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FORMAS DE GOVERNO II
Os Estados que substituíram o Império Romano no Ocidente eram muito primitivos. A base do Estado consistia em o rei, um antigo chefe guerreiro, dar terras aos seus seguidores, e, em troca, os seguidores ficarem obrigados a proporcionar-lhe uma força de combate. O rei obtinha o seu exército, portanto, sem impostos ou qualquer mecanismo elaborado de governo. A terra possuída a tal título veio a chamar-se feudo, e de feudo deriva a palavra feudal.
Os monarcas feudais, tão fortemente dependentes do que os grandes terratenentes seus súbditos podiam fornecer, eram por isso monarcas fracos. Teoricamente, mantinham o controlo das terras que alocavam, mas, na prática, a terra tornava-se propriedade privada e passava a ser transmitida de pai para filho. Os grandes proprietários deviam vassalagem ao rei, mas estavam em boa posição para o desafiar ou ignorar. Possuíam uma força armada a que o rei podia apelar, mas essa mesma força podia ser usada contra o rei ou impedir que um rei os submetesse. Viviam em castelos, onde podiam defender-se de adversários e do seu soberano. Por essa altura, houve uma mudança na natureza dos exércitos. No mundo antigo da Grécia e de Roma, os soldados de infantaria constituíam a base do exército; agora, o núcleo eram os homens a cavalo. O estribo, invenção que chegou à Europa vinda do Oriente, tornou o homem a cavalo muito mais formidável. Um homem numa sela com os pés nos estribos estava mais firmemente montado e era muito mais difícil a um soldado de infantaria derrubá-lo, porque podia combinar a sua força e peso com os do cavalo, operando como uma unidade. Um homem a cavalo lançado a galope e empunhando uma lança era uma máquina de guerra muito poderosa. Os homens a cavalo eram chamados cavaleiros, ou então, cavaleiros aprendizes ou escudeiros. Os grandes terratenentes – os senhores – deviam fornecer determinada quantidade de cavaleiros para o serviço do rei.
Juramentos pessoais de vassalagem ligavam cada senhor ao rei. O senhor prestava vassalagem ajoelhando e erguendo as mãos postas; o rei segurava-as entre as suas, e o senhor prometia ser um homem do rei e servi-lo. Jurada vassalagem, o súbdito erguia-se, e súbdito e rei, ambos em pé, beijavam-se. Este era um ritual tanto de subserviência como de igualdade, que traduzia a natureza da relação: o súbdito prometia ser leal enquanto o rei o protegesse. No início da monarquia na Europa ocidental havia um contrato implícito entre governante e governado, uma ideia que nunca morreu completamente.
As mãos postas são a posição que identificamos com a oração, mas, nos primeiros tempos, os cristãos oravam de pé, com os braços estendidos e virados para o Oriente, de onde Cristo regressaria na Sua glória. A nossa pose de oração imita o ritual de vassalagem ao nosso senhor terreno. Não é pacífica a origem deste ritual e a natureza da relação que traduzia: seria germano ou romano? Na sociedade romana, mesmo no seu apogeu, um jovem que quisesse ter futuro precisava de um patrono, e, à medida que o império enfraquecia, aumentou o número dos que começaram a procurar um braço forte que os protegesse. Mas o ritual das mãos e dos beijos era germânico – tinha que ver com a relação criada entre os guerreiros e o seu chefe.
O conceito de Estado separado das pessoas que o administram desapareceu. Quando o rei morria, todos os grandes súbditos tinham de jurar vassalagem ao novo rei. Só então o território adquiria novo governo. Como o governo era um vínculo pessoal, o rei podia dividir o território entre os seus filhos, como o rei Lear fez na peça de Shakespeare e como Carlos Magno fez na vida real, apesar de todos os esforços feitos para unificar o império. Novos governos eram criados mediante nova série de juramentos de vassalagem. A continuidade estava na linha de sangue, não nas terras do reino. Um imperador romano nunca teria pensado que fosse possível dividir um império e distribuí-lo pelos filhos. A sua obrigação era manter o império unido. Quando o império foi dividido entre o Ocidente e o Oriente, foi para que melhorassem a administração e a defesa.
Por serem tão fracos, os monarcas feudais viam-se obrigados a procurar o conselho dos poderosos do seu país. Não tinham um exército sob o seu total controlo ou um sistema de impostos ou funcionalismo público, por isso, antes de tomarem decisões, reuniam as pessoas importantes para obter o seu conselho e concordância. Este sistema de obter conselho foi formalizado quando os três estados – clero, nobreza e povo – se reuniram num parlamento.
«Estado» não tem aqui o sentido de administração; estado na Idade Média significava um grupo de pessoas. Estas sociedades feudais viam-se como grupos de pessoas: o clero, cujo dever era rezar; a nobreza, cujo dever era combater; e o povo, ou seja, todos os restantes indivíduos que faziam o trabalho da sociedade, ganhavam dinheiro e labutavam. «Estados» é coisa muito diversa de classes. As classes têm uma relação comum com a economia, mas estes grupos – clero, nobreza e povo – eram identificados pela função: orar, combater, trabalhar. Havia entre eles diferenças enormes quanto à riqueza e às tarefas que desempenhavam no âmbito da economia. O clero podia incluir – e incluía – arcebispos e bispos muito ricos, bem como o padre da paróquia local, que era um homem pobre. A nobreza incluía os grandes e abastados terratenentes do país e também alguns nobres empobrecidos. O povo incluía os grandes comerciantes e banqueiros, gente muito rica, mais rica do que alguns nobres, e que eram os empregadores do restante povo. Eram os membros do povo mais ricos e com propriedades que enviavam representantes ao parlamento, não os trabalhadores e operários, que eram servos em semiescravatura.
Em França, havia três câmaras de parlamento, que eram conhecidas como Estados Gerais. Numa sentavam-se os representantes do clero, noutra, da nobreza, e os representantes do povo, na terceira. Em Inglaterra, o clero, representado por arcebispos e bispos, e a nobreza reuniam em conjunto, na Câmara dos Lordes; o povo tinha a Câmara dos Comuns. Estes nomes sobrevivem no parlamento inglês moderno, que, com a monarquia, tem a sua origem nos tempos medievais. A Inglaterra é hoje uma democracia, mas tornou-se uma democracia quando permitiu que toda a gente votasse para a Câmara dos Comuns, limitando o poder dos lordes e transformando o monarca numa figura decorativa. Mas esta não é uma democracia que a democracia ateniense da época clássica pudesse reconhecer.
Os parlamentos medievais não eram formalmente parte do governo; reuniam quando o monarca tinha necessidade deles. A sua principal competência não era legislar; eram convocados quando o monarca precisava de receita suplementar. A partir de uma base muito baixa, os reis construíram gradualmente o seu poder. Dispunham dos rendimentos das suas terras e podiam cobrar impostos regularmente; mas quando as despesas aumentavam, sobretudo devido a guerra, necessitavam de coletar impostos especiais, e, por isso, o parlamento era reunido para os aprovar. O parlamento tinha, então, oportunidade para expor reivindicações, e eram aprovadas algumas leis novas, por iniciativa dos ministros do rei ou dos membros do parlamento.
À medida que as cidades cresciam durante a Idade Média desenvolveu-se uma nova forma de organização política. As cidades eram administradas por conselheiros que eram eleitos e que, por sua vez, elegiam um presidente. Os monarcas medievais eram tão fracos que, quando as cidades cresceram, nem tentaram administrá-las diretamente, permitindo antes que as cidades se autogovernassem, em troca da sua vassalagem e do pagamento de impostos e tributos. O conselho da cidade era um corpo de pares, e o juramento que prestavam era de uns para com os outros. Era um mundo muito diferente do de senhores e súbditos, instituído em todos os outros casos. Um presidente e um conselho, como órgãos eleitos, administrando a cidade dentro de um reino, eis uma invenção europeia. Monarcas fortes não permitiriam que se desenvolvessem centros de poder concorrentes, mas antes colocariam os seus homens ao leme das cidades. Na Europa, à medida que aumentavam a sua riqueza, comerciantes, banqueiros e donos de manufaturas tornaram-se os mais poderosos, devido ao seu estatuto de semi-independência. Na sua batalha para dominarem os grandes senhores rurais, os monarcas viriam a apoiar-se neles e nas suas fortunas (de onde colhiam, mediante impostos ou empréstimos). Também essa foi uma evolução muito invulgar.
Os monarcas fracos entraram em conflito com os nobres e em polémica com os parlamentos; nos tempos modernos, desde cerca de 1400, os monarcas começaram a ganhar supremacia. Os monarcas feudais estavam a tornar-se no que chamamos monarcas absolutos, deixando de depender dos respetivos parlamentos. Não chegaram a abolir os parlamentos, mas não se davam ao incómodo de os convocar. Tinham encontrado uma nova forma de angariar dinheiro. Os reis franceses vendiam cargos oficiais: quem quisesse ser cobrador da alfândega, pagava ao rei uma grande quantia à cabeça, que depois recuperava através das taxas cobradas aos comerciantes. Os reis espanhóis tinham a cascata de lucros do ouro do Novo Mundo – do México e do Peru.
«Absoluto» pode ser uma palavra enganadora. Não significa que os monarcas europeus pudessem fazer o que lhes apetecia. Não eram tiranos, tinham de fazer cumprir a lei em processos regulares, e assegurar que era administrada justiça aos seus súbditos – embora, quando a segurança do Estado estava em questão, tivessem os seus próprios e mais sumários tribunais para lidar com clientes mais difíceis. Promoviam a ideia de que os reis eram agentes de Deus na terra e deviam ser obedecidos, uma reivindicação mais ambiciosa do que a feita pelos primeiros reis, mas também eles ficavam condicionados por esta fórmula, pois sabiam que seriam julgados por Deus pela forma como tinham governado. Eram seguramente mais grandiosos e distantes do que os monarcas feudais. O ritual dos beijos recíprocos entre o rei e os súbditos já não acontecia: agora, eles ajoelhavam-se perante o rei, que poderia estender a mão para permitir que fosse beijada.
Os monarcas usavam os seus fundos para pagar os seus exércitos. Eram agora exércitos de soldados de infantaria. No final da Idade Média, foram desenvolvidas novas armas capazes de derrubar os cavaleiros das suas montadas: o arco longo e o pique. A Inglaterra desenvolveu o arco, uma arma mais poderosa do que a besta, e, com ele, os arqueiros ingleses conseguiam furar as armaduras dos homens montados e derrubá-los dos cavalos. Os franceses começaram por considerar tal arma desonrosa e recusaram-se a adotá-la. Como as tropas que haviam de avançar contra metralhadoras durante a Primeira Guerra Mundial, os cavaleiros franceses avançavam contra os arcos e eram dizimados. Não foi preciso muito tempo para que também os monarcas franceses recorressem aos seus próprios arqueiros. Os suíços desenvolveram o pique, que era uma lança comprida e pesada: marchava-se com ela ao ombro e, em combate, um quadrado de infantaria cravava os piques e apontava-os para fora, para que os cavaleiros atacantes fossem derrubados dos cavalos, ou os cavalos trespassados pelos piques.
Uma vez dotados dos seus próprios exércitos, os monarcas passaram a poder usá-los contra os seus súbditos – contra grandes senhores que desafiassem o rei ou camponeses pobres que se recusassem a pagar impostos. O advento da pólvora na Europa durante a Idade Média ajudou o rei a controlar os súbditos poderosos. O exército tinha capacidade para disparar balas de canhão contra muralhas de castelos, e destruí-las.
A Europa voltara à normalidade e os governos governavam realmente. Mas o início peculiar dos reis sujeitos aos governados ainda se fazia sentir, porque, em Inglaterra, o parlamento sobreviveu e fortaleceu-se, e, em França, um monarca foi forçado a ressuscitar os Estados Gerais, que não eram convocados há 175 anos.
Na Europa continental, estando os monarcas regularmente em guerra, os reis tinham fortes motivos para mobilizar exércitos. Mas para defender a Inglaterra, o rei precisava mais de uma marinha do que de um exército, e uma marinha não podia ser utilizada para controlar os inimigos domésticos do rei. Em Inglaterra, um rei que quisesse manter um grande exército seria considerado uma ameaça às liberdades inglesas. Isto tornava mais difícil para os reis ingleses formar uma força que pudesse, se necessário, ser virada contra os súbditos. Ainda assim, os monarcas ingleses do século XVII procuraram tornar-se monarcas absolutos, segundo os termos europeus.
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Os reis que o tentaram pertenciam à dinastia Stuart, cujas origens eram escocesas. Quando a rainha Isabel, a Rainha Virgem, morreu em 1603, o trono passou para Jaime VI da Escócia, que se tornou, além disso, Jaime I de Inglaterra. Todos os Stuart seus herdeiros governaram os dois reinos.
Jaime I, o seu filho, Carlos I, e os seus bisnetos, Carlos II e Jaime II, todos eles se incompatibilizaram com o parlamento. Foi muitas vezes com punho de ferro que lidaram com ele, mas a realidade é que defrontavam um verdadeiro problema. Precisavam de mais receita, mas quando tentavam que o parlamento aumentasse a coleta o parlamento exigia maior controlo sobre a política do rei. Muito naturalmente, o rei resistia à intromissão parlamentar e tentava encontrar outras formas de recolher dinheiro, para não ter de voltar a recorrer ao parlamento. O que suscitava, é claro, mais desconfiança por parte do parlamento, porque o rei parecia capaz de fazer o que os monarcas da Europa faziam: ignorar completamente o parlamento. Mas o que incendiou tais conflitos, ao ponto de os homens estarem dispostos a arriscar a vida pela causa parlamentar, foi a religião. Os reis Stuart ou eram católicos, ou casados com católicos, ou não suficientemente protestantes aos olhos dos seus súbditos protestantes.
A Inglaterra tornara-se um país protestante durante a Reforma, mas não à maneira da Alemanha, onde a Reforma começara. Não houve um Lutero em Inglaterra. A Inglaterra deu o primeiro passo em direção ao Protestantismo por ação de um rei, Henrique VIII, famoso como o rei das seis mulheres. A sua primeira mulher era católica, mas não conseguiu o que mais exigiam dela: que gerasse um herdeiro varão. A solução normal para tal dificuldade seria que o papa encontrasse razões para a anulação do casamento. Mas o papa tinha bons motivos para não querer ofender a família da rainha, que governava a Espanha. Por isso, em 1534, Henrique decretou que o chefe da Igreja Católica de Inglaterra era ele próprio, e não o papa. E nomeou um arcebispo que teria como missão anular o seu casamento com Catarina e casá-lo com Ana Bolena. Depois dele, a Igreja de Inglaterra (hoje assim chamada) tornar-se-ia cada vez mais protestante, embora mantendo alguns rituais católicos, bispos e arcebispos. O que indispôs os mais zelosos dos protestantes – os puritanos – que desejavam uma reforma completa da Igreja.
Jaime I resistiu às exigências dos puritanos, mas prestou-lhes um grande serviço ao autorizar uma nova tradução da Bíblia. A versão do rei Jaime, elegante e, no entanto, jovial, seria a Bíblia dos ingleses durante os três séculos seguintes. Carlos I, filho de Jaime, preferiu em teologia e ritual o que hoje é conhecido como alto anglicanismo, que era para muitos protestantes, e não apenas os puritanos, demasiado próximo de Roma. Carlos causou grande ofensa ao impor as suas opiniões à Igreja de Inglaterra, a igreja oficial e institucional de que era chefe. Ele próprio não era católico, mas a sua rainha era, e foram feitas diligências especiais para que tivesse o seu padre privativo, que celebrava missa na corte.
Carlos depressa se viu num impasse com o parlamento, e durante onze anos governou sem ele, o que estava autorizado a fazer, visto o parlamento só poder reunir por ordem do rei. Com prudência, talvez pudesse ter arranjado maneira de nunca mais convocar o parlamento, mas, estupidamente, tentou impor o seu método preferido de adoração ao povo do outro reino, a Escócia, que era mais protestante e mais temível. Os escoceses lançaram um exército contra Inglaterra para forçar Carlos a desistir da ideia. Para dar combate aos escoceses, Carlos necessitava de um exército e foi, portanto, obrigado a convocar o parlamento para aplicar os impostos que o pagassem. O parlamento viu, assim, chegada a sua oportunidade, e procurou limitar os poderes do rei sobre a Igreja e o Estado, e aumentar os seus próprios poderes. Mandou executar o primeiro-ministro de Carlos e o arcebispo de Cantuária, um alto anglicano. Carlos ficou, a princípio, à mercê do parlamento, mas conseguiu mobilizar em seu apoio o partido realista. E parlamentaristas e realistas entraram em guerra. O parlamento ganhou a guerra, e o seu general, Oliver Cromwell, organizou o julgamento e a execução do rei em 1649. Em seguida, Cromwell governou no lugar do rei. Reuniu o parlamento, entrou em divergência com ele e durante o seu tempo de vida, a Inglaterra foi, na realidade, uma ditadura militar. Quando morreu, um dos seus generais voltou a convocar o parlamento, que convidou o filho de Carlos a regressar do exílio e a assumir o trono.
Carlos II iniciou o seu reinado sem mudanças formais nos poderes do rei e do parlamento, embora a execução do seu pai fosse sempre uma advertência para não levar as suas pretensões longe de mais. O catolicismo atraía-o e viria a tornar-se católico no leito de morte. Não tinha filhos da rainha, embora tivesse muitos da amante. Sucedeu-lhe o seu irmão, Jaime, que era declaradamente católico. O parlamento tentou aprovar leis que o excluíssem do trono, mas o rei respondeu dissolvendo o parlamento. Sem parlamento não podia aumentar os impostos. Essa dificuldade, ultrapassou-a recebendo secretamente fundos do rei absoluto de França, Luís XVI, que, para tornar a França inteiramente católica, abandonou a tolerância antes concedida aos protestantes. Milhares deles fugiram do país. O protestantismo estava sob ataque em França, em 1685, no exato momento em que a Inglaterra protestante tinha um rei católico: Jaime II.
Apesar de saber que não era querido, Jaime II não agiu com prudência. Promoveu abertamente o catolicismo, que tinha como a fé verdadeira. Depois de todos os problemas da guerra civil inglesa e da ditadura militar que se lhe seguiu, muitos parlamentares pareciam conformados a suportar Jaime. Foi quando a rainha, a segunda mulher, católica, gerou um herdeiro varão. Secretamente, os parlamentares convidaram um governante protestante a entrar em Inglaterra com o exército e a tomar o trono. Foi Guilherme de Orange, um holandês, casado com Maria, uma das filhas de Jaime de sua primeira mulher, protestante. Guilherme era um campeão da causa protestante na Europa e travou várias batalhas para defender o seu país de Luís XVI.
A traição do parlamento correu bem. O vento soprou de feição e Guilherme fez uma rápida travessia do canal da Mancha. Logo que pôs o pé em terra, quase todas as tropas de Jaime desertaram e se passaram para o inimigo. Jaime fugiu para a Irlanda, o que foi muito conveniente, porque assim o parlamento não teve de julgá-lo nem cortar-lhe a cabeça. Limitou-se a declarar o trono vago, e instalou Guilherme e Maria como monarcas conjuntos.
Os poderes do rei e do parlamento foram redefinidos pelo parlamento, que só nesta condição concedeu o trono a Guilherme e Maria. O documento que reescreveu a constituição foi chamado Bill of Rights (Relação de Direitos) e é uma mistura de direitos do parlamento e direitos dos indivíduos:
Direitos dos indivíduos
Cada sujeito tem o direito de petição junto do monarca (Jaime punira religiosos que lhe tinham dirigido uma petição contra a sua política religiosa).
Não deverá ser exigida caução, nem impostas multas excessivas.
Não deverão ser infligidas punições cruéis e invulgares.
Os protestantes terão direito de porte de armas.
Os juízes não devem ser dispensados pela coroa.
Por padrões modernos trata-se de uma lista limitada de direitos individuais, mas foi o documento fundador de todas as subsequentes declarações de direitos. A Bill of Rights americana inclui até a mesma expressão «punições cruéis e invulgares».
Direitos do parlamento
O parlamento deve ser convocado regularmente.
O rei não pode suspender leis ou deixar de as implementar (Jaime fizera ambas as coisas com as leis contra os católicos).
Só o parlamento pode aprovar impostos (Jaime, como os seus predecessores, lançara impostos com base na autoridade real).
Nenhum exército regular pode ser mantido em tempo de paz sem autorização do parlamento (Jaime criara um exército).
O rei não pode instituir os seus próprios tribunais (Jaime instituíra tribunais para reforçar o seu controlo sobre a Igreja).
O rei e os seus ministros não deverão interferir na eleição dos membros do parlamento (Jaime tentara organizar a eleição de um parlamento com simpatia pelas suas posições).
Os membros do parlamento deverão poder falar livremente no parlamento, sem temor de ação legal (aquilo a que hoje se chama privilégio parlamentar).
O parlamento fizera, portanto, de si próprio parte integrante da constituição. E tudo sem ter corrido uma gota de sangue. Este golpe do parlamento ganhou o nome de «Revolução Gloriosa». Ao rei eram ainda deixados poderes consideráveis: escolher ministros, dirigir as políticas, celebrar tratados, declarar a guerra. Mas, uma vez que os monarcas só podiam obter receita mediante aprovação do parlamento, tinham de escolher os ministros que gozassem de apoio do parlamento. Com o tempo, esta limitação conduziu ao sistema que vigora na Inglaterra e em todos os países que seguiram o estilo de Westminster: o monarca ou o seu representante é oficialmente responsável, mas em todos os assuntos está obrigado a seguir o conselho de ministros responsáveis perante o parlamento.
Guilherme e Maria não tiveram filhos. Ana, irmã de Maria e filha de Jaime II, sucedeu-lhes e não deixou filhos sobrevivos. O parlamento determinou, então, quem seria o próximo rei. Ignorando muitos descendentes católicos da dinastia Stuart com fortes direitos, escolheu Sofia, eleitora de Hanôver, na Alemanha, e neta de Jaime I, que era protestante. Ana e os seus herdeiros seriam a nova dinastia real. O parlamento encontrara o monarca que queria. Quando Ana morreu, também Sofia já morrera, por isso, a coroa passou para seu o filho Jorge, que não falava inglês e passava a maior parte do tempo em Hanôver.
Ao concretizar estas diligências, o parlamento estabeleceu duas importantes cláusulas que ainda hoje fazem parte da constituição inglesa:
O monarca tem de ser protestante, membro da Igreja de Inglaterra, e não casado com um católico.
O monarca nomeia juízes, que só podem ser afastados por voto de ambas as câmaras do parlamento.
A Bill of Rights garantiu que o parlamento – a legislatura – era uma parte importante, permanente e independente do sistema de governo. A independência dos juízes ficava a salvo do executivo – o rei e os seus ministros –, que os nomeava. O Estado foi cristalizado como protestante, qualidade tida como garantia das liberdades. O protestantismo era, no seu início, um aval da liberdade individual, porque era uma contestação da autoridade de papas e bispos e uma promoção da consciência e experiência individuais. Em Inglaterra, estava ainda mais interligado com a liberdade porque os inimigos de Inglaterra – os monarcas absolutistas de França e Espanha – eram católicos, e os reis ingleses que tentaram ignorar o parlamento ou eram católicos ou tidos como demasiado lenientes com o catolicismo. Preservar o parlamento e preservar a fé protestante tornaram-se uma só causa.
Foi por estas vias que a aristocracia e os senhores terratenentes de Inglaterra, que compunham o parlamento, estabeleceram os mecanismos institucionais de um Estado liberal. Não inteiramente liberal, porque tinha por base a hostilidade aos católicos, nem construído mediante a adoção dos princípios liberais. O parlamento sempre declarou que estava apenas a preservar os antigos direitos e liberdades. Tinha sido durante as longas batalhas com os reis que os parlamentares haviam compreendido o que era necessário para dar xeque-mate a um rei mais propenso a agir como os monarcas absolutos do continente: obrigá-lo a convocar o parlamento, impedi-lo de lançar impostos sem o parlamento, impedi-lo de controlar os tribunais. Os princípios gerais tornavam-se claros depois de conseguida a vitória.
Fora o filósofo inglês John Locke quem formulara os princípios liberais que sustentaram o golpe parlamentar. O seu livro, Dois Tratados de Governo, foi publicado em 1690, logo após a revolução. Inspirado na ideia romana de direito natural, Locke argumentava que os homens têm determinados direitos naturais à vida, liberdade e propriedade, e que, ao formar governos, celebram um contrato: conferem poder aos governos para que os seus direitos possam ser defendidos. Mas se esses direitos não forem protegidos, o povo tem direito a depor esse governo e a formar outro. A natureza divina dos reis, a obrigação dos súbditos de obedecer, tudo isso foi varrido e a governação transformada numa transação de natureza comercial. Mas o filósofo não foi o primeiro a fazer da governação um contrato: isso mesmo estivera implícito na relação entre os monarcas feudais e os seus súbditos e, enquanto os parlamentos continuaram a existir, mesmo que apenas nas mentes dos homens, continuou a sobreviver a ideia de governar com os súbditos e não contra eles. Em Inglaterra, o livro de Locke justificou o que acontecera no passado e já não era revolucionário. Mais tarde, daria aos rebeldes americanos e franceses a justificação para se revoltarem e a linguagem de direitos com que definiram uma nova ordem.
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A Revolução Francesa começou por ter como objetivo a criação de uma monarquia constitucional como a de Inglaterra. Os reformistas tiveram a sua oportunidade porque em 1780 o monarca estava à beira da bancarrota. Luís XVI contratou ministros das finanças reformistas que planearam tornar o sistema de impostos mais equilibrado, mais justo e mais eficiente. A mudança mais espetacular foi que a nobreza deveria, pela primeira vez, pagar impostos à mesma taxa de toda a gente. Até aí pagavam menos no pressuposto de que já contribuíam para o Estado dispondo-se a combater em sua defesa, eles e os seus homens. Essa já não era a forma como o monarca obtinha as suas forças armadas, mas a nobreza opôs-se a essa medida da reforma fiscal. Os monarcas absolutos marginalizaram a nobreza para criarem um Estado que controlassem, mas não a tinham eliminado. Os nobres gozavam de enorme prestígio e ocupavam cargos importantes nos tribunais (a eles cabia registar os decretos reais), na corte do rei e no exército. Quando lhes foi exigido que pagassem mais impostos, protestaram energicamente e, estranhamente, ganharam apoio popular na resistência contra um ataque «tirânico» a um direito antigo – o que mostra como o absolutismo era, afinal, limitado. Um rei mais ousado e decidido do que Luís poderia ter insistido e imposto a mudança. Ao contrário, Luís acolheu o conselho de todas as partes segundo o qual só com a autoridade do parlamento poderia ser instituído um novo sistema fiscal. E assim, após um hiato de 175 anos, os Estados Gerais foram convocados.
De imediato, deflagrou feroz polêmica sobre como deveriam reunir. Cada ordem ou estado tinha a respetiva câmara no parlamento: clero, nobreza e povo (ou terceiro estado, como era chamado em França). Antes que fosse adotada qualquer medida, os três estados tinham de concordar sobre ela. Os líderes do terceiro estado, na maioria advogados, sabiam que as hipóteses de dar uma nova constituição a França seriam escassas se tivessem de obter o acordo da nobreza e do clero. Exigiram que as três câmaras reunissem e votassem em conjunto, e que, como resultado do seu número, labor e riqueza, o terceiro estado tivesse o dobro do número de representantes. O rei começou por recusar qualquer alteração à antiga maneira de reunir. Depois, cedeu parcialmente e, como era costume em Luís, só piorou as coisas: concordou em duplicar o número de representantes do terceiro estado, mas as três câmaras teriam de reunir separadamente. É claro que, enquanto o fizessem, seria inteiramente irrelevante o número de representantes do terceiro estado: tudo o que propusessem poderia ser vetado pela nobreza ou pelo clero.
A polémica prosseguiu quando os Estados Gerais reuniram em 1789. O terceiro estado proclamou-se a verdadeira Assembleia Nacional e convidou as outras ordens a juntarem-se-lhe. Um dia, ao chegarem ao local da reunião no palácio real de Versalhes, encontraram as portas fechadas.
As portas só estavam fechadas porque a sala ia ser pintada, mas os delegados estavam tão suscetíveis, receando que o rei os dissolvesse, que foram imediatamente para um campo de ténis coberto, e aí prestaram juramento de não desmobilizarem antes de terem dado a França uma nova constituição. Há, de autoria do pintor real David, um desenho desse momento, que é um caso famoso da vida imitando a arte. Cinco anos antes, David pintara O Juramento dos Horácios, que mostra o pai Horácio e os seus filhos de braços erguidos na saudação republicana. A mesma saudação foi usada pelos revolucionários do terceiro estado ao jurarem dar uma constituição a França.
Muitos membros do clero e alguns nobres acabaram por juntar-se à Assembleia Nacional. O rei deu indicação de que daria aos Estados Gerais um local permanente de reunião, mas não permitiria que os três estados reunissem conjuntamente. E ameaçou a assembleia com o uso da força, caso esta não regressasse à fórmula tripartida. Mas, quando desafiado, não recorreu à violência. Recuou e disse mansamente às outras ordens que se juntassem ao terceiro estado.
Os líderes da assembleia eram homens do Iluminismo, professando princípios liberais e igualitários muito nítidos. O seu slogan era liberdade, igualdade, fraternidade. A assembleia viria a emitir o seu manifesto sob o título Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Tratava-se de direitos, não apenas dos franceses, mas de toda a humanidade. São os seguintes, em resumo, os principais artigos:
Os homens nascem e são livres e iguais em direitos.
Esses direitos são a liberdade, a prosperidade, a segurança e a resistência à opressão.
A soberania reside na nação.
A liberdade consiste em poder fazer tudo o que não prejudique o próximo.
Todos os cidadãos têm o direito de participar, pessoalmente ou através de representantes, na feitura das leis.
Ninguém pode ser acusado, preso ou detido senão nos casos determinados pela lei, que apenas deve estabelecer as penas estritamente necessárias.
Ninguém pode ser molestado pelas suas opiniões, incluindo as opiniões religiosas.
Todo o cidadão pode falar, escrever e imprimir livremente, respondendo, todavia, pelos abusos desta liberdade nos termos previstos na lei.
Uma constituição que não consagre a separação dos poderes não é constituição alguma.
Este é um documento glorioso, o documento fundador da democracia moderna, mas estava destinado a desencadear uma revolução inglória.
Os homens que subscreveram estes princípios queriam uma monarquia constitucional como a de Inglaterra. Mas que segurança tinha, na verdade, um rei, quando fora proclamado que a soberania residia na nação e que todos os homens eram iguais? Os ideólogos do documento queriam ser eles próprios a mandar e, quando acabaram por redigir a constituição, decidiram que só os detentores de propriedade deveriam votar. Mas como poderiam eles excluir o povo comum, quando tinham proclamado que todos eram iguais? Só pela ação do povo comum Luís fora empurrado para um simulacro de aceitação da declaração. Fora o povo que invadira a fortaleza real da Bastilha e forçara o rei a deixar o seu palácio de Versalhes para viver entre o povo, em Paris. O povo comum, que ajudara a fazer a revolução, não ia desaparecer.
As promessas e as ameaças tinham sido demasiadas para que a França produzisse uma constituição como a inglesa ou uma revolução sem sangue como a de 1688. Aquela revolução não elaborara novos princípios; agora, havia uma sobreabundância de princípios novos. Depressa o rei deixou claro que não aceitaria esses princípios e que, podendo, revogaria toda a alteração ao seu estatuto. Isso deu uma oportunidade aos radicais, que insistiram que era necessário fazer uma aliança com o povo e controlar ou depor o rei para que toda a mudança pudesse solidificar. O que, por sua vez, desencadeou uma reação por parte daqueles que queriam a mudança, sim, mas não uma mudança democrática e com o povo ao leme.
Desenho por Jacques-Louis David, O Juramento no Campo de Ténis, 1791.
Cedo os revolucionários estavam a combater entre si. Uma das razões por que David nunca transformou em tela o desenho do Juramento no Campo de Ténis foi o facto de várias das pessoas presentes terem, entretanto, sido executadas como inimigas da revolução. Os radicais adotaram o nome de jacobinos, por se reunirem num antigo convento dos dominicanos (jacobinos). O líder era o frio e férreo Maximilien Robespierre. Os jacobinos tornaram-se uma ditadura revolucionária: executaram o rei, expulsaram os opositores da assembleia, encerraram os seus jornais e organizaram tribunais móveis especiais para executar os traidores à revolução. A desculpa que tinham para a ditadura resumia-se a isto: a França estava em perigo mortal porque os revolucionários tinham acalentado o desejo de uma guerra contra as monarquias europeias, a fim de as forçar a adotar os princípios dos direitos do homem.
O exército que organizaram para tal propósito era de um novo tipo, uma mobilização de todos os varões da nação – o povo em armas.
Os revolucionários tinham lido bem o seu Lívio. O santo padroeiro da tirania revolucionária era Bruto, fundador da república romana, e que subscrevera a execução dos próprios filhos. Havia um busto de Bruto na assembleia, junto ao pódio. Houve ruas rebatizadas Bruto, pais deram o nome Bruto aos seus filhos. Porque os jacobinos tinham fundado uma república, acabavam as cartas de jogar com desenhos de reis, damas e valetes. Foram substituídos por sábios, virtudes e guerreiros. Bruto era um desses sábios. O rei era apelidado de Tarquínio e, tal como em Roma, constituía ofensa defender a restauração da monarquia. Esta implacável virtude republicana – a crença em que tudo deve ser sacrificado ao Estado –,
o desejo de ver sangue derramado e a crença de que tudo isso é purificador, eis a contribuição romana para o primeiro Estado totalitário moderno.