CAPÍTULO VINTE E TRÊS

 

 

Quando o enorme tubarão vermelho - trinta pés de comprimento – saltou para fora do rio e atirou-se, com as mandíbulas bem abertas, direto para Duncan, ele preparou-se. Sabia que rapidamente ele aterraria no seu barco, partindo-o em pedaços e despedaçando-o a ele próprio. Pior ainda, à sua volta um grupo daqueles tubarões saltou pelo ar, para atacar por todo o lado os seus homens e respetivas jangadas.

Duncan reagiu instintivamente, como sempre fazia em batalha. Sacou da sua espada e preparou-se para ir de encontro à cabeça do seu adversário. Morreria com nobreza, se conseguisse distrair aquela criatura tendo-a focada apenas em si. Então talvez conseguisse salvar os outros homens que estavam na sua jangada.

"SALTEM!", ordenou Duncan aos seus outros homens com a sua mais agressiva voz. Os outros soldados na sua jangada fizeram como lhe ordenara, saltando ao mar, sem nenhum a precisar de ser incentivado, já que o tubarão enorme vinha na direção deles.

Duncan agarrou a sua espada com as duas mãos, deu um passo à frente e com um grande grito de guerra levantou a espada e enfrentou de frente o tubarão. Quando o tubarão desceu ele agachou-se e levantou a espada para cima, com o objetivo de atingi-lo por baixo da mandíbula inferior. Ele ficou de pé quando o fez, espetando a sua espada pela mandíbula do tubarão e através do telhado da sua boca, fechando a mandíbula, presa com a sua longa espada. Ele ficou surpreso com a dureza da sua pele, com o seu enorme peso, uma vez que precisou de toda a sua força para levar a espada para cima.

O sangue escorria por Duncan abaixo e o tubarão, agitado, começou a cair sobre ele. Duncan, ainda a segurar a espada, não conseguiu sair do caminho a tempo e viu o seu peso enorme a cair sobre ele, sabendo que seria esmagado.

O berro de Duncan foi abafado quando o tubarão caiu em cima dele. Devia pesar mil libras e quando aterrou sobre ele, Duncan sentiu-se esmagado na jangada. Era como se as suas costelas estivessem a ser esmagadas ao mesmo tempo que o seu mundo ficava envolto numa escuridão.

A madeira da jangada fragmentou-se por debaixo dele quando a jangada se partiu aos pedaços e Duncan, de repente sentiu-se, felizmente, mergulhando na água, livre do peso do animal. Se estivesse em terra, ele tinha noção, teria sido esmagado até a morte, mas com a água por baixo e porque a jangada se despedaçou, ele ainda estava vivo.

Submerso, tentando orientar-se, ainda a afundar-se debaixo do tubarão, Duncan tentou nadar para longe enquanto o tubarão continuava a ir atrás dele. Felizmente, com suas mandíbulas fechadas e fortemente fixadas, ele não foi capaz de mordê-lo.

Duncan deu aos pés e nadou para sair debaixo dele, libertando a sua espada e levando várias pancadas fortes. Virou-se e esperava estar a ser seguido, o sangue jorrava para todos os lados e ele observou o tubarão finalmente a afundar-se no leito do rio.

Duncan nadou através das águas geladas, cada parte do seu corpo a doer-lhe, a corrente a levá-lo rio abaixo enquanto ele olhava para a luz solar e dirigia-se para a superfície. Quando ele olhou para cima através da água cristalina conseguiu ver o grupo de tubarões a saltar alto no ar, conseguiu ouvir os seus sons abafados a caírem à volta dele - e dos seus homens a gritar. Encolheu-se por dentro, vendo as águas a ficarem vermelhas com o sangue, observando os corpos a começam a afundar-se, sabendo que lá em cima estavam homens bons a morrer.

Duncan, finalmente, irrompeu para a superfície, arfando, boiando na água, tentando orientar-se. Ele olhou rio acima e viu que o grupo de tubarões já tinha passado, saltando como o salmão rio acima, despedaçando jangadas aleatoriamante enquanto iam. Ele ficou aliviado ao ver que não estavam a fazer alvo nos seus homens; em vez disso, eles apenas continuavam rio acima, alheios ao que estava diante deles, saltando e aterrando, partindo o que quer que fosse que estivesse no seu caminho – comiam um homem caso ele estivesse no seu caminho, mas se não, então continuavam a nadar. Claramente eles estavam ir a qualquer lado e o grupo manteve-se unido, desaparecendo de vista tão rapidamente quanto tinha aparecido.

Duncan, nas correntes, observava os danos. Cerca de um terço da sua frota tinha sido destruída, poças de sangue enchiam o rio, corpos flutuando, toros por todos os lados. Dezenas de homens estavam mortos ou feridos, alguns gemendo, contorcendo-se, outros sem vida flutuando na superfície. Duncan viu os homens da sua própria jangada, viu os seus filhos, viu Seavig, Anvin e Arthfael e ficou aliviado ao ver que eles haviam sobrevivido. As suas jangadas tinham sido esmagadas, também, e, eles estavam na água não muito longe dele.

Ao redor dele homens pescavam os sobreviventes, puxando-os para as jangadas, resgatando os feridos e permitindo que os mortos flutuassem a jusante. Foi uma cena terrível de carnificina, uma onda de morte que tinha saído de um céu azul claro. Duncan percebeu que eles tiveram sorte em terem sobrevivido.

Duncan sentiu uma picada no braço e viu que o seu ombro direito tinha sido raspado de forma grave pela pele do tubarão. A ferida sangrava e, embora fosse doloroso, ele sabia que não estava em risco de vida. Ele ouviu salpicos de água, virou-se e viu Seavig ao lado dele, ficando horrorizado ao ver sangue a escorrer das mãos do seu amigo e ver que lhe faltavam dois dedos.

"A tua mão!", gritou Duncan, chocado por Seavig parecer tão estóico.

Seavig encolheu os ombros. Ele cerrava os dentes ao arrancar um pedaço de pano da sua camisa e enrolá-lo à volta da sua mão sangrenta.

"Apenas um arranhão", respondeu ele. "Havias de ver o tubarão", acrescentou com um sorriso.

Duncan sentiu umas mãos fortes a agarrarem-no por trás e imediatamente sentiu que estava a ser puxado para cima de uma jangada. Sentou-se ali, respirando pesadamente, recuperando lentamente a compostura. Olhou para o horizonte e viu, mais perto do que nunca, as montanhas de Kos e sentiu uma nova determinação. O seu exército, ou o que quer que fosse que tivesse sobrado dele, ainda estava a flutuar inevitavelmente rio abaixo e nada poderia detê-los agora.

O Thusius contorceu-se e virou ao aproximarem-se de Kos e a paisagem mudou drasticamente. As imponentes montanhas dominavam esta região de Escalon, os seus picos cobertos de neve, cobertos de neblina, pairando sobre tudo. O clima ali era mais frio, também, e, Duncan sentiu-se como se estivesse a entrar num país diferente.

Duncan só queria sair daquele rio, para voltar à terra onde se sentia mais em casa. Ele lutaria com qualquer homem, qualquer exército, qualquer animal ou criatura - ele apenas o queria fazer em terra. Ele não gostava de lutar onde não conseguisse permanecer firme e não confiava naquele rio amaldiçoado, nas suas criaturas ou nos seus remoinhos. Apesar de parecerem indomáveis, ele iria escolher as montanhas a qualquer momento e ficar com chão sólido sob os seus pés.

Enquanto o rio continuava a agitar-se, eles aproximaram-se da base das montanhas e Duncan viu as vastas planícies vazias, que o rodeavam. No horizonte, estacionados naquelas planícies, estavam guarnições após guarnições de tropas Pandesianas o que preocupou Duncan. O rio estava, por sorte, o suficientemente longe para manter os seus homens longe de vista, especialmente com as árvores que limitavam as suas margens. No entanto, entre as árvores Duncan poderia vislumbrar os soldados Pandesianos, ao longe, guardando as montanhas como se fossem deles.

"Os homens de Kos devem ser dos melhores guerreiros de Escalon", disse Seavig, à deriva ao lado dele na sua jangada, "mas eles estão presos lá em cima. Os Pandesianos têm estado à espera, desde que invadiram, que eles desçam."

"Os Pandesianos nunca arriscariam subir", acrescentou Anvin, à deriva por perto. "Aquelas falésias são muito traiçoeiras."

"Eles não precisam", acrescentou Arthfael. "A Pandesia tem-los presos e vai esperar até que eles forcem a sua rendição."

Duncan observou a paisagem, pensando.

"Então, talvez seja a altura de os libertarmos", disse ele finalmente.

"Não devemos ter uma luta em mãos antes de alcançarmos as montanhas?", perguntou Anvin.

Seavig abanou a cabeça.

"Este rio serpenteia a base da montanha, através da passagem estreita", respondeu ele. "Vamos desembarcar do outro lado e subir as montanhas sem sermos vistos. Isso vai poupar-nos um confronto com os Pandesianos"

Duncan assentiu, satisfeito.

"Eu não me importaria de confrontá-los agora", disse Anvin, com a sua mão na espada enquanto espreitava por entre as árvores as planícies distantes.

"Tudo a seu tempo, meu amigo", disse Duncan. "Primeiro, reunificamos Kos – depois atacamos a Pandesia. Quando os combatermos, quero que estejamos unificados, uma força - e eu quero que seja à nossa maneira. É tão importante escolher quando e onde lutar, como é escolher com quem lutar."

À medida que os barcos navegavam debaixo de um afloramento de pedra natural, com o rio a estreitar, Duncan olhou para cima e estudou as montanhas, alcançando-as diretamente até ao céu.

"Mesmo se alcançarmos os picos", Arthfael disse, voltando-se para Duncan, "achas mesmo que Kos se vai juntar a nós? Eles são pessoas da montanha - eles são conhecidos por nunca virem cá abaixo."

Duncan suspirou, questionando-se a mesma coisa. Ele sabia que os guerreiros de Kos eram muito teimosos.

"Pela liberdade", respondeu ele finalmente, "um verdadeiro guerreiro fará o que for certo. A vossa pátria encontra-se no vosso coração – e não onde vivem."

Os homens ficaram em silêncio enquanto pesavam nas suas palavras e estudavam o rio em constante mudança diante deles. As montanhas fechavam-se agora sobre eles, bloqueando-os completamente das vastas planícies, das guarnições Pandesianas, à medida que o rio continuava agitado no seu caminho para o sul.

"Lembras-te quando nós fizemos o Thusius até ao fim?"

Duncan virou-se para ver Seavig a olhar para a água diante dele, perdido na memória. Ele abanou a cabeça, tendo uma memória que ele preferia esquecer.

"Bem demais", ele respondeu.

Duncan lembrou-se da terrível viagem, todo o caminho para o Dedo do Diabo e para a Torre de Kos. Ele tentou sacudi-lo da sua mente, as lembranças daquela terra árida onde ele quase morreu. Chamavam-lhe o país do diabo - e com razão. Ele tinha jurado nunca mais voltar.

Duncan observou as montanhas a fecharem-se sobre as margens do rio, brancas com neve e gelo. Eles tinham chegado e ele perguntou-se onde é que Seavig desembarcaria. Este, também, tinha estudado a paisagem, em alerta. Finalmente, ele assentiu com a cabeça e Duncan ergueu um punho, sinalizando aos seus homens para parar - e a não fazer soar as buzinas.

Uma jangada de cada vez era guiada em direção à margem do rio, com o som suave das jangadas de madeira a bater umas contra as outras e, em seguida, atracando numa costa rochosa. Duncan saltou para terra assim que chegaram, emocionado por estar de volta a terra firme, e, os seus homens seguiram o seu exemplo. Ele virou-se e empurrou novamente para a água a sua jangada com o pé, abrindo espaço para as outras jangadas a seguir, tal como fizeram todos os seus homens. Ele observou como as jangadas agora vazias se afastavam com a corrente.

"Será que nós não precisamos das nossas jangadas?", perguntou Arthfael com preocupação.

Duncan abanou a cabeça.

"Vamos descer esses penhascos a pé", respondeu ele, "pelo outro lado, com um exército a reboque e a atacar a capital - ou de forma nenhuma. Não há retirada – conseguimos ou morremos."

Duncan sabia o poder de queimar etapas quando era preciso – enviava um sinal poderoso aos seus homens que de não havia como voltar atrás - e ele sabia que eles respeitavam esse sinal.

Em breve, centenas dos seus homens estavam reunidos na base das montanhas e Duncan fez um balanço: ele conseguia ver que todos eles tremiam, esgotados, com frio e fome. Ele sentia o mesmo, mas não se atrevia a demonstrá-lo: afinal, o pior da jornada deles ainda estava por vir.

"HOMENS!", gritou Duncan quando eles se reuniram em torno dele. "Eu sei que vocês todos têm sofrido muito. Não vos vou mentir: o pior ainda está para vir. Devemos escalar estes penhascos e fazê-lo rapidamente e provavelmente não vamos encontrar uma recepção hospitaleira lá em cima. Não haverá descanso e a caminhada será difícil. Eu sei que alguns de vocês estão feridos e eu sei que perderam amigos próximos. Mas perguntem-se quando estiverem a subir: qual é o preço da liberdade."

Duncan examinava as suas caras e conseguia vê-los tranquilizados pelas suas palavras.

"Se há alguém aqui que não está à altura da viagem que temos pela frente, dê um passo em frente agora", gritou ele, observando-os a todos.

Ele esperou num silêncio profundo e não houve um único homem, ele ficou aliviado ao constatar, que desse um passo em frente. Ele sabia que não havia. Aqueles eram os seus homens e eles iam segui-lo até a morte.

Satisfeito, Duncan virou-se e preparou-se para subir os penhascos - quando, de repente, ouviu um barulho e virou-se para ver emergir das árvores uma dúzia de rapazes. Eles tinham nos seus braços centenas de grandes sapatos de neve, com espigões na parte de baixo, juntamente com espigões de gelo e maços de corda.

Duncan lançou um olhar curioso a Seavig, que olhou de volta com conhecimento de causa.

"Comerciantes de Montanha", explicou. "É assim que eles ganham a vida. Eles querem vender-nos os seus produtos."

Um rapaz deu um passo em frente.

"Você vai precisar destes", disse ele, segurando um sapato de neve. "Qualquer um que suba estas montanhas precisa deles."

Duncan pegou no sapato e examinou os seus espigões afiados. Ele olhou para os penhascos e pensou sobre a subida cheia de gelo.

"E quanto é que queres por isso?", perguntou Duncan.

"Um saco de ouro por todo o lote", disse um rapaz, dando um passo para a frente, com a cara toda suja.

Duncan olhou para o rapaz, perto da idade dos seus próprios filhos, a olhar como se não comesse há dias e o seu coração ficou despedaçado; claramente, ele tinha uma vida dura por ali.

"Um saco por esta porcaria?", perguntou Brandon ironicamente, dando um passo em frente.

"Fique com eles sem pagar, Pai", acrescentou Braxton, dando um passo ao lado dele. "O que é que eles vão fazer – impedir-nos?"

Duncan olhou para os seus próprios filhos com vergonha. Eles tinham tudo e, ainda assim, negavam àqueles meninos pobres a sua subsistência.

Duncan adiantou-se e empurrou para trás os seus dois filhos, depois olhou para os rapazes e assentiu profundamente abanando a cabeça.

"Vocês ficam com dois sacos de ouro", disse Duncan.

Os raspazes engasgaram-se em delírio, com os olhos arregalados e Duncan voltou-se para os seus filhos:

"E o dinheiro virá dos vossos cofres pessoais", disse ele severamente. "Cada um de vocês entregue-me um saco. Agora."

Não era uma pergunta, mas uma ordem e Brandon e Braxton olharam cabisbaixos. No entanto, eles devem ter visto o olhar determinado nos olhos do seu pai, uma vez que, relutantemente, levaram a mão à cintura e cada um agarrou um saco.

"Este é todo o meu ouro, Pai!" Brandon gritou.

Duncan assentiu, indiferente.

"Bom", respondeu ele. "Agora entrega-o aos rapazes."

Brandon e Braxton, a contragosto, chegaram-se à frente e entregaram os sacos aos rapazes. Eles, encantados, desataram a correr para a frente e entregaram a Duncan e aos seus homens os sapatos e as cordas.

"Sigam pelo lado oriental", aconselhou um dos rapazes a Duncan. "Há menos derretimento. O norte parece mais fácil, mas fica mais estreito – e vão ficar presos. Lembre-se - não retire os espigões. Vai precisar deles para mais do que uma causa."

Com isso os rapazes viraram-se e correram de volta para a floresta, enquanto Duncan ficou a pensar nas suas palavras.

Ele e os seus homens colocaram os sapatos e prenderam as cordas de escalada sobre os seus ombros e, quando Duncan as colocou, percebeu o quanto iria precisar delas.

Todos se viraram para subir a montanha quando de repente um outro homem desatou a correr vindo da floresta, vestido com trapos, talvez nos seus trinta anos, com cabelo gorduroso e longo e dentes amarelos. Ele parou diante deles e olhou nervosamente de homem para homem antes de se dirigiu a Duncan.

"Eu sou um rastreador", disse ele. "Eu sei as melhores rotas para Kos. Todos os que sobem confiam em mim. Caminhe sem mim e caminharará ao seu próprio risco."

Duncan trocou um olhar com Seavig.

Seavig adiantou-se casualmente e pôs a mão no ombro do homem.

"Eu agradeço a sua oferta", disse ele.

O homem sorriu nervosamente e Seavig, para choque de Duncan, puxou de repente um punhal da cintura e esfaqueou o homem no intestino.

O homem gemeu e tombou, caindo a seus pés, morto.

Duncan olhou para o corpo, atordoado.

"Porque é que fizeste isso?", Perguntou.

Seavig levantou a bota e empurrou o corpo do homem até ele ficar deitado de costas. Ele, então, desviou a camisa do homem e para fora saíram várias moedas de ouro a tilintar. Seavig baixou-se e segurou uma - e Duncan ficou chocado ao ver a insígnia do Imperador da Pandesia.

"Um homem de Escalon em tempos, talvez", disse Seavig. "Mas já não. Os Pandesianos pagaram-lhe bem. Se nós o tivéssemos seguido, estaríamos todos mortos agora."

Duncan estava surpreendido, nunca esperou por tal traição ali.

Seavig atirou o ouro Pandesiano de volta para o chão.

"Estas montanhas", disse Seavig, "contêm muito perigo."