Merk batia com o seu bastão no chão da floresta húmida, a empurrar as folhas sob os seus pés, a caminhar há dias pela Floresta Branca e determinado a não parar desta vez até chegar à Torre de Ur. Enquanto caminhava, fechou os olhos e, mesmo tentando, aquela cena de sofrimento não parava de piscar na sua mente, a miúda, a sua família, o seu choro.... As suas palavras finais ainda ressoavam nos seus ouvidos. Ele odiava-se a si mesmo por ter voltado para ela - e odiava-se a si mesmo por a ter deixado.
Merk não entendia o que lhe estava a acontecer; toda a sua vida ele tinha sido insensível à culpa, à repreensão, aos problemas dos outros. Ele tinha sempre controlado a sua vida sem ninguém lhe dizer o que fazer, na sua própria ilha, na sua própria missão. Ele tinha sempre feito questão em manter-se à distância de um braço do mundo, não se envolvendo nos problemas de ninguém, a menos que eles precisassem das suas habilidades especiais e houvesse um pagamento substancial envolvido.
Mas agora, por alguma razão, Merk não conseguia parar de pensar naquela miúda que mal conhecia, na repreensão que aquela tinha feito acerca do seu caráter, apesar de ele ter feito o que estava correto. Ele não sabia porque é que isso o incomodava, mas incomodava.
Ele, é claro, não podia voltar para ela novamente. Ela teve sua oportunidade. O que o incomodava era porque é que ele tinha voltado atrás. Ele já sabia o que estava certo: era viver uma vida para si mesmo, ou viver a vida de outros? Seria o seu encontro com ela uma lição? Se sim, qual foi a lição aprendida?
O que é que estava errado, Merk questionava-se, em apenas viver uma vida para si mesmo? Para as suas próprias necessidades egoístas? Para a sua própria sobrevivência? Porque é que as pessoas tinham de se envolver na vida de outras pessoas? Porque é que se haviam de importar? Porque que as pessoas não podiam contar com eles próprios para sobreviver? E se eles não podiam, então porque é que tinham o direito a sobreviver?
Algo estava a bater na sua consciência, um conhecimento, talvez, de que havia um mundo maior lá fora, a percepção de que olhar apenas por si mesmo toda a sua vida o tinha levado a uma profunda solidão. Era uma constatação que ajudar as outras pessoas podia ser a melhor maneira de se ajudar a si mesmo também. Ele percebeu que lhe dava um certo sentimento de ligação com o mundo maior, sem o qual ele sentia que viria a esmorecer e morrer.
Era um objetivo. Era isso. Merk implorava por um objetivo da mesma maneira que um homem faminto implora por comida. Não o propósito de um outro homem que estava a contratá-lo, mas um propósito da sua autoria. Não era de um trabalho que ele precisava – era de significado. O que era significado? Perguntava ele. Era subtil, sentia-se sempre fora de alcance. E ele odiava coisas sobre as quais não conseguia facilmente colocar o seu dedo.
Merk olhou para cima enquanto caminhava pela Floresta Branca, as suas folhas completamente brancas brilhando ao sol do final de tarde, os raios dourados de um pôr-do-sol adiantado cortando-as e lançando-as numa bela luz. Era um lugar mágico. Uma brisa quente soprava, o tempo finalmente a virar-se, os assobios a encherem os seus ouvidos e quando as folhas caíam das árvores, estas choviam à sua volta. Merk obrigou-se a concentrar os seus pensamentos de volta para a sua caminhada, o seu destino. A Torre de Ur.
Merk já se via como um Sentinela, entrando na ordem sagrada, protegendo o reino de trolls e de qualquer outra pessoa que se atrevesse a tentar roubar a Espada de Fogo. Ele sabia que era um dever sagrado, sabia que o destino de Escalon dependia disso e ele queria apenas ter o sentido de dever. Ele não conseguia esperar para que os seus talentos fossem colocados em uso por uma boa causa, não por uma causa egoísta. Era a ordem mais alta que ele poderia imaginar.
No entanto, Merk foi atingido por uma preocupação súbita quando um pensamento terrível passou pela sua cabeça como uma sombra: e se eles o recusassem? Ele tinha ouvido que os Sentinelas eram um grupo diversificado, formado por guerreiros humanos, como ele, mas também por outra raça, uma raça antiga, uma parte humana e outra parte algo mais - famosos por recusar pessoas. Ele não tinha ideia de como eles reagiriam à sua presença. Como seriam eles? Perguntou ele a si próprio. Será que o iam aceitar? E se eles não o fizessem?
Merk subiu uma colina e quando o fez, viu um vale que se espalhava diante dele e ao longe, uma enorme península que se estendia até ao Mar de Arrependimento, com água cintilante a toda à volta. Ele engasgou-se. Na sua extremidade, varrida pelo vento, lá estava: a Torre de Ur. O coração de Merk ficou a bater mais rápido com a visão. Rodeada pelo oceano por três lados, enormes ondas quebravam-se nas rochas e pulverizavam neblina, brilhando à luz do sol, a torre estava localizada na mais memorável e bela paisagem que ele alguma vez já tinha visto. Com uma centena de pés de altura, cinquenta pés de largura, com a forma de um círculo perfeito, a sua pedra era antiga, num tom de branco que ele nunca tinha visto antes, parecendo como se estivera ali durante séculos. A parte de cima era composta por uma cúpula lisa dourada e redonda, refletindo o sol e sua entrada estava marcada por portas altas, trinta pés de altura, em arco, também elas, feitas de ouro reluzente.
Era o tipo de lugar que Merk esperava ver em sonhos. Era um lugar sobre o qual ele sempre pensou e um lugar que ele quase não conseguia acreditar que era real. Vê-lo agora, em pessoa, tirava-lhe o fôlego. Ele não acreditava em energia, ainda assim, ele não podia negar que tinha havido algum tipo de energia especial que irradiava do lugar.
Merk começou a descer a colina com um novo balanço nos seus passos, feliz por estar na etapa final da sua viagem. A floresta abriu-se e ele encontrou um campo liso e verde, a entrada para a península, mais quente ali do que o resto do Escalon. Ele sentiu o sol a brilhar na sua cara, ouviu o bater das ondas, viu o céu aberto diante dele e sentiu uma profunda paz. Ele sentia que, finalmente, tinha chegado.
Merk caminhou, a torre a ver-se à distância e ele ficou pasmado ao ver que ninguém montava guarda à volta dela. Ele esperava encontrar um pequeno exército a guardá-la por todos os lados, protegendo as relíquias mais preciosas de Escalon, e, estava perplexo. Era como se estivesse abandonada.
Merk não conseguia entender. Como poderia estar um lugar tão bem guardado, sem sequer ter ninguém do lado de fora? Ele sentiu que era um sítio diferente de qualquer outro onde ele já estivesse estado, que ele iria aprender coisas ali sobre a arte do combate que ele nunca aprenderia noutro lugar.
Merk continuou a caminhar e chegou a um amplo planalto de erva diante da torre. Diante dele estava uma escultura curiosa: uma escadaria de pedra, circular, subindo cerca de vinte pés de altura, com os seus degraus esculpidos em marfim. Os degraus viravam-se e torciam-se e, estranhamente, levavam a nada para além do ar. Era uma escada em espiral sem suporte e Merk não conseguia entender o seu significado ou simbolismo, ou porque tinha sido colocada ali no meio daquele campo de erva. Ele perguntava-se que outras surpresas teria pela frente.
Merk continuou e quando se aproximou das portas altas e douradas para a torre, a quase vinte jardas de distância, o seu coração acelerou com a expectativa. Ele sentia-se diminuído por aquele lugar, pela admiração que lhe tinha. Caminhou com reverência até as portas, parando diante delas, e, lentamente, colocou as palmas das mãos sobre o ouro. O metal estava frio e curiosamente seco, apesar da brisa do oceano; ele conseguia sentir os contornos dos símbolos esculpidos, suaves na palma da mão. Ele esticou o pescoço para trás e olhou direto para a torre, admirando a sua altura, o seu design impecável. Raramente ao longo da sua vida se tinha sentido na presença de algo maior do que si mesmo - arquitetonicamente, fisica e espiritualmente – apesar de agora, pela primeira vez, o ter sentido.
Merk observou as antigas portas douradas, como um portal para outro mundo, a guardar, ele sabia, o maior tesouro em Escalon. Elas brilhavam ao sol e Merk foi levado não só pelo seu poder, mas também pela sua beleza. Aquela torre era em dobro por ser uma fortaleza e uma obra de arte.
Ele viu um manuscrito antigo gravado no ouro e desejou desesperadamente conseguir entender o seu significado. Sentiu um profundo pesar por não saber ler nem escrever e sentiu-se envergonhado quando tentou. Aqueles que tinham vivido lá dentro sabiam mais do que ele alguma vez conseguiria. Ele não era da classe nobre e, se antes nunca o tinha desejado ser, naquele dia, ele o desejou.
Merk procurou por uma maçaneta nas portas, um batente, algum ponto de entrada - e ficou surpreendido por não encontrar nenhum. Aquele lugar parecia estar perfeitamente selado.
Ele ficou ali, imaginando. Aquele lugar era um mistério profundo. Não se ouvia nenhum barulho, nenhuma atividade dentro ou fora, não havia Sentinelas, não havia seres humanos - nada para além de silêncio. Ele estava perplexo. Ouvia-se apenas o som do vento, um vento assobiando, ondulando para fora do oceano, soprando com tanta força que quase o derrubava, desequilibrando-o, antes de desaparecer tão rapidamente como tinha aparecido. Era como se aquele lugar tivesse sido abandonado.
Sem saber mais o que fazer, Merk estendeu a mão e começou a bater à porta com o seu punho. Praticamente não fez nenhum som, ecoando, em seguida, desaparecendo, abafado pelo vento.
Merk esperou, à espera que a porta se abrisse.
Mas não chegou nenhuma resposta.
Merk questionou-se sobre o que haveria de fazer para tornar a sua presença notada. Ele ficou ali, a pensar e então, finalmente, teve uma ideia. Ele tirou a adaga do cinto, colocou-a alta e bateu com o seu cabo na porta. Desta vez, o ruído agudo repercutiu-se por todo o lugar, ecoando uma e outra vez. Não havia nenhuma hipótese de não ouvirem aquilo.
Merk ficou ali à espera, ouvindo o eco morrer lentamente e começou a questionar-se se alguém iria aparecer. Porque que é eles o estavam a ignorar? Era algum tipo de teste?
Ele estava a pensar se havia de ir ao redor da torre, para procurar uma outra entrada, quando uma ranhura na porta de repente deslizou para trás, fazendo-o recuar. Ele foi apanhado de surpresa ao ver, a olhar para ele, pela altura dos olhos, dois olhos amarelos e penetrantes, não humanos como ele nunca tinha visto, olhando diretamente através da sua alma. Isto incutiu nele um calafrio.
Merk olhou para trás, sem saber o que dizer no silêncio tenso.
"O que é que desejas aqui?", disse finalmente a voz, uma voz profunda e oca que o deixou nervoso.
Ao princípio, Merk não sabia como responder. Finalmente, ele respondeu:
"Gostava de entrar. Eu desejo tornar-me um Sentinela. Para servir Escalon."
Os olhos olharam fixamente de volta, inflexíveis, sem expressão e Merk pensou que a criatura nunca iria responder. Finalmente, porém, a resposta veio, numa voz retumbante:
"Somente os dignos podem entrar aqui", respondeu.
Merk corou.
"E o que te faz pensar que eu sou indigno?", perguntou ele.
"De que maneira me consegues provar que és?"
A ranhura fechou-se tão rapidamente como se tinha aberto e com isso, as portas ficaram completamente seladas novamente.
Merk olhou de volta no silêncio, perplexo. Ele estendeu a mão com a sua adaga e bateu na porta uma e outra vez. O som oco ecoou, zumbido nos ouvidos, enchendo a paisagem desolada.
Mas independentemente de quanto tempo e de com quanta força ele bateu, a fenda não se abriu novamente.
"Deixa-me entrar!", gritou Merk, um grito cheio de desespero, que se elevou aos céus, quando ele se inclinou para trás em agonia e percebeu que aquelas portas talvez nunca mais se abrissem novamente.