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O POVO COMUM
Vão gostar do povo comum. É gente suja, malcheirosa e desagradável à vista, porque é subalimentada, debilitada e roída pela doença, maltratada e marcada com as cicatrizes do trabalho duro sob chuva ou sol. Porque haviam de gostar dele? Porque a sua sorte é fácil de seguir: continuam a fazer a mesma coisa século após século. Quase todos cultivam alimentos.
Não precisamos de uma cronologia para discutir, basta-nos um gráfico que mostra muito poucas variações. O gráfico mostra a percentagem de pessoas que cultivam alimentos ou estão estreitamente relacionadas com essa atividade, ou seja, inclui as pessoas que vivem em povoações ou colónias rurais e que apoiam a agricultura, como fabricantes de rodas, ferreiros e jornaleiros. Os números correspondem a estimativas muito grosseiras. No Império Romano, cerca de noventa por cento das pessoas viviam no campo. Havia grandes cidades no império, em primeiro lugar a própria Roma, mas albergavam apenas dez por cento da população. As cidades recebiam fornecimentos de cereais vindos do campo, mas os cereais são mercadorias muito pesadas, e não suportam sem perda de valor o transporte de grande distância em carroças. Os cereais para Roma vinham do Egito por mar, que era a via de transporte mais barata. Nos estádios finais do Império Romano, a administração subsidiava a distribuição de cereais em Roma para manter o povo satisfeito; Roma era como uma cidade do Terceiro Mundo de hoje, um grande centro de atração, mas incapaz de proporcionar um modo de vida a todos os que ali afluíam. Além de pão gratuito, Roma proporcionava espetáculos regulares no Coliseu. O escritor satírico romano Juvenal retratou uma administração que sobrevivia oferecendo «pão e circo».
O comércio de cereais era uma exceção. A maior parte do comércio do império consistia em bens de luxo, leves e valiosos, capazes de suportar percursos longos. No Império Romano, como na Europa até ao século XIX, a maior parte das pessoas sobrevivia do que era cultivado ou manufaturado perto: alimentos, bebidas, vestuário e abrigos eram produtos locais. Os velhos casebres da Europa tinham telhados de colmo, não porque fossem mais pitorescos do que os de telha, mas porque era o material mais fácil de manejar. Na economia, os romanos não foram, portanto, uma força transformadora; a sua inovação consistiu em construir um império unificado, com um só direito e uma organização militar extremamente eficiente. As estradas romanas em linha reta, partes das quais ainda hoje sobrevivem, foram construídas por engenheiros militares com o propósito de permitir aos soldados marchar rapidamente de um local para outro. É por isso que eram retas – se tivessem sido desenhadas para carros e cavalos, os declives teriam sido mais suaves.
Nos últimos dois séculos do Império Romano, as cidades começaram a perder habitantes à medida que os invasores germânicos as atacavam. O comércio diminuiu e a autossuficiência local tornou-se uma necessidade. Nos tempos de glória, as cidades do império não tinham muralhas. Os inimigos de Roma eram contidos nas fronteiras. No século III, começaram a ser construídas muralhas em redor das cidades, e, nalguns locais, a prova do declínio está nas últimas muralhas que englobavam áreas muito reduzidas. Com o desaparecimento do Império, em 476 A.D., a percentagem de pessoas que viviam no campo subiu para noventa e cinco por cento.
Ali permaneceram durante séculos. Às invasões germânicas, outras se seguiram: nos séculos VII e VIII, a invasão dos muçulmanos, que atacaram o Sul de França e a Itália; os vikings nos séculos IX e X, espalhando o caos. A paz chegou nos séculos XI e XII, e a vida comercial e urbana começou a reanimar-se. Algumas das cidades tinham quase desaparecido depois do século V, outras tinham diminuído consideravelmente.
O gráfico mostra uma queda muito ligeira. No século XV, a Europa começou a expansão marítima, o que conduziu ao crescimento das trocas comerciais, do sistema bancário e da construção naval e, consequentemente, das cidades. Por volta de 1800, a percentagem de pessoas a viver do campo na Europa ocidental terá baixado para oitenta e cinco por cento, ligeiramente menos do que no Império Romano. Houve muito poucas movimentações durante um tão longo período. A única exceção foi a Inglaterra, onde em 1800 a percentagem rural estava em queda acelerada, à medida do crescimento das cidades. Em 1850, metade da população de Inglaterra vivia em cidades.
As pessoas que cultivavam alimentos tinham estatutos diversos: a qualquer momento, e de um momento para o outro, podiam ser pequenos proprietários, escravos, ex-escravos, servos, ex-servos, rendeiros, seareiros e trabalhadores. Chamar-lhes-emos, a todos, camponeses. Mas o trabalho era o mesmo para todos e em qualquer época. Em Itália, no Sul de França e em Espanha, lavrar a terra no século XIX era a mesma coisa que no tempo dos romanos. Os arados eram primitivos; eram uma espécie de forquilha de madeira com uma lâmina na base. O arado era puxado por um boi ou um cavalo; o lavrador empunhava e dirigia o arado, e a lâmina não penetrava muito fundo na terra, fazia pouco mais que um arranhão. Lavrava-se em quadrícula, ao longo do campo e, depois, atravessando-o.
Uma das grandes invenções dos princípios da Idade Média foi o arado com rodas. Desconhece-se quem foi o inventor. Esse arado era mais eficiente nos solos do Norte de França, Alemanha e Inglaterra. A sua arquitetura era a mesma das charruas modernas, mas puxada por animais e manuseada por humanos. Havia uma lâmina afiada para cortar a terra, e uma relha que levantava e virava a terra cortada, fazendo sulcos, não apenas marcas, e todos alinhados na mesma direção, paralelos, e já não no padrão quadriculado dos arados antigos. Em solos densos, a água pode correr ao longo dos sulcos. Lavrar a terra era um trabalho violento, o lavrador não se limitava a dirigir o arado. Se não o segurasse firmemente à força de braços e ombros, o arado tombava em vez de sulcar a terra. Depois de lavrar, espalhavam-se as sementes, uma tarefa bem mais leve. Caminhava-se ao longo dos campos atirando punhados de sementes que caíam ao solo. Depois, com uma grade, uma espécie de grande ancinho, as sementes eram cobertas de terra.
Eram os homens que lavravam. Eram os homens, as mulheres e as crianças que faziam a colheita. E, como o período em que era seguro fazer a colheita era breve, eram recrutadas pessoas das cidades e as guarnições locais saíam dos aquartelamentos para ajudar. A colheita era feita com foices compridas, uma lâmina curva na extremidade de uma vara. Os arqueólogos encontraram-nas nos mais antigos aglomerados populacionais. Foram o utensílio-padrão para as colheitas na Europa até princípios do século XX. A revolução comunista de 1917, na Rússia, quis que a sua nova bandeira homenageasse os trabalhadores: Ostentava a foice e o martelo – o martelo para os trabalhadores urbanos, a foice para os do campo.
Não se deve pensar que sementeira e colheita fossem como hoje, com os agricultores sentados ao volante de tratores com ar condicionado, conduzindo ao longo das terras. Os camponeses cavavam, dobravam-se, esgotavam-se a trabalhar cada parcela de terra ano após ano.
Cenas de colheita de um manuscrito alemão, Speculum Virginum, de cerca de 1200.
Depois de os molhos de trigo ou centeio serem atados, era preciso malhar as espigas para retirar os grãos. A ferramenta usada era o mangual, que tinha um cabo de madeira comprido onde estava presa uma tábua com uma tira de couro. Fazendo girar o cabo, abatia-se a tábua sobre as espigas espalhadas no chão do celeiro. As portas do celeiro ficavam abertas, e a brisa levava o joio, ficando apenas os grãos no chão do celeiro.
O grão era transformado em farinha e, depois, em pão. O pão era o esteio da vida. Comiam-se pedaços de pão e pouco mais. Não se comia carne com regularidade. Talvez se comesse um pouco de manteiga ou de queijo como conduto, mas o pão era a refeição, não era um acompanhamento, nem umas quantas fatias num bonito cesto. Três ou quatro bocados, um quilo por dia para quem vivesse bem, o equivalente a um pão de forma grande. Os cereais eram cultivados em toda a parte, mesmo onde não era adequado e hoje não seriam cultivados. Sendo o transporte tão difícil, os cereais tinham de ser cultivados no local onde eram consumidos. Os cereais vindos de outras partes eram muito caros. Podiam ser transportados por mar, mas o transporte no interior, qualquer que fosse a distância, só viria a ser possível com a construção de canais, no século XVIII.
Toda a gente se preocupava com as colheitas. As conversas sobre o tempo não eram conversa fiada, eram conversa de pessoas que ponderavam o seu destino. Se o cereal não amadurecesse ou se o mau tempo o estragasse, toda a comunidade sofreria. Os cereais teriam de vir de outro lado e o preço seria alto. Em tempos de escassez de cereais, o preço do pão dobrava ou triplicava. Não se trata do preço de algum produto na prateleira do supermercado que está muito caro e nos obriga a comer outra coisa durante uns tempos. Era o custo de toda uma dieta alimentar que dobrava ou triplicava. E quando isso acontecia, o povo passava fome ou morria.
Mas sendo os camponeses quem cultivava os alimentos, os preços altos não os beneficiavam? Só aqueles que tinham grandes propriedades. Para quem cultivava apenas o bastante para alimentar a família, pouco lhe sobrando para vender, uma quebra na colheita equivalia a não ter o suficiente para se alimentar e a ver-se obrigado a comprar mais. Alguns tinham parcelas que nem nos bons anos eram suficientes para alimentar a família, e tinham que recorrer a trabalhos suplementares em grandes propriedades e à compra de mais alimentos. Eram muitos os camponeses sem terra; se vivessem com o empregador e fossem alimentados, não ficavam muito mal. Mas se vivessem no seu próprio casebre, seriam compradores regulares de pão. Os moradores das cidades eram, é claro, em todos os casos compradores. Quando o preço dos cereais subia, muita gente ficava em sérias dificuldades.
Logo que se verificava uma escassez, os proprietários de cereais – os que os cultivavam em larga escala ou eram negociantes – eram tentados a retê-los para que os preços subissem ainda mais ou a levá-los para qualquer outro lado onde o preço fosse ainda mais alto, deixando os habitantes da região sem cereais. Logo que se tornaram moderadamente competentes, grosso modo a partir de 1400, os governos prcuraram regulamentar esta atividade, fazendo aprovar leisque proibiam o açambarcamento e o transporte de cereais para fora de regiões onde houvesse escassez. Se não fossem os magistrados a fazer cumprir a lei, podia ser o povo a fazê-lo, partindo em busca de açambarcadores de cereais e forçando os grandes agricultores a vender, atacando carroças e barcos que transportassem os cereais para outras partes. Foi, em parte, por causa deste potencial de motins e desordens que os governos se viram obrigados a intervir.
A maioria das pessoas vivia a maior parte do tempo em incerteza quanto à sua alimentação. Comer bem e com regularidade era um luxo, gordura era formosura, os feriados eram dias de festa. Ainda hoje temos nas nossas sociedades um vestígio patético disto, no dia de Natal, quando celebramos a data comendo muito – embora comamos bem o resto do tempo. Eu próprio faço questão de preservar o espírito da data recusando-me a comer peru em qualquer outro dia do ano.
Foram os oitenta e cinco a noventa e cinco por cento das pessoas que trabalhavam os campos que tornaram a civilização possível. Se os camponeses tivessem cultivado apenas os cereais suficientes para o seu consumo, não teria havido cidades nem senhores, nem reis nem príncipes, nem exércitos, porque todos eles dependiam dos alimentos produzidos por outros. Quer quisessem quer não, os camponeses tinham de fornecer alimentos às outras pessoas. Este processo pode ser observado com mais clareza entre os servos dos alvores da Idade Média, em que uns entregavam parte da colheita ao senhor, a título de renda, outros, à Igreja, a título de dízima, além de terem por obrigação trabalhar sem paga as terras do seu senhor para que ele tivesse a sua própria colheita. Mais tarde, a obrigação de trabalho gratuito cessaria e o pagamento ao senhor e ao padre passariam a ser feitos em dinheiro.
Nos alvores da Idade Média não havia impostos do Estado; antes, no Império Romano, e mais tarde, nos Estados emergentes da Europa, os camponeses eram contribuintes. Há uma representação da cobrança de impostos durante o Império Romano, que mostra os cobradores de impostos e os camponeses a pagar. A transação é registada não em papel, mas em tábuas enceradas. Esta é a transação-chave para a gestão do Império: toma-se dinheiro dos camponeses, que depois se usa para pagar aos soldados. Tirar dinheiro aos camponeses é a base da civilização. Vemos bem como esta cobrança de impostos é direta. Não se escreve ao cobrador, não se lhe envia um cheque, nem ele deduz parte dos nossos rendimentos à medida que os auferimos. O cobrador é uma pessoa concreta, que vem à nossa procura: se recusarmos pagar, ele volta mais tarde e faz-nos pagar à força. A cobrança de impostos não era controlada burocraticamente, era um encontro cara a cara. No Império Romano, chamava-se aos cobradores de impostos publicani, ou seja, aqueles que cobram em nome do público. Eram odiados. Até Jesus ajudou a estereotipá-los como gente da pior laia, quando disse que não há virtude especial em amar os que nos amam, porque até os cobradores de impostos conseguem fazê-lo. Na versão da Bíblia do rei Jaime, publicani é traduzido por publicanos. Jesus é criticado por se misturar com «publicanos e pecadores». Foi um parágrafo muito injusto para os detentores de licenças de casas públicas.
Dizer que se sacava dinheiro aos camponeses é, evidentemente, uma linguagem muito grosseira. Talvez eles devessem ter gostado de pagar impostos ou, ao menos, limitar-se a resmungar por isso. Ninguém gosta de pagar impostos, mas nós temos os benefícios dos serviços que os governos proporcionam. Os camponeses não obtinham serviço algum. Os governos não administravam escolas nem sistema de saúde. Não tratavam das estradas, que eram matéria de gestão local, salvo quando tinham importância militar. Os romanos zelavam pela saúde pública das cidades fornecendo-lhes água e dotando-as de sistemas de esgotos, mas nada faziam pelos campos. A maior parte dos impostos cobrados, oitenta ou noventa por cento, era gasta com as forças armadas. Mas o camponês não beneficiava se o inimigo estrangeiro fosse mantido longe? Nem por isso, porque, para o camponês, a guerra significava combates travados em cima das suas terras e alimentos e animais roubados para alimentar os exércitos.
A ameaça da força e a insistência por parte dos melhores de que eram gente inferior, destinada a obedecer e a consentir, fizeram que os camponeses, apesar de periódicos protestos, motins e revoltas, continuassem a pagar impostos. Os camponeses foram convidados a agir pela sua própria visão do mundo, que era a de que se reis, bispos e terratenentes nos deixassem em paz, nós ficaríamos muito bem. Era fácil pensar assim, porque eram os camponeses que cultivavam todos os alimentos, que construíam as próprias casas, que fermentavam o seu próprio grogue, que teciam as próprias roupas. Muitas pessoas, hoje optam por virar costas à selva da cidade e da carreira, julgando que tudo o que precisam é de uma parcela de terra para cultivar os próprios alimentos. Não é necessário viver muito tempo na terra para se perceber que também é preciso dinheiro para comprar calças, remédios, bebidas, DVD, e que a gasolina e as contas de telefone têm de ser pagas. Depressa os exilados dão por si a fazer trabalhos a tempo parcial e a negligenciar a agricultura. Pouco tempo depois, regressam ao trabalho a tempo inteiro. Mas, para os camponeses, a autossuficiência era real: a seus olhos, governo e Igreja eram simples fardos e o dinheiro que lhes levavam, um roubo.
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As revoltas camponesas foram sempre esmagadas até ao primeiro ano da Revolução Francesa. Os camponeses de França, como todos os outros, tinham sido servos durante a Idade Média. Quando a servidão acabou na Europa ocidental, no final da Idade Média, foram oferecidos aos servos vários tipos de acordos. Em França, a lei estabeleceu que os camponeses passavam a ser proprietários das terras, que poderiam vender e abandonar. No entanto, eles ou quem comprasse as terras, tinham de saldar os antigos tributos e obrigações ao senhor, como ofertar alguma coisa à filha do senhor que se casava ou ser obrigado a trabalhar nas terras do senhor tantos dias por semana. Estas oferendas e serviços tinham sido transformados em pagamentos em dinheiro, razão por que esses camponeses proprietários de terra ainda tinham de pagar uma maquia em rendas. Proprietário e rendeiro... Era uma situação muito invulgar.
Os proprietários de latifúndios – podia ser um nobre, mas também uma pessoa rica da classe média – empregavam bons advogados para verificar nos registos passados se todos os tributos e obrigações estavam a ser saldados por pagamentos em dinheiro. Quando os tributos e obrigações foram convertidos em dinheiro, não se levara em conta a inflação; os pagamentos em dinheiro não estavam, para usar a nossa expressão, indexados à inflação. Assim, o senhor tinha todo o interesse em encontrar obrigações que tivessem sido esquecidas ou mal calculadas. Dificilmente se encontraria relação mais incómoda e exasperante: o senhor via a propriedade das terra ser transmitida ao camponês e compensava a perda extorquindo dinheiro pelos antigos tributos e obrigações. Os camponeses reagiram, juntando-se para contratar os seus próprios advogados e pleitear com os seus senhores.
Quando o rei reuniu os Estados Gerais, em 1788, os camponeses partiram do princípio de que amanhecia um novo dia, de que todas aquelas detestáveis imposições lhes seriam levantadas. Mas não foi logo assim: tiveram notícias da tomada da Bastilha e da aceitação pelo rei da Assembleia Nacional, mas os pagamentos aos senhores foram mantidos. Estava em curso uma pérfida conspiração. O preço do pão estava alto e subia cada vez mais, porque a última colheita fora escassa e ainda não era tempo de nova colheita. O campo era varrido por boatos de que aristocratas e bandidos tentavam impedir que a reforma chegasse aos campos. Os camponeses chegaram a marchar para encontrar e derrotar os bandidos. Marcharam também contra os castelos dos senhores e exigiram que o senhor ou o seu agente destruíssem os registos em que estavam anotados os seus pagamentos. Se o senhor acedia, partiam satisfeitos; se não, lançavam fogo ao castelo.
Os revolucionários de Paris não sabiam que fazer desta rebelião que varria os campos. Não era o que esperavam. Em devido tempo, depois de insituídos os direitos do homem e uma nova constituição, tratariam das queixas dos camponeses. Além disso, entre os próprios revolucionários, havia pessoas que recebiam pagamentos dos camponeses por terras que tinham comprado.
Os revolucionários não queriam que o rei enviasse o exército para controlar os camponeses, que era a resposta normal para uma revolta. Se o rei enviasse o exército, poderia, depois dos camponeses, virá-lo contra os revolucionários. Por isso, os líderes da Assembleia decidiram que tinham de dar aos camponeses o que eles queriam. Na noite de 4 de Agosto de 1789, durante uma sessão que durou até de manhã, os oradores denunciaram os tributos e obrigações. Homens que deles tinham beneficiado excediam-se em vituperações e promessas de reforma. Foi metade teatro, metade histeria. Mas não perderam completamente a cabeça: decidiram que deveria ser estabelecida uma distinção entre os pagamentos relacionados com o serviço pessoal, que seriam eliminados imediatamente, e os relacionados com a propriedade, que seriam eliminados mais tarde e mediante compensação aos proprietários. Era muito difícil fazer esta distinção. Os camponeses recusaram-se a estabelecê-la e, a partir desse momento, nunca mais fizeram pagamento de espécie alguma. Em 1793, quando a revolução se tornou mais radical e foi criada uma nova constituição, todos os tributos e obrigações foram cancelados.
Os camponeses tornaram-se proprietários de pleno direito das suas terras e ficaram inteiramente libertos dos seus senhorios. Tornaram-se, depois, uma força conservadora na política francesa durante todo o século XIX, em oposição à classe trabalhadora radical das cidades que atacou a propriedade privada e queria fundar uma sociedade socialista. Os grandes homens de França puderam sempre confiar nos camponeses para derrotar essa tentativa. E os camponeses ficaram agarrados às suas pequenas parcelas, contribuindo para que a agricultura em França tivesse sido sempre de pequena escala e ineficiente. Hoje, os camponeses franceses beneficiam de subsídios europeus, o que significa que podem vender os produtos a preços mais baixos e competir com os agricultores de maior dimensão e mais eficientes de outros países. Agora, são os agricultores que nos tramam a nós!
Na Inglaterra, terminada a servidão, sucedeu-lhe um ajuste completamente diferente quanto à terra. Os tributos e as obrigações, fosse qual fosse a sua forma, desapareceram. O servo tornou-se um agricultor rendeiro no entendimento moderno, pagando uma renda ao senhorio. O rendeiro tinha um contrato, por vezes de longo prazo, às vezes mesmo vitalício, mas quando o contrato expirava o senhorio podia expulsar o rendeiro e arrendar a terra a outro. Em França, o camponês tinha mais segurança: não podia ser expulso, mas tinha de pagar tributos e obrigações. A existência de uma relação moderna e comercial entre senhorio e rendeiro em Inglaterra permitiu um enorme salto na produtividade da agricultura, a que se chamou a Revolução Agrícola.
A revolução teve dois elementos: um avanço nos métodos agrícolas e um reajuste dos títulos da terra. Não teve que ver com melhorias na maquinaria agrícola – tratores e alfaias agrícolas chegariam muito mais tarde.
Primeiro, os métodos agrícolas. O problema básico que todos os cultivadores enfrentam é o cultivo intensivo esgotar o solo. Como se resolve o problema? Os agricultores germanos que viviam fora do Império Romano limitavam-se a mudar para outras terras quando as antigas estavam esgotadas. Era uma agricultura apenas semipermanente. Dentro do Império Romano, as terras de uma propriedade eram divididas em duas partes: uma, era cultivada, a outra, deixada em pousio, ou seja, a terra descansava. Cavalos, bois, ovelhas e gado pastavam nelas, comendo o restolho da colheita do ano anterior e depositando estrume. No fim do ano, a terra em pousio era lavrada e nova colheita semeada, enquanto a outra parte ficava em pousio. Este foi o sistema usado na Europa do Sul até ao século XIX. Na Europa do Norte, desenvolveu-se durante a Idade Média um sistema de campos tripartidos, dois com searas e um terceiro deixado em pousio. Uma das searas era plantada no outono, a outra, na primavera. Já se vê o aumento de eficiência que isto representa: dois terços da terra produzem cereais, em vez de apenas metade.
Na Inglaterra do século XVIII, as propriedades agrícolas eram divididas em quatro e as searas plantadas em cada uma das parcelas. Nisso consistiu a Revolução Agrícola.
Mas como poderia funcionar? Se a terra produz todos os anos, ficará exausta. A inteligente e inovadora ideia por detrás desta técnica consistia em que duas das searas eram de cereais e duas eram de forragens para os animais, por exemplo, nabo ou trevo. Como estes produtos retiram do solo elementos diferentes, o solo não ficava exausto como ficaria com contínuas sementeiras de cereais. O trevo regenera a terra, ao fixar no solo o nitrogénio da atmosfera. E porque eram semeados produtos para alimentar os animais, que antes sobreviviam do restolho, podia criar-se mais gado bovino e ovino, que comia melhor, engordava mais, e depositava mais estrume. Ao fim do ano, a pastagem do gado tornava-se uma seara e dava uma colheita mais rica. Mais e melhores animais e melhores colheitas: foi esse o resultado do novo método das quatro parcelas.
Do mesmo modo, os títulos da terra sofreram um reajuste, para que cada agricultor tivesse um vínculo consolidado,
a sua própria quinta com extremas bem definidas. Este sistema substituiu o sistema medieval, em que cada agricultor tinha uma banda ou porção de cada um dos três campos comunitários em que a terra da povoação era dividida. Nenhum tinha a sua quinta; a quinta era da povoação, embora a sua propriedade fosse de um nobre. A povoação decidia o que devia ser plantado, onde e quando, e o gado de todos pastava no terreno em pousio. Para lá dos três campos comunitários, ficavam terras estéreis, pântanos ou florestas, também utilizáveis como pastagem ou para a apanha de colmo e lenha.
O reajuste dos títulos da terra em parcelas consolidadas foi levada a cabo por ato do parlamento, um para cada povoação. O parlamento inglês era um congresso de grandes latifundiários, que tinham decidido que a consolidação – ou emparcelamento, como era conhecida – era necessária para que os novos métodos agrícolas pudessem ser devidamente seguidos. O cultivo das novas searas e o maior cuidado com os animais requeriam atenção individual, não bastava um controlo coletivo da povoação. Um latifundiário que quisesse aumentar a produtividade das terras e, com isso, aumentar a quantia que podia cobrar como renda, podia fazer da adoção das novas práticas um requisito para um contrato de arrendamento de quinta consolidada. O agricultor que recusasse cultivar nabo seria expulso, isto é, o seu arrendamento não seria renovado.
A consolidação era feita com prudência. Comissários consultavam toda a gente da povoação, para verificarem quais eram os direitos adquiridos. O direito a cultivar um certo número de bandas e o direito de fazer o gado pastar nas terras comunitárias foram traduzidos no direito a uma parcela consolidada de determinada área. Quem sofreu com os reajustes foram os moradores que só tinham direito a levar o gado a pastar nas terras comunitárias: receberam uma parcela do tamanho de uma toalha e sem préstimo algum. E, com toda a probabilidade, acabaram por abandonar o campo em favor da cidade. Mas, em termos gerais, as novas práticas agrícolas nas áreas consolidadas exigiam mais e não menos trabalho. Houve um grande êxodo para a cidade, mas porque a população estava a aumentar rapidamente.
O aumento da produtividade agrícola tornou possível o crescimento das cidades. Em termos gerais, uma percentagem menor de pessoas conseguia fornecer alimentos para todos. A Inglaterra foi o primeiro grande Estado moderno a dar este salto. Havia pessoas interessadas no progresso da agricultura em França que queriam adotar uma consolidação semelhante das terras de cultivo, mas os camponeses eram proprietários das terras e estavam presos à vida comunitária. Nem uma monarquia absoluta conseguiria convencê-los.
De meados do século XVIII para a frente, a Revolução Industrial em Inglaterra avançou a par e passo com a Revolução Agrícola. Em vez de algodão e lã, fiados e tecidos nos casebres dos trabalhadores agrícolas, a atividade foi transferida para fábricas onde novos inventos, movidos primeiro por noras e depois por motores a vapor, realizavam o trabalho. Os trabalhadores passaram a ocupar-se dos cuidados e manutenção do equipamento, trabalhando sujeitos a um horário e a um patrão, em vez de a um amo. A população das cidades onde havia fiações de algodão ou lã cresceu exponencialmente. Toda a nova atividade económica foi intimamente interligada por uma rede de canais e, mais tarde, de linhas férreas. Havia, por fim, uma nação, onde as matérias-primas podiam ser economicamente transportadas para qualquer parte do território.
A Inglaterra não planeou a Revolução Industrial. Ela foi proporcionada pelo facto de a Inglaterra ter um parlamento que controlava a governação. Os governos absolutistas da Europa planearam, promoveram e protegeram a indústria com o objetivo de aumentar o poderio económico e militar do Estado. A nobreza e os senhores terratenentes de Inglaterra, que compunham o parlamento, estavam pessoalmente envolvidos na nova atividade económica e mais dispostos a deixá-la irromper. As velhas disposições de regulação da indústria foram postas de lado ou tornaram-se letra-morta.
As mudanças sociais originadas pelas duas revoluções foram traumáticas. Mas a primeira nação urbana e industrial manteve a promessa de que o povo comum, que tão perto vivera do mínimo de sobrevivência e tanto sofrera, seria trazido a uma prosperidade inimaginável.