24. As origens da moralidade
e da honra

As pessoas são inerentemente boas, mas corruptíveis pelas forças do mal? Ou, pelo contrário, são intrinsecamente malvadas, só podendo ser redimidas pelas forças do bem? As pessoas são ambas as coisas. E assim seremos para sempre, a não ser que mudemos nossos genes, porque o dilema humano foi preordenado pela forma como nossa espécie evoluiu, sendo portanto uma parte imutável da natureza humana. Os seres humanos e suas ordens sociais são intrinsecamente imperfeitos, e felizmente. Num mundo em constante mudança, precisamos da flexibilidade que apenas a imperfeição proporciona.

O dilema do bem e do mal foi criado pela seleção multinível, em que a seleção individual e a seleção de grupo agem conjuntamente sobre o mesmo indivíduo, mas em grande parte em oposição uma à outra. A seleção individual é o resultado da competição por sobrevivência e reprodução entre membros do mesmo grupo. Ela molda instintos em cada membro que são fundamentalmente egoístas em referência aos demais membros. Em contraste, a seleção de grupo consiste na competição entre sociedades, por meio do conflito direto e da competência diferencial na exploração do meio ambiente. A seleção de grupo molda instintos que tendem a tornar os indivíduos altruístas entre si (mas não em relação aos membros de outros grupos). A seleção individual é responsável por grande parte do que chamamos de pecado, enquanto a seleção de grupo é responsável pela maior parte da virtude. Juntas criaram o conflito entre o anjo e o demônio de nossa natureza.

A seleção individual, definida com precisão, é a longevidade diferencial e a fertilidade dos indivíduos em competição com outros membros do grupo. A seleção de grupo é a longevidade diferencial e a fertilidade vitalícia daqueles genes que determinam traços de interação entre membros do grupo, tendo surgido durante a competição com outros grupos.

Como analisar e lidar com a eterna agitação gerada pela seleção multinível é o papel das ciências sociais e humanidades. Como explicá-la é o papel das ciências naturais, que, se bem-sucedidas, devem facilitar a criação dos caminhos para a harmonia entre os três grandes ramos do aprendizado. As ciências sociais e humanidades se dedicam aos fenômenos próximos, externamente expressos, das sensações e do pensamento humanos. Assim como a história natural descritiva está ligada à biologia, as ciências sociais e humanidades estão ligadas à autocompreensão humana. Elas descrevem como os indivíduos sentem e agem, e, com a história e as artes dramáticas, contam uma fração representativa das infinitas histórias que os relacionamentos humanos podem gerar. Tudo isso, porém, existe dentro de uma caixa. Está confinado lá porque as sensações e o pensamento são regidos pela natureza humana, e a natureza humana também está em uma caixa. Ela é apenas uma dentre um vasto número de naturezas possíveis que poderiam ter se desenvolvido. Aquela que temos é o resultado do caminho improvável seguido ao longo de milhões de anos por nossos ancestrais genéticos que finalmente nos produziram. Ver a natureza humana como o produto dessa trajetória evolutiva é revelar as causas últimas das nossas sensações e do nosso pensamento. Juntar as causas próximas e últimas é a chave para a autocompreensão, o meio de nos vermos como realmente somos e depois explorarmos o que há fora da caixa.

Na busca das causas últimas da condição humana, a distinção entre os níveis de seleção natural aplicados ao comportamento humano não é perfeita. O comportamento egoísta, talvez incluindo a seleção de parentesco geradora de nepotismo, pode, de algumas formas, promover os interesses do grupo por meio de invenção e empreendedorismo. Quando os retoques finais da evolução cognitiva estavam sendo acrescentados antes e depois da saída da África, 60 mil anos atrás, provavelmente viveram os equivalentes aos Médicis, Carnegies e Rockefellers, que promoveram a si mesmos e a suas famílias de modo a também beneficiar as suas sociedades. A seleção de grupo por sua vez promoveu os interesses genéticos dos indivíduos com privilégio e status, como recompensas pelo desempenho excepcional a favor da tribo.

Mesmo assim, existe uma regra férrea na evolução social genética: indivíduos egoístas derrotam indivíduos altruístas, enquanto grupos de altruístas derrotam grupos de indivíduos egoístas. A vitória nunca pode ser completa. O equilíbrio das pressões da seleção não pode pender para nenhum dos extremos. Se a seleção individual dominasse, as sociedades se dissolveriam. Se a seleção de grupo dominasse, os grupos humanos pareceriam colônias de formigas.

Cada membro de uma sociedade possui genes cujos produtos são visados pela seleção individual e genes visados pela seleção de grupo. Cada indivíduo está ligado a uma rede de outros membros do grupo. Sua própria sobrevivência e sua capacidade reprodutiva dependem em parte de sua interação com outros na rede. O parentesco influencia a estrutura da rede, mas não é a chave para sua dinâmica evolutiva, como erroneamente postulado pela teoria da aptidão inclusiva. Pelo contrário, o que conta é a propensão hereditária a formar a miríade de alianças, favores, trocas de informações e traições que constituem a vida diária na rede.

Ao longo da pré-história, quando a humanidade desenvolvia sua capacidade cognitiva, a rede de cada indivíduo era quase idêntica à do grupo ao qual ele pertencia. As pessoas viviam em grupos espalhados, com uma centena ou menos de indivíduos (trinta era provavelmente um número comum). Tinham conhecimento de grupos vizinhos e, a julgar pelas vidas dos caçadores-coletores sobreviventes, vizinhos até certo ponto formavam alianças. Eles participavam de comércio e de trocas de mulheres jovens, mas também de rivalidades e incursões vingativas. Mas o núcleo da existência social de cada indivíduo era o grupo, e a coesão do grupo era garantida pela força aglutinadora da rede que compunha.

Com o surgimento de aldeias e depois das sociedades de chefatura no período Neolítico, em torno de 10 mil anos atrás, a natureza das redes mudou substancialmente. Aumentaram de tamanho e se decompuseram em fragmentos. Esses subgrupos se tornaram sobrepostos e, ao mesmo tempo, hierárquicos e porosos. O indivíduo vivia num caleidoscópio de membros da família, correligionários, colegas de trabalho, amigos e estranhos. Sua existência social se tornou menos estável do que o mundo de caçadores-coletores. Nos países industrializados modernos, as redes atingiram uma complexidade que se mostrou desconcertante para a mente paleolítica que herdamos. Nossos instintos ainda desejam as redes de grupos minúsculos e unidos que prevaleceram durante as centenas de milênios que precederam a aurora da história. Os nossos instintos continuam despreparados para a civilização.

 

Figura 24-1. Na sociedade moderna, as redes sociais, como as ilustradas aqui em parte para 140 estudantes universitários, tornaram-se bem maiores e mais discordantes do que na pré-história e história antiga. A revolução da internet, produzindo organizações como o Facebook, recentemente catapultou as redes para um nível novo. (De Nicholas Christakis e James M. Fowler, Connected: The Surprising Power of Our Social Networks. Nova York: Little, Brown, 2009 [ed. bras.: O poder das conexões. Rio de Janeiro: Campus, 2009].)

 

A tendência provocou confusão na adesão a grupos, um dos impulsos humanos mais poderosos. Somos regidos por um desejo — ou melhor, por uma necessidade irresistível — que começou em nossa ancestralidade primata antiga. Cada pessoa é um compulsivo buscador de grupos, logo um animal intensamente tribal. Satisfaz sua necessidade alternadamente em uma família estendida, uma religião organizada, uma ideologia, um grupo étnico ou um clube esportivo, isoladamente ou em combinação. As possibilidades são vastas. Em cada um de nossos grupos encontramos competição por status, mas também confiança e virtude, os produtos inconfundíveis da seleção de grupo. Nós nos preocupamos. Indagamos a quem neste mundo global mutável de inúmeros grupos sobrepostos devemos prometer nossa fidelidade.

Em meio a isso tudo, nossos instintos permanecem no comando e confusos, mas alguns dentre eles, se tivermos a sensatez de obedecê-los, podem nos salvar. Por exemplo, sentimos empatia. Seguramos nossos impulsos. Uma série de pesquisas recentes tornou possível ver como os impulsos da moralidade poderiam funcionar dentro do cérebro. Um início promissor foi encontrado na explicação da Regra de Ouro, talvez o único preceito encontrado em todas as religiões organizadas. A regra é fundamental a todo raciocínio moral. Quando o grande teólogo e filósofo Rabino Hillel foi desafiado a explicar a Torá no tempo em que conseguia se erguer sobre um só pé, respondeu: “Não faças aos outros aquilo que não gostarias que te fizessem. Essa é toda a Torá, o resto é comentário”.

A resposta poderia igualmente ter sido expressa como “empatia coercitiva”, o que significa que, a não ser que as pessoas sejam psicopatas, automaticamente sentem a dor dos outros. O cérebro, o neurobiólogo Donald W. Pfaff argumenta em The Neuroscience of Fair Play, é um órgão não apenas dividido em grandes partes, mas dividido contra si. O medo primordial desencadeado por estímulos estressantes ou produtores de raiva é uma reação cada vez mais bem entendida nos níveis molecular e celular. Ele é contrabalançado por um bloqueio automático do pensamento indutor do medo quando o comportamento altruísta é apropriado. Inclinando-se para o comportamento hostil e potencialmente violento, o indivíduo se “perde” psicologicamente. No choque das emoções, transfere sua própria identidade um pouco para a outra pessoa.

O cérebro de nossa espécie semelhante a Jano é um sistema supremamente complexo de células nervosas entrecruzadas, hormônios e neurotransmissores. Ele cria processos que alternadamente se reforçam ou cancelam mutuamente, de acordo com o contexto.

O medo em parte é um fluxo de impulsos que passam pela amígdala, a estrutura em forma de amêndoa no cérebro contendo conexões para os circuitos das células nervosas que contribuem, ao mesmo tempo, para o medo, a memória do medo e a supressão do medo. Os sinais que percorrem essas conexões se integram e depois se deslocam para outras partes do cérebro anterior e médio. Parece que, enquanto as emoções do medo vêm da amígdala, pensamentos temerosos mais complexos sobre uma pessoa ou objeto particular causando a emoção vêm dos centros de processamento de informações do córtex cerebral.

Uma segunda pista para a natureza automática da supressão do medo e da raiva foi encontrada nos circuitos do córtex cingulado anterior e na ínsula, que ajudam a mediar a resposta emocional à sensação de dor. Os circuitos afetam não apenas a reação à nossa própria dor, mas também a percepção da dor de outra pessoa.

Pfaff é um cientista eminente que se mostra cauteloso em reunir tais fragmentos de pesquisas recentes do cérebro para criar um quadro geral, mas ele também viu o valor de criar ao menos uma teoria operacional plausível sobre um fenômeno de tão óbvia importância para a compreensão do comportamento humano. O processo de obscurecimento embutido nos circuitos do cérebro, quer desencadeado por medo, tensão mental ou outras emoções, pode explicar um repertório praticamente infinito de opções comportamentais eticamente aceitáveis. Pfaff fornece um exemplo imaginário para ilustrar o processo:

 

A teoria tem quatro passos. No primeiro passo, uma pessoa cogita tomar certa ação em relação a outra. Por exemplo, a sra. Abbott pensa em esfaquear o sr. Besser no estômago. Antes que aconteça, a ação é representada no cérebro do provável autor, como deve acontecer com todo ato. Esse ato terá consequências para o outro indivíduo que o possível autor pode entender, antever e lembrar. Segundo, a sra. Abbott visualiza o alvo de sua ação, o sr. Besser. Em terceiro lugar vem o passo crucial: ela obscurece a diferença entre a outra pessoa e ela própria. Em vez de ver as consequências de seu ato para o sr. Besser, com efeitos terríveis às suas entranhas e sangue, ela perde de vista a diferença mental e emocional entre o sangue e as entranhas do sr. Besser e aqueles dela própria. O quarto passo é a decisão. A sra. Abbott está agora menos propensa a atacar o sr. Besser, porque compartilha seu medo (ou, mais precisamente, compartilha o medo que ele experimentaria se soubesse o que ela estava tramando).

Para o neurocientista, essa explicação de uma decisão ética da esfaqueadora potencial possui uma característica bem atraente: envolve somente a perda de informação, não sua trabalhosa aquisição ou armazenagem. O aprendizado de informações complexas e seu armazenamento na memória são processos deliberados e penosos, mas a perda de informações parece ocorrer sem nenhum problema. A supressão de qualquer um dos muitos mecanismos envolvidos na memória pode explicar o obscurecimento da identidade requerido por essa teoria. No exemplo da sra. Abbott e do sr. Besser, como resultado de um obscurecimento da identidade — uma perda da individualidade —, a atacante temporariamente se põe no lugar da outra pessoa. Ela evita um ato antiético devido ao medo compartilhado.

Se essa explicação da tomada de decisões ética for válida, ela repercutirá na compreensão da seleção de grupo pela biologia evolutiva. Os seres humanos tendem a ser morais — a fazer a coisa certa, se refrear, ajudar os outros, às vezes até correndo risco pessoal — porque a seleção natural favoreceu essas interações dos membros do grupo que beneficiam o grupo como um todo.

Além da origem da empatia instintiva, a seleção de grupo pode, ao menos em parte, ser invocada para explicar a cooperação, um traço ainda mais importante da natureza humana. Em 2002, Ernst Fehr e Simon Gächter enquadraram claramente o problema científico nestes termos:

 

A cooperação humana é um enigma evolutivo. Ao contrário das outras criaturas, as pessoas com frequência cooperam com estranhos sem nenhum vínculo genético, muitas vezes em grandes grupos, com pessoas que nunca mais encontrarão, e quando os ganhos reprodutivos são pequenos ou inexistentes. Esses padrões de cooperação não podem ser explicados com a teoria evolutiva da seleção de parentesco e as motivações egoístas associadas à teoria da sinalização ou a teoria do altruísmo recíproco.

A seleção de parentesco, como observei, não pode ser a solução do paradoxo. Pode-se acreditar que tenha funcionado em grupos de caçadores-coletores primitivos, onde, devido aos pequenos números, o parentesco entre os membros era estreito. Mas análises matemáticas revelaram que a seleção de parentesco em si é inoperável como uma força dinâmica evolutiva. Quando indivíduos com forte parentesco se juntam, aumentando as chances de os cooperadores encontrarem outros cooperadores genéticos, o resultado por si só não promoverá a origem da cooperação. Somente a seleção de grupo, com grupos contendo mais cooperadores contrapostos a grupos com menos cooperadores, resultará numa mudança no nível da espécie para uma cooperação instintiva maior e mais ampla.

Durante a primeira década deste século, biólogos e antropólogos enfocaram intensamente a evolução da cooperação. Concluíram que o fenômeno foi adquirido na pré-história humana por meio de uma mescla de reações inatas. Essas reações incluem a busca de status pelos indivíduos, o nivelamento pelo grupo do status elevado de indivíduos e o impulso para aplicar punição e retaliação aos que se desviam demais das normas do grupo. Cada um dos comportamentos contém elementos tanto de egoísmo como de altruísmo. Todos estão entrelaçados na causa e no efeito e se originaram por seleção de grupo.

O emaranhado de impulsos criado pelo cérebro consciente foi muito bem catalogado por Steven Pinker, em Tábula rasa (2002):

 

As emoções de condecoração dos outros — desprezo, raiva e indignação — levam uma pessoa a punir os trapaceiros. As emoções de louvação dos outros — gratidão e uma emoção que pode ser chamada de sublimidade, admiração moral ou comoção — levam uma pessoa a recompensar os altruístas. As emoções em relação ao sofrimento dos outros — simpatia, compaixão e empatia — levam a pessoa a ajudar um beneficiário necessitado. E as emoções de autoconsciência — culpa, vergonha e constrangimento — levam a pessoa a evitar a trapaça ou a reparar seus efeitos.

A ambivalência e a ambiguidade contínuas são os frutos da estranha herança primata que governa a mente humana. Ser humano é também nivelar os outros, especialmente aqueles que parecem receber mais do que mereceram. Mesmo nas fileiras da elite, jogos delicados são disputados para alcançar um status ainda maior, enquanto se enfrentam as fileiras sucessivas de rivais invejosos. Seja modesto na conduta, sempre modesto, é o estratagema necessário. Um negócio ardiloso, como observou o ensaísta do século xvii François de La Rochefoucauld: “A modéstia se deve ao medo de despertar a inveja e o desprezo merecidos que perseguem aqueles inebriados pela boa sorte. É uma exibição inútil da força da mente; e a modéstia daqueles que alcançam a máxima eminência se deve ao desejo de parecerem ainda maiores que sua posição”.

Também é bom melhorar a reputação pelo que os pesquisadores chamaram de reciprocidade indireta, pela qual uma reputação de altruísmo e cooperação é creditada a um indivíduo, ainda que as ações que a promovam sejam apenas comuns. Um ditado alemão exemplifica a tática: Tue Gutes und rede darüber. Praticar o bem e conversar a respeito. As portas então se abrem, e as oportunidades de amizades e alianças aumentam.

Como todos conhecem o jogo, as pessoas estão sempre dispostas a lhe fazer oposição se o conseguem com segurança. Elas são intensamente sensíveis à hipocrisia e estão sempre dispostas a nivelar aqueles em ascensão cujas credenciais não sejam impecáveis. Todos os niveladores, o que significa quase todo mundo, dispõem de um formidável arsenal. Críticas, piadas, paródias e riso zombeteiro são recursos para enfraquecer os esnobes e ultra-ambiciosos. A depreciação é uma arte baseada na sagacidade, o sal na refeição da conversa, como tem sido referida, onde a excelência deve ser valorizada. Um dos exemplos de depreciação mais conhecidos e possivelmente o mais renomado de todos os tempos é a resposta de Samuel Foote a John Montagu, quarto Earl de Sand­wich, quando advertido de que iria morrer de doença venérea ou na forca. Foote respondeu: “Milorde, isso dependerá de se eu abraçarei vossa amante ou vossa moral”.

Claro que existe muito mais na cooperação humana do que sua eficiência e sua proteção pela desarticulação da presunção. Todas as pessoas normais são capazes do verdadeiro altruísmo. Somos singulares entre os animais no grau em que cuidamos dos doentes e feridos, auxiliamos os pobres, confortamos os enlutados e até arriscamos voluntariamente as nossas vidas para salvar estranhos. Muitos, tendo ajudado outros numa emergência, depois partem sem se identificar. Ou, se ficam, desvalorizam seu heroísmo por uma exibição quase obrigatória de modéstia: “Não fiz nada além do meu dever” ou “Fiz apenas o que esperaria que fizessem por mim”.

O altruísmo autêntico existe, como Samuel Bowles e outros pesquisadores argumentaram. Ele aumenta a força e a competitividade dos grupos e tem sido favorecido durante a evolução humana pela seleção natural no nível do grupo.

Estudos adicionais sugerem (mas ainda não provaram conclusivamente) que o nivelamento é benéfico mesmo para as sociedades humanas mais avançadas. Aquelas que mais oferecem aos seus cidadãos em qualidade de vida — da educação e da assistência médica ao controle da criminalidade e à autoestima coletiva — também possuem o menor diferencial de renda entre os cidadãos mais ricos e os mais pobres. Entre os 23 países e estados americanos individuais mais ricos do mundo, de acordo com uma análise de 2009 de Richard Wilkinson e Kate Pickett, o Japão, os países nórdicos e o estado norte-americano de New Hampshire registram o menor diferencial de riqueza e a maior qualidade de vida média. Nas piores colocações estão Reino Unido, Portugal e o restante dos Estados Unidos.

As pessoas obtêm um prazer visceral em mais do que apenas nivelar e cooperar. Elas também gostam de ver a punição aplicada aos que não cooperam (parasitas, criminosos) e mesmo àqueles que não contribuem em níveis proporcionais à sua posição (os ricos ociosos). O impulso por derrubar os perversos é plenamente satisfeito pelas denúncias nos tabloides e pelo noticiário de crimes. Parece que as pessoas não desejam apenas ver os malfeitores e vagabundos punidos. Elas também estão dispostas a participar na aplicação da justiça — ainda que a um custo para elas próprias. Repreender um colega motorista que avançou o sinal vermelho, denunciar práticas ilícitas de seu empregador, dedurar um criminoso à polícia: muitos prestarão tais serviços ainda que não conheçam o canalha pessoalmente e se arrisquem a pagar um preço por seu ato de cidadania, no mínimo perder seu tempo.

No cérebro, a aplicação de tal “punição altruísta” excita a ínsula anterior bilateral, um centro do cérebro também ativado pela dor, pela raiva e pela indignação. Seu benefício para a sociedade é mais ordem e menos desvio de recursos do patrimônio público. Não resulta de uma deliberação racional por parte do altruísta. Ele pode de início incluir em suas reflexões o impacto derradeiro sobre si e sua família. O altruísmo autêntico se baseia num instinto biológico pelo bem comum da tribo, posto em marcha pela seleção de grupo, em que grupos de altruístas na época pré-histórica prevaleceram sobre grupos de indivíduos em desordem egoísta. A nossa espécie não é Homo oeconomicus. Ao final do dia, ela emerge como algo mais complicado e interessante. Somos Homo sapiens, seres imperfeitos, batalhando contra impulsos conflitantes em um mundo imprevisível e implacavelmente ameaçador, fazendo o melhor com aquilo que temos.

E, além dos instintos comuns do altruísmo, existe algo mais, de caráter delicado e efêmero, mas transformador quando experimentado. Refiro-me à honra, um sentimento surgido da empatia e da cooperação inatas. É a reserva final de altruísmo que poderá ainda salvar nossa raça.

Claro que a honra é uma faca de dois gumes. Um lado da lâmina é devoção e sacrifício na guerra. Essas reações surgem do instinto de grupo primordial de confrontar um inimigo visto como uma ameaça ao grupo e se defender dele. O estado de espírito gerado foi captado perfeitamente pelo jovem poeta inglês Rupert Brooke, em 1914, antes que a Primeira Guerra Mundial descambasse em sua indizível tragédia e ele fosse morto.

 

Soai, clarins, soai! Eles nos trouxeram, para nossa carência,

Santidade, que tanta falta nos fez, e Amor, e Dor.

A Honra retornou, como um rei, à terra,

E pagou aos seus súbitos a recompensa real;

E a Nobreza voltou a trilhar nossos caminhos;

E herdamos a nossa herança.

 

O outro gume da mesma faca é a honra do indivíduo lançada contra a multidão e, às vezes, contra um preceito moral predominante ou mesmo a própria religião. Foi expresso com elegância pelo filósofo Kwame Anthony Appiah, em The Honor Code: How Moral Revolutions Happen (2010), na seguinte descrição da resistência de indivíduos e grupos minoritários contra a injustiça organizada:

 

Vocês podem perguntar o que a honra faz nessas histórias que a moralidade por si não faz. Uma compreensão da moralidade impedirá que soldados abusem da dignidade humana de seus prisioneiros. Fará com que desaprovem os atos daqueles que abusam. E permitirá que mulheres vítimas de abusos odiosos saibam que seus agressores merecem punição. Mas é preciso uma sensação de honra para fazer com que um soldado vá além de fazer o certo e condenar o errado e insista que se faça algo, quando outros do seu lado fazem coisas perversas. É preciso uma sensação de honra para se sentir implicado nas ações dos outros.

E é preciso uma sensação de sua própria dignidade para insistir, contra tudo e contra todos, em seu direito à justiça numa sociedade que raramente a oferece a mulheres como você; e uma sensação da dignidade de todas as mulheres para reagir ao seu próprio estupro brutal não apenas com indignação e um desejo de vingança, mas com determinação para mudar seu país, de modo que as mulheres sejam tratadas com o respeito que você sabe que merecem. Fazer tais opções é viver uma vida de dificuldade, às vezes até de perigo. É também, e não por acaso, viver uma vida de honra.

A compreensão naturalista da moralidade não leva a preceitos absolutos e julgamentos infalíveis, mas alerta contra baseá-los cegamente na religião ou em dogma ideológico. Quando tais preceitos são equivocados, o que é comum, geralmente estão baseados na ignorância. Algum fator importante foi involuntariamente omitido durante a formulação. Vejamos, por exemplo, a proibição papal da contracepção artificial. A decisão foi tomada — com boas intenções — por uma pessoa, Paulo vi, em sua encíclica de 1968, Humanae Vitae. A razão que deu parece à primeira vista inteiramente razoável. Deus, ele afirmou, pretende que a relação sexual se limite ao propósito de conceber filhos. Mas a lógica de Humanae Vitae está errada. Deixa de fora um fato vital. Uma abundância de indícios da psicologia e da biologia reprodutiva, grande parte obtida desde a década de 1960, revelou que existe um propósito adicional da relação sexual. As mulheres humanas possuem a genitália externa oculta e não anunciam o cio, diferindo assim das fêmeas das outras espécies de primatas. Tanto homens como mulheres, quando mantêm uma ligação, praticam relações sexuais contínuas e frequentes. A prática costuma ser adaptativa: assegura que a mulher e seu filho tenham a ajuda do pai. Para a mulher, o compromisso assegurado pela relação sexual não reprodutiva agradável é importante, até vital em muitas circunstâncias. As crianças humanas, para adquirirem cérebros grandes e organizados com alta inteligência, precisam passar por um período singularmente longo de dependência durante seu desenvolvimento. A mãe não pode contar com o mesmo nível de apoio da comunidade, mesmo em sociedades caçadoras-coletoras coesas, que obtém de um parceiro com quem mantenha um vínculo sexual e emocional.

Um segundo exemplo de ética dogmática equivocada por falta de conhecimentos é a homofobia. O raciocínio básico é o mesmo da oposição à contracepção artificial: o sexo que não visa a reprodução deve ser uma aberração e pecado. Mas uma abundância de indícios aponta para o contrário. A homossexualidade empenhada, com a preferência aparecendo na infância, é hereditária. Isso significa que o traço nem sempre é fixo, mas parte da probabilidade maior de uma pessoa se tornar um homossexual é determinada por genes que diferem daqueles que levam à heterossexualidade. Descobriu-se ainda que a homossexualidade influenciada pela hereditariedade ocorre em populações no mundo inteiro com uma frequência grande demais para se dever somente a mutações. Geneticistas da população usam uma regra prática para explicar a abundância nesse nível: se um traço não pode ser atribuído somente a mutações aleatórias, mas reduz ou elimina a reprodução naqueles que o possuem, então esse traço deve ser favorecido pela seleção natural visando outra espécie de alvo. Por exemplo, uma dose baixa de genes de tendência homossexual pode dar vantagens competitivas a um heterossexual praticante. Ou a homossexualidade pode dar vantagens ao grupo mediante talentos especiais, qualidades incomuns de personalidade e os papéis e profissões especializados que gera. Existe uma abundância de indícios de que esse é o caso nas sociedades pré-letradas e modernas. De qualquer modo, as sociedades se equivocam ao desaprovarem a homossexualidade porque os gays têm preferências sexuais diferentes e se reproduzem menos. Pelo contrário, sua presença deveria ser valorizada por suas contribuições construtivas à diversidade humana. Uma sociedade que condena a homossexualidade prejudica a si mesma.

Existe um princípio a ser aprendido do estudo das origens biológicas do raciocínio moral. É que, afora os preceitos éticos mais claros, como a condenação da escravidão, abusos das crianças e genocídio, que todos concordam que devem ser combatidos em toda parte sem exceção, existe um domínio indeterminado maior intrinsecamente difícil de navegar. A declaração de preceitos e julgamentos éticos sobre esse domínio requer uma compreensão plena de por que nos importamos com essa questão, e isso inclui a história biológica das emoções envolvidas. Essa investigação não foi realizada. Na verdade, raramente chega a ser imaginada.

Com uma autocompreensão maior, como nos sentiremos sobre a moralidade e a honra? Não tenho dúvida de que em muitos casos, talvez na grande maioria deles, os preceitos compartilhados por quase todas as sociedades hoje resistirão ao teste do realismo baseado na biologia. Outros, como a proibição da contracepção artificial, a condenação da preferência homossexual e os casamentos forçados de meninas adolescentes, não resistirão. Qualquer que seja o resultado, parece claro que a filosofia ética se beneficiará de uma reconstrução de seus preceitos baseada na ciência e na cultura. Se essa compreensão maior corresponde ao “relativismo moral” tão fervorosamente desprezado pelos fanáticos, não se pode fazer nada.