André Botelho
— Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro […] A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação.
machado de assis,
“O espelho: Esboço de uma nova teoria da alma humana”, 1882
o vidro me manda a cara espessa dum velho onde já não descubro o longo pescoço do adolescente e do moço que fui, nem seus cabelos tão densos que pareciam dois fios nascidos de cada bulbo. Castanho. Meu velho moreno corado. A beiçalhada sadia. Nunca fui bonito mas tinha olhos alegres e ria mostrando dentes dum marfim admirável. Hoje o pescoço encurtou, como se massa dos ombros tivesse subido por ele, como cheia em torno de pilastra de ponte. Cabelos brancos tão rarefeitos que o crânio aparece dentro da transparência que eles fazem. E afinaram. Meu moreno ficou fosco e baço. Olhos avermelhados escleróticas sujas. Sua expressão dentro do empapuçamento e sob o cenho fechado é de tristeza e tem um quê da máscara de choro do teatro. As sobrancelhas continuam escuras e isso me gratifica porque penso no que a sabedoria popular conota à conservação dessa pigmentação. Antes fosse. São duas sarças espessas que quando deixo de tesourar esticam-se em linha demoníaca. Par de sulcos fundos saem dos lados das ventas arreganhadas e seguem com as bochechas caídas até o contorno da cara. A boca também despenhou e tem mais ou menos a forma de um V muito aberto. Dolorosamente encaro o velho que tomou conta de mim e vejo que ele foi configurado à custa de uma espécie de desbarrancamento, avalanche, desmonte — queda dos traços e das partes moles deslizando sobre o esqueleto permanente. Erosão.
Retratista primoroso, experimentador das artes plásticas, uma das vocações da juventude que tanto concorreu para o tipo de narrador em que se transformaria na maturidade, Pedro Nava deixou imagens marcantes dos seus familiares, amigos, companheiros de geração ou simplesmente conhecidos. Foi mais contido, porém, em relação a si mesmo, do que é notável exceção esse impressionante autorretrato, citado acima, feito no quinto volume das suas Memórias, Galo das trevas. Surpreendido no espelho indiscreto do banheiro no meio de mais uma madrugada insone no apartamento da rua da Glória, Rio de Janeiro, quando se punha a escrever suas memórias, o retratista se mostra extremamente corajoso, ainda que irônico, e mesmo algo impiedoso, consigo mesmo. Não apenas porque se deixa surpreender sem rebuço pelo trabalho do tempo, mas sobretudo porque parece fazer recair sobre si a dúvida em relação ao esforço a que vinha se dedicando na escritura das suas Memórias: a busca do tempo perdido.
Terá sentido esse esforço? Difícil responder, mas é justamente esse o espaço da literatura, em que Pedro Nava soube se mover tão bem, lutando, como memorialista, contra a morte e o esquecimento, para ao mesmo tempo esquecer e fazer esquecer, e não apenas lembrar — esquecimento: esse segredo da memória. Ademais, o acesso a um mundo perdido implicará sempre certo anacronismo, já que a busca do tempo perdido é realizada no presente (da escritura) e só a partir dele. Anacronismo gostosamente consciente em Nava, aliás, que não hesita suspender a narrativa para expor ao leitor esse inevitável no procedimento de recuperação do passado. Como nesta passagem de Galo das trevas:
Sem saber como, em vez de retomar estas memórias onde as tinha deixado, ou seja, na última linha do Beira-mar — neste capítulo de meu quinto volume, procedi a verdadeira subversão do Tempo e aqui estou falando de velho, nestes idos de 1978. Faz mal não. Tem ocasião de voltar, retomar o fio da meada. Agora continuemos um pouco na minha época atual — porque o sucedido nela vai governar muito o modo de retomar contar o pretérito.
O que torna o retrato ainda mais interessante e seu papel neste livro ainda mais importante é o fato de já não sabermos bem de quem é o autorretrato: se do autor Pedro Nava em carne e osso, por assim dizer, ou se do narrador das Memórias a que dá vida, literária. A criação do narrador das Memórias é um dos seus elementos estéticos mais complexos e marcantes, e talvez não seja mero acaso que justo neste volume, após se deixar entrever em seu próprio processo de envelhecimento, pondo com isso em risco o equilíbrio sempre tão delicado da dualidade autor/narrador, a narração passe a se dar por meio de um narrador em terceira pessoa, e não mais em primeira, como nos quatro primeiros volumes.
Essa mudança de narrador tem sido interpretada como um artifício de proteção do escritor, versão divulgada ostensivamente pelo próprio Nava, uma vez que a temporalidade do eixo principal dos eventos narrados em Galo das trevas se aproximava — perigosamente — do tempo da própria escritura e de sua publicação, feita originalmente em 1981. Como teria dito Nava, em artigo de jornal da época:
Ao passar as memórias da primeira para a terceira pessoa, pretendi que o personagem funcionasse como meu alter ego, mas no sentido de me resguardar. O objetivo do recurso era me disfarçar e me esconder como autor. Acabei não resistindo e assumi de uma vez a personalidade de Egon Barros da Cunha.
Acrescenta, porém, que os fatos narrados seriam “absolutamente verdadeiros” e que ele, Pedro Nava, responderia integralmente por eles: “Tudo que me impressionou e me marcou de uma forma ou de outra na vida, ou que eu vivi, é reconstituído com exatidão e fidelidade. A terceira pessoa sou eu, como personagens de minhas lembranças, mas isento de constrangimentos”. Assim, da sua perspectiva, lança mão de recursos ficcionais não exatamente para ficcionalizar a narrativa das memórias, mas antes para lhe garantir certa objetividade: “me vali de um recurso de ficção para restaurar a realidade”. Curioso que, para reforçar o compromisso com a verossimilhança realista, Nava ou o narrador em primeira pessoa, com o qual já estávamos habituados e que sai de cena na primeira parte de Galo das trevas quando presenciamos a criação de Egon, cheguem a afirmar que teriam recebido deste “primo” cinco pastas de cartolina com roteiro minucioso e documentado de sua vida e trajetória profissional, base para sua narração a partir daquele momento. Exatamente como fazia Nava, que acondicionava seus “bonecos” — os esboços e documentos de toda sorte que havia muito vinha produzindo e colecionando — em pastas de cartolina coloridas, em tons pastel, belamente evocadas na presente edição na sobrecapa solta que guarda cada um dos volumes das Memórias.
A mudança de narrador não foi, porém, recurso ficcional isolado na fatura de Galo das trevas. Nava teria também misturado eventos e pessoas, fundido alguns e dividido outros, acrescentando-lhes e, sobretudo, subtraindo-lhes traços mais característicos para deixá-los protegidos, sem possibilidade de identificação direta — recurso que, também admite, já teria mobilizado na recriação de algumas personagens em Beira-mar, o volume anterior das Memórias. Diz Nava: “Não tem um personagem ao menos que possa ser identificado. Quem quiser se reconhecer ou identificar outros, vai ter muito trabalho e será inútil. Baralhei tudo”. Para despistar o leitor seu contemporâneo, Nava desloca, funde e apaga traços, o que para o caricaturista exímio que foi não terá sido tarefa em nada complicada. Juiz de Fora, cidade natal de Nava e para onde retorna a fim de trabalhar após se formar, é transmudada em “Desterro”, para onde o Egon teria ido trabalhar, assim como seus topônimos, ruas, familiares, moradores, personagens quase anônimos, casas comerciais, lutas políticas, situações diversas. Como o próprio Nava exemplifica:
Há no Galo das trevas um funeral minuciosamente descrito. Passa-se em Desterro, mas na verdade não é a descrição de um enterro a que eu tenha assistido. É a recriação de pelo menos meia dúzia de enterros a que assisti, inclusive em Belo Horizonte e até no Rio. É um enterro-síntese.
Como tradicionalmente os narradores em primeira pessoa tendem a tornar a “verdade” mais relativa, já que nós leitores vemos sempre da perspectiva deles, um narrador em terceira pessoa parecia assim trazer mais objetividade à narração dos “fatos” da vida profissional de Nava, campo aberto de disputas em que ele tinha acumulado conquistas e reconhecimento, mas também muitos dissabores e desafetos — tema ainda mais acirrado no último livro publicado em vida do autor e penúltimo das suas Memórias, O círio perfeito. O que explica também, do seu ponto de vista, a fusão ou divisão de personagens uns nos outros.
Galo das trevas está dividido em duas partes: a primeira, intitulada “Negro”, contém apenas um capítulo, “Jardim da Glória à beira-mar plantado”; a segunda, “O branco e o marrom”, compreende dois capítulos: “Santo Antônio do Desterro” e “Belorizonte belo”. Na primeira parte encontram-se, sobretudo, as cenas de escrita das Memórias, e a meditação do autor/narrador sobre a passagem do tempo, seu envelhecimento e a busca do tempo perdido por meio da escrita. A metanarrativa e a reflexividade que dão forma a certa meditação sobre o tempo e sobre a escrita das memórias a ele relacionadas, presentes na primeira parte do livro, se não chegam a colocar contra a parede as possibilidades e os limites das Memórias como gênero narrativo, ao menos deixam à mostra, como vimos discutindo, essa dualidade autor/ narrador, cujo baralhamento é uma das forças da ficção.
Lembrei acima o anacronismo envolvido em toda busca (empreendida no presente) de um passado sabidamente perdido para sempre que forja a literatura memorialística. As cenas de escritura das Memórias que, latentes e mais episódicas no ciclo naviano em geral, ganham o primeiro plano da narrativa na primeira parte de Galo das trevas são emblemáticas a esse respeito. Elas mostram, num jogo intertextual fino com o paradigma da memória involuntária de Proust (e de Marcel, o narrador de Em busca do tempo perdido), como esse procedimento anacrônico tem por base os vestígios do passado que ganham materialidade nos objetos que agenciam a memória. O percurso em nada linear que vai da lembrança e do esquecimento à escritura das memórias passa e é em grande parte articulado por meio de objetos materiais, como casas, sua localização, divisões interiores, divisão social do espaço, mobílias, roupas, joias, retratos, atividades domésticas, experiências culinárias.
Não resisto, então, mesmo sabendo-a longa, a citar o início de uma bela cena de escritura das Memórias, onde, no meio de mais uma noite insone em seu apartamento, se explicita a agência dos objetos familiares sobre Pedro Nava, essas ruínas do passado sistematicamente colecionadas que o ajudam a se metamorfosear em narrador:
Entro em minha sala de jantar com passos de veludo. À noite, só, tenho medo pânico do ruído de minha sola no chão. Respiro baixo — como ladrão. As coisas familiares tornam-se estranhas e fantasmais, mesmo luz acesa. O relógio armário vacarmiza com seus tic — estalos — tac a tempos iguais do pêndulo cá e já logo lá e a lua do mostrador me manda além das três e meia das horas, o sem-número de caras que as procuraram no tempo e que não procuram mais saber quantas são. Se fosse uma raridade de antiquário, não me diria nada. Mas é um de armário que bate as horas para minha gente há mais de cem anos. Pertenceu a Cândido José Pamplona, meu bisavô. Rodrigo Melo Franco de Andrade, que gostava de sua linha de velho móvel, sempre que vinha a minha casa ia vê-lo, acertava por ele os ponteiros do seu e explicava que aquele tipo era duns relógios ultraprecisos, de fabricação inglesa, entrados no país entre 1820 e 1840. Com sua autoridade de diretor do Patrimônio dava idade assim venerável ao meu antigo pêndulo. Da casa de meus bisavós ele passou para a de minha avó paterna e das mãos desta para as de minha tia Alice Salles. Dela me veio. Lembro do dia que fui tirá-lo num armazém do Cais do Porto, chegado do Ceará: máquina, pesos, um feixe de tábuas do que fora o armário. Fi-lo restaurar, pu-lo de pé, mandei regulá-lo, armá-lo. Dei a corda, impulsionei a báscula e o tique-taque começou a pulsar para mim os segundos que contara para os meus. Tio Salles, que bricolava, tinha passado sua caixa de pinho-de-riga a uma tinta marrom cujo óleo se impregnara de tal modo à madeira que foi impossível deixá-la visível e aos seus belos veios e nós. Tive de mandar repintá-la. Escolhi dourados, ramos de flores, tendo por campo aquela cor de sangue. Logo que ele começou a bater, devorou os silêncios e os demais ruídos de minha casa e a olhá-lo, leio no seu mostrador o testemunho da morte dos meus mais velhos — todos encantados no seu bojo tornado carne palpitante pelo grená que lhe dei. No princípio ele era uniforme. O tempo corrompendo oxidando mofando a tinta deu-lhe inesperada riqueza de tonalidades e aqui e ali apresentam-se agora as várias gradações do rubro. Há quinas carmesins, superfícies purpurinas, cor de cereja, de rosa, de amora, cantos de coral, de carmim, de goles. Os quatro pés estão encarnados. Alto, tocando o teto, ereto, certo, preciso, seguro, implacável — meu relógio vermelho bem aguentaria (como o do Príncipe Próspero) confrontar também a Morte e vê-la pichelingue, despojar-me de madrugada minuto e mais minuto. Esvazia meu haver e aumenta o seu enquanto engrola na boca de sombra seca — Estch’era teu, agor’el’ é meu, estch’era teu agor’el’ é meu, estch’era teu…
Na segunda parte de Galo das trevas, acompanhamos os inícios da vida profissional do jovem dr. José Egon Barros da Cunha, alter ego de Nava e apresentado como seu primo, que passa a ser o protagonista da história, escondendo e também mostrando o que aquele desejava. O “branco” e o “marrom” codificam os dois tipos básicos de médicos que Nava afirma ter conhecido em sua longa carreira, o ético e o não ético. Metáfora que a partir daí organiza a narrativa das Memórias, compreendendo a continuidade de suas atividades profissionais e sua chegada à maturidade. É da maturidade que Pedro Nava/ narrador em primeira pessoa/ Egon busca seu passado e cria um sentido para as suas experiências de juventude. Toda rememoração será sempre, afinal, anacrônica.
A narrativa dos inícios da vida profissional será feita de uma perspectiva bastante crítica que trai justamente o olhar do médico aposentado, que, apesar de uma bem-sucedida carreira que lhe garantiu reconhecimento, respeito e renome, também envolveu dificuldades, dissabores e desafetos. Mas o olhar crítico lançado sobre a longa trajetória percorrida não é apenas o de uma subjetividade individual, mas demarca também, naturalmente sempre do ponto de vista naviano, processos e relações muito mais amplos sobre os sentidos assumidos pela medicina na sociedade e pelo seu exercício profissional, como de resto é procedimento nas Memórias como um todo, que nunca se deixam disciplinar ordeiramente pelo paradigma do indivíduo.
Assim, o leitor encontrará nessa segunda parte de Galo das trevas a narração das dificuldades enfrentadas pelo neófito num mundo marcado por interesses, vaidades, hierarquias e favorecimentos pessoais próprios da política oligárquica da Primeira República, aparentemente alheios ao ofício para o qual havia se preparado. Aparência que será desmentida a cada episódio, com alto custo subjetivo do protagonista, que, guiado pelo narrador, vai aprendendo com os ciúmes e as inimizades despertados pela força e pelo idealismo da sua juventude. Mais uma vez, o sentido da narrativa é mais abrangente, contendo sua própria sociologia, por assim dizer, já que o sofrimento individual é o meio para a descoberta das forças sociais mais amplas que organizam a medicina como campo profissional, e do delicado jogo entre a ortodoxia dos estabelecidos e a heterodoxia dos que acabam de chegar.
Como se sabe, a descoberta das estruturas que organizam os interesses e as vaidades num mundo aparentemente harmonioso é o mote crucial do melhor romance realista, que teve em Balzac um dos seus artífices, e que Pedro Nava conhecia tão bem. Afinal, não será mera coincidência que a narrativa dos inícios da vida profissional de José Egon Barros da Cunha possa ser lida como a do jornalista Lucien de Rubempré, o herói de As ilusões perdidas. Mas, embora ilusões perdidas pudesse ser um bom título dessa segunda parte de Galo das trevas, Nava preferiu “O branco e o marrom”, que não deixa de remeter ao cromatismo moral do título de outro artífice do romance realista, O vermelho e o negro, de Stendhal. Aqui, trata-se também das tentativas de um jovem (Julien Sorel) de subir na vida, apesar do seu nascimento plebeu, através de uma combinação de talento, trabalho duro, mas também hipocrisia, para, ao fim e ao cabo, ser traído por suas próprias paixões. Seja como for, os primeiros anos de exercício da medicina no volume que o leitor tem em mãos, em que o narrador leva o herói às portas da maturidade, coincidindo com os primeiros disparos, em Belo Horizonte, da Revolução de 1930, são tratados de modo realista no sentido do gênero romance com tal habilidade que frequentemente nos perguntamos, durante a leitura, se estamos diante de memórias ou de uma novela.
No autorretrato do memorialista Pedro Nava — autor e narrador —, com o qual iniciamos esta apresentação, quando ele é surpreendido no espelho, a relação entre memória e velhice se consuma. Não por acaso, ele figura na primeira parte de Galo das trevas, que, considerando a economia interna de todo o ciclo memorialístico naviano, representa como que uma pausa metanarrativa e reflexiva em relação à escrita das memórias (gênero narrativo) e sua própria matéria-prima, as experiências vividas filtradas pela memória — suas lembranças e esquecimentos. E para o efeito expressionista alcançado no autorretrato destacado, terá concorrido também, ao lado do talento do desenhista e pintor que confere sentido plástico à narrativa, a habilidade naturalista do médico experiente. O anatomista tão detalhista, de que temos notícia nas belas páginas de Beira-mar, sobre o aprendizado dessa arte na faculdade de medicina de Minas Gerais. E que, quando chega a hora, não hesita em descrever seu próprio envelhecimento como decadência, fugacidade da juventude; ainda que quase se deixe levar, vaidoso, pelos sinais de virilidade entrevistos em alguns traços persistentes segundo a sabedoria popular — sabedoria que, aliás, tanto prezou e foi também importante para sua épica memorialística.
É certo que a passagem do tempo é um dos motivos principais de todas as Memórias, sem o qual evidentemente não existiria sequer esse gênero literário. E embora a prática desse gênero tenha muitos e variados sentidos em Pedro Nava, a consciência da passagem do tempo é sempre candente. Como, aliás, expressa tão bem a anotação feita pelo autor nos datiloscritos do primeiro volume do seu ciclo após a morte recente da tia: “Hoje sou o mais velho… o tempo urge”. Não parece fortuito, porém, que o motivo, a passagem do tempo, ganhe assim mais espaço no presente volume, bem como a reflexividade do narrador em relação ao próprio gênero Memórias. Nava sabia estar chegando ao fim (relativamente planejado) da sua narrativa épica à medida que se aproximava de sua vida adulta e profissional, embora o curso de sua vida individual seja apenas um dos eixos da narrativa. Memória de velho, chama que se apaga, como, aliás, poderia sugerir o título algo esotérico escolhido para o livro. “Galo das trevas” é o candelabro de treze velas de uso ritual na Igreja Católica Apostólica Romana durante a Semana Santa, que se apagam, uma a uma, conforme vão sendo rezadas as orações e os salmos do ofício das trevas, que atualizam ritualmente a Paixão e morte de Jesus Cristo.
É verdade, por outro lado, que nem sempre a mudança de narrador parece tão bem-sucedida em Galo das trevas, o mesmo podendo ser notado em relação às dissimulações de personagens e situações rememoradas na narrativa. Mas também aqui podemos aprender com as aparentes fragilidades de fatura, cheias de consequências para a compreensão do sentido da narrativa como totalidade. Assim, por exemplo, em vários momentos Nava ou o narrador em primeira pessoa dos volumes anteriores das Memórias irrompe na narrativa. É o que acontece, entre outras vezes, na primeira viagem de Egon ao interior de Minas, até então narrada, como esperado, na terceira pessoa. Mas, quando a pequena comitiva chega à casa do major Jacinto, Pedro Nava toma inesperadamente o lugar do viajante: “Entrei com o Tãozinho e logo uma senhora se adiantou toda de negro, pálida, cabelos pretos apanhados numa trança de mandarim que lhe escorria pelas costas”.
Todavia, não me parece suficiente considerar essas irrupções ou os efeitos aparentemente desencontrados de outros recursos empregados como defeitos estéticos ou contrabando espúrio das técnicas do romance para o relato memorialístico, até porque me parece inexistirem condições para identificar algo como um gênero literário “puro”. O contrário, portanto, do que pareceu a Wilson Martins, que em resenha publicada no Caderno B do Jornal do Brasil, de 20 de fevereiro de 1982, compulsa essa e toda sorte de situações em que a voz do narrador em primeira pessoa ou a do próprio Nava autor irrompem inesperadamente em Galo das trevas, bem como outros recursos empregados na dissimulação de personagens e situações rememoradas, para assinalar as deficiências estéticas de Nava que corrompiam a “autenticidade” do seu relato.
A justaposição de temporalidades dispersas, dimensões de significado e relatos, já o sabemos, é característica crucial das Memórias de Pedro Nava, e as distanciam da forma canônica do gênero memorialístico até então praticado no Brasil, aproximando sua literatura do jogo intertextual nosso contemporâneo, tão marcado pelo baralhamento de vozes, diversidade, hibridismo, negociação de identidades. A força própria de Galo das trevas está a meu ver justamente no jogo entre a autoexposição do autor e do narrador feita na primeira parte, na qual Nava deixa entrever todo o tortuoso processo de escrita das Memórias, com sua personalidade errática, fraturada, consumida, e a segunda parte do livro, na qual põe em ação um alter ego e toda sorte de artifícios ficcionais mobilizados com maior ou menor êxito para dissimular os fragmentos das experiências vividas. Jogo de espelhos, de mostra e esconde, que, evidentemente, torna ainda mais complexas, dinâmicas e sedutoras as relações entre real e ficção, ou confissão e invenção, nas Memórias de Nava — em si mesmas terreno pouco aprazível para os que buscam fronteiras demarcadas, arestas aparadas, divisões reificadas, imaginação disciplinada, cada qual no seu quadrado. É claro que, em literatura, não há ingenuidade no que se mostra ou no que se esconde, ainda que tampouco os sentidos das palavras possam ser inteiramente reduzidos às intenções — boas ou más — do narrador. Então, como a décima terceira vela do candelabro ritualístico do catolicismo romano, a definição das Memórias de Nava permanece em fogo ardente, incomodando especialistas e — tão bom quanto isso — podendo deleitar leitores.
bibliografia selecionada
aguiar, Joaquim Alves de. Espaços da memória. Um estudo sobre Pedro Nava. São Paulo: Edusp/Fapesp, 1998.
cançado, José Maria. Memórias videntes do Brasil. A obra de Pedro Nava. Belo Horizonte: Editora da ufmg, 2003.
figueiredo, Wilson. “Galo das trevas: Pedro Nava em terceira pessoa”. Jornal do Brasil — Caderno B. Rio de Janeiro, 11 jul. 1981, p. 9.
gonçalves, José Reginaldo Santos. Antropologia dos objetos: Coleções, museus e patrimônios. Rio de Janeiro: iphan, 2007.
martins, Wilson. “Em busca do tempo perdido”. Jornal do Brasil — Caderno B. Rio de Janeiro, 20 fev. 1982, p. 11.
nagel, Alexander; wood, Christopher S. Anachronic Renaissance. Cambridge: mit Press, 2010.
schwarz, Roberto. “A poesia envenenada de Dom Casmurro”. In: Duas meninas. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.