que se fora, no negrume das varandas iluminado pela queda das estrelas, pela subida dos pirilampos, vitrola portátil e os discos mais lingerers do jazz derramando na noite mineira as notas imperiosas dos saxofones, as suplicantes das flautas, o gemido inacabável dos uqueleles, o compasso das baterias e a surdina das vozes até cerca de onze horas, onze e meia que era quando chegava o senador Diniz. Entrava sempre exausto das conspiratas, inquiria logo do que estávamos servidos e aderia àquele uísque coadjuvante. Foi nessa época que aprendi com ele o melhor modo de bebê-lo. Primeiro um heavy stroke tomado de uma vez e depois então os long drinks sucedentes — para levantar de súbito os corações e depois mantê-lo nas alturas atingidas. E eram suas histórias sem fim de Santa Bárbara. A da velha cercada de amigas em torno do leito do marido agonizante e — ao qual ela já se referia nos tempos imperfeitos.

— Ele era mesm’uma flor. Tão delicado. Todo dia quando chegava da rua tinha de dizer uma doçura pra mim. Sempre sobre minha pele. E tinh’um elogio d’que eu gostava tanto… Era quando ele me cheirava o cangote e dizia — Sá’rminda sua pele parece mesm’uma rosa… não! era rosa, não, era… Xentes! e eu não lembro…

Ela prosseguia fazendo força pra lembrar, cumera mesmo? sei que era coisa tão delicada, tão de veludo, assim de seda, de flor de camélia. Ou seria magnólia? não — num era magnólia. Afinal na aflição de não lembrar ela a sacudir o braço do quase morto desmergulhá-lo do quase coma, chacoalhando com violência e gritando.

— Inhô Terêncio! Inhô Terêncio. Cumé mesmo? qu’ocê dizia que era minha pele quand’ocê cheirava meu cangote.

— Hum? hum? Que cangote?

— O meu, homem. Comé cocê dizia que ela parecia, quando mordicava minha orelha e cheirava meu cangote.

— O quê?

— Meu cangote, minha pele. Cum que quiela parecia?

— Cum cetim, um cetim, um cetim… um che… tim… um…

Foi assim até aspirar já fraquinho o último chiiii e expirar afinal o derradeiro tchiiiiin.

— Comadre! Depressa, põe a vela benta na mão dele…

— A vela, a vela, cende a vela… Aí mesmo na lamparina do oratório.

— Segur’essa vela direito, uai! pra num derramá esse despropósito de cera pra todo lado.

Assim, na conversa do senador Diniz, escorria toda a Minas na sua história, no seu folclore, nos seus defuntos, seus fantasmas, seus valentões, seus amores, suas canções das noites de viola e pândega no Guinda e no Tejuco, sua música sacra das manhãs de São José d’El-Rey, das tardes de São João, das noites de Vila Rica — sem pândega mas com a mesma cachaça que servia na alegria e na tristeza ao jeito que refresca no verão e esquenta na friagem hibernal; sua crônica política dos dois reinados e da primeira república; as manhas, as ronhas, os empacamentos, as teimosias, a habilidade de contornar, a arte de falar não dizendo, de fingir de cego pra não perder nada de dentro dos óculos pretos, de surdo para ouvir tudim com a mão em concha na orelh’e pedindo pra ripitir. Todos os casos de morro, despenhadeiro e rola-moça, de cerrado, mata, capoeira, chapadão e várzea, de lagoa e barranca de rio. De lua cheia e noite taciturna. De tesconjuro e mandinga. De anjo, santo, Sôjuscristo, caxias, zorelha gorda, minhocão, saci, caboco d’água, mula sem cabeça, de criança alumiando de noite na sua camisolinha branca de Menino-Deus, de rapaz tão gentil de quadris e serrindo todo lindro e chamando os viajantes no rastro queimado que seus pés descalços deixavam na erva rasteira que danava a feder a enxofre. Estourava e desaparecia… E ai! de quem entrava com ele na moita pro pecado nefando — estourava tamém… Toda Minas… Seus ouros, seus diamantes, seus cristais, suas pedras falsas, seus homízios, seus assassinatos, sua fodeção e que de sangue empapado, ressecado, e viradoutravez poeira seca das estradas que se cruzavam e descruzavam no dorso do Caminho Novo… Minas de Alphonsus e das suas palavras mais imaculadas, meu Deus! — responsório, antifonário, círios, celagem, giolhos, kiriale — de Alphonsus e suas Virgens Constâncias, Ismálias e aquela que do mais alto céu foi o ciliciado altair que entre luares floresce… Agora imagine-se tudo isto contado pelo senador d. Diniz, aquele seu olhar longínquo posto à meia bruma, seu vozeirão grave que emparelhava com música de órgão, seu jeitão de representar as coisas e de onomatopaicá-las com ourarminhos de Sarah Bernhardt e bronzessurdinas de Sacha Guitry… Representava de tudo, imitava todos: fazia velho Bias, seu Júlio Bueno, Costa Senna, Coronel Mundim, cônego João Pio, Tarasca de um por um, dr. Bernardes, Delfim, Silviano Brandão, João Pinheiro, Pinheiro Machado, Machado de Assis, Assis Brasil, Brasil Filho, Filho da Puta e Puta que o pariu. Sabia de cor e salteado todo o secretariado do tempo do presidente Antenor e enucleava (como hábil cirurgião a quisto difícil) a balda dum por um. O Egon bebia seus ensinamentos e justamente a propósito dum dos secretários em questão aprendeu técnica especializada que ser-lhe-ia utilíssima no lidar com os chatos. Fugir dos argumentantes conversa tênis de bola pra cá bola pra lá. Tolerar e dirigir os monologantes que tornam-se inofensivos desde que se lhes dê corda, se lhos coloque pés nos trilhos por onde querem disparar. Era como o Diniz fazia com o dr. Rosário Abrunhoso d’Aguiar Correres que fora secretário de Terras Devolutas e Campos de Alecrim Dourado ao tempo em que ele, Diniz, o fora dos Negócios Secretos e Ensino Público. O homem gostava de falar sem ser interrompido e entrava de assunto adentro (segundo comparação do próprio Diniz) — que nem serra circular em tronco de madeira de lei. Era só dar deixa que rendesse como jacarandá, pau-ferro, jequitibá, baraúna. Por exemplo, a eterna dualidade de opiniões entre os partidários do jaraguá e os do gordura, entre os do manga-larga e do campolina. E isso rendia em Minas. Se rendia… Quando ele pressentia o colega vindo com conversa de nhenhenhém destas que pedem atenção, reflexão para responder e toma-lá dá-cá, o nosso senador respondia a uma a duas e de repente fazia-se de lembrado.

— Ara! Olhesta minha cabeça! Pois seu Correres não é que ia esquecendo de contar a você que o Antenor tá querendo convencer o Bernardes que é preciso ir fazendo a substituição campo por campo do jaraguá pelo gordura… Que o gordura é mais nutritivo, mais gostoso, vai ele! O quê? Ocê num sabia? Isto é assunto da tua secretaria, homem! Uai…

Tava dada a tora de pau grosso e logo o galocha punha a serra e cortar tábua. Os dentes circulares pegavam força, a mecânica funcionava e o ar cantava longamente até à cissiparização dois meios troncos.

— Inheeeeennnnnnnnnnhõõõõõoonnnnnnnnnnheeeeeeeeeeeeeeeeenhec. Depois mais e mais até tábua e mais tábua.

— Inheeeeennnnnnnnnnhõõõõõoonnnnnnnnnnheeeeeeeeeeeeeeeeenhec.

E se o Correres com seu ar triste empoeirado e foveiro acabava de serramoer o tronco do jaraguá e do gordura logo o nosso Diniz lhe chegava à serra insaciável mais madeira pau-ferro prele chorar com o antagonismo Minas dividida entre campolina e manga-larga e dava outra tora de pau grosso e logo o homem começava a desmanivar outravez outravez oooooouutrããããaaaa… E eram tábuas e tábuas. E enquanto ia seguia e ia o serramadeira, o interlocutor repousava calado e tão longe de mim distante, onde irá, onde irá teu pensamento… Dó-dó-lá lá-lá-sol-lá-fá…

Foram dias, semanas, meses desse descanso de espírito fora do qual e da angra daquele horto, o temporal ia engrossando para estourar no dia 3 de outubro de 1930. A vida daquela rodinha seria mais ou menos a mesma até o drama. Mas muita água mesmo inda tinha de passar por baixo da ponte…

 

 

A gente pensa que a vida sem variações é chavão que não muda e que uma rotina adquirida de existência é espécie de enche-linguiça. Engano. Não só os dias que se sucedem não repetem nuvem que seja, nem vento, nem mesmo cada anoitecer, tampouco nossos amigos e, em casa, nossa gente. É imperceptível mas é assim e nós também variamos em obediência ao destino, ao fadário, à deidade, a de cada um — a naturam sui corporis e ao inflexível “recado genético” — onde se inscrevem, em caracteres que ainda não tiveram seu Champollion, o nosso dia de adolescer, madurar, pensar que estabilizou, ir caindo tão de leve! de repente as brancas, as calvas, as bocas banguelando, a broxura sorrateira — tão paciente quanto moléstia velhice morte todas pacientes, todas seguras da sua hora. E lá vamos, instáveis no instável, móveis dentro do movente. Mas dando-nos ao luxo do tédio pela vida, que parece igual, a no seu dia a dia sempre diferente, sempre diferente, no sobe desce engrossafina estridente ou surdina Bolero de Ravel. Mas dentro da eternidade dos seus anos 20 o Egon achava seus dias invariáveis. E como não? Manhã, Santa Casa Ari Ferreira pneumotórax diz trintaitrês minha filha Padre Rolim almoço da prima Diva o Nava. Centro de Saúde, as partes para receber, os esporros do Argus, a palestra do Rivadávia, do Cirne. Tardinha e descida para o consultório, ora via Bahia e escritório dos Engenheiros Empreiteiros, ora via Afonso Pena e o boa-tarde aos seus amigos de guarda na Delegacia Fiscal. Ele agora já reconhecia os sentinelas. Eram dois, se alternavam e ambos faziam a posição de sentido quando ele passava, salvando também, seus dedos na beirada do chapéu. Até lhes dera nomes. O mulato mais escuro ficava sempre embaixo, na calçada e tanto fazia posição de sentido para os senhores funcionários, como dizia lérias, baixinho, às crioulas e morenas que passavam. Era o Sem-vergonhista. O outro, geralmente deixava-se ficar sobre as escadarias, olhar entre alerta ao que se desenrolava na rua e atento às cambiantes do céu, ao arfar das árvores, ao rolar das nuvens, à pequena borboleta que pulsasse no ar da tarde. Era o Sonhador. Uma passada rápida pelo clube cafezinho consultório. E não é? que a clínica começava a pingar. Os doentes mandavam outros. Gente nada chique — clientela modesta de internista jovem, interessado em tuberculose, coração, rins. Depois dedinhos de prosa no Bar do Ponto, casa e seus tratados. Tocante ao reverso — só aos sábados ou nas tais tardes em que o Demônio urgia. (Mesmo que conseguira chifrar o Conselheiro, comer sua Olinda e sentir daí para sempre o veneno de ter sido também sujigado e possuído “à turca” pelo fabuloso íncubo. Jamais esqueceria sua boca lábio superior fino arco-de-cupido, o inferior polpudo como fruta madura. Nem esqueceria a inocência da nudez prodigiosa de seu corpo adolescente — sempre adolescente, que andava dando a impressão de que cada passo era como o impulso derradeiro da sua própria alegoria alçando voo poderoso para as claridades sempre mais fluidas dos altos íris heptacolores, deixando embaixo as imagens de destruição, morte, matéria densa mundo pardacento. Sem querer procurava as asas d’Olinda — que deviam ser iguais às desfraldadas no Love Triumphant de George Frederic Watts — gravura que invocá-lo-ia vida inteira — desde o 1924 em que a vira primeira vez no frontispício de sua edição Deat & Sons dos Shakespeare’s Sonnets.)

Com a chegada dos Diniz é que dera de novo para cinema, disparadas pelas estradas circunvizinhas a Belo Horizonte, palestras com o senador, longas prosas com Amabel sempre a pasmá-lo pelo juízo certo e certeiro das pessoas e fatos. Ele às vezes queria argumentar, discordar mas lá vinha a lógica inflexível da inteligência da moça a pulverizar o que ele pretendia controverter e a pô-lo no seu lugar. E sempre o ar manso, os lindos olhos… E assim corria a vida dentro duma cidade que mudara sua índole pacífica e em que se viam magotes indo diariamente ao Palácio da Liberdade vivar o presidente Antônio Carlos e pedir armas para marchar contra o Braço-Forte. Assim chegou o dia 5 de fevereiro de 1930. E nesse dia…

Nesse dia o Egon tinha entrado mais cedo em casa. O sol poente batia em cheio na rua Padre Rolim enchendo-a duma cor tão igual, tão ouro vermelho, tão diáfana — que os objetos desprendiam-se da realidade e refletiam todas suas cores influenciadas pela dum cobre muito polido em que se estivessem repetindo as casas, as árvores, as pessoas, os automóveis — ao jeito do que fazem numa larga tacha esfregada a cinza, areia, sal grosso e limão-galego até adquirir aquele brilho de astro e aquele sem-fundo de espelho. Efeito da cor, palmas batidas na porta da rua estalaram tarolas retesas percutidas por vaquetas precisas. Foi ver. Eram o Fábio e o Cisalpino. Fê-los entrar direto pelo escritório, para seu quarto — pensando que seria para combinarem ida noturna ao cinema, às estradas, ao Horto. Nada disso: era coisa mais grandiosa, irem a Diamantina, ainda hoje, num trem especial que saía com o Gudesteu, o Pedro Aleixo, eles dois — logo depois de outro que largava com Melo Viana e comitiva para os Montes Claros.

— Ora que pena! Não posso ir com vocês porque estou de cobres curtos, princípio de mês, pagamento ainda não saiu… Logo Diamantina que eu sou seco para conhecer… Mas vocês levem o Nava, o Sá Pires que é de lá…

— O Nava não pode ir porque foi mandado pelo dr. Argus a Congonhas para ver um surto de febre tifoide que estourou por lá. Embarca amanhã cedo pelo rápido. O Sá Pires também não porque está substituindo o tio Aurélio na cátedra e além do mais o Gudesteu vetou a presença do mano na nossa comitiva. Tem de ser você. Isto de dinheiro não tem importância. Eu e Cisalpino adiantamos e depois você nos paga… Na volta.

E pareceu ao Egon que passava pela mente do interlocutor pensamento alegre pois seus olhos fuzilaram.

— A questão é o Argus…

— O Argus já está por minha conta — disse o Fábio. — Telefonei a ele dizendo que papai queria que você fosse.

— Se é assim, eis aqui o servo do Senhor e faça-se nele segundo a sua vontade. Pego vocês na estação… A que horas sai o trem?

— O do Melo Viana às nove e trinta, o nosso às onze da noite.

— Ficho. E vocês então me passem aí uns cento e cinquenta a duzentos…

— Logo mais, na estação. Olha, às dez e meia vem um carro pegar você.

— Combinado.

Realmente às dez e quinze apareceu na rua Padre Rolim o mordomo do Palácio, “o amigo Lisboa” como era chamado pela corriola do Fábio. O Egon já estava de mala à porta e esta foi imediatamente metida na parte posterior do carro, por cima duns caixotes que ocupavam todo o espaço disponível.

— O senhor vai ter paciência, doutor, e sentar aqui ao meu lado. Esses caixotes são uma surpresa que eu preparei para o Fabinho e os senhores. De tudo um pouco: queijos, pão fresco, torradas, atum, patê, uns frangos recheados, ovos duros, um tantinho de caviar, sardinhas portuguesas, vinho branco, tinto. A cerveja é que está ocupando muito lugar porque as garrafas estão no gelo e na serragem. Por isto que passei mais cedo pra pôr tudo no trem antes da comitiva do Melo Viana chegar…

— Engraçado, hein? Lisboa amigo. Essa partida de caravanas da Aliança Liberal e da Concentração quase na mesma hora… — Pois é… E eles mal sabem do que escaparam…

— Do quê?

— Aqui entre nós, o coronel Urbano estava com tudo pronto para descarrilhar o trem deles nuns descampados de entre Joaquim Felício e Bocaiuva. Ia ser uma beleza. Socorro nenhum naquele deserto. Mas o presidente soube, mandou chamar o Urbano e proibiu tudo. Uma pena… Sempre entre nós: o presidente tá muito mole. Queria ver uma destas nos tempos do dr. Antenor… Aquilo é que é homem, dr. Egon, aquilo é que é homem…

— Sei não, seu Lisboa. O estado tá assim de tropa federal e era intervenção certa. Acho que o presidente tá agindo com muita habilidade…

— Mas e a nossa “santa” Polícia de Minas? Tinha intervenção nenhuma… Já chega de tanto desaforo do Catete. Por muito menos fizemos o 42…

Na estação o Lisboa e uns secretas que ele chamou levaram a bagagem. Os comestíveis, puseram numa cabine vazia. Mais uns quinze minutos chegavam o Fábio e o Cisalpino. Logo depois o Pedro Aleixo e o Gudesteu de Sá Pires. Ficamos todos de palestra dentro do trem, esperando que a composição da frente em que seguia Melo Viana para Montes Claros desatravancasse a linha. Mas qual nada! A manifestação dos oposicionistas ia de discurso em discurso e só lá pelas onze horas da noite a locomotiva se pôs em movimento entre apitos, foguetórios e vivas. Nossa condução deu tempo a que se distanciasse a outra e fomos assim até Corinto, onde eles embericicaram para o ramal de Montes Claros e nós viramos para o de Diamantina. O Gudesteu e o Pedro Aleixo recolheram cedo. Agora, o Egon, o Cisalpino e o Fábio fizeram honra à matalotagem preparada pelo excelente Lisboa e sua alegria dentro do trem iluminado fazia-os brindar às estações quase apagadas onde o trem passava à pequena velocidade: Vespasiano, Capim Branco, Sete Lagoas, Araçaí, Cordisburgo. Em Curvelo a comedoria foi dada por terminada e todos se deitaram. A manhã já ia alta quando foram acordados em Conselheiro Mata, pelo próprio Gudesteu.

— Vocês tratem de vestir não só porque estamos a chegar, como porque tive aviso, em Monjolos, que vamos ser recebidos com manifestação de desagrado, vaias e apedrejamento do trem no Guinda. Temos de enfrentar a canalha de peito aberto. Eu estou armado com um 38 cano longo e carga dupla que trouxe na pasta mas só tenho os seis tiros do tambor.

O Fábio declarou-se também munido duma Colt de repetição: sempre seriam mais uns balázios. Depois de prontos foram encontrar o Gudesteu no vagão-salão. Estavam com ele o chefe do trem, o Pedro Aleixo e três guarda-freios que forneceram aos desarmados uma barra de ferro — cada conservando a sua na mão. O Egon olhou em roda. Como ele, os membros da comitiva mantinham sua compostura — só que neles, também, todo o sangue descera da face ao coração mais rápido. A composição seguia em marcha lenta pelas alturas arenosas das proximidades do Guinda. Fazia um dia soberbo. Longe, longe, nos limiares do consciente passou-lhe pela cabeça a figura de Bilac que menino, ele vira uma tarde na Garnier e sentiu que o poeta falava sem voz seu nunca morrer assim, num dia assim, de sol assim… Instintivamente ele tomou da mão do Cisalpino: sentiu-a seu tanto fria, entretanto decidida e segurando fortemente a clava que lhe coubera. Também apertou a sua e ouviu o chefe do trem como se ele estivesse léguas distante.

— Agora vêm mais duas curvas e depois uma reta. No fim é o Guinda…

Venceram as duas curvas, entraram lentos na reta. A uma distância de seus cem, cento e nada de metros uma estaçãozinha apinhada, preta de gente excedendo as plataformas e entupindo a linha. Novamente o chefe do trem.

— Tou com vontade de mandar o maquinista dar toda a força e passar por cima desta cambada toda…

— De maneira nenhuma. O senhor vai mandar o trem seguir muito devagar, parar e morrer por morrer, tanto vale aqui dentro do carro como na escadinha da plataforma. Vamos todos para lá — comandou o Gudesteu que de repente ficou apoplético de raiva.

— Vamos, vamos! — que todos berraram eletrizados.

Amontoados uns sobre os outros Gudesteu à frente, enchiam literalmente a escadinha e a pequena varanda posterior do vagão. Na iminência da ação ninguém sentia medo ou pensava coisa alguma — como durante um desastre — quando cessa todo raciocínio e a ideia fixa é a defesa a todo o transe. Da estação vinha como de manada ao longe um urro dentro de cuja uniformidade compacta não se distinguiam as palavras. O trem mais e mais devagar fez com que a massa humana se deslocasse para o outro lado dos trilhos como se nos fosse atacar por duas frentes. De repente o concerto de berros começou a se fender em palavras que se destacavam pouco nítidas até que chegou aos ouvidos dos membros da caravana um viva! Houve um princípio de alívio e todos prestaram atenção ao vozeirar da multidão. Os vivas sucediam-se e depois o nome do vivado também se destacou.

— Viva o Doutor Gudesteu Pires! Viva! Gudesteu, Gudesteu, Gudesteu, Gudes — meu! gu — des — meu!

— E para o dr. Pedro Aleixo? Nada?

— Tudo!

— Então? cuméquié cuméquié cuméquié?

— Viva o dr. Pedro Aleixo! Viva! Aleix’Aleix’Aleeeeeixo…

Graças a Deus era uma manifestação de apreço. Foi o tempo de todos entrarem no carro, esconderem as barras de ferro e recolherem às maletas os dois berrantes. A multidão uivava de entusiasmo. Eram vivas de todo lado ao presidente Antônio Carlos, ao Gudes teu e meu, ao Fábio, ao Aleixo e no fim ao Egon e ao Cisalpino reconhecidos de dentro da multidão por antigo paciente do Instituto Raul Soares. Era um alcoólatra veterano chamado Aristarco Parreiras Duvas que anualmente fazia sua cura de desintoxicação naquele hospício de Belo Horizonte. Ele dava raros vivas entremeados de rugidos e de morras a Washington Luís, Viana do Castelo, Melo Viana, Carvalho de Brito. Quebrara o jejum de mais dum ano (que durava desde sua última cura), embriagara-se conscienciosamente e estava medonho. Trazia trincado nos queixos um charuto vulcânico e sobraçava uns vinte foguetes sob o braço esquerdo. Ao seu pavio ele levava o charuto, dava um morra! a um porra qualquer e soltava o míssil à queima-roupa na direção dos seus vivados. Foi preciso contê-lo, dar-lhe quantidade de cachaça de derrubar para amainar aquele entusiasmo furioso. Fomos praticamente carregados em triunfo até dentro do trem invadido também pela multidão e começou ali uma apoteose que duraria vários dias de comícios, recepções, serestas, jantares, “judeus”, cervejares e champanhares no Distrito Diamantino. A locomotiva, como a da canção da rua Niquelina, fazia fuco-fuco com vontade de chegar. Íamos dentro duma paisagem faiscante e vária como a de Rugendas na Caravane de marchands allant à Tijuca.f Nossos corações se dilatavam sãos e salvos ao contato daqueles mineiros festivos e diferentes que nos abriam os braços. Finalmente numa gritaria, num chispoucar de foguetes, num estrondo de bombas e no bamboleio duma canção que ali nascia num ritmo espontâneo para dizer gu — desteu / gu — des — meu / gu — des — nosso — su — su! pusemos nossas solas na terra ilustríssima dos Contratadores. Estávamos na Diamantina… A estação da Central ficava num alto donde se dominava encolhida embaixo sob o jogo plástico prodigioso de seus telhados, a velha cidade. Dava a impressão de uma rainha idosa e friorenta encolhida sob os veludos, quinas, dobras, bolores, poeiras, pátinas musgosas do seu manto de telhas pardacentas. Embaixo destes resplandeciam como roupagens bordadas de pedras preciosas as vidraças das janelas, o branco duro da cal, as outras cores claras — azul-claro, rosa-claro, amarelo-claro, verde-claro, tudo claro claro claro nos panos de paredes, nos diamantes brutos do pé de moleque que ladeava as vastas pedras centrais das “capistranas” que eram como a face aparente da lapidação titânica de penhascos brilhantes enterrados. No meio da multidão tomada dum entusiasmo mais forte que os elementos um velho alto e ossudo a gritar romperrasgando os magotes que o impediam.

— Cadê o Fabinho, o Fabinho, cadê ele e seus amigos. Fabiiiinho!

— Tou aqui, sou eu, sou o Fábio. E o senhor quêquiquer?

— Sou o velho Castanheiro — Agapito Castanheiro, pai do Castanheirinho, do Zé Castanheiro que telegrafou dizendo pra hospedar ocês laincasa. Quantos são?

— Somos três. Eu, o José Egon Barros da Cunha e o Cisalpino Lessa Machado dos Guaicuí que é parente do seu patrício Aurélio Pires.

— Nem precisava dizer. Bastava soltar o nome que eu desfiava a família dele todinha, do barão pra baixo e do barão pra cima. Pois vamos largando essa gente toda por aqui, descer na frente, tomar banho e pegar o almoço que tá tinindo. Tem um leitãozinho nonato que está chiando no forno. Macio como queijo mole por dentro e pelinha tão torrada que estala só de se mostrar um palito pra furar. Num pricisa nem fincar, nem encostar.

— Mas nossa bagagem…

— Deixa pra lá que acaba aparecendo laincasa. Vai sendo levada no préstito e em cada casa de hospedagem o dono separa o seu.

Fascinados pelo velho Castanheiro, descemos com ele à frente do roldão que vinha como água rebentada que rola despenhadeir’abaixo. Ele nos fez parar diante duma venda, entrar para esquentar o corpo ainda penetrado das friagens dos mil metros de altura e lá vai beirada do Rodeador, Conselheiro Mata, do Guinda. Obrigou-nos a experimentar marteletes de pinga com caroço de lima que dava ao destilado tons de um azul-celeste, depois com a mamica-de-vaca que tinge de topázio e empresta reflexos de ouro fulvo, finalmente uma esverdeada e feia de “ervas amargas” que lixa o estômago e abre um apetite leonino. Abriu.

— Agora chega. Vamo simbora pro banho e depois dele é que quero mostrar minha pinga de tempero especial. Criação cá do degas — depois de muito ano de experiência…

— Mas temos de avisar o Gudesteu onde estamos, combinar com ele…

— Têm nada de combinar. Tá tudo organizado. Agor’ocês tão debaixo de minhas ordens. Pra casa e pro banho…

A casa do velho Pinheiro era um sobradão solene, diante duma igreja que repicava por repicar ao talante do sineiro e segundo a sua dose da bebida. O térreo, em outros tempos, devia ser comércio — não tinha janelas e só quatro portas de frente trancadas. Pois foi para esse cômodo dianteiro que fomos conduzidos e lá vimos três camas arrumadas e sentindo a capim cheiroso, vetiver e malva fresca. Os primeiros eram cheiro dos gavetões onde as ervinhas são postas secas para tornarem as roupas mais leves e livres da bicharia. A malva era mesmo de folhas novas colocadas por cortesia debaixo dos travesseirões e travesseirinhos. E — acreditem ou não, nossas bagagens meticulosamente separadas de acordo com os nomes ou as iniciais colados no couro. As que não estavam trancadas à chave tinham sido abertas para arejar e sobre seu conteúdo espalhavam-se folhas de malva como também sobre três lençóis de americano grosso dobrados sobre uma cadeira. Via-se que passara por ali a gentileza da mão feminina das Castanheiras.

— Agora ocês tirem a roupa, cada qual pegue seu lençol naquela cadeira e podem ir à vontade para o fundo da casa. Pelados mesmo que o mulherio tá todo em cima e na cozinha.

Quando chegamos trajes de Adão no quarto das bacias e dos baldes o velho Castanheiro já lá estava nu, à nossa espera. Aquilo era uma delicadeza dele de tomar seu banho conosco pra nos pôr à vontade. Numa beirada de janela luziam vários sabonetes Araxá novos em folha. Fomos aos baldes e às cuias e logo nos lavamos e relavamos prontos para Diamantina e o almoço. Como tinha prometido, o velho Castanheiro ia nos fazer degustar da sua pinga. Era uma aguardente de cabeça onde ele deixava a macerar raízes, folhas, bagas e favas de sua fórmula secreta durante meses. Depois filtrava e punha dentro de cada litro uma pimenta-de-cheiro, arrolhava bem e deixava descansar mais uma estação. Provamos. Era dinamite: dinamite engafarrada e queimava dum fogo bom primeiro o estômago, depois subia para os peitos e mandava uma flor acesa descendo — que esquentava a suã, o períneo e as partes. O próprio Castanheiro fez as recomendações.

— Um cálice só. Não deve repetir. Beber bem devagar. Golinho na boca deixar engrossar com saliva, espalhar e engolir. Depois mesa, sem espera nenhuma. Então? Que tal? Não senhor, dr. Egon, mais devagar… Temos tempo, dia inteiro à nossa frente que o comício é depois da janta. Pegamos o Gudesteu e o Pedr’Aleixo na casa do Chico Mota. Ainda vai dar para fazer bezerro.

A essa expressão especial, logo lhe foi perguntado.

— O senhor foi do Caraça? seu Castanheiro.

— Graças a Deus. Caraça e depois seminário de Diamantina. Fui colega do Aurélio e do Chico Sá. Ainda sou capaz de sustentar conversa de minuto e meio em latim. Não esqueço os reverendos meus mestres nem da sua férula. Liliis tenaci vimine jungor… E os lises eram nossas mãos latejando… Às vezes saía sangue pisado por debaixo das unhas… Tava certo porque educar é bater. Agora, hoje… Pois vamos subir para o almoço.

Enquanto subiam o Egon ia considerando que positivamente Diamantina era uma Minas Gerais diferente. Nunca que ele vira tanta espontaneidade, alegria, hospitalidade, coração aberto em nenhum lugar no seu estado, como neste. Contagiado ele riu para o Castanheiro que ria. Ria para ele, pro Fábio, pro Cisalpino que riam todos entre si uns pros outros.

— O senhor é fabuloso, seu Castanheiro. Fabuloso como esta Diamantina.

Vingadas as escadas, foram todos apresentados à família. A senhora e as moças tinham mais naturalidade que as de Belo Horizonte. Conversavam encarando os rapazes, respondiam com graça, tomavam a iniciativa de recomeçar a palestra sempre que um assunto ia caindo, dado por concluído. Sairiam conosco à noite para os comícios e desmentiam as teorias do velho Castanheiro de que educar era bater. Aquelas ali tinham jeito de nunca terem apanhado. Logo se viu que tudo era garganta do velho quando sentados à mesa. Havia mais pinga e cerveja mas foram postos os pontos nos ii quando a dona da casa deu-nos suas instruções.

— Tem feijão, arroz, farofa, couve, porquinho nonato, lombo de gomo e angu. De bebida, só cerveja e pinga. Para o Castanheiro água pura, que ele está proibido pelo médico. Não pode abusar. E os senhores procedam com tenência porque vão beber muito, hoje, no jantar do primo Horta e num “judeu” marcado pra depois do comício e da serenata.

Todos olharam o velho Castanheiro que não tugia nem mugia. Fora-se-lhe a prosa, as ameaças de bolo e ele se fazia completamente de andré enquanto a patroa determinava seu racionamento. Ele próprio numa concordância serviu-se dum vasto copo dágua, mal a mulher acabara de dar sua sentença. Mortos de sede e das pingas ingurgitadas os moços, as moças e a dona da casa encheram seus copos de cerveja. Como em Diamantina não se conhecesse ainda geladeira nem mesmo gelo, a bebida tomada à temperatura ambiente era mais espumosa. Seu sabor também era menos encoberto e a bebida sem esfriar pareceu ao Egon, ao Cisalpino e ao Fábio — mais jucunda, dum amargo mais engenhoso e dum cheiro mais vivo. Tomaram regalados seus primeiros copos. E mais quando para ajudar o porquinho nonato que desmanchava na boca que nem creme enquanto sua pele, por dentro, duma moleza de manteiga oferecia por fora a consistência dum torrado que rangia na boca, como crepita o pão bem tostado. Cada um sentia a vibração nos próprios queixos e escutava os dos vizinhos de boca cheia britando. Engolia, preparava no garfo o módulo do feijão-farofa’rosinho, engolia devagar, lavava depois com um gole de cerveja — aaaah! e continuava. O rabinho foi comido pelo Cisalpino, ossos e tudo e o crânio passado ao velho Castanheiro como a peça mais nobre e senhorial da mesa. Ele chupou um olho, depois o outro. Tomou duma faca pela lâmina, bateu com o cabo e rebentou a calota.

— Siá Zulmira: bebid’eu sei que num posso. Mas a pimentinha a senhora não vai me negar.

— Malaguet’ou do reino?

— Do reino.

O calvário nonato na mão parecia um ovo quente de furo pronto pra chupar o conteúdo. O dono da casa, reassumido um instante, tafulhou o orifício do pó ardido e escorropichou a iguaria dos miolos. Um pouco de pó escuro e duma espécie de mingau branco grudaram-se-lhe escorrendo nos bigodes que ele lambeu como um jaguar e limpou depois cuidadosamente com a beirada da toalha. Recaiu na atitude contrita e encheu outro copo d’água.

— Superior! Pois siá Zulmira, podemos passar agora ao lombo de gomo, à couve…

O lombo de gomo estava realmente um prodígio. Era como tora de madeira preciosa, dum marrom-claro do cerne de ulmo, escurecido onde os lanhos da faca tinham aberto as divisões que limitam os ditos gomos. Invadiu a sala com seu perfume. O grupo que já parecia farto com o leitãozinho estimulou-se a esse cheiro como matilha de caça à fanfarra do halali. As moças serviram a todos mais cerveja e encheram resolutamente os próprios copos e o da siá Zulmira. O lombo abria ao corte trinchante mostrando a carne quase branca e mais olorosa. Foi devorado com a farofa e a couve clássicas depois de regado com um molho ferrugento temperado com a pimenta especial dita “de macaco” — a que melhor se coaduna com todas as carnes que passam pelo forno de barro da cozinha mineira. Essa especiaria lembra pimenta-do-reino mas com o ardido ativado por cheiro parecido com o do estragão. Aquele almoço feliz foi respaldado por doce de coco dourado e queijo curado cor de marfim. Café pelando em canecas de ágata.

— Agora é descer. Quem quiser que faça seu bezerro. Pra quem não, vamos conhecer a igreja de Nossa Senhora do Carmo…

Descemos dispostos a uma volta pela cidade. Mas o velho Castanheiro antes de sair foi remexer num armário do corredor do nosso quarto e de trás duns amarrados de jornal sacou um garrafão de que se serviu amplamente. Era sua cachaça particular para contrabalançar os copos dágua tomados em obediência à siá Zulmira. Mandou-se uma talagada respeitável. Não nos ofereceu. Arrolhou cuidadosamente, fechou a chave e à saída deu-nos uma explicação sibilina.

— Aqui nesta casa galinha cacareja mas quem canta mesmo é o galo. E além do mais, de bitáculas apagadas não se navega…

Foi nessa altura dos acontecimentos que o Egon chamou às falas o Fábio e o Cisalpino sobre o empréstimo que lhe tinham prometido em Belo Horizonte. Eles deviam ter-se mancomunado para a farsa e o primeiro tomou a palavra. Cara seríssima, sobrancelhas severamente contraídas.

— Egon, você não pode duvidar da confiança que temos em você nem da amizade fraternal que lhe dedicamos. Mas estamos entendidos, o Cisalpino e eu. Para seu bem resolvemos não lhe emprestar nem um derréis. Você com dinheiro no bolso abre logo a alma ao Diabo e temos medo de comprometer nossa caravana política, a Aliança Liberal e até o bom nome do papai — com seus eventuais desmandos. Assim você terá de nós a companhia compulsória, um maço de cigarros e aí pelos seus dez tostões por dia trocadinhos para o caso que queira dar qualquer esmolinha pelamor de Deus. Será uma espécie de curatela. E só. Inútil qualquer insistência de sua parte.

O Egon a princípio divertiu-se pensando numa brincadeira. Depois apelou, pediu, implorou, cobriu os amigos de injúrias mas os dois ficaram inflexíveis. Era não, não e não. E queriam ver se ele teria a santa coragem de dar facadas no Gudesteu e no Pedro Aleixo… Bufando de raiva, o médico ludibriado assumiu a canga e — puto da vida — saiu com os amigos e o velho Castanheiro. Começaram a percorrer as igrejas e a cidade. Retomariam esse programa nos dias subsequentes. Nesse, viram o Carmo e nos outros veriam Santo Antônio, São Francisco de Assis, Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, a Igreja dos Mulatos, a do Senhor do Bonfim dos Militares. Admiraram a Santa Margarida de Cortona em roca, os cemitérios de gavetas, os ossuários em forma de enormes terrinas, cheios de ossos e que a cada Finados as famílias vinham visitar, desempoeirar e pôr dentro deles umas flores frescas. Mais. O Cristo das Sete Palavras na sua Cruz, mas ainda vivo. O Senhor Morto. As alfaias, as pratarias. Um galo das trevas incisado em madeira passada a tinha negra com vivos prateados e o torneado das treze bocas das velas. O Egon achava o barroco das igrejas menos rico que outros que já conhecera em Minas. Assim mais sóbrio, mais enxuto, menos funerário, mais de acordo com aquela cidade tocada a álcool e alegria. Os amigos dedicavam grande parte do seu dia a longos passeios, penetrando-se da alma das ruas, da beleza do pé de moleque que ladeava as lajes enormes das capistranas fazendo o luxo daquelas passadeiras ora cinzentas, ora cor de ouro — ruas afora Diamantina acima, Diamantina abaixo. Seus casarões enormes repetindo os de Évora. Mas o que encantava o Egon era um indefinível no céu e nos ares — os quais lhe davam uma como que impressão de mar próximo. Parecia-lhe que o fundo desta ou daquela rua ia desembocar em praias imensidões de areia como são as da metrópole em São Pedro da Aldeia, pra lá das rias do Aveiro, Nazaré, Cezimbra e a Vieira. E essa impressão é que teriam sentido todo tempo os naturais da Diamantina conferindo-lhe aquele cunho de ser uma das cidades das mais portuguesas e marítimas de Minas — já que Mariana, Ouro Preto, Sabará, São João e São José d’El-Rei mantêm mais nítido um caráter que lhes foi dado pelas épocas filipinas: são burgos mais espanhóis que lusíadas. O mesmo se pode dizer do povo. Nenhum com a espontaneidade e a alegria do diamantinense — como o Brasil aprenderia a valorizar muito mais tarde com a saudade que lhe deixaram os anos felizes da era arejada e leve em que o governou Nonô Kubitschek. A ideia de mar, o complexo de mar que nasce da sugestão dum céu especial que parece que bateu numa superfície líquida cujo azul ascendeu, foi devolvido — para dar mais profundo ao azul primitivo de que se oriundou e ourinundou. E tinge de azul a alma do povo que guardou a reminiscência do mar que lhe chegou com os navegadores brancos e com os navegantes negros que vieram inda mais penosa e duramente nas escunas do tráfico d’África. Dos contratadores afastados e sofrendo o degredo paradoxal para Portugal — Felisberto e João Fernandes d’além-mar gemendo… Chica da Silva querendo uma galera ancorada naquela barranca de grupiaras e como era a que-manda, pôde e teve sua embarcação fantástica de bojo dourado e bujarronas, latinas, gatas, traquetes, gáveas brancas, trabalhadas em filigranas de pura prata. E as canções de beber? como a do “Peixe vivo” e a do Zum-zuuum/ láaaa no meio do mar… E logo na primeira manhã os amigos tinham ouvido do velho Castanheiro a advertência de que de bitáculas apagadas não se navega — expressão marinheira que traduzida em miúdos queria dizer que de bucho sem seu lastro de pinga ninguém vive.g E as chamadas “marujadas” do Tijuco não são elas? versão da Nau Catarineta de Portugal. Ah! foi aquela alegria náutica de Diamantina que envultou o Egon, o Cisalpino e o Fabinho enquanto lhes foi possível manter o bom humor na cidade amorável e bendita. Só que dias negros estavam chegando mas… não vamos adiantar coisa nenhuma: o futuro a seu tempo. É. O desacontecido ainda não chegara e só a Deus pertencia…

Assim os três moços passavam os dias fazendo seus passeios turísticos que terminavam oficialmente diante da Casa do Contrato, homenagem do Egon que tornara-se positivamente fascinado pela figura da Chica da Silva. Criouleiro… Este resolvera se fazer de submisso e ao terceiro dia de Diamantina, cumpridos dois de abstinência, o Cisalpino e o Fábio passaram-lhe o empréstimo que permitia ao doutor ir fazer de nababo nas duas cavalhadas: a de cima e a de baixo com suas casas cheias de quartinhos nichos recendendo a manjericão e alfazema — que são os cheiros do amor venal tijucano. Sempre, depois da sua passeata à hora do sol a pino os três compadres voltavam com o velho Castanheiro para casa, faziam um curto bezerro, passavam-se a um segundo banho e iam cumprir a parte cívica do programa. Falavam geralmente nos comícios o Gudesteu e o Aleixo. Mas oferecendo-se ocasião — o Fábio, o Egon e o Cisalpino também faziam (de cima de cadeiras, tamboretes, coretos ou sacadas) a sua dose de oratória — com o invariável elogio do Andrada, de Vargas, de Pessoa e as invectivas mais acerbas ao Barbado, ao Braço-Forte, ao Cabeça de Pedra que era como era conhecido em Minas o presidente da República. No dia da estreia tribunícia do Cisalpino, ele quando galgava a elevação donde ia falar, ouviu de dois assistentes frases de elogio caloroso. Dois velhotes se confidenciando.

— Esse aí vai falar melhor que os outros. É duma família de oradores, consanguíneo do Aureliano Lessa, do Chico Sá e do Aurélio Pires — todos oradores natos e grandes latinistas…

— Então vamos ter discurso fino e cheio de citações latinas…

— Ora… juro que ele não dá por menos…

Aquilo impressionou o Cisalpino que enquanto ia falando, procurava nos socavões da memória uma frase latina que o justificasse dentro do juízo prévio e lisonjeiro em que era tido por questão de família. Só que nada lhe ocorria. Não lhe vinha à cabeça nem mesmo o nosso libertascueseratamenzinho. Literalmente em branca nuvem até que sem querer e falando do aumento ameaçador dos efetivos federais em Minas ele soltou um ovinho mofino de latim.

— …estamos pois, meus senhores, ipso facto sob uma verdadeira intervenção intolerável à autonomia de Minas…

A esse primeiro vagido acorreram fáceis, mais frases e mais citações da língua mãe e o Cisalpino a soltá-las uma depois da outra como aquela sequência dos miles de vagões dos trens de minério descendo a Mantiqueira.

— …é como convém dizer, senhoras e senhores, nesse país aviltado: Quousque tandem abutere, Catilina, patientia nostra? E tu? oh! Washington Luís… Cur percutis me… Corruptio optimi pessima oh! Brito! oh! Viana.

Uma trovoada de palmas e de vivas recebeu as últimas palavras do Cisalpino que foi arrancado da tribuna para ser carregado em triunfo enquanto ele, inteiramente fora de si, continuava a soltar mais latim num verdadeiro estouro de comporta.

Dixi. Dominus tecum. In medio stat virtus. Maxime. Vice-versa. Urbi et orbi. Sponte sua. Sit anathema. Sero venisti. Pari passu. Libertas quae sera tamen. Ite, missa est… Domine, salvum fac Antonium Carolum!…

Nesse dia o nosso Cisalpino esteve mais alto que o fluente Gudesteu, que o ático Pedro Aleixo. Meteu tudo no chinelo. Desde o segundo dia de Diamantina ninguém jantava mais. Cada qual reservava-se para o “judeu” tarde da noite na casa dum ou de outro — judeu esticado ora por baile ora por serenata onde se desfiava toda a ternura da alma de Minas e mais particularmente da Diamantina. As violas, os violões e as harmônicas casavam-se aos coros cantando o “Quisera”, “Alice”, o “Tim-tim”, “Flor do céu”, o “Alecrim dourado”, o “Quebra-quebra gabiroba”, “Tua sombra”, “Elvira escuta” e a “Saudade de Ouro Preto”. De quando em quando a repetição do “Zum-zum” e do “Peixe-vivo”. Pensam que acabou? Núncaras… O baile ou a serenata eram seguidos de cervejadas e champanhadas que mantinham os comiciarcas rindo e bebendo até o sol raiar, fazendo chispar e faiscar as micas e o cascalho diamantino das serras das cercanias. Os membros da comitiva do Gudesteu não queriam outra vida senão a continuação daquele Carnaval quando um dia foram reunidos por chamado urgente, em casa do Chico Mota. Esse é que deu-lhes ciência dum vago dizquedisse notícia vinda no ar de que a comitiva do Melo Viana tinha sido massacrada em Montes Claros e que a capangada do Dolabela Portela estava descendo sobre Diamantina com a decisão de revidar e não deixar nenhum aliancista vivo.

— Que tem coisa por aí, tem — concluiu o informante. — Olha que não chega trem, nem correio, nem telegrama em Diamantina desde o dia seguinte à chegada de vocês. E mais, tanto Correio como Telégrafo fechados para todo mundo, exceto para d. Ordália Neto que esta, sim, fala diariamente com o marido pelo telégrafo da Estrada de Ferro. E outra ainda. Todos os trens deixaram a cidade e só ficaram aqui uma máquina e um tênder carcomidos de ferrugem, de que estavam consertando a caldeira…

— Ora pois! Melhor para nós — declarou o Cisalpino — que assim ficamos ilhados na Diamantina, nessa vidinha de cocanha e pagode! E noivando porque saibam vocês que o Egon e eu pedimos em casamento as duas filhas do seu Heliogabalo Caracala Caldeira Brant Pontes Paes Leme de Oliveira Horta no baile de ontem. E fomos aceitos… Nunc est bibendum… meus caros amigos.

— Mestre Cisalpino, admira que você queira brincar num momento destes — disse o Gudesteu — a notícia que nos deu o Chico Mota é gravíssima e nós temos de pirar de Diamantina amanhã mesmo no mais tardar. E separados. Eu sigo com o Aleixo e o Fábio. E você vai com o Egon por outro caminho. Vamos cuidar disto desde já. Eu vou sair um instantinho com o Mota, os outros, cada qual para onde está hospedado, arrumar as malas sem dar na vista e vamos nos reunir aqui mesmo dentro de uma hora. Toda pressa e pontualidade são poucas. Entendido? dr. Egon. Entendido? “seu” Cisalpino.

Hora depois, como combinados, reunimo-nos outra vez em “conselho de guerra”. O Gudesteu, automaticamente, assumira a direção das operações e deu as últimas instruções.

— Meus amigos, vamo-nos separar desde agora e até Belo Horizonte. Eu sigo só com o Fábio porque o Aleixo foi para a fazenda dum amigo prometendo reaparecer são e salvo na rua da Bahia dentro duns oito dias. O Fábio já vai dormir comigo na casa do Chico Mota e sairemos assim que possível. Vocês dois cuidem de si. Falar nisto, quanto têm no bolso?

O Cisalpino e o Egon puseram tripas à mostra. Tinham de seu, os dois juntos, cerca de duzentas e cinquenta pilas. O Gudesteu achou pouco para a aventura que esperava os dois compadres e passou-lhes mais setecentos e cinquenta bagarotes.

— Bom, assim vocês já estão fornecidos. Com um conto de réis podem viajar como entenderem até Belo Horizonte. Demorem aqui o menos possível. Sumam sem deixar rastro. Até mais ver.

— O senhor tem ideia? dr. Gudesteu, para onde se meteu? o Aleixo.

— Não sei, não quero saber e se soubesse não dizia do mesmo jeito que não quero saber como e a que horas vocês vão se escafeder da Diamantina.

— Ainda nos vemos? ou o senhor desaparece? com o Fábio amanhã cedinho.

— Também não sei, não quero saber e tenho raiva de quem souber. Vocês sejam felizes, boca calada e raspem-se. Até breve. Vamos! Fábio.

 

 

No dia seguinte, depois de uma noite de descantes na Cavalhada, o Egon e o Cisalpino foram acordados por um Castanheiro cochichando que disse que tinha feito vir do Mendanha compadre seu para nos facilitar a ida para Belo Horizonte. Tomássemos primeiro o café e depois conversaríamos com o homem. Tudo isto foi sussurrado com olhares para as portas e só aí notamos que o nosso anfitrião estava cum cachenê que lhe enrolava o pescoço, fazia outra volta tapando a boca, e mais outro os ouvidos, passando pelo alto da sinagoga.

— Qué isso? seu Castanheiro. Resfriado? Dor de ouvido?

— Nada não, doutores. É que estamos em época de muito segredo e convém a gente disfarçar um pouco.

O seu Castanheiro revivendo a velha tradição mineira do tempo das conjuras já estava embuçado. Quando acabamos o café ele fez entrar seu compadre do Mendanha. O homem entrou, mal cabendo na porta. Era um mulatão fechado de poucas palavras que sem maneirar foi direto ao assunto.

— Vou levar os senhores para Belo Horizonte no meu automóvel. No princípio quando o compadre falou eu não queria não. Depois resolvi quando ele disse cocês eram colegas e amigos do Nonô. Tenhum amor pereno pel’aquele malandro. Foi meu pai quicriou o pai dele, o falecido João César, que Deus haja. Vamo logo pôr as bagages docês no carro, vamos dar uma volta pros senhores verem meu Torpedo Lorrenditrixe e depois combinamos nossa viagem. É um carro de 1912, comprado no Curvelo da mão do meu compadre Antônio Salvo e que eu num trocava por carro nenhum dessas bostas dos forde de hoje, com perdão da má palavra.

Quando transportávamos nossas malas para o veículo é que compreendi a linguagem. O carro era coisa venerável: li nos niquelados da tromba: Torpédo Lorraine-Dietrich — 1912. Entramos para experimentar.

— Até já, seu Castanheiro, vamos dar aqui a voltinha com o amigo… cumé mesmo que o senhor se chama?

— Podem me tratar de Negrão do Mendanha que é como todo mundo me conhece daqui da Diamantina até às vizinhanças da Bahia.

— Pois muito que bem, seu Negrão. Vamos experimentar seu carrão. Pelo jeito é coisa boa.

Saímos e o homem calou-se. O Egon ia a seu lado e o Cisalpino espalhava-se num banco de trás. Rodaram bastante e o homão calado, só abrindo de quando em quando um canto de boca avaro para dizer onde estávamos passando. Foi nisso até durante umas duas horas.

— O senhor não acha? melhor voltarmos para o almoço. Já estamos longe e seu automóvel é mesmo resistente. Olhe, que pr’aguentar os solavancos desses caminhos de boiada é preciso mesmo…

— Nós agora, seus doutores, desculpem! Mas só vamos mesmo parar é no Curvelo e já noit’escura. Lá pousamos e de madrugada batemos pra Belorizonte. Recomendação deixada pelo dr. Gudesteu. E a estas horas ele já está longe. Embarcou com o dr. Fabinho, os dois vestidos de foguista e as cara toda buzuntada de carvão. Eles convenceram um maquinista a modos de levá eles na única máquina que tinha na Diamantina. O homem só aceitou com a promessa de ser nomeado pra Secretaria das Finanças. Na certa vai ser demitido da Estrada. Porque trem pra sair da Diamantina só com ordes do dr. Oscar Neto.

O Egon olhou o Cisalpino com um ar de desânimo e de pasmo que ele entendeu perfeitamente porque logo respondeu com poucas palavras.

— …e mal pagos.

Mas já o Negrão do Mendanha dava uma boa notícia.

— Vamos parar agora naquela sombrinha para verter e tirar da mala do carro a nossa matutagem. Lá tem uma biquinha com um’aguinha superior. E eu trouxe também duas garrafas da Nuvens Azuis das legítimas, ainda do tempo do Redelvim.

Pararam com efeito na sombrinha onde cantava um fio dágua sobre um cascalho de pedras brancas. Desanimados. E foi só quando as Nuvens Azuis fizeram seu efeito que eles se atiraram ao lombo com farofa de que viera munido aquele benemérito do Mendanha. Tudo lhes pareceu fácil e foi cantando o “Peixe vivo” que eles entraram no Curvelo pelas suas onze horas da noite. Estavam derreados e com suas boas quinze horas de solavancos naquelas estradas — se é que se podia dar o nome de estrada àqueles caminhos feitos pelos burros, pelas boiadas e pelos próprios automóveis com seu peso e seus pneus. Ficaram num hotel barato, quase uma pousada e deram nome trocado. O Cisalpino disse chamar-se Francisco de Sá Pires e o Egon, Pedro da Silva Nava. Conhecendo como eles conheciam os amigos e os nomes dos pais dos amigos, mais lugar de nascimento e fastos de ambos, em caso algum cairiam em contradição.

Seguindo a papelada mandada pelo Egon ao Nava, anos e anos mais tarde, pode-se reconstituir o itinerário desta fuga de Diamantina, dentro de um estado de pernas para o ar e praticamente sob a bagunça duma semi-Intervenção Federal. O caminho tomou na Diamantina pelo Guinda e pela Gouvêa. Entraram no Curvelo pela Paraúna desse município (não confundir com a Paraúna de Conceição), passaram Ipiranga e tinham pernoitado na sede. Sumiram madrugada escura, passaram em Lagoa, almoçaram num comércio do Jequitibá, bateram em Sete Lagoas. Passaram para Capim Bravo, depois Pedro Leopoldo e Vespasiano. Começaram a tranquilizar quando se apanharam na Venda Nova e na Pampulha. Veio Cachoeirinha e eles viram longe, dentro da noite imensa, aquele clarão avermelhado projetado ao alto pelas luzes do Belo Horizonte. Às onze e meia da noite estavam na praça da Estrada de Ferro.

— Pronto, doutores. Os senhores tão em casa. Apeiam aqui e eu bato de volta já e já. Dormir no mato.

O Negrão do Mendanha desceu. O Cisalpino e o Egon foram com ele comer no Botequim da Estação. Baldearam as bagagens para dois táxis e passaram a ver o que deviam ao estradeiro e motorista prodigioso que só em caminho poeirento de carro de boi e pata de burro tinha dado com eles na capital, depois duma inacreditável viagem de cerca de quarenta horas — varando os baixos do norte e do centro de Minas por cinco municípios. Tinham respirado aquele poeirão de ferro do seu solo e agora estavam ali se despedindo daquele homenzarrão que ia de novo sumir na noite. Não quis aceitar senão o dinheiro gasto com gasolina.

— Não, senhores. Só a gasulina. Os senhores estavam na Diamantina servindo Minas. Eu também quero contribuir. Porque vamos ter guerra pior que a de 42 ou eu não quero ser mais chamado de Negrão do Mendanha. Té a vista, doutores e tem nada de agradecer não.

Os dois amigos viram o carro-fantasma sumir, deram até amanhã e cada um tomou o seu que estava esperando e já com o relógio marcando. Um para Cláudio Manuel e o outro para Padre Rolim. Dormir bem essa noite e inteirar-se de Minas dia seguinte.

 

 

Os poucos belorizontinos ainda vivos por aí que conheceram sua cidade naquele longínquo fevereiro de 1930 em que está a presente narrativa, lembram-se dela como de um burgo submerso da Atlântida, coisa que não existe mais senão na sua imaginação, nas velhas crônicas e nas fotografias amareladas pelo tempo — é a sua Belorizôntida mergulhada no mar do tempo e tão incerta como o reino de Tule que ninguém sabe com certeza se era na Islândia, numa das ínsulas do grupo das Shetland ou também debaixo das ondas… Como esse reino fantástico (“última Thule”), a Belorizôntida transformou-se num país ou ilha de fábula. Sabem onde ela acabava? Mais ou menos numa linha que apenas excedia os limites da avenida do Contorno salvo em promontórios como a Serra, a Fazenda da Cidade, o Calafate, o Carlos Prates, confins do Pipiripau, Bonfim. E tinha apenas 108 849 habitantes.h Mas quando o Egon saiu de sua casa para procurar o Teixeirão e saber das novidades, essa população parecia multiplicada nas ruas entupidas de gente e de boatos. Tudo se explicou quando o médico ouviu de seu amigo o relato dos últimos acontecimentos. No dia em que a Caravana do Gudesteu seguira para Diamantina, a 5 de fevereiro, saíra, como se viu outra, chefiada por Carvalho Brito e Melo Viana, indo a Montes Claros a fim de fazer propaganda da Concentração Conservadora e da candidatura Prestes. Até hoje não se sabe exato o que se passou quando de sua chegada a 6, nesta cidade do norte de Minas. O fato é que aí desembarcaram. Foi recebida por correligionários e formou-se um cortejo que foi percorrendo as ruas. Em frente à casa do dr. João José Alves a passeata foi dissolvida à bala, tendo sido feridos levemente Melo Viana, gravemente Moacir Dolabela Portela e mortalmente o advogado Rafael Fleury da Rocha. Criaram-se duas versões. A da Aliança Liberal que dizia que o dr. João Alves estava em atitude respeitosa vendo passar a manifestação quando desta massa humana foi atirada sobre ele uma cabeça de negro. Com a explosão ele teria sentido tal emoção que fora presa duma hemoptise. Entrando assim, banhado de sangue, teve de ser amparado por d. Tiburtina, e homens seus, que estavam em sua casa ou fora dela, julgando o chefe ferido, tinham aberto fogo sobre os concentristas. Já a versão destes é de que houvera pura e simplesmente um atrás-do-toco, uma espera, tocaia, emboscada ou qualquer outro nome que se lhe queira dar. Como sempre, as versões de um lado desfaziam as do outro e apesar dos inquéritos, até hoje o caso de Montes Claros é um mistério. Cada um, de acordo com suas simpatias, pode adotar a versão que quiser. Ou as duas, para ser eclético. O fato é que houve tiroteio, feridos, morte. Apesar do governo de Minas ter mandado abrir inquérito por autoridades insuspeitas — drs. João Pinheiro da Silva Filho, Rogério Machado e tenente-coronel João Procópio Duarte — o Ministério da Justiça fez seguir para Montes Claros, a fim de acompanhar a perquirição, por parte do governo federal, o dr. Luís Galloti acompanhado de uma Companhia de Guerra do 10o Regimento. Esse flagrante acinte foi considerado, e era, uma violação à autonomia de Minas Gerais e insuportável ato de intervenção que enfureceu toda a população do estado. Ninguém mais saía da rua. Os cafés regurgitavam. Eram frequentes as discussões entre concentristas e aliancistas e não raro o pau comia. Mais se exacerbariam os ânimos com as eleições feitas sob evidente coação e fraude (aliás nunca deixadas de praticar na nossa história política) e que a 1o de março de 1930 deram a vitória à candidatura do Catete. As repartições federais cometiam os maiores desmandos, os Correios e Telégrafos funcionavam praticamente para a Concentração Conservadora e toda correspondência das figuras de proa da política estadual era violada e retardada. As forças federais tomavam atitude acintosa, como em cidade ocupada, soldados do Doze sempre aos magotes pelas ruas e os oficiais passeando aos dois e três em trajes de campanha, casquetes de pano, cantil e parabélum à cinta. A Polícia do Estado desaparecida como por encanto. O dia 3 de abril de 1930 seria um dia histórico.i Nessa data realizou-se um comício no Pirulito da praça Sete, reunião de protesto contra a orientação seguida, em seus trabalhos, pelas juntas apuradoras nas eleições que se julgavam fraudadas. Uma multidão ululante enchia aquele logradouro, excitava-se mais com os próprios gritos até que um último orador teve a ideia desinfeliz de propor um desfile de desagrado diante da mansão de Carvalho Brito. Os magotes subiram Espírito Santo até à esquina de Tupis onde ficava a residência desse político e lá pararam aos morras, fora, entra, invade e já começavam a querer arrombar o portão quando de dentro da casa às escuras, partiram vários tiros. O povo dispersou-se em pânico, reconcentrou-se no Bar do Ponto, dali subiu até ao Palácio da Liberdade para dar conhecimento de tudo ao presidente. Este recebeu a multidão cercado das pessoas que estavam, àquela hora, na sede do governo. Lá tinham jantado o Teixeirão e o Egon que foram testemunhas de tudo que se passou. O Andrada esteve como nunca. Ele sabia que qualquer ação contra o Brito seria a intervenção efetivada em Minas e o Palácio da Liberdade com novos moradores. Aos oradores inflamados que se sucederam pedindo cabeças, ele foi desgastando com a promessa das providências que tomaria e dando o mote a que oradores do seu secretariado e de pessoas que o cercavam fossem fazendo discursos de mais em mais calmos. O tempo passava e com ele o agudo da fúria popular. O presidente acabou dizendo que iria encarregar de executar suas ordens ao oficial da Força Pública Alcides Campos do Amaral, ali presente. Este saiu apressado acompanhado de perto pelo Fábio Andrada… portadores das ordens necessárias para a garantia de Carvalho Brito, sua família e do isolamento de sua casa por elementos da Polícia Civil. Mas o efeito das palavras do Andrada tiveram o condão de amainar e fazer dispersar o povo que, conhecendo a nenhuma doçura e a rapidez de ação daquele oficial, imaginou que no mínimo fosse ser incendiada a casa do chefe da Concentração Conservadora. Cada um foi dormir esperando contemplar as ruínas no dia seguinte e ver as figuras que fariam em suas forcas os inimigos de Minas. Só que Antônio Carlos não mordera a isca daquela provocação…

A 11 de maio de 1930 eram eleitos respectivamente presidente e vice-presidente do estado de Minas Gerais Olegário Dias Maciel e Pedro Marques de Almeida. Essa eleição de um velho e dum doente teve o condão de serenar os ânimos mineiros que cada dia vinham sendo exacerbados por mais um ato de hostilidade da presidência da República. Hostilidade sim e não contra a política mineira ou contra Antônio Carlos mas atos que se traduziam por má vontade e prejuízos tais, que passando por cima dos ombros dos políticos, batiam em cheio nos melindres de cada um, ferindo todo o povo no seu brio bairrista. Qualquer homem menos rombudo que Washington Luís teria se aproveitado desta oportunidade para negociar com o velho Olegário e talvez fornecer ao situacionismo provinciano e ao próprio prm a oportunidade de sair-se com honra duma encrenca que os ultrapassava e onde eles longe de conduzirem, eram os conduzidos. No fundo o que se queria era um impasse, uma destas situações políticas em que o recuo de dois implica a escolha dum tertius. O próprio Egon lembrava-se duma frase dita meses antes por seu amigo José Bonifácio Olinda de Andrada e que sanciona como verdadeira a hipótese aventada acima. Dizia esse José Bonifácio mocíssimo a seguinte frase siccíssima.

— Caso haja retirada das candidaturas Prestes e Getúlio, papai é o “tipo antropológico” do tertius.

Seria, lá isso seria… dentro das regras do jogo, dentro daquela sacanetagem habitual do café com leite e eticetra e tal. Seria, seria… mas não foi. Os políticos convencionais estavam lidando não com outro político mas com um caceteiro. Seus floretes de parada esgrimiam contra a porra de madeira três-folhas manobrada pelo Braço-Forte. Por outro lado havia um bando de possessos iluminados que era absolutamente sincero e que entrara no jogo — para valer. Eram João Pessoa na Paraíba; Virgílio Alvim de Melo Franco, Odilon Braga, Francisco Campos, Djalma e Carleto Pinheiro Chagas em Minas; Oswaldo Aranha, Batista Luzardo, Flores da Cunha e João Neves no Rio Grande do Sul. E estes eram complicados pelos “tenentes” insubmissos de 22 e 24 e que logo passariam a encarnar a velha Questão Militar que vinha de longe, do Império e dos tempos da Casa de Bragança. Estava-se pois a dizer que, se o Barbado quisesse, estava na hora de aproveitar aquela trégua casual e espontânea que lembrava estes momentos de durante os furacões em que por um instante cessa o vento e passa o chuveiro. É a hora de aproveitar, atravessar a rua e abrigar-se na casa defronte… Mas nada disto. O nosso colérico presidente da República, o homem que nada dobrava, comandara do Catete os esbulhos praticados a 21 de maio contra um terço da representação mineira e o total da paraibana — eleitas para a legislatura entrante. Aquilo foi fogo na pólvora e já nesse dia a cólera do povo de Belo Horizonte explodiu num comício da praça Sete em que falaram querendo armas e a deposição do governo federal Jarbas Vidal Gomes, Aníbal Vaz de Melo, Ananias Campos e muitos outros entre os quais se destacava o jornalista carioca Eustáquio Alves — o famoso “Faquir de A Noite” — de famosíssima reportagem desse saudoso vespertino. Minas pegou fogo e dessa vez definitivamente…

Abramos um parêntese para contar que esse comício sentiu a falta da voz de vários oradores useiros e vezeiros porque eles estavam exatamente à hora do meeting, no Automóvel Club, nessa data também histórica para a literatura brasileira e o modernismo — oferecendo a Carlos Drummond de Andrade um jantar por motivo da publicação de seu livro inaugural — Alguma poesia. Estiveram presentes a esse banquete a flor da intelligentsia mineira.j O poeta foi saudado por Mílton Campos num discurso antropofágico em que ele aconselhava como manducáveis pernis de deputados e suãs de senadores. Foi uma grande noite de que há poucas testemunhas vivas…

Se nossa narrativa tivesse de se ocupar de outros fastos de Belo Horizonte nessa atribulada época seria um nunca-acabar. Mas todos eram abafados dentro da paixão política e passaram, como coisas irrelevantes desse ano 30, acontecimentos da maior importância como a inauguração da comunicação telefônica entre o Rio e a capital de Minas, o Conselho Universitário outorgando o título de doutor honoris causa ao presidente Antônio Carlos, a inauguração do edifício da Secretaria de Segurança que novo em folha receberia seu batismo de fogo logo depois, as conferências de Eduardo Claparède — da Universidade de Genebra e vindo a convite, a Belo Horizonte. Tanta coisa mais… Tudo isto sumia, desvanecia ao clarão de outras explosões que também sumiram à chama dada pelo fogo posto no que seria o estopim da Revolução de 30. A 26 de julho deste ano caía, num café de Recife, o corpo de João Pessoa, assassinado por João Dantas. Esse crime não teve motivação política de espécie alguma e foi antes o epílogo de uma história de velhos ódios serôdios de clãs provincianos. Mas foi um pretexto fabuloso que, aproveitado politicamente pela imprensa, pelos partidários da revolução e por esta força cega e terrível que é a opinião pública — teve o condão de preparar psicologicamente o país para a única solução que lhe parecia viável: a guerra civil e a deposição do situacionismo. A conspiração ganhou forças e “os deuses tinham sede”. Os tempos estavam próximos…

A 7 de setembro tomava posse o novo governo de Minas tendo o velho Olegário como presidente e Pedro Marques como vice. Os secretários foram Cristiano Monteiro Machado (Interior e Segurança), José Carneiro de Resende (Finanças), Levindo Eduardo Coelho (Educação e Saúde) e Alaor Prata Soares (Agricultura). A prefeitura de Belo Horizonte coube a Luís Gonçalves Pena. O presidente Antônio Carlos, depois de seu grande governo, recolheu-se à sua casa da rua Espírito Santo, em Juiz de Fora.

 

 

Enquanto esses acontecimentos se desenrolavam em Minas e no resto do Brasil o Egon tornara-se aos poucos fanático da Aliança Liberal e partidário intransigente da candidatura de Vargas. Depois da morte de João Pessoa, atribuída por todo o mundo a mais um dos muitos desmandos que vinha praticando o governo federal — ele desejava a tomada do poder pelas armas e por revolução que mudasse a face política e social do Brasil. Era dos mais fiéis aos comícios da praça Sete, à recepção de políticos da Paraíba e do Rio Grande que chegavam e saíam constantemente de Belo Horizonte. Esteve várias vezes com a patuleia que ia ao Palácio da Liberdade pedir armas ao presidente Antônio Carlos. Não se descuidava, apesar destes motivos, de suas obrigações na Segunda Enfermaria e no Pavilhão Koch da Santa Casa, de seus deveres no Centro de Saúde e no seu consultório. Nesse ponto de vista sua vida era duma uniformidade e duma rotina exemplares. Era dos primeiros a chegar nas enfermarias e o último a sair, cumpria zelosamente suas obrigações no serviço público, e era duma regularidade inexorável na ida ao seu consultório onde atendia os pacientes da Empresa de Engenheiros Empreiteiros e os de sua clínica incipiente mas promissora. Ultimamente andava desgostoso e indignado com a espécie de ponto morto em que tinha caído a política com a posse do velho Olegário e com a convicção que lhe invadira a alma de que a revolução gorara. Não era só ele que pensava assim mas a generalidade dos que se interessavam pela campanha a favor de Vargas. Parecia-lhes que mais nada dar-se-ia e que o assomado presidente da República passaria sua faixa ao pupilo Júlio Prestes. Tudo isto se ancoraria na sua mente quando os efetivos federais que estavam em Belo Horizonte afrontando a autonomia do estado começaram a deixar Minas e a voltar para as unidades de onde tinham vindo a fim de engrossar a guarnição do 12o Regimento de Infantaria, sediado em Belo Horizonte. A retirada dos oficiais e praças que eram motivo de irritação dos mineiros, passou a ser motivo de seu desânimo à hora de sua saída. Isto era sinal de que a nova situação estava conluiada com a federal e de que tudo ficaria como dantes no velho quartel de Abrantes… Era o cúmulo! pensava o médico remoendo suas cóleras contra Olegário Maciel a quem os bairristas mineiros atribuíam como que uma defecção. Esses pensamentos amargos cresciam à medida que setembro se adiantava. Só que na segunda quinzena deste mês ele, que conhecia como ninguém a sua Belo Horizonte, começou a exultar e a estranhar a quantidade de gaúchos com que se esbarrava nas ruas e que enchiam os cafés de Belo Horizonte. Eram facilmente identificáveis pelo seu sotaque característico. Chegou a conhecer um deles, apresentado pelo Teixeirão. Chamava-se Baltazar de Acuña-Vilegas Ribera y Ribera e tinha uma presença impressionante. Era um pai-d’égua de metro e noventa de altura, corpulento, todo em músculos, muito pálido, olhos cinzentos coruscando num fundo de órbitas cavadas e tornadas mais obscuras pelas olheiras. Sempre escanhoado — a barba dava um azulado precioso ao seu queixo quadrado. Costeletas memoráveis, sempre muito bem-posto no seu colarinho em pé, no plastrom, no colete claro e lavrado, no jaquetão com debrum. Calças listradas, sapatos espelhantes de verniz preto. Estava sempre de polainas, andava pesadamente e arrastava um pouco a perna esquerda, cujo joelho angulava-se para fora como se aquilo fosse necessário para torná-la da mesma altura da direita. Vivia manicurado e suas manoplas pareciam ainda maiores pelo brilho das unhas sempre envernizadas. Bengalório. Era anunciado de longe pela onda de perfume que o envolvia duma atmosfera de patchuli. Usava chapéu-coco — sempre tão descido sobre o lado direito que essa pacholice lhe acabanava a orelha desse lado. Tornou-se logo íntimo do Egon. Apesar deste ter-lhe dado no princípio o “sr. Ribera”, ele logo se instalara na sua privança, tratando-o por tu e suprimindo de estalo o “doutor”. O médico jamais esqueceria certa conversa tida com ele e assistida pelo Teixeirão e pelo Chico Martins. Ele discorrera longamente sobre suas façanhas nas lutas de seu estado e lamentava que tudo por Minas estivesse em vias de pacificação e resolvendo-se em sangue de barata. Depois de tudo o que o Barbado nos fizera sofrer e dos sapos que ele pusera goela abaixo da mineirada. Uma vergonha…

— Assistir a isto, quando vim para cá mandado por meu primo e quase tocaio o deputado Baltazar Apolinário Acuña-Vilegas Ribera y Ribera para comandar um batalhão de voluntários… Mas nada disto, tudo em paz e Júlio Prestes é quem leva a melhor.

Essa conversa deu-se em frente ao Trianon, cerca das onze da noite de 2 de outubro faltando só uns sessenta minutos (se tanto) para entrar-se na primeira das longas horas do dia 3 de outubro de 1930. Sua apóstrofe foi ouvida num silêncio embaraçado. Além do mais ele tinha razão: a todos os ouvintes era meter o rabo entre as pernas e encartar aquelas verdades. Foi num silêncio que ele baixou uma das manoplas no ombro do Egon que vergou e interpelou-o cara a cara.

— Tu já peleaste? Egon.

— Ainda não — respondeu humildemente o moço.

— Pois eu queria ver como é que tu, com toda tua prática de médico e habituado às sangueiras das operações, como é que tu? ficarias assistindo um degolamento de volta. Juro que ficarias branco como teu avental e que arriarias no chão…

E deu detalhes sobre como se procedia à curiosa intervenção. Era metendo faca longa de ponta afiadíssima abaixo da orelha direita, atrás da parte alta do ramo montante do maxilar inferior, atravessando todo o pescoço e saindo exato no mesmo local à esquerda. Bueno. Então se forçava para a frente e o paciente era degolado de dentro para fora e de trás para adiante: dê volta…

— Queria que tu visses o melado esguichando e a ferida. A parte de cima sobe até a boca e a de baixo desce até o peito. O bom, quando o filho da puta é de cabeleira grande, é pendurá-lo por ela num galho que isto facilita muito a volta. Melhor do que isto só lancear de a cavalo quem corre. Tu vens a galope atrás do fujão… Quando o alcanças com a lança o cabra fica leve, facilmente tu o levantas, o suspendes no ar e jogas para atrás…

Era também inesgotável quando referia traços de honra de sua família de primos incontáveis em que encostando num era como desafiar a todos.

— E olhem que não somos poucos. Para dar uma ideia do número dos que podemos contar uns com os outros basta dizer que só em Baltazar primos-irmãos somos oitenta e cinco…

Para adiantar um pouco no tempo, digamos que quando a revolução veio mesmo o nosso d. Baltassar sumira no crepúsculo da ausência. Reapareceu depois de render-se o Doze, lenço vermelho no pescoço e contando da missão secreta em que estivera; na Barbacena para dar cobertura ao presidente Antônio Carlos. Só que o Chico Martins soubera que ele passara o tempo de beligerância no choco e peleando de cama com a Zulmira. Era uma mulata famosa, teúda e manteúda por dois professores da faculdade, cada um pensando que era o gigolô e o outro o coronel. Os dois eram os coronéis e o gigi esse nosso gauchastro. Naqueles 30 esse tipo foi comuníssimo em Belo Horizonte e no Rio. Enchiam os cafés atroando os ares com seus gabos, bazófias e eram no fundo umas lebres. E pior, uma falsificação do gaúcho de verdade, cavalheiresco, bravo e pelejador de qualidade autêntica — à moda do civil Oswaldo Aranha tomando de assalto um quartel de Porto Alegre, à moda dum Flores, dum Luzardo — todos de comportamento heroico durante a Revolução de Outubro e pela vida afora. D. Baltassar era na realidade um antigaúcho como houve também antimineiros e antiparaibanos na mesma época. Tempo de guerra, mentira como terra — e parte desta mentira são os fanfarrões que se encapotam na hora do perigo… Mas voltemos à véspera daquele mais longo dia do ano de 1930. O Egon tomou seu bonde acompanhado do Teixeirão. Para conversar mais tomaram um Ceará via rua da Bahia e durante todo o trajeto o moço médico estranharia a perguntação do amigo. Onde estaria? e a que horas? no dia seguinte para o caso dele, Teixeirão, mandar um recado, se precisasse. O médico executou-se, deu todo o serviço, como empregaria suas horas e onde, no dia seguinte.

— De manhã, Santa Casa. De dia, Centro de Saúde. Tardinha, consultório até ali suas seis, seis e meia. Por quê? Teixeira. Alguma coisa?

— Não, nada não, perguntei por perguntar. Então passo no seu consultório para sairmos juntos…

— Combinado e até amanhã.

E o Egon desceu na esquina do Arnaldo para pegar logo embaixo sua rua Padre Rolim.

 

 

Amanhecera radiosamente límpido, em Belo Horizonte, aquele 3 de outubro de 1930 — dia de santa Teresinha do Menino Jesus. O Egon levantara cedo, fizera suas obrigações na Santa Casa e no Pavilhão Koch. Almoçara em casa com o Nava, a prima Diva e depois saíra vagarzinho passando atrás do Grupo Pedro ii, renteando o parque até em frente ao Palácio da Justiça. Atravessara a avenida e subira até seu Centro de Saúde. Já lá encontrara o Argus e o Cirne. Dera seu bom-dia, sentara em sua mesa e chamara a si o expediente do dia. Nada mais que umas quatro ou cinco infrações que ele despachara mandando intimar as partes para comparecerem ao Centro de Saúde. Tudo tão todo o dia… Deu sua palestrinha com o Cirne que também acabara o seu trabalho e regalaram-se com o cafezinho e a prosa do grupo de colegas que viera para o bondinho daquela hora. Depois cada qual voltou a sua sala ou seu consultório e ele e o Cirne abriram o livro com que enchiam o resto do horário obrigatório. Um sol de silêncio envolvia as coisas numa espessura de calda em ponto quase de bala. Azul e ouro… Um eterno era a impressão da parada do tempo como se as horas se demorassem não querendo prosseguir. A única coisa diferente notada pelo Egon era que o Argus não tirava dele os olhos como se ele, Egon, estivesse sendo chocado como ovos de jacaré. Passou a atentar naquela do Argus e viu que este só olhava para ele de vez em quando mas sempre demoradamente. E com uma expressão especial de quem achara a solução dum problema, de quem se regalava com ideia secreta. O homem estava mesmo estranhíssimo. Uma coisa certamente ia-lhe no pensamento, um segredo que ele devia estar aflito para transmitir — e entretanto interdito de fazê-lo. Coisa boa para ele porque sua face luzia de júbilo. Repente premiu longamente a campainha elétrica e o servente consequente brotou da porta. E logo ele, Argus, fechou a cara e ordenou meio gritado.

— Vá lá no consultório do dr. Gentil e me traga um mapa de Belo Horizonte que está pregado na parede, acima da mesa dele. Já!

Momentos depois o homem voltou com o tal plano urbano. O Argus abriu o dito em sua mesa e engolfou-se num estudo profundo. Às vezes falava só de beiço como beata que está rezando. Sílabas formavam-se na sua boca orbiculada. Parava com o mapa e olhava longamente o Egon. E quanto mais olhava mais um júbilo se espelhava na sua cara. Afinal o Egon não se conteve.

— O senhor tá parecendo satisfeito hoje, dr. Argus. Alguma coisa boa?

— Nada não, dr. Egon. Umas ideias de serviço que estou remoendo cá comigo mesmo.

À hora da saída o médico desceu e tomou Afonso Pena na esquina da Delegacia Fiscal. O soldado de sentinela era o que ele chamava “O Sonhador” e que mal o viu, perfilou-se e encostou o fuzil no corpo. O Egon tocou no chapéu e deu, sorridente, suas boas-tardes ao rapaz. As ruas desertas e ele foi num passo de quem não tem pressa para o consultório. Vestiu o avental, pegou no seu sempiterno Gaston Lyon mas nem teve tempo de sentar-se porque o Teixeirão apareceu na porta, ocupando-a toda com o corpanzil.

— Muito trabalho para hoje? seu doutor.

— Parece que não. Vamos esperar uma meia hora: se não aparecer ninguém e se o telefone não bater é sinal que a clientela não quer nada comigo. Senta, Teixeira, daqui a pouco saímos.

— Não, Egon. Vamos logo agora. Tá uma tarde linda… Você hoje não vai mesmo ter ninguém… Vamos ver a rua…

— Vá lá.

Saíram para uma Afonso Pena de todo dia. Pararam um pouco na calçada defronte de São José. Viram passar um Calafate com pingentes no estribo. O Egon consultou o amigo.

— Uma ideia, Teixeirãozinho. Há muito tempo não vemos um crepúsculo. Que tal? irmos apreciar o de hoje nos cafundós do Prado Mineiro, na Caixa-d’água… Pegamos o próximo Calafate e…

— Você está doido? que ideia estapafúrdia é essa, Egon — quase gritou o Teixeira — Você sabe? que… Não, nada não. Vamos andando para o Bar do Ponto.

Quando iam ultrapassando os Correios deram com o Nelo e o José Nava e pararam todos para conversar. O Egon, de repente, pôs tento na inquietação do Teixeira. Ele olhava para todos os lados e estava a cada instante a puxar o relógio e a olhar as horas. E — coisa esquisita! com um olhar que lembrava o do Argus.

— Quéquiá? Teixeira. Esperando? alguém.

— Nada…

— Então fica quieto! homem: larga esse relógio…

Começaram uma conversinha mole, beleza da tarde, olh’aquelali, olha com’é boa. Passava carro ou outro, gente se recolhendo. Cinco e vinte verificou pela multésima vez o Teixeira que já não podia disfarçar. Alguma coisa o inquietava que ele talvez não pudesse confidenciar aos amigos.

— Afinal, Teixeira, quéquiá? com você. Puxa! que homem mais desinquieto! parece até que está com bicho-carpinteiro.

Eles estavam na esquina de Tupis. O Teixeira fixou de repente um carro que virou Espírito Santo raspando e rangecantando numa derrapagem, que segurou-se nas travas como animal que vai investir, investiu chegando mais para perto meio-fio freou noutro rangido parou abriu suas quatro portas despejando seis homens armados de revólver 38 cano longo. Na frente deles o Hugo Gouthier de Oliveira Gondim, ele próprio, a comandar.

— Isto deve ser perseguição a algum malfeitor. Vam’ver essa tromba armada que entrou de Correio adentro. Deve ser criminoso escondido por lá…

Mais gente acorria e começava a se aglomerar. Na porta da repartição foram parados por um dos homens do carro de revólver em punho.

— Afastem-se! Aqui ninguém entra! — e reparando no Teixeirão — só o senhor, doutor, o senhor pode passar.

— Precisa não, Alcino. Já sei do que se trata. Vou correndo pra Secretaria — disse o grangazá. E virando-se para os amigos: — Estourou a Revolução! Eu estava esperando essa operação chefiada pelo Hugo e isto quer dizer que o comandante do Doze já está preso. Era a primeira parte da missão desse choque. Vocês até logo. Você, Egon, apareça de noite na Secretaria. Até logo.

O Nelo foi o primeiro a falar. Queria ir para casa avisar, ver se estava tudo em ordem por lá.

— Você nos leva a Padre Rolim e espera um instante pra levar a prima Diva e as meninas para a Serra. Porque se o Doze atirar, nossa casa fica na trajetória que corta a Secretaria de Segurança. Se passar mais alto que o alvo acerta é em nossas paredes.

Correram para o carro do Nelo, apertaram-se e puseram-se a caminho da casa do Nava. Quando chegaram em frente à Delegacia Fiscal o Egon teve tempo de vislumbrar o “Sonhador”que olhava para o ar sem saber do que se passava. Havia de estar acompanhando o voo do derradeiro pássaro passando no alto — suas asas irisadas das últimas luzes do crepúsculo ou talvez franjas de nuvem se esgarçando. Sonhando… Os do carro se adiantando, estavam em meio do desembocar de Álvares Cabral quando viram que um pelotão de bombeiros virava a esquina de Goiás e descia obliquamente para a esquina de Afonso Pena. Numa curiosidade o Nelo diminuiu a velocidade e todos olharam aquela tropa. Foi tudo tão rápido que eles mal tiveram noção do que viam. Ouviram uma descarga nutrida e viram o “Sonhador” rolando escada abaixo varado de balas. Veio até ao rés da rua, ao chão, pesado no chão, pesado como um bonecão que se desengonça e os bombeiros passaram por cima do seu corpo escadacima. Tomando o prédio federal. Pronto como um raio, o Nelo acelerou, deu uma virada, passou para dentro dos fícus, chispou para Padre Rolim por cima dos trilhos dos bondes. O Egon caíra sucumbido no assento do carro, a garganta presa de ter assistido àquele assassinato de um pobre moço que olhava para o ar e caía sem saber que caía, nem por quê, para passarem sobre seu pobre corpo perfurado, abrindo caminho de uns poucos para o poder. Naquele instante o médico teve a adivinhação fulgurante de que tudo aquilo ia ser inútil para seus autores. Autores de quê? Simplesmente duma quebra de convenções cujo primeiro resultado era aquele corpo de moço caindo… E foi rigorosamente cumprida a antevisão que ainda mal formulada atravessara como raio o pensamento do jovem doutor. Ele tão partidário daquilo! e agora, vendo a realidade desencadeada, já se perguntando — que revolução? Haverá? mesmo, sucederá? uma revolução…

Em Padre Rolim a d. Diva relutou um pouco mas acabou cedendo. Em minutos arrumaram malas, trancaram a casa e foram todos para a rua Caraça 72. Menos o Egon. Esse desligou-se do grupo e correu a sobreavisar o hospital. Quando chegou e deu a notícia, a irmã Madalena não queria acreditar. Foi preciso do moço ser firme, fazer-se crer e telefonar para Júlio Soares. Não sabia de nada.

— Vinte minutos e estou aí, Egon. Diga à irmã Madalena que avise os assistentes de cirurgia. Você se entenda com os internos do São Lucas e da Santa Casa e que fique tudo a postos. Fiquem todos. Mesmo os que não estão de plantão. Que não saiam do hospital.

O médico transmitiu as ordens do diretor da Santa Casa e ficou na portaria esperando que chegassem os já chamados. Pontualmente o Júlio chegou, informou-se de tudo, chamou a irmã superiora, deu instruções, enquanto a irmã Madalena ia convocando os médicos do hospital de modo imperativo e sem dizer por quê. Alguns estavam na rua, outros já sabiam, a maioria estava jantando quando recebeu a notícia-bomba. Vinham já. Quando chegaram uns três ou quatro, entrou também um chefe de serviço. Era Borges da Costa. Estava com sua farda de coronel da nossa Missão Médica na Primeira Grande Guerra e danado da vida.

— Imaginem vocês que logo que eu soube do carnaval na rua, fardei-me e fui me apresentar para seguir com a primeira tropa, mas o Cristiano agradeceu muito e disse que no momento ainda não precisavam de meus serviços. Vai ver que está me achando velho… Pois vim para a nossa Santa Casa e vou ficar à frente de minha enfermaria para o que der e vier. Já avisei ao Levy, ao Blair, ao Pedro Jardim Horta e ao Guilherme. Todos estão vindo por aí.

Passada a primeira surpresa, esgotados os primeiros comentários e não se ouvindo nenhum barulho de tiros — antes havendo um silêncio de azeite descido com a noite sobre Belo Horizonte, o Júlio Soares resolveu mandar o Egon para o “que é que há”. Ir à Secretaria de Segurança e fazer chegar ao Cristiano, por intermédio do Teixeirão, que a Santa Casa estava a postos e às ordens. Chegando à Secretaria, o médico encontrou aquilo num verdadeiro open-door e entrando quem queria até ao gabinete do chefe civil da revolução em Minas. O Egon subiu e deu numa sala cheia de povo cercando, ao centro, vasta mesa onde se deliberava. À cabeceira, Cristiano Monteiro Machado presidia. Já estava uniformizado: calça cáqui, camisa cáqui, lenço vermelho no pescoço e sobre a mesa seu chapelão de caubói amolgado na copa por quatro mossas. Ele estava admirável e encarnava com mestria o papel que ia representar naquele drama nacional. Nascido em 1894, esse sabarense era, na época em que se desenrolavam os fatos relatados, um moço de trinta e seis anos. Era pessoa de meia altura, de boa constituição, espigado e de cabeça alta. Vestia-se decorosamente mas sem os apuros do Aníbal ou do Paulo. Quase sempre usava com seus ternos um suéter de mangas compridas. Lá estava ele, o suéter, excedendo os punhos da camisa de campanha que adotara e de dentro dessas lãs saíam suas mãos largas e muito brancas, cheias de veias salientes. Quando ele viu o Egon, sorriu e estendeu em sua direção a mão que foi apertada por cima da cabeça de alguns dos componentes do seu Conselho. O moço aproveitou logo para dizer ao que vinha.

— Dr. Cristiano, o Júlio Soares mandou-me aqui para dizer que a Santa Casa está a postos, seus cirurgiões convocados e inteiramente às suas ordens.

— Obrigado, dr. Barros. Tenha a bondade de dizer ao dr. Júlio que agradeço e aceito porque quando o Doze começar a atirar é certo muitos feridos entre a população civil. A Santa Casa se encarregando deles estará nos prestando serviço inestimável. Diga isto, espere um pouco para contar também o que estamos decidindo.

O moço médico estava bestificado com o que via. Discutiam-se os planos de reação da cidade ao Doze, no resto do estado às guarnições de Três Corações e Juiz de Fora, sede da Região Militar e de onde se esperava vir a ofensiva do governo. A batalha decisiva devia ser travada na garganta de João Aires que seria o Verdun, o Itararé do Caminho Novo. Essas notícias o Cristiano dava aos que se sentavam e às vezes era interrompido por um palpite, uma opinião partida dos que enchiam seu gabinete. A todos ele prestava atenção, dava resposta, tomava uma nota. Ao seu redor os lugares na mesa eram ocupados por Francisco Campos, Odilon Braga, Mário Brant, outros políticos, oficiais superiores da Força Pública, oficiais do Exército — “tenentes” — que estavam ocultos em Minas disfarçados de profissões civis. Um oficial de Marinha, Otávio Machado, irmão de Cristiano. O Egon admirou particularmente a figura de Otto Feio — polainas, culotes cáqui, paletó civil, parabélum, lenço vermelho, capa espanhola e chapéu Gellot — o que fazia dele um misto de smart e batalhador. Cada um dava sua opinião, às vezes todos ao mesmo tempo, havia sugestões válidas, frases inteligentes e palpites infelizes como o que foi pronunciado ali por um político — evidentemente acoelhado.

— Devemos mandar esses moços que estão se alistando voluntários aqui na cidade, para Barbacena, como carne de canhão [sic] e levarmos a capital para Diamantina com os melhores contingentes da Força Pública para defesa do governo de Minas…

A essa enormidade o Cristiano sorriu com o máximo de doçura que ele sabia pôr no olhar e pediu a opinião de Francisco Campos.

— Acho a ideia absurda. Temos de nos defender aqui mesmo, se for o caso, de rua em rua e de casa em casa… — disse antecipando-se a Winston Churchill.

Alguns da assistência queriam saber onde estava o dr. Bernardes, se o dr. Bernardes estava de acordo com a revolução. Cristiano tirou duma pasta o telegrama famoso e leu-o alto: “Antenor consultado declarou — está bem!”. Vinha assinado Zíngaro. Era o telegrama em que Bernardes concordava com o deflagrar da revolução. Antenor era ele, Bernardes, e Zíngaro o codinome de Gudesteu de Sá Pires.

No meio daquela confusão o Teixeirão apareceu de repente e por ele o Egon teve as demais explicações que queria. O boletim espalhado na cidade pondo o presidente da República fora da lei trazia a data de 5 de setembro porque esta seria a primeira marcada para a revolução. Mas o velho Olegário empacara dizendo que não e não, que o movimento tinha que estourar com ele empossado e com secretariado constituído. O comandante da Guarnição Federal e vários oficiais do Exército, presos. Membros da Concentração Conservadora apanhados na cidade, trancafiados. Ele, Teixeira, pessoalmente era por sua execução um a um. Mas o Cristiano, com aquela delicadeza dos Machados… O contato telefônico fora mantido entre a Secretaria e o quartel do Doze. A guarnição, galvanizada pelo tenente Clorindo Valadares, estava disposta a não se entregar e a resistir até ao último cartucho. De vez em quando uma ligação telefônica e cada lado fazendo finca-pé no seu ponto de vista. Estava entre os da tropa legalista o coronel da Força Pública Bragança que se fora pôr ao lado dum filho oficial do Doze e companheiro do tenente Valadares. Fora despachado para parlamentar com o Clorindo, oficial do Exército revoltoso, o tenente Campos Cristo que ia levando a última palavra do comando da Revolução. Esperariam uma decisão até às cinco da madrugada de 4 de outubro. A essa hora as metralhadoras da Polícia varreriam as fachadas dos blocos do quartel. Esperariam dois minutos e se não houvesse bandeira branca, voltariam à carga e iriam até ao assalto final.

Enquanto o Teixeirão lhe sussurrava estas novidades o Egon não perdia de vista o chefe civil da Revolução, atentando em cada gesto seu naquela oportunidade histórica. Cristiano estava imponente de calma e de frieza. Não se departia um instante da norma que se traçara — do retrato que queria deixar — e falava a todos com a maior cordura e sempre sorrindo — com aquele sorriso que era um capital de simpatia. Perguntava e respondia na voz de sempre, bem modulada e escandindo as palavras, valorizando e modulando as vogais, não perdendo uma consoante e fazendo rolar os seus rr como de hábito. Era uma voz a um tempo veludosa, contida e imperiosa. O Egon agora detalhava sua cabeça redonda e bem-feita, a calvície familiar e precoce, as orelhas nítidas e bem desenhadas, certa protusão da testa, certo adiantar do queixo a que o nariz agudo e traçado como uma incisão de medalha do Bargello davam alguma coisa de cesário e muito de napoleônico. Lembrava também um retrato feérico do Quattrocento, um Pisanello, um Masaccio, um Andrea Orcagna, um Gentile de Fabriana ou perfil florentino da Loggia dei Lanzi. Para falar não abria demais a boca e todo seu movimento era de diminuí-la ou alargá-la conforme o que estivesse dizendo de modo que as palavras saíam-lhe sempre no tom meio surdo das frases ditas através de dentes quase cerrados. Um pouco pálido, olhos cheios de mansuetude — mas dum azul duro e mineral. Óculos de aro grosso a que o obrigava a miopia. Informado e cheio dessas novidades, dessas impressões o Egon deixou a Secretaria de Segurança pelas onze horas e seguiu a pé para a Santa Casa. Vivalma.

 

 

Olha a negra, olha a negra.

a negra fugindo

com a trouxa de roupa,

olha a bala na negra,

olha a negra no chão

e o cadáver com os seios enormes, expostos, inúteis.

[…]

Um novo, claro Brasil

surge, indeciso, da pólvora.

Meu Deus, tomai conta de nós.

[…]

carlos drummond de andrade, “Outubro 1930”

 

 

O Egon era esperado numa ansiedade. Deu logo todo o seu serviço e tudo que soubera na Secretaria. O Júlio foi o primeiro a falar.

— Cinco horas da manhã. Então o melhor é dormirmos na Santa Casa. Você também, Egon, mande arrumar cama num lugar vago qualquer.

— Fico naquela sala da Maternidade que ninguém usa, aquela oposta à sala de partos e em que morreu o Ozéas. Lá tem uns leitos. Vou pedir à irmã Rosnata que mande arrumar um, de roupas. Mas primeiro vou dar um pulo no Pedro Sousa para comer um bife, que não jantei…

— Certo…

O moço doutor saiu vagarosamente, virou na esquina inacabada da Maternidade e bateu-se para quarteirões abaixo onde ficava o boteco do Pedro Sousa no bico de Maranhão e avenida Brasil. Estava impressionado com o silêncio das ruas vazias, só os postes de iluminação como fantásticas colunas negras — tendo no alto uma lâmpada acesa com o seu cacho pendurado de insetos, moscas, besouros, girando em silêncio em torno ao foco de atração. Nunca o Egon tivera tamanha sensação de solidão e de impotência. Ele sabia que dentro de algumas horas começariam a morrer seus semelhantes naquele bairro e nos outros de Belo Horizonte que iam ser varridos pela corola concêntrica dos projetis cuspidos pelas metralhadoras. Ele sabia pertinentemente dessa matança e não podia fazer nada. Esperaria na Santa Casa feridos para ajudar a pensá-los, ver morrer e devolver alguns para a vida cotidiana. Ele nada podia para impedir. Não havia força possível para parar. Não era mais hora de parar porque o que estava se passando na cidade já começara meses antes e era uma resultante de bestas desencadeadas de há muito. E outros muitos não sabiam. Havia os que iam morrer sem saber que estavam destinados a morrer. Nem que estavam morrendo, nem por quê — como a negra terrível da epígrafe… Todas as casas fechadas e luzes lá dentro, aqui e ali como se fossem as luzes casuais das madrugadas. Tinham medo de acender tudo. Havia uma retração encolhida dentro do silêncio. Chegou ao Pedro Sousa. Fechado. Mas ele sabia onde bater para abrir: exato na janela do quarto do botequineiro amigo. Tinha três anos que não entrava ali. Bateu forte. A fenda entreaberta…

— Uai! doutor. O senhor? Há que séculos… E sozinho, sem o bando… Cadê? o Cavalcanti, o Chico, o Nava, o Isador… Já vou abrir…

Abancado, pediu qualquer coisa para comer.

— Então, doutor, quéquiá? de novo.

— Será… que você não sabe nada? Pedro Sousa… Você não sabe? que estourou a revolução.

O botequineiro não sabia. Ou por outra ouvira dizer mas não se interessara, não tinha nada co’aquilo.

— Tudo isto está pra cima de mim, doutor. Tira um, põe outro, morre um mundo de gente por causa desta besteira e eu não fico nem mais rico nem mais pobre… Por outra, mais pobre sempre vou ficando.

Aquele homem estava dizendo na sua linguagem simples o que o Egon não conseguia configurar nas suas sutilezas de intelectual. Era isso mesmo. Nada ia mudar. É do que ele desconfiava naquele momento em que se sentia pendurado entre dois mundos: um que ia acabar cedinho naquela manhã e outro que começaria aos primeiros tiros. E eram dois mundos de pessoas que pensavam que eram o Brasil e que não entendiam nada nem de Brasil, nem de política, nem de coisa nenhuma. Nem adiantava aprofundar com o Pedro Sousa, cujo instinto de homem do povo dizia que estava tudo errado e que aquela quebra de categorias, aquele rompimento de contratos, aquela supressão de convenções de nada — ia abrir uma era de sobe e desce no fim da qual talvez viesse uma revolução, uma revolução com R maiúsculo. A revolução. Ele mesmo não entendia bem por que seu pensamento chegara àquela quina quando o que ele queria era comer um bom bife, dormir e acordar para fazer suas obrigações de médico doutor.

— Tudo isto é conversa fiada, Pedro Sousa. O que eu quero saber é do que que você tem para me dar…

— Tem uma carne-seca pronta, de primeira. É só esquentar e preparar uma farofinha.

— Isso, nego. E a nossa cervejinha bem gelada. Digo nossa porque você não vai fazer a desfeita de me deixar comer sozinho, nem beber sozinho…

— Isso nem por sombra, seu doutor.

O Egon levantou-se levando a garrafa atrás do Pedro Sousa, para a cozinha do botequim e ali, enquanto o homem fazia suas virtuosidades de fogão, foi-lhe dando o noticiário de todos. Os que iam casar, como o Fábio e o Chico. O Nava e ele removidos e de novo em Belo Horizonte. O Isador e o Cavalcanti em São Paulo, nos cafundós de São Paulo, Alta Araraquarense.

— E sua patroa? Pedro Sousa, os meninos.

— Mandei tudo pra Sabará até passar essa merda dessa desorde.

Ele Egon e o botequineiro tomaram cada um a sua botelha. Depois o médico despediu.

— Até amanhã, Pedro Sousa. Uma e um quarto. Daqui a três horas e quarenta e cinco minutos a cidade estará em polvorosa…

— Até amanhã, doutor. Vá cum Deus!

Chegando à Santa Casa o Egon encontrou tudo acomodado. A irmã superiora no corredor disse que o dr. Júlio estava dormindo no gabinete de cima, perto da capela. E sua cama está arrumada naquele cômodo grande da Maternidade que o senhor mesmo escolheu.

— Até amanhã, irmã. Ou melhor até já.

— Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, doutor.

— Para sempre seja louvado tão bom Senhor, irmã.

O Egon adiantou-se pelo corredor obscuro. Sentia seus saltos batendo alto no piso. Parou um instante na transversal que cortava e dava um lado para a enfermaria do Borges e outro para a do Werneck. Lembrou-se de sua primeira visita por ali quando fora nomeado interno. Virando para a enfermaria de cirurgia de mulheres, lembrou das duas figuras que desde então se lhe tinham colado ao corpo como os fantasmas invisíveis da Doença e da Morte, com suas roupagens amarela uma, e negra a outra. Adiantou-se vagarinho pela enfermaria, teve a impressão de uma volta no tempo tão iguais tão mesmíssimas eram as figuras deitadas, ou curvadas, ou sentadas, umas mal dormindo, outras gemendo e chorando naquele vale de lágrimas… De febre também, de cheiro ruim de suor e agonia. Adiantou-se na sua sensação de ontem querendo viver, demorar esse passado que ia ter uma marca, um marco, uma tabuleta, um letreiro dizendo que alguma coisa acabara no tempo, que outra ia começar no tempo. O que tinha acabado, que acabava ali eram os whirling twenties, seus dez anos de mocidade que se tinham esticado até àquele trinta. Ia entrar em anos convulsos de outra época e neles e com eles, na sua maturidade de homem. Sentiu um peso nas costas e ali, àquela precisa hora, é que deve ter começado a curvar-se. Atravessou a enfermaria do Werneck, passou na área dos arquivos, entrou no bojo mais escuro da Maternidade, virou à esquerda e deu na sala que escolhera para dormir. Custou a achar os comutadores. Afinal a iluminação elétrica aumentou mais o cômodo. Sua cama pronta. Abriu uma janela e olhou para fora como se dali fosse ver os soldados cercando o Doze e os soldados do Doze, de dentro de suas trincheiras esperando. Todos esperando uma ordem. Nenhum dormia e a muitos bateriam os queixos esperando a hora — hora injusta pois todos tinham só de dezoito a vinte e dois, vinte e três anos. Da noite perfumada vinham só a reverberação das luzes da cidade, o negror da noite e um silêncio enorme. Olhou um pouco para a direita e através de espaços transponíveis e desocupados de edificações altas, para atrás dos escuros do parque fixou-se nas luzes do viaduto de Santa Teresa. Viu seus arcos e no seu alto a sombra do poeta recolhendo para sua casa na Floresta. Seus olhos se prenderam ali uns instantes, como se a ação de guerra a começar no clarear do dia fosse se desenrolar ali. Olhou as horas: duas e meia. Tinha de deitar para estar pronto para o trabalho dia seguinte. Despiu-se, foi apagar as luzes e deitou numa cama que achou dura e hostil. Um cheiro de hospital nos lençóis, no travesseiro. Fumou um cigarro, atirou a bagana para janela aberta e seguiu a parábola de sua brasa. Só lhe era possível saber que tinha dormido uns instantes pela noção de que tinha sonhado. Acordava suando, virava nos travesseiros, descobria o corpo num calor e tornava a cobri-lo tremendo de frio. Lá fora nada. Ouvia, nada. Via uma nesga de céu indiferente onde tremeluziam estrelas. Quando despertou outra vez viu que os astros empalideciam e como que a presença dum cinza luminoso invadindo o céu. Devia ter dormido outra vez para reacordar numa meia claridade. Olhou o relógio na mesinha auxiliar que lhe servia de criado-mudo. Faltavam dez para as cinco. Correu à janela. A mesma paisagem e o mesmo silêncio. O tempo de levantar-se atravessar todo o hospital em direção ao banheiro dos internos. Lavou-se abundantemente, refrescou o corpo e a cabeça como se aquela água fosse uma Primavera. Voltou a completar sua toalete. Pôs o gorro, o avental. Cinco e vinte. Sentiu que ali, vestido, pronto para o trabalho doloroso que ia ter nesse dia, tinha o corpo todo tremendo. O relógio que parecia luminoso marcava as cinco e vinte e cinco. Sem ar correu para a janela e viu que o dia pompeava em glória sobre a paisagem de que o ímã, para os seus olhos, eram os arcos do viaduto. Vinte e oito. Começou a acompanhar agora a rodinha dos segundos que girou uma vez, duas vezes, três vezes, eram cinco e trinta e um, depois trinta e dois. Será? que não vai haver nada e que se deu a rendição… Esquecia que os relógios não andam todos acertados uns pelos outros. Olhou novamente o céu na ânsia de quem espera o desmesurado. Exatamente nas suas cinco e trinta e seis minutos ouviu como se alguma coisa se rasgasse no ar, um pano enorme se esgarçando e de que cada fio estourasse como um tiro. Um depois do outro. Aquilo durou cerca de um minuto. Parou num outro silêncio imenso. Agora o Egon sabia que durante dois minutos seria a última trégua e a espera de um pano branco. Cento e vinte segundos coração batendo alto no peito, no alto perto do pescoço e malhando as têmporas. O ponteiro dos segundos parecia com pressa, vivo que nem um bichinho venenoso — correndo em redor de si mesmo. O moço olhou avidamente para o céu unido e logo o sentiu vibrar a uma salva furiosa de metralhadoras que pareciam máquinas de costura gigantescas disparadas no dia Belo Horizonte. Repente tudo aumentou, como que dobrou em outro acorde com o Doze respondendo e trocando fogo com os atacantes. As mãos incrustadas no parapeito o médico olhava fascinado a rua onde começava um vozeirar indistinto. Vibrava cada vez mais alto o canto das metralhadoras. Súbito um ruído de rasga-rasga aconteceu numa das palmeiras de frente da Santa Casa. O médico compreendeu que era a primeira bala perdida que ultrapassara o alvo das secretarias e que viera traspassar a copa farfalhante sobre sua cabeça, sobre os tetos. Também, que outro mundo se inaugurava e a passos rápidos dirigiu-se para a entrada do hospital. Lá encontrou os outros colegas. Cada qual em silêncio, às vezes se entreolhando, um pouco pálidos e esperando que começassem a chegar os resultados daquela fúria de metralhadoras sacudindo e ponteando o céu de Minas Gerais…

 

Rio de Janeiro, Glória, 5 de junho de 1978 — 19 de outubro de 1980


a G. Legman, Ora-genitalism: Oral Technics in Genital Excitation. Nova York: Causeway Books (95 Madison Avenue), 1969.

b João Alphonsus, “A noite do Conselheiro”. In: ______. Eis a noite! São Paulo: Livraria Martins Editora, 1943 (data no colofão).

c Nesse subcapítulo noto que foi citado várias vezes o grande Couto. Talvez seja a necessidade de lembrar um nome de nossa medicina que não deve ser olvidado. Não posso nunca esquecer da pergunta que ouvi, há bem seus muitos anos, de interno meu — sextanista — que diante de minha insistência em citar aquele médico perguntou-me — “Mas dr. Nava, afinal quem era esse Miguel Couto em quem o senhor tanto fala?” isso se passou com um doutorando de 1949 — apenas quinze anos depois da morte desse que, a seu tempo, era o maior médico brasileiro — a própria encarnação da clínica médica brasileira… Preste-se ao menos atenção ao fato de existirem no Rio — uma rua e um hospital com o nome ilustríssimo. (Nota de Pedro Nava)

d Chagueira grande, mastruço-do-peru, flor-de-pavão, flor-do-paraíso, em francês capucine (Tropaeolum majus, L.).

e Maria Haydée Ferraz.

f Tejuco ou Tijuco.

g Ver anexo n. ii.

h Estatística de 1929, citada por Octávio Pena, Notas cronológicas de Belo Horizonte (Belo Horizonte: Edição do autor, 1950).

i Paulo Krüger Corrêa Mourão dá a data de 5 de abril de 1930 no seu livro História de Belo Horizonte de 1897 a 1930 (Belo Horizonte: [s.n.], 1970).

j O autor escreve estas linhas tendo entre seus elementos de consulta uma fotografia desse banquete que mostra como eram há cinquenta anos Carlos Drummond de Andrade, Mílton Campos, José Maria de Alkmim, Abílio Machado, Abgar Renault, Alberto Campos, Francisco Negrão de Lima, Antônio Pinto de Moraes, Paulo Machado, Julius Starace, Guilhermino César, Francisco Lopes Martins, Bolivar Tinoco Mineiro, Joaquim Nunes Coutinho Cavalcanti (de passagem por Belo Horizonte), Alfeu Felicíssimo, Hugo Gouthier, Evágrio Rodrigues, Gumercindo Vale, Cyro dos Anjos, Gabriel de Rezende Passos, Domingos Monsã, De Cavalcanti Freitas, Isador Coutinho, José Egon Barros da Cunha, Dario de Almeida Magalhães, José Alphonsus de Guimaraens, Newton Prates, Juarez Felicíssimo, José Guimarães Alves, Álvaro Felicíssimo de Paula Xavier e outros.