XXV

Esperei por Bosco junto da porta da cabana. Havia uma cadeira velha ali largada, de pernas bambas, e sentei-me nela com os envelopes no colo. O sol iluminava a lona azul e vermelha do balão que o catalão remendara, agora completamente estendida no meio da clareira e pronta a insuflar, ligada por longas cordas pretas a uma gôndola deitada sobre a erva. Havia um pequeno pássaro pousado sobre a gôndola que bicava os filamentos de verga que se soltavam da superfície rugosa; outros pássaros idênticos faziam fila sobre o telhado da cabana e sobre o depósito vertical de botijas. Os sons do bosque eram os de pequenos animais que cruzavam a terra e o ar à procura de sustento e de luz; não corria uma aragem.

Bosco surgiu de parte nenhuma. Fechei os olhos e, quando os tornei a abrir, estava à minha frente, de braços cruzados, os músculos retesados, gotas de suor descendo-lhe da testa para as armações dos óculos. Tinha a espingarda ao ombro e observava-me com a atenção e a curiosidade de quem encontra um amigo há muito perdido em terras longínquas. Apoiei-me na bengala e ergui-me.

«Aqui tens os depoimentos», disse-lhe.

Bosco aproximou-se e pegou nos envelopes; cheirava a suor.

«Os envelopes estão fechados.»

«Foi uma questão de privacidade. Votámos e decidimos assim.»

Bosco escarneceu: «Pensava que tu falavas por todos.»

«Sabes que não é assim», respondi. «Foi o melhor que consegui fazer.»

«Falta um», disse Bosco, contando os envelopes.

«Na realidade, faltam três», atrevi-me a dizer. «A Olivia desapareceu esta manhã. E o Pym foi assassinado.»

Bosco olhou para o céu, onde algumas nuvens insuspeitas se começavam a juntar; por um instante pareceu registar a minha indiscrição, mas depois o céu reflectiu-se nos seus olhos muito claros, dando-lhe a aparência de um cego. Imaginei-o sentado num banco de uma avenida em Barcelona com um cartaz de papelão ao colo.

«O depoimento da Olivia não está em falta porque já o tenho», respondeu, enigmático. Depois repetiu: «Continua a faltar um.»

«O Roger e a Stella escreveram um depoimento conjunto», expliquei.

Bosco observou-me durante um momento, como se fosse capaz, dessa maneira, de averiguar a veracidade das minhas palavras; depois concordou com um aceno de cabeça.

«Entra», disse, e dirigiu-se à cabana, abrindo a porta.

O interior da habitação era escuro e cheio de humidade. Havia uma comprida mesa de trabalho ao centro, coberta de lonas por remendar; havia gôndolas inacabadas de diversos tamanhos, empilhadas umas nas outras, e longas tiras de vime reunidas em feixes; havia um ferro de soldar sobre a mesa, uma pá de coveiro e uma velha bigorna a um canto; na extremidade da mesa mais distante da porta estavam quatro maçaricos armados em estruturas de ferro, destinados a serem acoplados às cestas. Havia também uma grande ventoinha junto da bigorna e duas cadeiras desconjuntadas; sobre uma das cadeiras encontrava-se um chicote. Dois grandes candeeiros de metal, toscos, pendiam do tecto, as lâmpadas oferecendo uma luz fraca e intermitente.

Bosco apontou para uma cadeira velha e remendada a um canto e mandou-me sentar. Com os envelopes na mão, foi então para o fundo da cabana, onde a penumbra era maior. Nesse lado havia um colchão velho pousado sobre o chão de terra e, ao lado, uma gaiola pendurada num cabide, dentro da qual estavam dois pássaros mortos.

Sentei-me e observei-o durante algum tempo. Bosco abriu os envelopes um a um e leu com avidez, caminhando de um lado para o outro. Tentei descortinar alguma coisa no seu rosto que indicasse fúria, apreensão ou até apaziguamento, mas a obscuridade no fundo da cabana permitia ver apenas o seu vulto que, movendo-se compassado como o pêndulo de um relógio, fazia do roçar das páginas entre os dedos o exemplo da sua concentração. Descobri, com surpresa, que não estava em pânico. Era a inevitabilidade da coisa, julgo; a impossibilidade de fugir para escapar à situação. Era a impotência de termos chegado a um ponto em que tudo se nos escapava por entre os dedos e a decisão de Bosco – violenta, arbitrária – dependia apenas dele. Talvez os meus companheiros tentassem fugir naquela altura, cada um correndo numa direcção diferente pelo bosque dentro – nem sequer isso me deixou inquieto. Recordei o tempo de Budapeste e o jantar com Vincenzo no Borbíróság, onde pela primeira vez ouvira falar de Sabaudia e de Don Metzger; recordei a sensação de conflito e, mais tarde, de comunhão, e reconheci-as como sensações anódinas, que pertenciam a um tempo em que não havia verdadeiramente conflito ou comunhão, mas somente caprichos que nos mantinham à superfície das coisas; recordei o que havia acontecido num tempo ainda anterior a esse, um tempo que me parecia agora um mero esboço da vida desenhado por um idiota sem qualquer obra de arte em vista, um esboço que não passava disso − de um rascunho inútil sem pretensão a tornar-se um verdadeiro quadro da existência; pensei em como este hipotético quadro era, na verdade, impossível de completar pelo simples facto de existirmos uma vez, e uma vez apenas, e não haver tempo para lhe aplicar as pinceladas finais; recordei também os meus livros, e o meu apartamento, e Magda, e o meu ecrã de televisão onde o médico da série americana se arrastava de um lado para o outro curando doenças impossíveis de existir e muito menos de ser curadas; recordei outro médico, o verdadeiro, aquele que me dissera que não lembrava ao diabo andar a arrastar-me por aí como se fosse um velho, e de como essa velhice prematura − ou essa indisponibilidade, ou essa arrogância − me trouxera a esta escuridão onde, finalmente, me ocorreu uma frase de um romance de Kundera que Magda costumava ler repetida e obsessivamente e que dizia (não sem a sua razão, sem a sua estupidez, sem a sua dose de crueldade) que a vida de nada valia por ser um ensaio de si própria, um ensaio para uma peça que estava a acontecer ao mesmo tempo que era ensaiada.

Depois Bosco emergiu do fundo da cabana, pegou numa cadeira e sentou-se à minha frente.

«Falemos», disse.

«Estou a ouvir-te», respondi.

Bosco segurava as folhas na mão direita. Estava sentado na cadeira ao contrário, debruçado sobre o espaldar. A sua careca reluzia na semiobscuridade da cabana. Trouxera a espingarda e deixara-a repousar, com o cabo no chão. Ele tinha uma espingarda; eu tinha uma bengala.

«Temos aqui um problema sério que poderá não te favorecer», disse ele. Fez uma pausa e olhou para as folhas. «A maioria dos depoimentos aponta para um culpado da morte do Don Metzger.»

«Quem?»

«Tu», respondeu Bosco.

O sangue fugiu-me do rosto durante um instante. Depois tornou a subir e senti-me zonzo. A cara de Bosco ficou desfocada, distante; a seguir, tudo regressou ao seu lugar.

«Todos os depoimentos?»

Bosco agitou as folhas de papel. Não parecia zangado; parecia antes intrigado.

«Três dos cinco depoimentos indicam-te como culpado. Outro é o teu, por isso não conta. O quinto iliba-te, nomeando outra pessoa.»

«De quem é esse quinto?»

Bosco sorriu enigmaticamente. Traído pela ansiedade, inclinei-me para a frente na cadeira como se pudesse roubar-lhe as folhas das mãos enormes e calejadas; como se fosse eu o inquisidor. Bosco pegou na espingarda e, num movimento súbito, encostou a boca do cano ao meu peito. Fiquei paralisado ao sentir o metal frio sobre a camisa.

«É estranho colocares a pergunta dessa maneira», disse Bosco. «Qual deles te iliba. Outra pessoa quereria saber quais a acusam.»

«Se souber quem me iliba, saberei todos os que me acusam. É uma questão de lógica.»

«Não estava a falar de lógica, mas do entendimento que fazemos dela. O teu entendimento é singular. Não é motivado pelo desejo de sobrevivência, que gera o conflito entre a espécie e, naturalmente, a disputa e o ódio. Também não é motivado pelo amor.»

«Pelo amor? Não te percebo.»

Bosco perscrutou o meu rosto com os olhos profundos.

«Sabes por que razão o Don se referia a este tempo em Sabaudia como O Bom Inverno?»

«Não sei.»

«Quando era adolescente, passou algum tempo no Lesoto. A mãe tinha morrido e o pai era médico na África do Sul quando foram enviados para lá. O Lesoto tinha conseguido a independência há pouco tempo e era um país em convulsão; um enclave entregue a si próprio, no meio de nenhures. Não era apenas o país mais pobre de África, mas também o que tinha os invernos mais frios. Foi lá que o Don conheceu, pela primeira vez, o peso das coisas: a pobreza, a carência, a solidão interminável das planícies geladas. Depois, o pai mandou-o estudar para a Europa durante um dos invernos do Lesoto; o Don nunca tinha saído de África. Quando chegou a este continente, percebeu, pela primeira vez, que ao terrível Inverno no Lesoto correspondia o Verão neste lado do mundo. E, a partir de então, passou a referir-se a esta época do ano, na Europa, como o Bom Inverno.»

«O que tem isso a ver com tudo isto?»

«Se fores paciente», respondeu, num tom severo, «acabarás por compreender. Todas as coisas têm o seu contrário e a todas as coisas associamos outras. A tristeza ao Inverno, a felicidade ao Verão. Mas, como podes bem ver, um Inverno pode ser uma ocasião de júbilo; e um Verão, um evento funesto.» Fez uma pausa e puxou atrás o canhão da espingarda; depois destravou-o lentamente. «Havia um filósofo medieval que dizia que todo o amor era peso. O ódio, curiosamente, parece ser muito menos pesado, porque não nos consome por inteiro, extingue-se facilmente à primeira derrota, à primeira humilhação. Ao primeiro fracasso. Podia pensar-se que o amor constitui a nossa derradeira e eterna libertação, mas estamos enganados, porque ele nunca se extingue, continua a fazer de nós escravos. É um erro comum, aliás; como é que se costuma dizer por aí? Que o amor liberta? Que a verdade liberta? E o trabalho, também liberta o homem? Os filhos-da-puta dos fachos quiseram convencer toda a gente e escreveram-no à entrada de Auschwitz, Arbeit macht frei, e a verdade é que os judeus trabalharam, e depois continuaram presos, presos, presos. E, a seguir a isso, mortos.» Bosco inspirou fundo e depois expirou. «Desengana-te: o amor não é senão peso. É a coisa que com mais força nos prende a este mundo. Significa que estamos agarrados às coisas com unhas e dentes; que nos recusamos a deixá-las para trás, numa aflição patética. Porque é que te parece que enterramos os mortos? Porque eles carregam consigo o peso da vida: mesmo no leito de morte, o homem quer levar consigo as coisas que ama. É uma patologia que parece não ter fim: mesmo na morte, queremos arrastar connosco os vivos. Queremos levar o mundo para a cova; arrastar tudo para o Inferno. Somos mortos que não querem morrer, entendes? Mortos que se recusam a aceitar o destino.»

«Que destino é esse?»

O catalão olhou na direcção da porta que um vento repentino fez titubear.

«Sermos leveza ao invés de peso», disse. «Como os balões chineses. Insuflamos, expandimo-nos, subimos ao céu e, depois, desaparecemos para sempre. Não há dois balões iguais. Cada um só sobe uma vez, só faz uma viagem e, sendo assim, cada balão é único. O nosso propósito sempre foi esse: sermos leveza. Sermos únicos. Invadirmos gloriosamente os céus com a nossa chama. Não temermos a morte.»

«Todos tememos a morte.»

«Precisamente. É por temermos a morte que não sabemos viver; é por temermos a morte que somos tão pesados.» Bosco levantou uma das botas e tornou a deixá-la cair sobre a terra. Uma nuvem de poeira ergueu-se em redor da sola. «Peso», repetiu. «Mesmo quando nada amamos, continuamos a amar a ideia do amor. A ideia ridícula do amor. Mesmo quando o negamos, somos-lhe fiéis como uma circunferência é fiel ao seu centro. Gravitamos em seu torno.»

«Talvez porque o amor seja uma coisa importante.»

Bosco riu-se.

«Há muitos anos estudei Arte em Barcelona. Não me lembro exactamente quando. Setenta e oito, setenta e nove; por aí. A faculdade ficava na Carrer de Pau Gargalló. Nome inesquecível, não achas? Os meus colegas andavam inebriados pelo espírito dos tempos e faziam arte que exaltava o desejo. O desejo do corpo, o desejo das coisas: mulheres, fortuna, sucesso. Tudo era fácil, tudo parecia estar disponível. E todos eles foram um fracasso crónico. Sabes porquê? Porque pelo desejo, que não passa de amor mundano, somos convencidos de que existe alguma coisa fora de nós que completará o vazio que sentimos cá dentro. Quando isso não acontece, dizemo-nos acabados.» Bosco fingiu um tom de lamúria. «A minha mulher deixou-me; perdi tudo ao jogo; ninguém se importa comigo.» Vociferou: «Que sentido faz isto, explica-me? Se quem fez o universo nos quisesse unidos com as outras coisas, tinha-nos feito em agregados, e não solitários. Por alguma razão o universo é feito de unidades, de coisas únicas. A invenção do amor serve para disfarçar o facto de esta vida, que não se repetirá, ser brutal e solitária e o universo só guardar espaço, no final, para a sobrevivência de um homem.»

«Uma espécie de Adão do final dos tempos?»

Bosco moveu ligeiramente a posição do cano no meu peito.

«Imagina um conjunto de células, todas interligadas, que entram num processo de autodestruição. Um linfoma da humanidade que se propaga até só restar uma célula. Será o contrário do desejo, o oposto do amor. O código da espécie dita uma guerra contínua pela sobrevivência do mais forte; logicamente, restará uma última célula, um derradeiro homem. Mas até esse último homem, se viesse a existir por sobreviver a todos os outros, não poderia, ele próprio, resistir ao cruel escrutínio do tempo. A evolução da espécie é outro disparate que aceitámos por não saber-mos que sentido fazer disto; a evolução da espécie não é evolução nenhuma porque não há lugar nenhum aonde ir.»

«Estou confuso, Bosco. Aonde queres chegar?»

Bosco deixou a arma escorregar lentamente pelo meu peito e depois pousou-a sobre a minha coxa. Bateu-lhe duas vezes, levemente, com o cano.

«Estou a dizer-te que tu, ao contrário dos outros, não és um esquecido desta condição. Não és um esquecido da morte. Não esqueceste que, a cada momento, é um milagre que o nosso coração bata e os nossos pulmões se expandam e se contraiam a um ritmo constante, permitindo-nos experimentar esta coisa absurda que é a vida. Há qualquer coisa que te torna diferente. Se por um lado amas este mundo doente como todos os que ainda aqui se encontram, suspeito que, ao mesmo tempo, desprezas esse amor. Se pudesses, cuspirias nessa tirania. Isso faz de ti uma criatura com um propósito. Podes desconhecê-lo, podes até negá-lo, mas, no final, serás leve. Apesar da tua enfermidade, quando o fim chegar serás leveza.»

Bosco fez um compasso de espera e respirou fundo; a humidade no interior da cabana ensopara-me a camisa. O cano da arma deslizava contra as minhas calças.

«Não sou diferente de nenhum deles», disse. As mãos começavam a tremer-me. «Quando muito, sou pior do que eles porque escolhi não viver. Ou escolhi viver assim, desta maneira, muito mais parecida com um lento naufrágio do que com outra coisa qualquer. Dizes que o meu entendimento é singular, mas que género de homem prescinde do amor? Que género de homem ignora a sobrevivência? Que género de homem escolhe a sua vida por exclusão de partes?»

«Um homem vazio.»

«Sim. Um homem vazio.»

«Que está preparado para enfrentar o seu destino.»

«Qual é o meu destino, Bosco?»

O cano da espingarda tornou a subir e encostou-se outra vez ao meu peito; o meu pulso acelerou. Os olhos de Bosco eram duas esferas malévolas, onde o meu reflexo surgia distorcido na penumbra da cabana. A porta rangeu duas vezes agitada pelo vento.

«Disseste-me que eras escritor», disse ele. «E que os escritores escrevem porque procuram a resposta a uma pergunta.»

«Era mentira. Não sou escritor nenhum.»

Bosco pareceu ignorar-me. «Os escritores ordenam o mundo com palavras», insistiu.

«Ou desordenam-no, se forem maus escritores.»

Bosco ergueu as folhas que segurava na mão esquerda e depois deixou-as cair; as folhas espalharam-se pelo chão. O suor começava a escorrer-me pela testa.

«Não acredito numa palavra do que está escrito nestas páginas», disse Bosco. «Tens o teu quinhão de culpa. Prometeste-me depoimentos e o que me trouxeste foram aldrabices.» Apertou o cano da espingarda contra a minha camisa; Bosco abanou a cabeça em sinal de negação. Entretanto, o indicador da sua mão direita movera-se na direcção do gatilho. «Agora acusam-te falsamente porque julgam que é a saída mais fácil. Julgam que és o cordeiro de Deus.»

Engoli em seco. O catalão parecia prestes a disparar. Um pingo de suor desceu-me da sobrancelha e caiu-me no olho.

«Que queres que te diga? Que posso eu fazer?»

«Dá-me uma resposta à minha pergunta», disse ele. «É isso que os escritores fazem.»

O meu corpo tremia descontrolado. O indicador de Bosco estava dobrado sobre o gatilho; puxou o canhão atrás com o polegar. A porta continuava a ranger, a brisa morna varrendo as folhas de papel. Eu fechara os olhos e preparara-me para o derradeiro momento. Só via escuridão e o fantasma de Bosco dentro dessa escuridão.

«Qual é a tua pergunta?», perguntei, a voz embargada.

«Tu sabes qual é a minha pergunta», disse Bosco. «Dá-me uma resposta ou cumprirei a justiça que os depoimentos exigem. De uma maneira ou de outra, farei justiça.»

O suor, salgado e morno, alagava-me agora o rosto. Continuei de olhos fechados e implorei.

«Mas, Bosco, até um escritor, que eu não sou, só é deus das suas personagens. Só tem o poder de decidir o destino destas; e até elas, por vezes, lhe fogem das mãos. Como é que eu posso decidir o destino daquelas pessoas? Quem é que me dá esse direito?»

«Dou-to eu», disse Bosco. «Porque sou deus nesta tua pequena história.»

O cano da espingarda subiu e foi encostar-se à minha garganta. Tentei engolir em seco, mas não fui capaz. Respirei fundo e senti os aromas do bosque que entravam pela porta e pelas frinchas das paredes.

Comecei a falar.

De olhos fechados, o suor a cair em cascata da minha testa, o cano da espingarda contra a traqueia e a presença inexorável de Bosco exigindo uma resposta, comecei a falar. Num dilúvio contei-lhe a verdade que era a verdade possível a que um escritor podia almejar, um escritor que é deus das suas personagens e, portanto, não tem ninguém a quem prestar contas porque não existe ninguém acima dele para condenar ou exaltar as suas palavras; expliquei-lhe, palavra por palavra, o que tinha acontecido na noite da morte de Don Metzger, e o que tinha acontecido era de tal maneira insólito e ao mesmo tempo de uma beleza tão cruel que só um escritor ou um farisaico poderia tê-lo contado como o fiz; mas se tivesse de repetir, se fosse obrigado a repetir as coisas que lhe contei naquele momento em que julguei que ia morrer dentro daquela cabana na clareira de um bosque em Sabaudia, então, como quem se senta defronte de uma velha máquina de escrever enferrujada e martela as teclas lutando pela sua vida, diria,

Bosco,

quando Don Metzger, dois metros de altura e cento e quarenta quilos de peso, espatifou o carro contra a parede de vidro da sala do aquário na madrugada daquela noite, estava já morto embora biologicamente ainda estivesse vivo, coisa que nenhum de nós soube compreender porque um torpor pesado e ruminante se havia apoderado das nossas almas durante o Bom Inverno. Sim, pode morrer-se em vida e Metzger já tinha, na sua cabeça, selado o seu destino, porque nenhum outro destino lhe parecia verosímil senão a aniquilação desta existência que deixara de fazer sentido, porque desde sempre houvera uma tragédia incompleta nos seus olhos; sabias, Bosco, que há pessoas que carregam a desgraça no rosto? Chamemos-lhe, neste caso, a desgraça de um menino que, numa infância remota num país distante chamado África do Sul, se fez aos céus num balão acompanhado dos pais e ficou irremediavelmente só a partir do momento em que viu a terra afastar-se como se fosse um sonho, pesadas as pernas, pesada a cabeça, insustentável o coração, porém infinitamente leve a partir do momento em que as terras insondáveis de África, que são demasiado belas para o olhar humano, o vergaram à inutilidade deste lugar em que vivemos escravizados pelas coisas; como tu dizes, Bosco, somos parasitas, somos fungos, somos circunferências viciadas nos seus centros, e talvez tenha sido esse o momento em que Don Metzger ficou louco. Imagina tu, louco desde a mais tenra infância! Se as terras de África, vistas do céu, são demasiado belas para o olhar humano, que imaginas tu que sucede à pessoa que sustenta esse olhar? Perderia a causa das coisas? Ou será o louco aquele que vê demasiada causa em todas as coisas e essa primeira viagem em direcção ao nada seja a causa de tudo o que veio depois, a razão que anula a possibilidade de alguma vez se sentir em comunhão com o mundo ou até consigo próprio? Mas esta história começa antes, Bosco, começa com uma perna morta e um escritor fracassado e uma viagem inesperada e um encontro em Budapeste e uma proposta nocturna, uma proposta que estava impregnada de aventura mas também de maldade, uma proposta feita por um homem que queria tudo, um homem demasiado ambicioso e obstinado para o seu próprio bem; alguém que quis agitar as águas e depois mergulhar nesse rio e ver o que acontecia. Tu sabes de quem falo, Bosco, tu sabes a quem me refiro quando te digo a palavra homem; sabes tão bem como eu sei na pele o frio implacável do cano dessa espingarda, e posso contar-te mais, digo-te ainda que, quando Don Metzger, dois metros de altura e cento e quarenta quilos de peso, finalmente conseguiu emergir do carro espatifado contra a parede da sala, o fez com a ajuda de Vincenzo, com a ajuda do seu carrasco, o criminoso insuspeito que veio para Sabaudia sob falsos pretextos e logo conspirou para reclamar o que julgava seu, incapaz de compreender como podia pertencer a outro a vida que devia ser dele. Falo-te de um escritor, Bosco, e por isso te digo que não sou escritor e que nada tenho a ver com essas criaturas que substituem a realidade pelas suas fantasias e por vezes chegam a julgar que a realidade é apócrifa e as fantasias a verdadeira essência das coisas; mas estou a divagar; o que te queria dizer ou fazer entender é que Vincenzo julgou que a sua vida havia sido usurpada por outro, um inglês chamado McGill que tu encontraste no lago naquela fatídica madrugada, um inglês que julgou vir encontrar um mar calmo e se deparou com uma tempestade, um inglês que tinha a mulher e que escrevera o livro que Vincenzo sentia roubados, coisas que sem lhe pertencerem lhe tinham pertencido desde sempre; como tu sabes, Bosco, não existe pior mistura de sentimentos neste mundo do que o ciúme, a inveja e a admiração; é uma trindade tão perigosa que pode levar um homem a ascender ao Céu ou a lançar-se de um penhasco até ao mais profundo dos Infernos. Por isso te conto agora que, quando Don Metzger chegou naquela noite ao Bom Inverno, foi em Vincenzo que encontrou o epitáfio da sua vida destroçada, que mais poderia ser, destroçada; um homem que vem de Roma num carro a alta velocidade enquanto bebe uma garrafa de whisky e derruba a parede de vidro da sua própria casa é um homem que procura um epitáfio por já não saber que continuação dar a isto a que chamamos existência; porque Don Metzger não acreditava em deus nem no diabo, no Céu ou no Inferno, e tu sabes disso, Bosco, sabes que era um homem livre que caminhou voluntariamente para o seu cadafalso, senão, repara tu, ao desejo de morrer de um homem corresponde o desejo de vingança de outro, vingança não de coisas feitas mas de coisas roubadas de antemão, e se um homem deseja morrer e outro homem deseja vingar-se, quem poderá dizer que neste encontro de vontades não existe um equilíbrio ou uma lei secreta da natureza, tão simples como o riacho que corre por entre as pedras cálidas desta clareira ou os pássaros que chilreiam pelo bosque à nossa passagem? Por isso, Bosco, senhor do nosso pequeno mundo, imagina tu agora o que sucederia se Vincenzo, depois de as substâncias navegarem no seu sangue como o tal linfoma da humanidade de que me falaste, pesadas as pernas, pesada a cabeça, insustentável o coração, imagina tu que este homem se encontra perdido numa casa em Sabaudia antes de raiar a madrugada e que acaba de despertar de um pesadelo. Está estendido num sofá, a sala fede a tabaco e a álcool e ao suor dos corpos que a habitaram, no ar vagueia um halo de bruma, aquela bruma que se levanta dos pântanos ocultos de Sabaudia, uma bruma que tu bem conheces, Bosco, porque és o deus do bosque e tens o poder de a convocar a teu bel-prazer; imagina tu que este homem acordou de um pesadelo para imediatamente entrar noutro e que se acha no meio deste súbito Inverno que lhe faz gelar os ossos e lhe penetra na alma; está sozinho ou assim se julga, pois alguma coisa chama por ele, um apelo que quase não chega para quebrar o mórbido silêncio da madrugada, como o lamento de um animal moribundo que apenas outro animal pudesse ouvir; ainda assim, sente-o, vem lá de cima, levanta-se, sobe devagar as escadas e aí encontra um corredor enorme e escuro com quatro portas fechadas de cada lado, um corredor que termina numa parede de vidro através da qual se vêem as copas das árvores que formam o teu bosque, Bosco, onde tu e o velho Alipio construíam os balões; a luz da Lua, suspensa sobre a Terra como a íris de um deus cego, atravessa diáfana a espessura da bruma que se instalou sobre esta noite que caminha para o seu trágico final. E agora imagina tu que Vincenzo caminha pelo corredor perseguindo o apelo que sente cada vez mais próximo, dobra a esquina, aproxima-se devagar de uma porta maior do que as outras, deixa pegadas no chão húmido, sacode as mãos à frente do corpo para dissipar a bruma que tomou conta da casa, que a penetrou como um sortilégio ou uma doença, Orfeu procurando Eurídice no Inferno; dali vem o apelo, do outro lado da porta encostada. Empurra-a, a porta abre-se, o quarto; pelas janelas que olham o lago entra uma luminosidade espectral que define o vulto de uma mulher deitada na cama; a mulher chama-o em silêncio, dorme profundamente mas chama-o, e Vincenzo dá um passo em frente, Bosco, um passo que muda todas as coisas; porque de repente está em cima de Nina, prende-lhe os braços à cama, ela mal se debate porque as substâncias ainda lhe infectam o sangue, está em cima dela e beija-a, será sua, foi-lhe roubada de antemão, despe-a, arranca-lhe a roupa, Nina geme mas não do prazer, geme porque sofre, ele continua, toca-lhe os seios, ela debate-se mas ele é mais forte, será sua, tenta penetrá-la, não está molhada, tenta outra vez, e quando finalmente o consegue está cumprida a vingança pela metade, move-se sobre ela numa vertigem, num delírio, depois num alívio, todo o prazer é alívio, ela chora; é então que ele sente que alguma coisa o arranca da cama como se o descolasse do mundo; um segundo depois está pregado à parede, os pés acima do chão, um rosto olha-o com desprezo, largo e gelatinoso, de olhos claros, nariz batatudo, cabelo grisalho puxado atrás, é Don Metzger quem o levanta no ar sem piedade, a porta do quarto está aberta, Nina parou de chorar, e depois a mão do outro começa a fechar-se em torno da sua garganta. Vincenzo não respira; o outro vai matá-lo se continuar, Vincenzo sufoca, pede socorro, sente a vertigem, nisto é Nina quem se põe de pé, é ela quem implora, Deixa-o, Deixa-o, mas Don Metzger não a escuta; concentra-se na mão que aperta a garganta e Nina continua a implorar. Vincenzo quase desfalece; um minuto de agonia e é então que um som breve e surdo, compacto, lhe devolve a vida, Vincenzo cai mas levanta-se, Don Metzger cai e não tornará a erguer-se. Nina está de pé com uma estatueta dourada na mão. Vincenzo recupera o fôlego e olha para o corpo caído; debruça-se sobre ele e é a sua vez de o sufocar, as mãos cerram-se em fúria sobre a grossa garganta e apertam-na, apertam-na, apertam-na até não poder mais, não consegue parar até Nina lhe implorar que pare, que os olhos abertos do outro já nada vêem. Nina chora outra vez, larga a estatueta no chão, desistiu. Vincenzo sente então um desmaio, a súplica de Nina é o único som na casa mergulhada em silêncio, os dedos abrem-se sem vontade e libertam a carne defunta. Se matou, foi por amor, e não se pode calcular o peso do amor; está cumprida a vingança pelo todo. Agora os amantes observam o corpo. É um cachalote, a barriga é uma montanha, as mãos são raquetes. Que fizeram eles, Bosco? Este homem e esta mulher cumpriram, sem trocar palavra, o ritual de um crime que nenhum dos dois sabe quem chegou a cometer. Pegam, cada um, numa das pernas do corpo sem vida e arrastam-no pelo corredor e depois pela escada, degrau a degrau, em silêncio; quando chegam ao andar inferior, continuam a arrastá-lo na direcção da cozinha e, em seguida, para o exterior. A manhã ainda não chegou, mas está anunciada numa breve claridade do céu, uma claridade que, uma hora mais tarde, teria denunciado ao bosque as duas figuras magras, suadas, ofegantes, que levavam um gigante morto pelo relvado, puxando-o pelas calças na direcção do lago. Junto da água, próximo da árvore onde o baloiço gira sobre as suas cordas ao vento que se levantou, onde o barco a remos chapinha sobre a superfície do lago, é aí que finalmente se sela o pacto entre as lágrimas que descem pelo rosto desta mulher e a chama que arde no coração deste homem, o pacto de uma morte dividida, de uma responsabilidade partilhada; o pacto que Vincenzo quisera selar desde o princípio e que condena esta mulher a ser eternamente sua à custa de um segredo; imagina tu, Bosco, o que sentiram estes dois quando se olharam naquela madrugada, duas criaturas para sempre perdidas uma na outra; imagina agora que Vincenzo, exaurido do esforço, arrasta o corpo até à beira do lago, lhe dá uma volta e lhe mergulha a cabeça na água para que os pulmões se encham de líquido e a morte pareça um afogamento. Assim o mantém debaixo de água por largos minutos, os dedos em volta do pescoço inchado, empurrando-lhe a nuca golpeada, o rosto esbofeteando o fundo arenoso. O homem olha uma vez mais para a mulher e, sempre em silêncio, sabendo que não o podem largar na margem, num derradeiro esforço colocam o corpo dentro do barco a remos, desatam a corda que o ata ao pontão, e o barco parte em direcção ao centro do lago, onde as nuvens se espelham nas águas à luz melancólica da lua. Em pouco tempo, calcula Vincenzo, a fragilidade do barco e os dois metros de altura e cento e quarenta quilos de peso de Don Metzger encherão a fina carcaça de água e levarão a vítima para o seu cemitério aquático. O barco parte, é arrastado pela brisa, e os dois regressam à casa sem trocarem palavra. Sem saberem, Bosco, que está a caminho um inglês demasiado obstinado e madrugador, e depois tu; sem saberem que o corpo nunca chegará ao fundo daquele lago.

Respirei fundo. Sem ar, tossi, e depois esfreguei os olhos. Abri-os.

O suor continuava a cair-me sobre o rosto. Quanto tempo teria passado? Lá fora erguera-se um vento danado e a manhã escurecera abruptamente; a porta agitava-se nos seus frágeis ferrolhos como um leque desgovernado; as folhas que tinham estado caídas no chão voavam agora pela cabana, livres, com vida própria. Bosco não se movia. Os seus olhos eram duas fogueiras ateadas. Senti o cano da espingarda pressionado contra a minha traqueia.

Nesse momento começou a chover. Houve um relâmpago seguido de um trovão e, subitamente, tudo se transformou num temporal. A chuva desatou a cair sobre o tecto da cabana como um forte aplauso. A careca de Bosco, iluminada pela humidade, voltou-se momentaneamente na direcção da porta; depois, como se tivesse aceitado a chegada do dilúvio, tornou a voltar-se na minha direcção. O cano da espingarda desfez a pressão sobre a minha traqueia.

«Agora vai-te embora e diz-lhes que estou a caminho.»

XXVI

A chuva cairia toda a noite, mas a noite ainda não chegara. Nessa tarde regressei à casa debaixo de um temporal tão denso que obscureceu o caminho do bosque em meu redor, o céu invisível escondido pela água torrencial que se derramava das copas das árvores. O bosque mergulhara numa imensa escuridão e eu mergulhara nele. Quis correr, nunca desejei tanto poder correr; mas, como nos pesadelos em que não saímos do mesmo sítio, consegui pouco mais do que arrastar o meu corpo debilitado, apoiado na bengala, pela lama do caminho. Coxeei pelo bosque fora, grunhindo, desesperando, o cabelo escorrendo a água da chuva, a roupa colada ao corpo, o braço livre afastando com violência os ramos das árvores chorosas que me barravam o caminho. O meu esforço foi tão grande que as lágrimas de dor rapidamente se transformaram num riso de escárnio, e ri-me da minha figura trôpega a meio de um temporal, e ri-me de raiva, e ri-me do suor que me jorrava pelas têmporas, e ri-me do mundo e do que estava para lá do mundo, e ri-me dos deuses que pareciam zombar da minha lentidão. O Inverno chegara, afinal; e era um Inverno de dilúvio, um Inverno de morte, um Inverno de culpa. Era um Inverno convocado por uma confissão e, contudo, mais do que vergonha pela minha mentira – pelo opróbrio de uma condenação –, aquilo que sentia era perplexidade, porque a minha confissão havia, no fundo, sido a confissão de um verdadeiro escritor – o tal cobarde e o tal mentiroso que, por vezes, embora muito raramente, era também corajoso; havia sido a confissão de quem se refugiava numa mentira possível em substituição da realidade impossível.

Quando emergi na estrada de terra − que era agora de lama − comecei a ouvir os gritos. Percorriam a distância entre a orla do bosque e a casa e eram os gritos de um homem, berros de dor insuportável que atravessavam o espaço de uma intempérie. Onde houvera, nessa manhã, um céu azul e um sol reflectido na calmaria do lago, havia agora um tecto de nuvens opressivas que esvaziavam sobre o lago a sua vingança, a chuva despenhando-se a jorros sobre a superfície negra. Tentei estugar o passo; já não sabia se o líquido que me corria pelo rosto era apenas água, se chorava do esforço.

Depois vi-os em frente da casa sobre o relvado encharcado. Nina, Elsa e Vincenzo debruçavam-se sobre duas figuras, uma deitada, a outra de joelhos. Tinham as roupas ensopadas. Fiz a curva do lago ao pé-coxinho, saltando de poça em poça, a casa recortada contra a escuridão do dia; era Roger quem estava deitado no chão e tornou a urrar de dor. O som pareceu esbarrar no tecto de nuvens e fazer ricochete pela propriedade. Debruçada sobre ele, Stella parecia agitar o corpo prostrado, como se tentasse espantar um demónio. Havia alguma coisa que o impedia de se mover mas, antes que conseguisse ver o que era, Vincenzo, que estava de frente para mim, destacou-se do grupo e, tropeçando na relva e percorrendo a distância que nos separava, aos trambolhões, quase me derrubou quando lançou uma mão ao meu ombro e outra ao colarinho da minha camisa.

«O que é que aconteceu?», perguntou. Senti-lhe a ansiedade como uma descarga eléctrica. Nina também se voltou e deu pela minha presença para, logo em seguida, se voltar outra vez para Roger, que Stella procurava apaziguar.

Devolvi-lhe a pergunta. «O que é que aconteceu aqui?»

A chuva caía entre nós como uma cortina.

«Diz-me tu primeiro», disse Vincenzo. O seu hálito azedo chegou-me às narinas. Olhámo-nos nos olhos, e vi o desespero que lhe assomara ao rosto; tinha a face manchada por uma pesada angústia. Não lhe respondi. Sustive o seu olhar durante um momento; atrás de Vincenzo, Roger gritava. Depois baixei a cabeça, incapaz de o continuar a fitar, vendo a relva molhada engolir as solas dos nossos sapatos, e procurei dizer alguma coisa, mas entreabri os lábios sem conseguir proferir uma única palavra. Tentei falar uma e outra vez; quis explicar-lhe, adverti-lo, acautelá-lo, mas a culpa paralisara-me e só fui capaz de engolir em seco.

Assim ficámos durante um longo momento, até eu erguer novamente os olhos e constatar que a expressão de Vincenzo mudara. A chuva caía por nós abaixo, cataratas humanas, mas, por um interminável segundo, o mundo pareceu ficar em suspenso. As gotas detiveram-se a meio caminho entre o céu e a terra, as águas do lago, exangues, estacaram no reboliço da tempestade, as copas das árvores, inclinadas pelo vento, assim permaneceram como se fosse essa a posição que naturalmente lhes pertencia. Nesse derradeiro segundo de quietude foi como se Vincenzo conseguisse entrar na minha cabeça e, sem mais, apenas pelo meu silêncio, ficar a par do meu opróbrio que era a sua condenação.

Os olhos do italiano abriram-se muito e depois recuou um passo. Era como se tivesse visto um fantasma ou, pior ainda, como se se tivesse, subitamente, transformado num fantasma; num morto, preparado para se agarrar aos vivos com unhas e dentes.

Nina aproximou-se, encharcada; tinha as palmas das mãos ensanguentadas.

«Ele está a perder muito sangue», gritou. «O que é que fazemos?»

Stella chorava compulsivamente. Estava debruçada sobre o corpo e tinha as roupas rasgadas, como se tivesse corrido pelo meio de uma floresta de espinhos. Se antes me parecera que agitava Roger, via agora que tentava, em vão, libertá-lo; ou antes, libertar-lhe o tornozelo: em redor deste, fechada como a mandíbula de um tubarão, estava uma armadilha para ursos que lhe cravara dois aguçados dentes na carne, um de cada lado da perna. Era um objecto sinistro, em ferro, com o aspecto enferrujado de uma arma antiga e medieval, a base colada à sola do sapato de Roger e uma correia solta que tilintava enquanto Stella procurava, à força das suas mãos ensanguentadas, desenterrar os dentes da perna do homem. Elsa, ao seu lado, ergueu-se e levou uma mão à boca; a chuva colara-lhe o cabelo ao rosto. Vincenzo ignorou Nina e correu na direcção da casa.

«Vincenzo», gritou Nina. Depois olhou-me brevemente e foi atrás do italiano. Apoiado na bengala, ajoelhei-me ao lado de Roger. A perna dilacerada pela armadilha era uma visão difícil de suportar, mas, de alguma maneira, a chuva e a escuridão serviam para disfarçar a torrente de sangue que dela se esvaía. Observei a armadilha. Havia, no fundo desta, um orifício para uma chave inexistente que a destrancaria; o esforço de Stella era inútil.

«Encontrámo-los aqui fora», disse Elsa. «A Stella arrastou-o desde o bosque. Não devem ter ido longe.»

«Está a chover a cântaros. Temos de o levar lá para dentro», disse eu.

«Não», gritou Roger. O rosto contorcido era uma caraça de dor, as veias do pescoço, salientes, bombeando sangue pelo corpo em crise. «Se vou morrer, que morra aqui fora», grunhiu. «Não volto para aquela casa nunca mais. Maldita seja. Maldita seja.»

«Não vais morrer», chorou Stella, que desistira de tentar abrir a armadilha e agora o abraçava. «Não vais morrer.»

«Tentaram fugir», disse-me Elsa, baixinho. Tomou-me na mão o braço livre; tinha os olhos marejados de lágrimas e tiritava de frio. «Eu disse-lhes para esperarmos, mas eles não me ouviram. Meteram pelo bosque por trás da casa e não soubemos deles durante horas até ouvirmos os gritos de Roger. Ela arrastou-o até aqui à chuva, sozinha, sabe-se lá com que forças, com a armadilha na perna.»

O catalão certamente armadilhara o bosque. Surgiu-me, sem saber porquê, a imagem dos dois pássaros mortos dentro da gaiola. Olhei para trás, na direcção das árvores e, por um momento, consegui ver a figura colossal de Bosco avançando sem remissão pela estrada, braços retesados, tronco poderoso inclinado para a frente, espingarda ao ombro, preparando-se para executar a minha sentença.

«Escuta, Elsa», disse-lhe. «Temos de fugir daqui. Temos de fugir daqui e não podemos olhar para trás.»

Elsa olhou para Stella, que continuava abraçada ao corpo imóvel de Roger, murmurando palavras imperceptíveis, chorando.

«Não os podemos abandonar.»

«Temos de os abandonar, ou nenhum de nós sobrevive a isto. Se a Stella quiser vir, muito bem. Senão, temos de os deixar. Elsa, escuta o que te digo.»

As lágrimas que marejavam os olhos de Elsa desceram-lhe suavemente pelas faces; ela compreendia.

Nesse momento Vincenzo e Nina surgiram da porta de correr que dava acesso à cozinha. A chuva abrandara e transformara-se num aguaceiro oblíquo. Vincenzo caminhava à frente dela, a passo rápido; trazia a mochila ao ombro e uma determinação no olhar que se assemelhava a um desespero contido. Nina correu para o alcançar e puxou-lhe um braço; o italiano voltou-se, a contragosto, e começaram a discutir em voz baixa. Tornei a olhar para a estrada que conduzia ao bosque. A tarde escurecera como se fosse noite; sobre as águas do lago, agora turvas e tépidas, caíam gotas de chuva do tamanho de nozes, formando círculos concêntricos. Elsa ajoelhou-se e tentou falar com Stella, que continuava prostrada sobre Roger; o australiano remetera-se ao silêncio, de olhos abertos, vítreos, o cabelo louro da mulher espalhado sobre o seu peito, fitando um céu ameaçador que parecia prestes a desabar sobre a Terra. A perna apanhada na armadilha estava imóvel e repousada sobre a relva, mas a outra, dobrada, tremia sem parar. Pensei, sem saber porquê, em Olivia. Perguntei-me o que seria feito dela; se acaso nos observaria de algum lugar recôndito, aqui ou noutro mundo qualquer. Talvez zombasse de nós atrás de uma nuvem.

Nina abraçou Vincenzo e enterrou o rosto no seu ombro. Também ela chorava. Segredou-lhe alguma coisa ao ouvido e Vincenzo disse, em voz alta:

«Não.»

Afastou-se de Nina – teve, na verdade, de a empurrar para que esta se afastasse – e, ao passar por mim, enquanto me olhava com uma mistura de desafio e despeito, cuspiu para a relva.

«Alea jacta est», disse. Sem tornar a olhar para trás, começou a correr na direcção contrária à do lago, para oeste, de encontro à orla do bosque mais próxima; a mochila saltava-lhe nas costas. Nina sentou-se no chão, apoiou os cotovelos nos joelhos e tapou o rosto com as mãos. Também eu me sentei na relva, exausto, incapaz de continuar de pé. Foi nesse preciso momento que a chuva cessou e, pela primeira vez em horas, o mundo caiu num silêncio apenas interrompido pelas palavras que Elsa murmurava ao ouvido de Stella. Olhei para o céu: era pura escuridão e desordem. Uma última gota do temporal, grossa, atrasada, desfaleceu sobre o mundo, desfazendo-se no meu rosto. Estava na hora.

XXVII

No final éramos três. Trouxemos o que conseguimos encontrar na garagem – uma lanterna, um cantil de água − e fizemo-nos ao bosque. Avançámos com lentidão, como todos os homens que não conhecem a natureza e a tentam desbravar, sem jeito, incompetentes, temendo a obscuridade provocada pelas copas das árvores e atentos aos sons mais recônditos que os bosques produzem, as suas peculiares criaturas escondidas no meio das ramagens, atrás de uma pedra, no subsolo pantanoso de Sabaudia. Já não havia tempo para culpa ou remorso; a sombra de Bosco estava agora presente a cada passo, o medo derramando-se sobre os nossos corpos na forma de um suor espesso, provocado pelo calor que a tempestade finda trouxera.

Eu caminhava à frente, usando a bengala para testar o chão coberto de folhas, terra e raízes, prevenindo contra outras armadilhas que Bosco pudesse ter espalhado pelo bosque; os passos de Elsa e Nina crepitavam atrás de mim enquanto avançávamos pelo terreno acidentado, ziguezagueando pelo meio dos grossos troncos dos pinheiros e dos ciprestes, as raízes entrelaçadas no solo como veias carregadas de uma seiva maldita. Tínhamos escolhido caminhar para leste, na direcção contrária à de Vincenzo, e Elsa fora a única a olhar para trás no caminho que ia da casa ao lugar onde a clareira de Metzger terminava e o bosque começava, o lago à nossa direita numa estranha quietude, pontuado por pingos dispersos que sobravam às nuvens, quietude que denunciava um compasso de espera. Elsa olhou várias vezes por cima do ombro, chorando pelas duas figuras que permaneciam caídas sobre a relva – Roger, que ia morrer, Stella que escolhera ficar com ele. Elsa, talvez a única que me ilibara, provavelmente a única que não me acusara aos olhos de Bosco − fazendo de mim o cordeiro de Deus −, era a única que ainda tinha capacidade para amar, a única para quem o destino alheio continuava a ser tão valioso como o próprio, ou talvez mais, porque era a única para quem, na verdade, a vida não era tão importante que salvar-se fosse a coisa mais importante de todas.

A noite estava próxima. A luz ténue que as copas das árvores permitiam ver começava a esmorecer e, em breve, deixaria de nos iluminar o caminho. Avançávamos às cegas, a um ritmo tão lento que chegava a ser agonizante, na desesperada esperança de que, se continuássemos sempre em frente, acabaríamos por chegar à estrada. Nina mantinha-se silenciosa mas não era difícil adivinhar a conversa que tivera com Vincenzo. Bosco iria atrás dele em primeiro lugar; eu sabia-o, ele sabia-o, Nina sabia-o; partira por isso sozinho numa fuga desenfreada e, provavelmente, proibira-a de o acompanhar. Era, à primeira vista, um gesto generoso – afastar-se de nós servindo de chamariz – mas, na realidade, era a possibilidade contrária que o fizera correr pelo bosque: a possibilidade de conseguir chegar à estrada sem ser travado pelo vagar que nos ia esgotando.

Ao final de duas horas de caminhada, decidimos parar; estávamos profundamente embrenhados no bosque. Eu e Elsa sentámo-nos em cima de uma pedra enorme, exaustos; ela abrira a camisa e o suor escorria-lhe do corpo pálido. Na mão esquerda segurava a lanterna.

«Há que esquecer as armadilhas», disse Nina, ofegante. «Temos de avançar ou a noite cai e estamos perdidos.»

«Temos isto», disse Elsa, mostrando a lanterna.

«De que serve isso?», perguntou Nina. «Quando ficar escuro, vamos perder a noção do caminho e vamos andar em círculos pelo bosque. Com ou sem lanterna.»

«Provavelmente, já estamos a andar em círculos», corrigiu Elsa. «Num bosque tudo é parecido, não há trilhos definidos; pouco importa se é noite ou dia.»

Elsa olhou-me. Mesmo que esquecêssemos as armadilhas, eu nunca conseguiria acompanhá-las se decidissem estugar o passo − havia algum tempo que deixara de sentir a perna. Nina olhou para as copas das árvores acima das nossas cabeças.

«Quando a noite cair, acabou-se», insistiu. «Sinto-o.»

«Agora é inútil correr», disse Elsa. «Falta muito pouco para o dia acabar.»

Nina dobrou-se para a frente e pousou as mãos nos joelhos. O cabelo ruivo caiu-lhe para o rosto; o suor escorria-lhe pelas costas.

«A esta velocidade somos presas fáceis.»

«Não vou deixar mais ninguém para trás», avançou Elsa em tom assertivo.

Nina levantou a cabeça e olhou-a; havia desespero no seu rosto.

«Então estamos todos mortos», disse Nina.

Elsa encolheu os ombros.

«Já estávamos mortos antes», acrescentou.

Nina bebeu água do cantil e depois passou-o; em três longos goles, a água ficou reduzida a metade. Depois pusemo-nos outra vez a caminho. Numa espécie de compromisso tácito, deixei de tactear o solo com a bengala em busca de armadilhas. Nina avançou à frente e Elsa e eu caminhámos juntos, os três em conspícuo silêncio; o fantasma de Vincenzo pairava entre nós. Talvez já estivesse morto, mas quem saberia dizer?

Quando a noite caiu, Elsa ligou a lanterna e assumiu a liderança. A luz era um triângulo mórbido que pouco conseguia contra aquela violenta escuridão. Os troncos das árvores pareciam sussurrar à nossa passagem; as folhas que estalavam debaixo dos nossos pés faziam-no com redobrado estrépito, como se quisessem chamar até nós o carrasco do bosque. Algures, no escuro, piavam corujas e agitavam-se as asas de pássaros, vassalos do demónio; era impossível dizer em que direcção nos movíamos, ou sequer se nos movíamos; talvez o bosque se movesse por nós, criando a ilusão nos nossos espíritos fatigados de que rumávamos a qualquer parte.

A certa altura, Elsa recuou um passo e agitou a luz da lanterna à sua frente.

«Quem está aí?», perguntou, assustada.

Juntámo-nos os três, a tremer de medo, como crianças caídas num pesadelo. À nossa frente alguma coisa resfolegava nos arbustos; a luz da lanterna alongava indefinidamente as sombras. Ficámos em silêncio, a respiração pesada, o coração aos saltos como se fôssemos parte de um mesmo organismo. Como nada acontecesse, tornámos a avançar na escuridão. O susto repetiu-se várias vezes: alguma coisa passava de rajada em frente da luz da lanterna e escondia-se nos arbustos ou atrás do tronco de uma árvore; Elsa parava e fazia um compasso de espera, agitando a lanterna que perseguia as sombras; os três tremíamos de pavor e aguardávamos, como se estivéssemos a ser perseguidos e rodeados por uma criatura que se escusava a aparecer. Depois as pulsações abrandavam e retomávamos o caminho.

Havia cinco, talvez seis horas, que tínhamos deixado a casa; o bosque prosseguia, infindável; a noite avançava. Quando fizemos nova pausa para recuperar o fôlego, Elsa pousou a lanterna e sentámo-nos em redor desta, bebendo o que restava da água. Pensei: à velocidade a que era possível movermo-nos, devíamos ter percorrido três ou quatro quilómetros, talvez um pouco mais; mas até naquela lentidão teríamos chegado à estrada se caminhássemos em linha recta. Guardei o pensamento para mim. Era inútil partilhá-lo, e continuar a caminhar oferecia-nos uma sensação de propósito que era a única coisa que nos restava. Depois de alguns minutos de descanso, prosseguimos a marcha.

Contornávamos árvores e pisávamos a terra ainda húmida do temporal, seguindo uma mancha de luz que começava a perder algum fulgor, quando ouvimos um ruído de água. Detive-me por um momento, sentindo a palma da mão calejada contra o cabo da bengala que era agora a continuação do meu braço exausto. Elsa e Nina estacaram, e a luz da lanterna, apontada subitamente ao meu rosto, encandeou-me.

«Desculpa», murmurou Elsa, e baixou a lanterna que iluminou brevemente os nossos sapatos gastos. Pusemo-nos à escuta; o barulho da água continuava.

«Vem dali», sussurrei. Elsa iluminou o caminho na direcção que eu apontava.

«Esperem», disse Nina, segurando-nos pelos braços. «E se for o Bosco?»

«E se não for?», perguntou Elsa. «Estamos a caminhar há horas, temos de parar. É água, não ouves? Água.»

Resolvemos ir atrás do barulho. Elsa abria caminho por entre as árvores com a lanterna rente ao chão; quando o som da água se tornou mais próximo, desligou-a. Agachámo-nos atrás de uma árvore e deixámos que os nossos olhos se habituassem à escuridão. Pouco depois, o brilho azulado da Lua mostrou-nos o recorte das coisas. Era uma pequena aberta no bosque e, no centro, brilhava a água de um pequeno riacho que corria por entre as pedras. O som era confortável, quase apaziguador. Depois Nina apontou para uma mancha ao lado do riacho.

«Olhem.»

Aos poucos a mancha foi-se revelando, o formato inusitado de alguma coisa compacta, do tamanho de um rochedo embora demasiado rectilínea para ser um rochedo. Elsa tornou a ligar a lanterna e apontou para a sombra: era um automóvel e estava parado junto do riacho. Tinha os pneus vazios. A luz moveu-se pela pintura estragada da porta do condutor e, depois, mais próxima de nós, pela frente, destruída por um impacto recente. Era o carro que pertencera a Don Metzger.

Saímos do nosso esconderijo e avançámos para o carro; de repente, a porta do condutor abriu-se. Elsa gritou e, recuando um passo, chocou com Nina, que por sua vez se agarrou ao meu braço, procurando apoio, e me arrastou com ela para a terra húmida. Caí de costas e a bengala saltou-me da mão. Durante um breve instante fui tomado por uma incrível quietude – olhando a estrela maior que, visível numa brecha entre as nuvens, reinava solitária sobre Sabaudia –, mas logo o medo me obrigou a erguer com muito maior rapidez do que me julgava capaz. Estiquei o braço, levei a mão à frente do rosto, recuei uns passos. Ouvi as vozes de Nina e Elsa e a voz de um homem – alguém no interior do carro, a porta aberta ainda a ranger nas dobradiças –, mas não havia qualquer luz; Elsa, provavelmente, largara a lanterna e esta ficara perdida no meio da terra. Estaquei, aguardando, o coração a bater desenfreado, o som dos passos vindo de todos os lados, as sombras agitadas tentando encontrar-se no negrume como um jogo de cabra-cega; aguardei também pela morte, pois seria aquele o momento mais óbvio.

O foco de luz da lanterna surgiu, de repente, e iluminou Vincenzo − ou o que restava dele.

Estava sentado no lugar do condutor. Encontrava-se nu da cintura para cima e tinha o rosto tão inchado que estaria irreconhecível não fosse pelo seu cabelo espigado e as omoplatas salientes. Nina e Elsa estavam à minha frente e olhavam-no; Elsa apontava a lanterna, mas a sua mão tremia; a luz titubeava. Aproximei-me e vi que o tronco dele estava marcado por inúmeros rasgões, lanhos escuros que o cortavam em vários sentidos. Vincenzo levou a mão direita a um deles, passou o dedo pela ferida e lambeu-o.

«O sangue no carro não é só meu», disse, numa voz fraquíssima. «Há também algum do McGill».

Riu-se, débil, enquanto tossia, e o rosto transformou-se numa máscara hedionda: faltava-lhe um dente e tinha o nariz partido. Tirámo-lo do carro, sentámo-lo na terra e ajoelhámo-nos junto dele. Nina pegou-lhe na mão e soluçou.

«O que é que ele te fez?»

«Apanhou-me em dez minutos», disse Vincenzo. «E vai voltar.»

Virou a cabeça e cuspiu um jacto verde-escuro para a terra. Falou-nos em voz baixa, aos soluços, parando uma vez por outra para tornar a cuspir o sangue que se lhe acumulava na garganta.

«Assim que entrei no bosque, senti-o. Quero dizer, senti-o mesmo. Como se sente a picada de um insecto. Por mais depressa que corresse, por mais que desse às pernas…» Tornou a rir-se. «O tipo só tinha de esticar um braço. Era como se estivesse em toda a parte. Era como se estivesse, não atrás de mim, mas acima de mim. Como se fosse deus, caraças. Ou uma daquelas máquinas com um gancho que apanham bonecos nas feiras populares. Sabes quais são?»

Olhou-me; Nina e Elsa imitaram-no. Os dois suávamos, mas ele suava sangue. Baixei o olhar, incapaz de suster a sua provocação – mas não era uma provocação; não era sequer um atestado de culpa. Quando tornei a enfrentá-lo, percebi que nos seus olhos já não havia desprezo, sequer raiva; havia, somente, uma triste despedida.

«Sei», respondi. «Sei quais são.»

«Veio de parte nenhuma e apanhou-me como se fosse um gancho daquelas máquinas. Zut.» Riu-se novamente. Nina afagava-lhe a mão enquanto ele falava. «De um momento para o outro senti-me a voar, arrancado do chão como uma erva daninha. Foi quando me partiu o nariz. Acho eu. Talvez tenha sido aí. Não me recordo bem. Sei que senti uma dor tremenda no rosto e depois ficou tudo negro.»

A luz da lanterna tremia. Elsa aproximou-se de mim e ficámos ombro com ombro em torno de Vincenzo.

«Quando recuperei a consciência estava esticado de cabeça para baixo, pendurado numa árvore. Abaixo de mim, na terra, havia uma poça de sangue.» Tossiu, o corpo esfacelado agitando-se; tornou a cuspir para a terra. «Vi o balão no qual Bosco vai partir. Está estendido no centro da clareira em frente da cabana. É um balão de duas cores e só lhe resta insuflá-lo. Quando me matar, mete-se nele e vai-se embora.»

«O que é que aconteceu depois?»

Vincenzo ficou em silêncio durante um momento; chegou-nos o som tranquilizante do riacho. Depois fechou os olhos por um momento, respirou fundo e continuou:

«Fui perdendo e recuperando os sentidos. Talvez tenha tido pesadelos, não sei. Mas lembro-me de ver coisas terríveis. Vi a Olivia. Ou se calhar imaginei-a, não sei. Estava de pijama, aquele pijama branco, debruçada sobre a terra. Tinha uma pá na mão e escavava, como se procurasse alguma coisa. Ou talvez estivesse apenas a cavar um buraco, não sei. Via tudo ao contrário e não conseguia sentir o corpo. Julgo que chamei por ela, mas é possível que as palavras me tenham saído tão fracas que não tenha chegado a dizer nada. Desmaiei outra vez. Quando abri novamente os olhos, a noite chegava e vi o Bosco junto dos corpos. Eram o Roger e a Stella. A Stella tinha os olhos abertos. Abertos, juro-vos. Mas estava morta. Depois o Bosco e a Olivia fizeram rolar os corpos para dentro da cova e ele começou a deitar-lhes terra por cima com a pá…» Vincenzo tornou a tossir. Nina passou-lhe uma mão carinhosa pela testa e afagou-lhe o cabelo; era-lhe cada vez mais difícil falar, mas prosseguiu: «… perdi outra vez os sentidos. Quanto a noite chegou, finalmente despertei, mas via tudo turvo. Ele apareceu da cabana com um chicote. Chicoteou-me estas vezes todas, sem parar. Depois, como eu não berrei nem supliquei pela minha vida, porque já não conseguia berrar nem suplicar, o filho-da-puta desamarrou-me da árvore e atirou-me ao chão.» Riu-se uma vez mais, um riso trágico, carregado de tristeza. «Quase não me conseguia mexer, mas ele arrastou-me pelo cabelo em torno da clareira. Não fez nada comigo, simplesmente arrastou-me pelo cabelo como se eu fosse um esfregão. Esfregou o chão comigo. E eu só conseguia pensar nos dois que ele tinha enterrado. Pensava: estou a esfregar o chão fresquinho de mortos, e deu-me vontade de rir. Depois bateu-me com a cabeça nas botijas de gás e elas fizeram um som oco, tlum, tlum. À segunda pancada na cabeça, senti alguma coisa partir-se cá dentro. A seguir largou-me ali, no meio da terra. Deu-me dois ou três pontapés e largou-me. Deve ter ouvido alguma coisa, ou o bosque chamou por ele, ou o que raio os malucos escutam, porque se desinteressou de mim. Nina corria os dedos pelo cabelo molhado de Vincenzo, suavemente, uma leve carícia; Vincenzo respirou fundo, os olhos magoados, sem ponta de esperança, meio ocultos pelo rosto inchado. «… pegou na espingarda e foi-se embora. Como se a conversa tivesse corrido mal e estivesse zangado. O homem é sádico. É louco e sádico. Quis que eu fugisse para poder brincar comigo. Sabe que não consigo ir longe. Depois vem buscar-me e leva-me outra vez para a clareira. Quando já não restar nada de mim, mata-me. A seguir mete-se no balão e faz-se aos céus.»

Vincenzo abanou a cabeça e riu-se uma vez mais; um riso desdentado, soturno. A luz da lanterna de Elsa estava cada vez mais ténue, e as nossas caras eram agora espectros amarelos em torno de uma fogueira ancestral.

«Quando é que fugiste?», perguntou-lhe Nina.

«Quando me consegui mexer. Ele não voltou entretanto. Mal conseguia respirar, mas rastejei para fora da clareira e pelo bosque adentro, até me conseguir pôr de pé. Não sabia para onde estava a ir e não me importei. Se ele voltasse, não sobreviveria a outra tareia. Andei por aí, aos tombos, como um desalmado.»

Vincenzo passou as costas da mão pelos lábios ensanguentados e secos.

«Há quanto tempo chegaste aqui?», perguntei, observando a escuridão em nosso redor.

«Não sei. Há pouco.» Levou a mão ao peito e contorceu o rosto num esgar, como se lhe faltasse oxigénio. Talvez tenha passado mais tempo do que na verdade me parece que passou. Não sei dizer.»

Elsa olhou-me.

«Em que é que estás a pensar?»

«Andámos às voltas desde que partimos. Ele não pode ter chegado longe, não neste estado. E, se estamos próximos da clareira do Bosco, viemos para sul em vez de termos continuado para leste. Continuamos metidos dentro do bosque.»

«Isto já não dura muito», disse Elsa, agitando a lanterna.

«Temos de ir então», disse Nina, olhando para Vincenzo; também ele parecia prestes a extinguir-se.

«Para onde?», perguntou Elsa.

«Não sei. Temos de o tirar daqui», respondeu Nina. Vincenzo recomeçou a tossir e cuspiu nova golfada de sangue para a terra. «Não ouviram o que ele disse? O outro vai regressar e, quando o encontrar, vai matá-lo. Temos de o levar para fora do bosque.»

Vincenzo agarrou o pulso de Nina num movimento brusco.

«Não sejas estúpida», disse, ofegante. «Ele só me quer a mim, não quer saber de vocês. Quer-me a mim e quer acabar comigo devagar. Desapareçam daqui. Têm tempo. Vão na direcção contrária à de onde vieram e hão-de chegar à estrada mais cedo ou mais tarde. Se preferirem, escondam-se algures e esperem pela madrugada.»

Troquei um olhar preocupado com Nina; hesitámos um instante.

«A Nina tem razão», disse eu. «Fugiremos juntos.»

«Mas como?», quis saber Elsa, encolhida, temendo a escuridão. «Como? Para que lado é que vamos?»

E então pareceu-me evidente qual era o final da nossa história.

«Vamos para cima», respondi.

XXVIII

Nina e Elsa ajudaram Vincenzo a caminhar, carregando os braços dele sobre os ombros, enquanto eu abria caminho pelo bosque. Mesmo com a bengala numa mão e a lanterna na outra, conseguia agora ser mais rápido do que eles; embora a luz fosse pouco mais do que um desmaio intermitente e mortiço. O italiano ficou confuso durante um minuto quando o pusemos de pé e, depois, recordando como ali chegara, apontou numa direcção e foi por aí que seguimos. Era um plano absurdo, mas era o único que nos restava; nunca chegaríamos à estrada, não com Vincenzo naquele estado. Roubar o balão de Bosco era, também, um atrevimento digno de um grupo de suicidas – embora, na verdade, já tivéssemos feito um balão voar uma vez, por ocasião do sórdido funeral de Metzger –, mas talvez a loucura desmedida daquela empreitada pudesse funcionar a nosso favor. Afinal, a última coisa que uma besta espera é que a presa se meta no seu covil. Talvez não estivéssemos muito distantes da cabana de Bosco; talvez não tivesse passado muito tempo desde a fuga de Vincenzo; talvez Bosco ainda não tivesse regressado; talvez Olivia tivesse sido um pesadelo ou uma alucinação; talvez houvesse tempo para insuflar o balão e escapar; talvez, por uma vez, desafiando-a, conseguíssemos escapar à morte.

A lanterna extinguiu-se passados uns minutos mas, por essa altura, já ouvíamos o ruído distinto do gerador. As folhas estalavam debaixo dos nossos pés e, de dez em dez passos, Nina e Elsa tinham de parar para recolocar os braços de Vincenzo sobre os ombros. O italiano esgotara-se com o relato e, agora, a cabeça pendia-lhe sobre o peito, iluminada pela Lua que as nuvens haviam parcialmente descoberto. Adivinhámos o caminho na escuridão seguindo o zunido constante que provinha da clareira.

Depois vimos as luzes, que se projectavam acima das árvores como se um enorme vagalume por ali nascesse. O clarão irradiava, belo, na densidade do bosque. Avançámos, tentando o silêncio, até que chegámos à orla da clareira. Por entre as árvores conseguíamos ver a cabana de Bosco, os holofotes suspensos de um ramo e, no centro, a lona do balão atada por cordas à gôndola que estava sobre a terra. Aguardámos um minuto, agachados atrás de um arbusto; os nossos corações batiam descompassadamente – podia quase ouvir os batimentos cardíacos de Nina e Elsa atrás de mim – enquanto Vincenzo parecia suspenso entre a vigília e um entorpecimento que o prostrava nos braços das duas mulheres. Como ninguém se encontrava na clareira, fui o primeiro a aventurar-me e, com um gesto firme da mão que segurava a bengala, principiei a erguer-me. A mão de Elsa agarrou-me o braço.

«Tem cuidado», murmurou.

Coxeei até ao centro da clareira. A luz dos projectores irradiava milhares de pequenos mosquitos que a circulavam como átomos esfomeados. Ainda era noite cerrada mas, naquele lugar, a forte iluminação artificial conferia-lhe a aparência de um dia apocalíptico, envolto em excessiva brancura. Havia uma estranha quietude, interrompida apenas pelo fantasmagórico zunido do gerador.

Olhei em todas as direcções: vi Elsa, Nina e Vincenzo espreitarem por detrás do arbusto; vi a corda pendurada da árvore que tinha sustentado o calvário do italiano; vi as sombras das coisas lançadas aos quatro ventos; mas não vi Bosco. Fiz um compasso de espera e, depois, dei sinal na direcção do arvoredo, e Nina e Elsa emergiram, arrastando Vincenzo. Apontei para a gôndola do balão que estava deitada sobre a terra e levei o indicador à boca, pedindo silêncio.

A porta da cabana estava aberta. A luz penetrava pelas frinchas de madeira em feixes que denunciavam uma densa nuvem de pó. Procurei, na obscuridade, a ventoinha de ar frio; estava no mesmo lugar onde a vira, junto da bigorna. Subitamente um estrondo metálico: voltei-me e paralisei de susto − na gaiola, um pássaro vivo piou e saltou de um lado para o outro, batendo contra a armação de ferro; a gaiola tornou a chocalhar; os dois pássaros mortos continuavam caídos no fundo. Depois, apoiando-me na bengala, comecei a arrastar a ventoinha para fora da cabana. Nina veio a correr em meu auxílio; Vincenzo estava deitado sobre a relva, quase desmaiado, perto da cesta de verga do balão. Rapidamente levámos a ventoinha até junto da gôndola e imitámos o que Alipio fizera na manhã do funeral de Don Metzger: Elsa e Nina ergueram a parte superior da lona do balão nos braços para que o ar pudesse entrar e eu liguei o aparelho na potência máxima. As hélices começaram a girar a toda a velocidade. Depois, coxeando, fui ao depósito das pequenas botijas de gás propano, escolhi uma que senti cheia e regressei para junto do balão, arrastando-a pela terra. Olhei para a lona, que começava a insuflar. Não deveria demorar mais do que dez minutos; não tinha demorado mais do que isso quando Alipio insuflara o balão de Metzger.

O barulho da ventoinha juntou-se ao zunido do gerador e a noite encheu-se de um som monótono, constante. Nada havia a fazer senão aguardar; um enxame infinito de mosquitos pairava sobre nós. As roupas e os cabelos de Elsa e de Nina agitavam-se ao ar frio da ventoinha que começava a encher o envelope. Pareciam dois anjos numa rajada de vento, pensei, os braços esticados ao máximo, em bicos de pés, a lona azul e vermelha dançando atrás delas como uma vaga colorida. Vincenzo enrolara-se agora numa posição fetal, de olhos fechados, as marcas do chicote e os hematomas no seu corpo mais visíveis à luz intensa, o rosto coberto de sangue. O meu coração galopava e, enquanto atarraxava o tubo de alimentação do maçarico à botija de gás, olhei uma vez para a orla do bosque e imaginei Bosco a irromper por entre as árvores, montado num cavalo negro, galgando na nossa direcção com um martelo em punho e pronto a espezinhar o que restava da nossa derradeira tentativa. Mas nada disso aconteceu. O que aconteceu foi que o envelope de lona cresceu cada vez mais e, em pouco tempo, tinha formado um semicírculo na clareira, retesando as cordas que o uniam à cesta. Subitamente havia esperança nos olhos de Nina e Elsa; havia esperança nos meus; a lona do balão era agora uma gruta colorida de ar frio.

Foi nesse momento que o bosque começou a gritar. Um grito a princípio distante, camuflado pelo som da ventoinha, como um espírito aprisionado no fundo de um armário; depois, cada vez mais próximo, cada vez mais estridente, como se esse espírito saísse da escuridão, voraz, e viesse mostrar a bocarra de dentes carnívoros e devoradores. Procurámos a origem do grito, num pânico conjunto que nos fez voltar as cabeças em simultâneo; Nina e Elsa largaram as abas do envelope insuflado e eu fiquei paralisado, de cócoras, junto do maçarico.

Era Olivia.

Caminhava lentamente na nossa direcção, em pijama branco e descalça, a sua figura magra recortada contra a cabana assombrada pela luz intermitente do candeeiro eléctrico; caminhava para nós, de boca aberta e braços retesados ao lado do corpo, as mãos fechadas em punhos de fúria, o cabelo revolto pelo vento, e gritava a plenos pulmões, embora nada dissesse no seu grito – era apenas ruído, um ruído agudo e indescritível, uma voragem saída do fundo da sua garganta que parecia consumir todos os outros sons em redor. Quando o primeiro grito terminou, Olivia – que era um fantasma, nada mais do que um fantasma – dobrou ligeiramente os joelhos e, como se preparasse um salto para a água, encheu os pulmões de ar e redobrou a força do grito. Gritava, o rosto contorcido pelo esforço, para chamar a atenção; gritava, soube-o então, para que Bosco viesse ao seu encontro.

Mas o segundo grito não durou muito. Nina pegou na lanterna apagada que eu largara sobre a terra junto de Vincenzo e, correndo para Olivia, com um único e brutal movimento, atingiu-a no rosto. O barulho do choque foi seco e breve: o sangue explodiu-lhe na cara, mas Olivia não caiu logo. Cambaleou, aturdida, o líquido vermelho escorrendo para a frente do seu pijama, os braços em movimentos sinuosos procurando um apoio invisível; porém, antes que se pudesse recompor, Nina atingiu-a uma segunda vez. Ouviu-se outro barulho, desta vez alguma coisa que se partia; Olivia caiu redonda sobre a terra e Nina, com um despeito pela vida que só poderia ter aparecido naquele momento, debruçou-se sobre o fantasma e continuou a bater-lhe com a lanterna, uma, duas, três vezes.

«Nina.»

Elsa puxou-a pelos ombros e as duas caíram para trás. O rosto de Olivia, tombado de lado, era um caos de hematomas púrpuras e sangue. Elsa segurou Nina com firmeza durante um momento, até que esta deixou a lanterna escorregar da palma da mão e rebolar para a terra. Nina olhou para Elsa e depois para mim; o furor desaparecera dos seus olhos.

«Vamos», disse Elsa, tentando erguê-la por um braço; Nina resistiu por um instante, mas depois deixou-se levar. «Vamos», repetiu Elsa.

A ventoinha continuava ligada, agitando a lona do balão, os cabos cada vez mais tensos. Largando a bengala no chão, pus-me de joelhos e rastejei para dentro da gôndola tombada. Depois abri a válvula que libertava o gás propano e acendi o maçarico destrancando a manivela. A chama projectou-se em frente, uma nuvem azul no centro da qual uma rajada amarela queimava o ar frio que insuflara o envelope. Tínhamos pouco tempo. Puxei a bengala para dentro da gôndola enquanto Nina e Elsa, uma de cada lado, tentavam esticar as abas do envelope, procurando que o ar quente entrasse o mais depressa possível. De joelhos dentro da gôndola, olhei para o bosque, depois para a cabana e no fim para o corpo inanimado – ou, quem sabe, morto – de Olivia. Tentei afastar da cabeça a imagem de Bosco; estávamos quase.

De repente, o envelope insuflado deu um sacão e começou a subir para a posição vertical. Elsa e Nina continuavam agarradas às abas, em bicos de pés, mas logo a lona lhes fugiu enquanto a lágrima invertida se erguia no ar. Resvalei dentro da gôndola e quase caí borda fora; íamos levantar voo.

«O Vincenzo», apontei.

Elsa e Nina pegaram em Vincenzo pelos braços, puseram-no aos ombros e, depois, com a pressa que a situação exigia, largaram o corpo massacrado dentro da gôndola, que se agitava, descontrolada, começando lentamente a erguer-se. Vincenzo caiu para dentro do cesto e pareceu acordar, mas só foi capaz de se encostar à parede do cesto, a cabeça repousada contra a orla, um dos braços caído para o lado de fora. O peso do corpo dele trouxe-nos de regresso ao chão, mas a chama continuava a queimar e cedo a gôndola tornou a subir. Depois Nina e Elsa subiram para a gôndola atabalhoadamente e cada uma se agarrou a um dos cabos que ligavam o cesto ao envelope. Mantive-me no centro, procurando o equilíbrio, as mãos firmes na estrutura inferior do maçarico. Finalmente estávamos os quatro dentro do balão; mas continuávamos poucos centímetros acima do solo. Assim ficámos durante longos segundos. O maçarico queimava, o envelope rebentava de ar quente, mas o balão não subia.

«Esta coisa não sobe», disse Elsa, em desespero. «Temos demasiado peso.»

Nina inclinou-se sobre a parte exterior da cesta.

«Não é isso», disse e, com um salto ágil, passou para o lado de fora. Eu e Elsa debruçámo-nos para ver. A cesta estava presa por uma grossa corda a um espigão de ferro, profundamente enterrado no solo, que terminava numa anilha; a corda tinha ficado escondida pela lama. Nina ajoelhou-se junto da anilha e começou a desatar a corda, as suas mãos movendo-se com nervosa destreza.

«Depressa», disse Elsa, ansiosa. «Depressa.»

Foi nesse momento que o vi, emergindo do bosque como um centauro enraivecido. Elsa deu um grito e recuou para a parte mais distante da gôndola, enquanto o meu corpo desceu a uma temperatura mínima; apesar do calor intenso do maçarico, fiquei gelado, incapaz de me mover. O corpo poderoso de Bosco galopava na nossa direcção, de camisa rasgada, as pernas grossas como troncos de árvores, a espingarda pendurada às costas, agitando-se como a lança de um guerreiro ancestral. Trazia a morte no olhar – ou qualquer coisa pior do que a morte.

«Nina», gritou Elsa.

Nina conseguiu soltar a corda e, antes de regressar para dentro da cesta, olhou uma vez para trás, para a figura aterrorizadora que se aproximava a grande velocidade. Bosco estava a menos de dez metros quando o balão começou a subir; Bosco estava a menos de cinco metros quando o balão já se erguia a um metro e meio da terra; depois Bosco deu um salto em frente, o corpo esticado como uma bala que tivesse sido disparada de um canhão e, perante o nosso horror – recuámos, por instinto, para o fundo da gôndola –, conseguiu agarrar o braço que Vincenzo tinha deixado de fora. A gôndola abalou com violência e descaiu para o lado onde Bosco se pendurara, e os três resvalámos para cima de Vincenzo, que, incapaz de oferecer resistência, era arrastado pelo peso do catalão. Pensei: vamos virar-nos ao contrário, mas um balão não se vira: em resposta ao sacão, a força do ar quente tornou a equilibrar a frágil cesta e fez-nos resvalar outra vez para trás, a gôndola titubeando para os dois lados, indecisa entre o peso de Bosco e a força do ar que explodia dentro do envelope. Antes que pudéssemos recuperar o pé, já Vincenzo era arrastado para fora do cesto pela força do catalão, que, pendurado no ar, os pés a poucos centímetros do chão, tinha no rosto uma mórbida expressão de vingança, as mãos firmemente presas aos braços do italiano.

O resto aconteceu muito depressa. Lançámo-nos os três em socorro de Vincenzo, mas foi Nina quem chegou primeiro. Ainda hoje me pergunto se terá sido um acaso, se, na verdade, aquele desfecho havia sido decidido de antemão; a resposta nunca veio e nunca virá. Pouco importa: foi Nina quem chegou primeiro, foi Nina quem agarrou, com braços movidos pela força do amor, as calças de Vincenzo enquanto o corpo deste desaparecia de vez do interior do cesto, e foi Nina quem se viu, no lapso de um breve segundo, arrastada para fora da gôndola pelo peso dos dois homens e se despenhou com eles em direcção ao solo, enquanto o balão, aliviado, começava a subir para dentro da noite, a gôndola vacilando pela última vez. Depois Elsa e eu, agarrados, debruçámo-nos sobre a cesta e olhámos para as três figuras caídas sobre a terra. Em poucos segundos estávamos nas alturas, todas as coisas perdendo tamanho lá em baixo. Nina ainda tentou lutar, e vimo-la, no centro da clareira, o cabelo ruivo resplandecente às luzes eléctricas, atirar-se à figura maciça do catalão, da qual agora só reconhecíamos a careca luzidia e os ombros largos; colocou-se entre Bosco e Vincenzo e, com gestos agressivos, tentava manter o catalão afastado do italiano que, prostrado sobre a terra, parecia ter perdido os sentidos. Continuámos a subir e houve uma lágrima nos olhos de Elsa no momento em que, a clareira transformada numa colmeia de luz no meio de um mundo de alcatrão, vimos Bosco apontar a espingarda na direcção de Nina e o disparo nos chegou na forma de um eco longínquo, o som seco de uma rolha arrancada a uma garrafa. O corpo de Nina tombou. Elsa tapou os olhos, voltou costas e sentou-se dentro da gôndola. Também eu desviei o olhar; o segundo tiro foi uma ilusão distante, abafada pelo barulho do maçarico, cuja chama nos transportava para longe, para longe, para longe, para cada vez mais longe.

XXIX

O céu clareou e o vento ameno transportou-nos. Pouco tempo depois de deixarmos o bosque, o horizonte revelou a manhã vindoura, anunciada numa linha de luz trémula logo acima do mar. Quando me pareceu que tínhamos subido o suficiente, desliguei o maçarico; a chama extinguiu-se lentamente. Não me perguntei aonde iríamos parar e não me interessava saber. Aos meus pés, Elsa chorava baixinho; lá em cima tudo era silêncio, tudo era melancolia. Sem o calor da chama, o ar frio da madrugada cortou-me a respiração. Olhei para baixo. Vi o rectângulo do bosque nitidamente recortado nas terras de Sabaudia. Vi a clareira onde a casa de Don Metzger permanecia, agora desabitada, para sempre um lugar de fantasmas. Vi as casas e as povoações, os campos lavrados em pequenos quadrados castanhos e verdes, as linhas escuras das estradas que havíamos percorrido noutro tempo, e o azul-turquesa das águas, e a areia amarela das dunas no litoral. Na minha cabeça fui para outros lugares e foi nesse momento que comecei a ver tudo ao contrário − como se todas as coisas que eu julgara perdidas estivessem lançadas ao vazio de um futuro ainda por escrever; como se esse futuro não fosse mais a sombra da minha vida, mas um lugar desabitado que não sabia onde começava ou terminava; como se tudo não estivesse agora e para sempre predestinado ao fracasso e a verdadeira quimera fosse continuar a procrastinar ou adiar todas as decisões porque o futuro e o passado não eram coisas iguais, sequer semelhantes, mas duas faces de um espelho que só se pode atravessar quando se viaja num balão sem rumo, a uma velocidade impossível, para fugir ao pesadelo do que já aconteceu em direcção à incógnita de tudo o que poderá acontecer; e foi então que soube que chegaria a esse futuro por escrever e que, nesse futuro, tudo se tornaria a passar como se fosse a primeira vez e me seriam devolvidas todas as coisas que julgara perdidas, um futuro onde aterraria a qualquer momento sem esperar uma resposta, porque sabia agora que não existia uma resposta ou que a única resposta era uma secreta e apaziguada esperança.

Enquanto me detinha nestas cogitações, Elsa ergueu-se e puxou a corda que abriu a válvula do pára-quedas no topo do envelope. Não me ocorrera fazê-lo, não apenas porque não sabia para que servia aquela corda, mas também porque regressar à terra me parecia um gesto inútil e sem propósito. Elsa tornou a sentar-se; ao contrário de mim, o mundo que despertava em nosso redor parecia-lhe uma coisa agreste. Havia pouco vento e, com a naturalidade de um pássaro, o nosso balão de fuga foi descendo calmamente dos céus, nada o sustendo mas também nada o obrigando a repousar, e fomos levados numa suave diagonal, através dos campos e das povoações e das estradas e finalmente passando pela comuna de Sabaudia até pousarmos sobre um extenso campo de margaridas silvestres quando a manhã já principiava. A gôndola atingiu o solo com alguma velocidade e eu caí dentro dela, encontrando Elsa no rebolão. O cesto de vime ficou deitado de lado e, depois, o envelope do balão desfez-se de ar e, como uma manta que se coloca sobre uma criança adormecida, envolveu-nos ao primeiro sol daquele dia que começava a brilhar através da lona azul e vermelha, inundando-nos de cor. Com algum esforço destapei a lona que nos cobria e rastejei para fora da gôndola. O campo verde, repleto de flores amarelas, estendia-se para um dos lados; do outro, uma estrada de terra batida conduzia a uma duna.

Elsa emergiu de baixo da lona e deitou-se de costas sobre as flores. Respirava pesadamente, arfando como se tivesse corrido durante muito tempo. Os seus olhos magoados fitavam o céu que começava a despertar num imenso azul. Ainda de joelhos, aproximei-me dela e, suavemente, levei os meus lábios aos seus. Ela fechou os olhos e pareceu sorrir. Eu conhecia bem aquela boca; era uma boca que também me conhecia, éramos velhos amigos. Depois tirei os sapatos e descalcei as meias suadas. Lentamente desapertei, um a um, os botões da camisa encardida que trazia vestida. Pensei: a bengala ficou dentro da gôndola. Mas não a fui resgatar. Já não precisava dela. Pus-me de pé e foi então que o dia abriu, iluminando aquele campo de flores estivais. Avancei na direcção da estrada, a coxear, arrastando a perna doente com o peso do corpo ainda são. Quando os meus pés entraram no caminho de terra, que permanecia um tanto húmida da noite de temporal, a bengala era já uma memória de outra vida. Caminhava ansiosamente na direcção da duna. Caí duas vezes no chão antes de chegar à praia. O areal imenso estava deserto; o mar era tão azul como o mar de um sonho, nenhuma espuma à vista, uma cegonha observando o horizonte do cimo de uma rocha. A areia fina entrelaçou-se nos dedos dos meus pés. Olhei para a esquerda e vi, à distância, o rosto recortado pela erosão da água na rocha de Circe. Podia ser o rosto de Don Metzger, pensei; podia ser o rosto de qualquer um de nós, um rosto esculpido pela erosão do acaso num promontório voltado para o Mediterrâneo, um promontório cujo destino não estava ainda decidido.

Nada está decidido, penso. Coxeio lentamente na direcção do mar. A areia morna afaga-me os dedos nus. Pé ante pé, chegarei à beira da água e nela mergulharei para lavar o meu corpo de culpas. Olho para o céu onde não existe uma única nuvem à vista. Saltámos uma estação, pois o Verão – o verdadeiro, não esta escusada mentira − acabou de chegar.