Kyra estava sentada na caverna perante o lume crepitante, encostada à parede de rocha quente e respirou fundo, enfim relaxada. Finalmente, elas estavam secas, quentes, fora do vento e da chuva, a sua barriga estava cheia e ela era capaz de sentir as mãos e os pés novamente. Os músculos doíam-lhe, lentamente voltando a si. A caverna encheu-se com o cheiro dos frangos a assar e o lume naquele pequeno espaço emitia mais calor do que ela esperava. Pela primeira vez, ela sentia que podia baixar a guarda.
Ao lado dela, Dierdre recostou-se, igualmente, também cheia, satisfeita, enquanto Leo, com a cabeça no colo dela, já ressonava. Na entrada da caverna, logo ali fora, no meio da noite, Andor montava guarda com a égua de Dierdre, cada um amarrado e feliz, mastigando ruidosamente nos seus sacos de ração, tendo a chuva finalmente parado. Kyra tinha tentado que Andor entrasse e descansasse, mas ele não estava interessado.
Kyra fechou os olhos por um momento, esgotada, não sabendo ela por quantos dias tinha estado acordada e refletiu. Depois de terem deixado aquela taberna tinham cruzado o rio Tanis e entrado na Floresta Branca, outra floresta, apesar de esta estar cheia de lindas árvores brancas e folhas e terem uma energia mais pacífica. A Floresta do Ocidente, tinha-lhe chamado Dierdre. Kyra tinha ficado tão aliviada por estar fora da escuridão da Floresta de Espinhos e até agora, pelo menos, ter o oceano a uma distância audivel. Seria o seu guia, ela sabia, em todo o caminho para Ur.
Elas tinham continuado na Floresta Branca até o Leo ter vislumbrado esta caverna e Kyra agradeceu a Deus por isso. Ela não sabia quanto tempo mais eles todos eles tinham conseguido aguentar sem descansar, sem uma hipótese de se secarem, de comerem. Ela apenas queria ficar por uns minutos, mas todos eles, uma vez instalados, sentiram-se tão descansados ali, no chão de terra macia, com o lume crepitante a seus pés, que todos eles se estabeleceram. Kyra percebeu a sabedoria em ficar: ela não via razão para continuarem durante a noite e com toda a gente tão exausta.
Kyra fechou os olhos e deixou-se ir à deriva nos seus pensamentos. Ela pensou primeiro no seu pai, perguntando-se onde ele estava agora. Será que ele já tinha conseguido chegar a sul? Será que ele chegou a Esephus? Será que ele estava em combate agora? Será que ele estava a pensar nela? Será que ele se importava com ela? E acima de tudo: estaria ele orgulhoso dela?
E o que seria de Aidan? Estaria ele sozinho em Volis?
Kyra, com os olhos pesados, tão cansada, deixou-os fechar por apenas um momento. Ela estava à deriva dentro e fora do sono, quando um barulho repentino a despertou. Abriu os olhos e ficou chocada ao ver que já tinha amanhecido. Não podia acreditar que tinha dormido tanto tempo.
Ela percebeu a origem do som: Leo. Ele estava ao lado dela, a rosnar, com o cabelo a subir nas suas costas, a protegê-la, a olhar fixamente para a entrada da caverna.
Imediatamente, Kyra sentou-se, com o coração a bater, em guarda.
"Leo, o que é, rapaz?", perguntou ela.
Mas ele ignorou-a, em vez de rastejar em direção à entrada, o seu cabelo enrijeceu-se e o seu rosnar ficou mais violento. Kyra sentou-se com as suas flechas em posição, agarrando o seu bastão, ouvindo. Mas ela não conseguia ouvir nada.
Kyra questionou-se o que poderia estar a espreitar lá fora, quanto tempo tinha dormido. Ela levantou-se e tocou em Dierdre com o seu bastão, até Dierdre acordar e sentar-se, também. Ambas ficaram a ver o Leo enquanto ele se arrastava em direção à entrada.
"LEO!", gritou Kyra.
De repente ouviu-se um horrível rosnado, seguido por uma debandada de cascos e uma grande nuvem de poeira que passou a correr pela caverna. Kyra e Dierdre correram para a entrada quando veio outra debandada, Kyra questionando-se que raio seria aquilo.
Kyra chegou à entrada como Andor a rosnar, também, olhou para fora e viu vários veados que corriam à passagem pela caverna. Ela percebeu, com temor, que eles estavam fugindo de algo perigoso. Algo maior.
Kyra virou-se para a direita e viu, a cerca de cem jardas de distância, um grupo de feras a correr na sua direção. Ao início, ela pensou que estava a imaginar coisas, mas a nuvem de poeira que aí vinha e o ruído estrondoso disseram-lhe que não era uma ilusão. As criaturas tinham, cada uma, o tamanho de um pequeno rinoceronte, com um couro preto decorado com riscas amarelas e dois chifres estreitos na ponta do seu nariz que se virava para cima, uns bons dez pés. Elas eram seis e todas vieram diretas a eles para os atacaram, com os seus brilhantes olhos vermelhos, cheios de fúria.
"Porcos-chifre!" Dierdre gritou. "Eles devem ter cheirado a nossa comida!"
Dierdre rapidamente montou o seu cavalo e Kyra montou Andor - e todos eles partiram, com Leo ao lado deles, dirigindo-se para a floresta, na esperança de correrem mais depressa do que eles.
Enquanto cavalgava, Kyra arranhada por ramos ainda molhados da chuva longa, ficou maravilhada com o quão diferente a floresta era daquele lado do rio. As árvores eram todas brancas, os ramos brancos, as folhas brancas, lindíssimo, o mundo a brilhar enquanto cavalgavam, a chamar a sua atenção mesmo enquanto ela cavalgava pela vida. Dirigiam-se para sul, usando o rio Tanis como guia, ouvindo a sua agitação enquanto caminhavam. Kyra tinha a esperança de acordar descansada e revigorada, mas agora ela estava assustada, ainda sem ter a certeza se estava acordada ou a ter um sonho terrível.
Kyra olhou para trás para verificar, esperando que os porcos-chifre estivessem fora de vista, especialmente dada a velocidade de Andor – no entanto ficou consternada ao ver que eles não estavam. Eles estavam, na verdade, mais perto. Eram criaturas incrivelmente rápidas, especialmente dado o seu tamanho e chegaram-se a eles, como vespas a seguir um rasto.
Kyra esporeou Andor, mas foi inútil. Andor era mais rápido que a égua de Dierdre e Kyra ganhou alguma distância sobre ela - mas mesmo assim, ele não foi rápido o suficiente para superar as feras. Kyra percebeu que não podia deixar que ela e a sua amiga ficassem muito distantes.
Assim que teve este pensamento, Kyra, de repente, ouviu um grito, seguido pelo grito de um cavalo e um estrondo. Ela olhou para trás e ficou horrorizada ao ver que o porco-chifre lider, mais rápido do que os outros, tinha apanhado Dierdre e a sua égua. A fera pulou repentinamente, perfurando a égua com os seus longos chifres e depois afundou os seus dentes afiados nas suas costas.
A égua cambaleou e Kyra ficou horrorizada ao ver a amiga a cair, também. Ela voou para fora da égua e rebolou na floresta, enquanto o porco-chifre, ansioso, atacou a égua, rasgou-a em pedaços, enquanto esta gritava. Kyra sabia que era apenas uma questão de tempo até que ele pusesse os olhos em Dierdre.
O grupo em breve os apanhou, todos eles distraídos uma vez que se lançaram sobre a égua e rasgaram-na em pedaços.
Kyra não podia deixar a sua amiga ali desamparada. Ela virou Andor e dirigiu-se para Dierdre, com Leo ao seu lado. Cavalgou até ao lado da amiga, estendeu-lhe a mão, agarrou a dela e puxou-a para cima. Dierdre sentou-se atrás dela e todos se viraram e partiram, enquanto os porcos-chifre, ansiosos, continuaram a devorar a sua presa, lutando pelas partes do cavalo.
Kyra rasgou pela Floresta Branca a galope e Kyra tinha a certeza, dada a incrível velocidade de Andor, que em breve iriam estar a uma grande deles.
Mas o seu coração caiu quando ouviu um som familiar atrás dela: um porco-chifre separou-se do grupo, com o seu focinho coberto de sangue e perseguiu-os, ainda não satisfeito.
A criatura lançou-se a eles e Leo, rosnando, de repente parou, virou-se e atacou.
"LEO!", gritou Kyra.
Mas Leo não seria dissuadido. Ele saltou no ar e foi contra a sua cabeça, afundando os seus dentes afiados na garganta do porco-chifre, pegando-o desprevenido e atirando-o ao chão, apesar do seu tamanho.
Kyra assistiu em choque, tão orgulhosa da coragem de Leo, mas ficou surpreendida ao ver que, pela primeira vez, os dentes afiados cortantes do seu lobo não foram capazes de perfurar uma pele de criatura, de tão tão grossa que era. O porco-chifre apenas rebolou nas suas costas e atirou Leo, que saiu a voar de costas. Então o porco-chifre atacou o lobo que estava de bruços.
Kyra, horrorizada, viu que a fera estava prestes a matar Leo e que ela não iria alcançá-lo a tempo.
"NÃO!", gritou Kyra.
Os reflexos dela irromperam. Sem pensar, apanhou o seu arco, colocou uma flecha, levantou-a e fez pontaria.
O seu coração batia fortemente ao assistir à flecha a navegar pelo ar, rezando para acertar na marca, com o pouco tempo que tinha tido para fazer a mira.
A seta acertou no olho do porco-chifre, um remate poderoso que teria derrubado qualquer outra fera.
Mas não esta. O porco-chifre gritava loucamente em agonia e, furioso, afastou-se de Leo e focou-se nela. A fera alcançou a sua pata e simplesmente partiu a seta em duas, depois rosnou para ela, com a morte nos seus olhos. Pelo menos a vida de Leo tinha sido poupada.
Atacou e Kyra não teve tempo para recarregar outra flecha; o porco-chifre estava muito perto e era muito rápido e ela sabia que, em apenas um momento, ele iria despedaçá-la.
Ouviu-se um rosnado feroz, ainda mais cruel do que o do porco-chifre e Kyra, de repente, sentiu Andor atirar-se para baixo dela. Andor rosnou, baixou os seus chifres e atacou com uma ferocidade diferente de qualquer uma que Kyra já tinha visto. Como ele fez o pino, Kyra teve de se segurar.
Um momento depois, ouviu-se um tremendo barulho quando as duas criaturas se defrontaram, como se o mundo estivesse a abanar por baixo dela. Os chifres de Andor espetaram o porco-chifre de lado e este gritou em verdadeiro desespero. Kyra ficou chocada ao testemunhar Andor a levantar a imensa criatura alto no ar, empalado nos seus chifres, em cima, como se exibindo um troféu da sua matança.
Andor atirou-o e ele voou através da floresta e aterrou com um baque, sem vida.
Assobiando para Leo para este os seguir, Kyra esporeou Andor e o grupo deles virou-se e partiu a galope, correndo de volta através da floresta, com Kyra a tentar obter a maior distância que conseguisse do resto do grupo, sabendo que aquela era um batalha que ela não queria lutar - e uma batalha que eles todos não conseguiam ganhar. Ela esperava e rezava para que os porco-chifres se fartassem e que, com um dos seus mortos, talvez eles pensassem duas vezes antes de prosseguir adiante.
Ela estava errada. Kyra ouviu um som familiar atrás dela e seu coração caiu quando ela imediatamente percebeu que o resto do grupo vinha atrás deles. Implacáveis, eles perseguiram-nos através das folhas sussurrantes, todos tão determinados como sempre. A morte de um deles só pareceu animá-los. Aquelas criaturas tenazes pareciam que nunca iriam desistir.
Dada a quantidade deles, Kyra sabia que a sua situação era desesperante: não havia nenhuma maneira de Andor e Leo os conseguirem derrotar todos ao mesmo tempo. Ela sentiu um pânico súbito porque sabia que todos iriam morrer nas mãos dessas criaturas.
"Nós não vamos conseguir!", gritou Dierdre, com uma voz de medo, quando olhou para o grupo, que rosnava e se aproximava.
Kyra esgotou o seu cérebro, pensando muito enquanto galopavam, percebendo que precisavam de outra solução - e rapidamente. Ela fechou os olhos e concentrou-se, forçando-se a entrar em sintonia, em recorrer a todas as suas faculdades para salvá-los. Apesar do caos ao seu redor, ela ficou muito tranquila por dentro.
Kyra de repente começou a ouvir um barulho, que ela não tinha ouvido antes. Abriu os olhos e concentrou-se no som da água agitada e lembrou-se: o rio Tanis. Eles estavam a caminhar paralelamente ao rio e eram praticamente cem jardas à sua esquerda. De repente, ela teve uma ideia.
"O rio!", gritou Eea para Dierdre, recordando todas aquelas jangadas planas de madeira que tinha visto amarradas ao longo das suas margens. "Nós podemos ir pelo rio!"
Kyra de repente puxou as rédeas de Andor, fazendo uma curva à esquerda, em direção à água; quando o fez, os porcos-chifre, que estavam logo atrás deles, saltaram pelo ar e falharam, caindo de focinho no chão. A curva acentuada deu-lhes algum tempo.
Kyra espetou os seus calcanhares no Andor e eles galoparam a toda a velocidade, com o som da água a ficar mais alto. Ela passou a correr por ramos pelos quais já havia passado, que estavam dentro e fora das árvores, arranhada, mas já sem se importar, respirando com dificuldade, ouvindo o grupo atrás deles e a saber que o seu tempo era limitado.
Vá lá, pensou ela, instando o rio a aparecer. Vá lá!
Eles finalmente irromperam da floresta, para uma clareira, e, lá, diante deles, estava o rio em vista, a pouco menos de trinta jardas de distância.
"E Andor?", gritou Dierdre quando eles se aproximaram.
Kyra focou-se num barco largo e plano, amarrado na sua margem e percebeu que iria servir as suas necessidades.
"Aquilo vai aguentar-nos a todos!", gritou ela de volta, apontando.
Kyra fez Andor parar perto da costa e todos eles desmontaram imediatamente. Kyra começou a correr rapidamente para a margem, saltando para o barco que balançava descontroladamente, com Leo e Dierdre ao seu lado. Ela abriu espaço para Andor, empurrando-o pelos rins, mas ficou chocada ao sentiu que ele resistia.
Andor ficou em terra e recusava-se a seguir, resistindo como um louco. Kyra questionava-se o que poderia ser. No início, ela pensou que talvez ele tivesse medo da água. Mas então Andor deu-lhe um olhar significativo e, de repente, ela entendeu: ele não estava com medo. Ele queria ficar para trás e proteger a retaguarda deles, para lutar contra os porcos-chifre até a morte, sozinho, de modo que todos pudessem escapar sem ele.
Kyra foi esmagada pela sua lealdade, mas ela não podia deixá-lo para trás.
"Não, Andor!", gritou Kyra.
Ela saiu do barco para ir buscá-lo.
Mas Andor de repente baixou a cabeça e usou os seus chifres afiados para cortar a corda. Kyra sentiu o empurrão do barco por baixo dela que, imediatamente, foi levado pelas encrespadas marés afastando-se rapidamente para longe da costa.
Kyra estava à borda do barco e assistiu, impotente, a Andor, em terra, a enfrentar o grupo. Ela viu um porco-chifre a passar a correr por ele e ficou surpresa ao vê-lo saltar para a água, nadando tão rápido como tinha corrido, dirigindo-se diretamente para o seu barco. Ela ficou chocada ao ver que os porcos-chifres conseguiam nadar e, de repente, ela percebeu: Andor sabia. Ele sabia que se não ficasse para trás eles poderiam ser atacados na água. Ele estava a sacrificar-se por todos eles.
Quando o porco-chifre se aproximou Leo rosnou, vociferando para a água enquanto se mantinha na borda do barco. Kyra ergueu o arco, mirou e disparou, acertando certeiramente na sua boca aberta.
A flecha alojou-se na sua boca aberta e o porco-chifre foi sugado pela água, debatendo-se enquanto se afogava.
Kyra olhou novamente para a margem e viu Andor a atacar corajosamente o grupo, mesmo estando em desvantagem. Ele devia saber que não poderia ganhar - e ainda assim ele não se importou. Era como se o medo não existisse dentro dele. Ela estava em êxtase com ele próprio; ele era como um grande guerreiro atacando sozinho um exército.
Kyra não podia suportar vê-lo a lutar sozinho - especialmente em seu nome. Isso ia contra tudo dentro dela.
"ANDOR!", gritou Kyra.
"É tarde demais", Dierdre disse, colocando a mão no seu braço, enquanto o seu barco à deriva se afastava cada vez mais para longe da costa, com os rápidos a ficarem mais violentos. "Não há nada que possamos fazer."
Mas Kyra recusou-se a aceitar isso. Não podia permitir que o seu amigo, o seu parceiro na batalha, ficasse para trás.
Sem pensar, Kyra deixou os seus impulsos assumirem o controlo. Ela correu e saltou fora do barco, no rio caudaloso, de imediato submersa nas águas geladas.
Kyra tentou nadar, desesperada para chegar à praia, para chegar a Andor, mas os rápidos eram muito intensos. Ela não conseguia fazê-lo a montante; ela não conseguia sequer recuperar o fôlego.
"KYRA!", gritou Dierdre, enquanto Leo gemia na borda do barco.
Um momento depois, Kyra deu por ela a debater-se, a afundar-se - e apercebendo-se, depois de tudo pelo que tinha passado, que iria morrer afogada.