Dois milhões de anos atrás, os australopitecíneos da África, com seus genes se espalhando entre várias espécies, ainda perambulavam pelas florestas de savana e pradarias da África. Caminhavam sobre as patas traseiras, distinguindo-se assim de todos os outros primatas que já haviam existido. A cabeça deles se assemelhava à de um macaco antropoide na forma e na dentição. O cérebro não era maior do que o dos grandes macacos antropoides que viviam à sua volta. Suas populações eram dispersas e pequenas, e a qualquer momento todos poderiam mergulhar na extinção. Em mais meio milhão de anos, todos realmente haviam desaparecido.
Todos, exceto um. A radiação do australopitecíneo havia gerado um único sobrevivente, cujos descendentes estavam destinados não apenas a persistir, mas a dominar o mundo. De início, o futuro desses ancestrais da humanidade moderna não estava mais assegurado do que o de seus parentes próximos. Cerca de 2 milhões de anos atrás, a linhagem privilegiada dos australopitecíneos começara a transição para o Homo erectus, de cérebro ainda maior. Essa espécie tinha um cérebro menor que o do Homo sapiens atual, mas era capaz de talhar ferramentas de pedra grosseiras e usar fogueiras controladas em acampamentos. Suas populações se espalharam para fora da África, cobrindo o nordeste da Ásia adentro e abrindo caminho ao sul até a Indonésia. O Homo erectus era adaptável em um grau sem precedentes para um primata. Algumas de suas populações sobreviviam nos invernos frios do atual norte da China, e outras no clima tropical estorricante de Java. Por seu grande domínio, os paleontólogos escavaram fragmentos de todas as partes do esqueleto do erectus e repetidamente os juntaram. E, em duas camadas sedimentares, perto do norte do lago Turkana, no Quênia, descobriram algo tão notável quanto crânios e fêmures: pegadas fossilizadas. As marcas atuais mudaram pouco desde que um Homo erectus passeando com lama entre os dedos dos pés as produziu 1,5 milhão de anos atrás.
O Homo erectus, com uma cultura que avançou bem além daquela de seus ancestrais simiescos, e mais adaptável a ambientes novos e difíceis, expandiu seu domínio para se tornar o primeiro primata cosmopolita. Só não conseguiu atingir os continentes isolados da Austrália e do Novo Mundo, nem os arquipélagos remotos do oceano Pacífico. Seu grande domínio protegeu a espécie da extinção prematura. Uma de suas linhagens genéticas adquiriu imortalidade potencial ao evoluir para o Homo sapiens. O Homo erectus ancestral ainda vive. Somos nós.
Numa área distante de seu domínio, o Homo erectus produziu uma ramificação menos afortunada, o Homo floresiensis, um hominíneo minúsculo, de cérebro pequeno, que vivia em Flores, uma ilha de tamanho médio na cadeia de Sunda Menor, a leste de Java. Seus vestígios fósseis e suas ferramentas de pedra datam de 94 mil a apenas 13 mil anos atrás. Com um metro de altura e possuindo um cérebro não maior que o dos australopitecíneos africanos, o homem de Flores, também popularmente conhecido como o Hobbit, permanece um enigma. Mas é provável que tenha se originado como uma variante extrema do Homo erectus, divergindo durante seu isolamento das populações principais de erectus indonésios. Seu tamanho pequeno se enquadra numa regra vaga da biogeografia das ilhas: as espécies animais isoladas em ilhas e pesando menos de vinte quilos tendem a originar gigantes relativos (um exemplo são as tartarugas enormes de Galápagos), ao passo que aquelas com mais de vinte quilos tendem a evoluir para nanicos (como o veado anão de Florida Keys). Se sua posição atualmente reconhecida como um hominíneo distinto estiver correta, o Homo floresiensis tem muito a nos contar sobre os caprichos do labirinto evolutivo percorrido pelo Homo erectus para chegar à nossa própria espécie. Sua extinção relativamente recente, após uma longa vida, abre a possibilidade de que tenha sido exterminado, como nossa outra espécie irmã, os neandertais, durante a disseminação do Homo sapiens conquistador ao redor do mundo.
O Homo sapiens, o descendente bem-sucedido do Homo erectus, quando visto imparcialmente, é ainda mais estranho que o pigmeu de Flores. Além da testa protuberante, cérebro superdimensionado e dedos longos e afilados, nossa espécie possui outros aspectos biológicos impressionantes do tipo que os taxonomistas denominam “diagnóstico”. Isso significa que, combinados, alguns de nossos traços são únicos dentre todos os animais:
• Uma linguagem produtiva baseada em permutações infinitas de palavras e símbolos arbitrariamente inventados.
• A música, compreendendo uma grande variedade de sons, também em permutações infinitas e interpretada em padrões criadores de sensações individualmente escolhidos; mas, mais definitivamente, com um ritmo.
• Infância prolongada permitindo longos períodos de aprendizado sob a orientação de adultos.
• Ocultamento anatômico da genitália feminina e abandono do anúncio da ovulação, ambos combinados com atividade sexual contínua. Esta última promove a intimidade fêmea-macho, ambos cuidando dos filhos, o que é necessário durante o longo período de dependência no início da infância.
• Crescimento singularmente rápido e substancial do tamanho do cérebro durante o desenvolvimento inicial, aumentando 3,3 vezes do nascimento à maturidade.
• Forma do corpo relativamente esguia, dentes pequenos e músculos mandibulares enfraquecidos, indicadores de uma dieta onívora.
• Um sistema digestivo especializado em comer alimentos que foram amaciados pelo cozimento.
Aproximadamente 700 mil anos atrás, as populações de Homo erectus vinham desenvolvendo cérebros maiores. Por inferência, haviam adquirido ao menos os rudimentos de alguns dos traços de diagnóstico recém-citados do Homo sapiens. Porém, nesse período remoto, os crânios ainda estavam longe do moderno. O Homo erectus arcaico possuía arcadas supraorbitais protuberantes, faces mais salientes e menos expansão lateral do crânio do que o verificado no moderno Homo sapiens. Duzentos mil anos atrás, os ancestrais africanos anatomicamente haviam se aproximado mais dos seres humanos atuais. As populações também usavam ferramentas de pedra mais avançadas e podem ter se engajado em alguma forma de prática de sepultamento. Mas seus crânios ainda eram relativamente pesados na estrutura. Somente cerca de 60 mil anos atrás, quando o Homo sapiens escapuliu da África e começou a se espalhar ao redor do mundo, as pessoas adquiriram as dimensões esqueletais completas da humanidade contemporânea.
Os ancestrais que conseguiram escapar da África e conquistaram a Terra foram extraídos de um mix genético diversificado. Ao longo de seu passado evolutivo, durante centenas de milhares de anos, haviam sido caçadores-coletores. Viviam em pequenos bandos, semelhantes aos bandos sobreviventes atuais, compostos de pelo menos trinta, e não mais que cem, indivíduos. Esses grupos estavam esparsamente distribuídos. Aqueles mais próximos entre si permutavam uma pequena fração de indivíduos a cada geração, mais provavelmente fêmeas. Divergiam geneticamente o suficiente para que o conjunto inteiro de bandos (a metapopulação, como os biólogos denominam tal coletividade) fosse bem mais variável do que os humanos nativos destinados a escaparem.
Essa diferença persiste. Há muito se sabe que os africanos ao sul do Saara são geneticamente bem mais diversificados do que os povos nativos de outras partes do mundo. A magnitude dessa disparidade tornou-se especialmente clara quando, em 2010, foram publicadas todas as sequências codificadoras de proteínas do genoma de quatro caçadores-coletores bosquímanos (também conhecidos como os San ou Khoisan) de diferentes partes do Kalahari, além de um banto de uma tribo agrícola vizinha, ao sul da África. É incrível pensar que, apesar da semelhança física externa entre eles, os quatro San diferiam mais entre si do que um europeu comum difere de um asiático comum.
Não escapou à atenção dos biólogos especializados em humanos e pesquisadores médicos o fato de os genes dos africanos atuais serem um tesouro para toda a humanidade. Eles possuem o maior reservatório de diversidade genética de nossa espécie, permitindo que estudos adicionais venham lançar uma luz nova sobre a hereditariedade do corpo e da mente humana. Talvez tenha chegado o momento, tendo em vista esse e outros avanços na genética humana, de adotarmos uma ética nova de variação racial e hereditária, que valorize a diversidade completa, e não as diferenças que compõem a diversidade. Assim obteríamos um indicador apropriado da variação genética de nossa espécie como uma vantagem, apreciada pela adaptabilidade que fornece a todos nós durante um futuro cada vez mais incerto. A humanidade é fortalecida por um amplo portfólio de genes capazes de gerar talentos novos, resistência adicional às doenças e talvez até novos meios de ver a realidade. Por razões científicas tanto quanto morais, deveríamos aprender a promover a diversidade biológica por suas vantagens intrínsecas, em vez de usá-la para justificar o preconceito e o conflito.
As populações de Homo sapiens que se espalharam da África para o Oriente Médio e além empreenderam longas viagens do tipo que é rotina para os viajantes modernos. Geração após geração, os bandos avançaram cautelosamente a pé por terras estranhas que se estendiam à sua frente. O padrão que pareceram seguir foi se aventurar algumas dezenas de quilômetros, fixar-se, aumentar de número e depois dividir-se em dois ou mais bandos, capazes de avançar para territórios novos. Aparentemente os invasores iniciais abriram caminho ao norte dessa maneira ao longo do Vale do Nilo até o Levante, depois se espalharam para o norte e para o leste. Possivelmente os pioneiros nesse corredor constituíam apenas um ou pouquíssimos bandos. Em poucos milhares de anos seus descendentes se tornaram uma rede de tribos frouxamente conectadas espalhadas por quase todo o continente eurasiano.
Esse cenário de avanço inicial, lento e com poucos indivíduos, seguido pelo crescimento da população local, é respaldado por duas linhas de indícios reunidas por grupos independentes de pesquisadores durante os últimos dez anos. A primeira é a grande diversidade genética dos atuais africanos do sul, sugerindo que apenas uma pequena parte da população africana total participou da saída. A segunda são análises e modelos matemáticos da quantidade de diferenças genéticas entre as populações humanas vivas, sugerindo que os pioneiros criaram um “efeito fundador seriado” em que uns poucos indivíduos ao se mudarem de uma população estabelecida mais antiga, depois, por sua vez, serviram de origem para a próxima emigração além. Por fim, surgiram várias dessas pontas de lança radiando em muitas direções, e a população humana se amalgamou.
Os cientistas reuniram dados da geologia, da genética e da paleontologia para visualizar mais precisamente como o padrão de saída da África começou. Entre 135 mil e 90 mil anos atrás, um período de aridez, bem mais extremo que qualquer outro experimentado em dezenas de milênios anteriormente, dominou a África tropical. O resultado foi o recuo forçado da humanidade primitiva para um domínio bem menor e sua queda para um nível populacional perigosamente baixo. As mortes por inanição e conflitos tribais, que se tornariam rotineiras nos tempos históricos posteriores, devem ter sido comuns na pré-história. O tamanho da população total de Homo sapiens no continente africano caiu para a casa dos milhares e, por um longo período, a futura espécie conquistadora correu o risco de extinção completa.
Finalmente, a grande seca amainou e, de 90 mil a 70 mil anos atrás, as florestas tropicais e as savanas lentamente se expandiram de volta aos seus domínios anteriores. As populações humanas cresceram e se espalharam com elas. Ao mesmo tempo, outras partes do continente se tornaram mais áridas, bem como o Oriente Médio. Com níveis intermediários de chuvas prevalecendo na maior parte da África, uma janela de oportunidade especialmente favorável se abriu à expansão demográfica de populações pioneiras totalmente para fora do continente. Em particular, o intervalo foi suficientemente longo para manter um corredor de terreno habitável contínuo — Nilo acima até o Sinai e além —, secionando ao meio a terra árida e permitindo uma passagem de seres humanos colonizadores para o norte. Uma segunda rota possível foi para o leste, através do estreito de Bab al-Mandeb até o sul da península Arábica.
Em seguida, ocorreu a penetração do Homo sapiens na Europa, há no máximo 42 mil anos. Seres humanos anatomicamente modernos se espalharam pelo rio Danúbio acima, adentrando as terras centrais de sua espécie humana irmã, os neandertais (Homo neanderthalensis). Estas últimas populações haviam evoluído em épocas bem anteriores a partir de uma linhagem humana arcaica. Embora geneticamente próximas do Homo sapiens, constituíam uma espécie biológica distinta, que apenas raramente cruzou com o sapiens. Talvez porque os neandertais dependessem mais da caça de grande porte, estavam mal equipados para competir com guerreiros habilidosos que subsistiam não só de animais grandes, mas também de uma variedade mais ampla de outros animais e produtos vegetais. Trinta mil anos atrás, o Homo sapiens os havia substituído por completo. O Homo sapiens também substituiu outra espécie parente dos neandertais, os recentemente descobertos denisovanos do sul da Sibéria, conhecidos com base em vestígios na Caverna Denisova, nos montes Altai.
O restante das rotas seguidas pelas populações humanas crescentes, conforme se pode deduzir melhor a partir dos indícios fósseis e genéticos, estenderam-se Ásia adentro e ao longo da costa do oceano Índico em torno de 60 mil anos atrás. Os colonizadores entraram no subcontinente indiano e depois na península Malaia, ao mesmo tempo que conseguiram atravessar os estreitos até as Ilhas Andaman, onde populações aborígines antigas ainda existem. Eles aparentemente não conseguiram alcançar as Ilhas Nicobar, próximas dali — onde a composição genética dos habitantes atuais sugere uma origem asiática mais recente, 15 mil anos atrás. Os primeiros vestígios humanos encontrados até hoje na Indonésia, da Caverna Niah do Bornéu, têm 45 mil anos. Os vestígios mais velhos da Austrália, desenterrados no lago Mungo, datam de 46 mil anos atrás. A Nova Guiné foi provavelmente colonizada um pouco antes. Grandes mudanças na fauna da Austrália, provavelmente devido à predação e à queima de vegetação baixa para coagir os animais de caça, dão sinais de que a data da incursão australiana foi ao menos 50 mil anos atrás. A população nativa da Nova Guiné e da Austrália é portanto verdadeiramente aborígine — descendente direta dos primeiros humanos modernos a chegarem à mesma terra que ocupam hoje.
Figura 9-1. Os primeiros colonizadores de um novo continente. Cedo na história da humanidade moderna (Homo sapiens), tribos começaram cerimônias de sepultamento, que antecederam ou acompanharam as crenças religiosas primitivas. Essa reconstituição retrata um enterro por aborígines australianos remotos em Mungo, sudeste da Austrália, há pelo menos 40 mil anos. Pó de ocre vermelho está sendo despejado no cadáver. (© John Sibbick. Em Chris Stringer e Peter Andrews, The Complete World of Human Evolution. Londres: Thames & Hudson, 2005, p. 171.)
A questão de exatamente quando o anatomicamente moderno Homo sapiens chegou ao Novo Mundo, com seu impacto catastrófico sobre a fauna e a flora virgens, tem prendido a atenção dos antropólogos há vários anos. Como uma imagem fotográfica num líquido revelador muito lento, o retrato parece enfim ganhar foco. Com base em estudos genéticos e arqueológicos na Sibéria e nas Américas, parece agora que uma única população siberiana alcançou a ponte terrestre de Bering, há não mais que 30 mil anos, possivelmente ainda mais recentemente que isso, há cerca de 22 mil anos. Nesse período, os lençóis de gelo continentais haviam atraído água suficiente dos oceanos para expor a ponte terrestre de Bering, ao mesmo tempo que bloqueavam a entrada ao atual Alasca. Há cerca de 16 500 anos, o recuo dos lençóis de gelo abriu o caminho para o sul, dando início a uma invasão em plena escala pelo Alasca. Quinze mil anos atrás, conforme revelado pelas descobertas arqueológicas na América do Norte e do Sul, a colonização das Américas estava em andamento. Parece provável que as primeiras populações tenham se dispersado ao longo da recentemente desglaciada costa do Pacífico, ao longo de terras ainda expostas pela retirada incompleta dos lençóis de gelo, agora já quase todas submersas.
Há aproximadamente 3 mil anos, os ancestrais dos povos polinésios começaram a colonizar os arquipélagos do Pacífico. Começando por Tonga e avançando gradualmente para leste, com grandes canoas projetadas para longas viagens, alcançaram em 1200 os extremos da Polinésia, um triângulo formado por Havaí, Ilha da Páscoa e Nova Zelândia. Com essa realização dos viajantes polinésios, a conquista humana da Terra estava completa.