XIV
Abri os olhos e emergi do fundo de alguma coisa dolorosa e túrgida, sem saber dizer se os gritos vinham de dentro ou de fora dos meus sonhos; depois ouvi o som de alguma coisa a bater a um ritmo compassado. O meu primeiro gesto foi levar a mão à perna – aquela de que Don se desfizera no balão – e, depois, procurar a bengala na escuridão: a perna estava lá, a bengala não. Encontrava-me num quarto às escuras e as venezianas da janela estavam fechadas; uma luz ténue atravessava as minúsculas frestas que separavam as tábuas de madeira. Tentei sair da cama, mas não consegui à primeira; era como se tivesse estado imóvel durante semanas e, agora, o corpo não conseguisse responder. Tornei a ouvir os gritos roucos de um homem; havia uma situação desesperada do outro lado daquela parede. O ritmo da coisa a bater persistia. Vasculhei o chão com os braços cegos e encontrei a bengala aos pés da cama. Levantei-me, alcancei a janela e apoiei-me nela, abrindo as venezianas. Na linha do horizonte o dia começava a nascer. Esfreguei os olhos com rapidez e procurei a origem da voz; o bosque era ainda um manto negro e insondável e as luzes da casa tinham sido desligadas. Um vento diabólico parecia agitar o mundo, fazendo o baloiço de madeira bater ritmicamente contra o tronco da árvore: aí estava a origem do barulho. Depois vi que alguma coisa se movimentava no lago. Novamente a voz e, então, os vultos em movimento: havia gente dentro de água.
Precipitei-me na direcção da porta. O quarto era comprido e estava praticamente vazio, com excepção da cama, um pequeno sofá e uma secretária voltada para a janela. A bengala resvalou no chão de madeira enquanto avancei para o corredor; do outro lado da porta, o ar estava impregnado de uma mistura de tabaco, marijuana, suor e álcool. Encontrava-me no último quarto do lado esquerdo; a casa era um silêncio de sepulcro, um cemitério de almas provavelmente abandonadas a sonos letárgicos e profundos. Percorri o corredor até às escadas, que desci aos solavancos, os gritos cada vez mais audíveis. Quando alcancei o patamar, dirigi-me para a cozinha, onde uma pequena cidade de garrafas e copos vazios atulhava a mesa de jantar, e saí para o exterior pela porta de correr. Tudo era silêncio lá fora, excepto a voz desconhecida, o chapinhar nas águas e um vento fortíssimo de nordeste. O horizonte estava vermelho-vivo, como se o final daquela noite derramasse sangue pelo céu abaixo em direcção à terra.
A voz clamava por ajuda. Olhei para trás: nenhuma outra luz se acendera na casa. Tentei estugar o passo na direcção do lago com a velocidade possível a um coxo, a bengala enterrando-se a cada estocada na relva húmida. Quando entrei no pontão de madeira vi os dois homens. Um deles, louro e pálido, tentava arrastar o pequeno barco de madeira, quase afundado, na direcção do pontão; no barco estava o corpo de um outro homem; a tarefa era impossível, porque o corpo desse homem era uma coisa gigantesca numa diminuta embarcação condenada ao fracasso, que o vento empurrava para o centro do lago.
O homem louro parecia no limite das forças; tentou gritar uma vez mais quando me viu, mas tudo o que lhe saiu da boca foram palavras engolidas pela água. Estava a cerca de dez metros do pontão mas, a cada braçada para diante, o vento tornava a levá-lo para trás. Olhei uma vez mais na direcção da casa: ninguém parecia ter acordado, apesar dos gritos; apesar de o baloiço desgovernado massacrar o tronco da árvore com chicotadas bestiais. Aproximei-me e, ajoelhando-me, fiz a única coisa que me ocorreu: estendi a bengala na direcção dele, um gesto que se revelou completamente inútil. O homem louro afogava-se na tentativa de resgatar o outro.
«Deixa-o ir», gritei-lhe. «Deixa-o.»
Agitei a bengala no ar enquanto o homem louro continuava a engolir água e a tentar arrastar o barco para o pontão. Era uma batalha perdida e, de repente, o barco soçobrou. Encheu-se de água e, borbulhando, foi desaparecendo da superfície. O homem louro lançou-se ao pescoço do gigante e, exaurido, tentou mantê-lo à tona, mas o corpo do outro começou também a afundar-se devagar, à mesma cadência do barco.
«Deixa-o», tornei a gritar.
Nesse momento emergiu um carro do bosque a grande velocidade: era o Renault de Alipio, que fez todo o caminho até junto do pontão aos solavancos, travando com estrépito. Bosco saltou do lugar do passageiro e galgou terreno como um atleta, uma grossa corda enrolada ao ombro direito; atrás vinha Alipio, vestido com as mesmas roupas da noite anterior, de boné na mão, suando as estopinhas, quase aos trambolhões porque as pernas lhe fraquejavam do esforço. Agitei os braços no ar e gritei ao homem no lago que se mantivesse à tona. Um instante depois Bosco chegou ao pontão; vinha sem óculos, e os olhos pareciam ter diminuído na mesma proporção em que o seu corpo fenomenal crescera; havia, contudo, um desespero no seu rosto que ainda não lhe vira, uma urgência angustiada que quase me lançou borda fora, enquanto atava uma ponta da corda à cintura e a outra a uma das colunas que sustentavam o pontão. Segundos depois lançou-se à água e, com braçadas vigorosas, nadou na direcção dos dois homens. Alipio chegou pouco depois, afogueado; levou uma mão à testa como se presenciasse a maior desgraça do mundo e depois enfiou o boné na cabeça.
O homem louro foi o primeiro a chegar ao pontão. Ajoelhei-me, pousei a bengala e tentei ajudá-lo a subir, mas faltaram-me as forças e, quando ele já se encontrava fora do lago, resvalei e caí sobre a madeira. Bosco ocupava-se do corpo que agora arrastava sobre as águas, trazendo-o lentamente na nossa direcção; Alipio arregaçara as mangas e preparava-se para oferecer ajuda. Olhei para o homem louro, que estava completamente vestido – calças, camisa, ténis – e reconheci-o das fotografias que vira em jornais literários: era John McGill. O inglês cuspiu água durante um minuto e, depois, ajudou Bosco e Alipio a fazer subir o corpo obeso para o pontão. Alipio e McGill voltaram-no ao contrário e o rosto ficou virado para cima, iluminado pelos primeiros raios de sol da manhã.
Alipio soltou uma exclamação e persignou-se quando viu a última expressão de Don Metzger, os olhos ainda abertos, a boca contorcida num horrível esgar de sofrimento. Era o rosto de um homem perturbado, pensei; o rosto de alguém que sofrera muitíssimo no momento da morte. Embora o cadáver estivesse deitado sobre as tábuas de madeira, a nossa atenção voltou-se para a entrada do cais, onde alguém aparecera. Era Olivia; não sei há quanto tempo nos observava, mas estava ali parada como se estivesse em choque, os braços pendendo ao longo do corpo como coisas inanimadas, os olhos postos no defunto sobre o pontão. Nenhum de nós reagiu à presença dela e Olivia recuou um passo, depois dois, depois três, e finalmente regressou para dentro da casa a correr.
O rosto de Metzger, inchado e azul, fazia recordar vagamente o rosto das fotografias que eu vira no quarto secreto que Elsa me mostrara. O resto era inimaginável; o homem tinha sido um colosso em vida, um cachalote de cento e quarenta quilos a que nenhum retrato podia fazer justiça. As mãos pareciam raquetes; a barriga, exposta pela camisa aberta, erguia-se do pontão como uma montanha; se usara calças, perdera-as no lago, e acima das cuecas brancas, quase invisíveis debaixo da gordura e coladas ao corpo pela água, via-se uma profusão de pêlos claros e molhados que conduziam ao baixo-ventre. Em redor do grosso pescoço havia marcas vermelhas. Depois do resgate, Bosco passou alguns minutos de joelhos a recuperar o fôlego. Perguntei a McGill o que acontecera; o inglês parecia tão atónito como um homem que, deitando-se na Terra, viesse a despertar na Lua. Explicou-me, arfando, que aterrara em Roma no primeiro voo da madrugada vindo de Inglaterra e que, depois, seguira as indicações que Nina lhe dera pelo telefone, ainda em Budapeste; quando chegou à estação de Priverno tentou ligar para Nina, mas não havia sinal. Ainda pensou em dormir na estação e esperar pela manhã mas, depois, ouviu uma conversa em inglês entre dois bêbedos.
«Um tipo asiático que era director de fotografia», disse McGill, ainda à procura de ar, «e outro tipo qualquer. Estavam sentados no meio de um grupo num banco da estação com uma garrafa de vodka. Aparentemente, tinham espatifado o carro e iam apanhar o comboio para Roma. Ouvi-os dizerem o nome de Metzger e meti conversa.»
Bosco, ajoelhado, arfava. Com uma mão sobre a outra, pressionava levemente o peito de Don: água turva saía-lhe da boca num fio contínuo, mas Don continuava morto. Bosco olhou, angustiado, para o céu, onde a manhã era agora plena − os seus olhos claros eram da cor das nuvens.
McGill continuou, afastando o cabelo louro dos olhos; era um tipo elegante, magro, de maçãs-do-rosto salientes e maxilares fortes.
«O asiático e o outro tipo disseram-me que era impossível chegar aqui sem carro. Mas eu não queria passar a noite no raio da estação. Estava entusiasmado com tudo: o livro, o contrato, o raio do filme. Consegui apanhar um táxi que me deixou na Via Litoranea, ao quilómetro que o asiático indicou. Meti pela estrada de terra batida e fiz-me ao descampado a pé; pouco tempo depois vi as luzes penduradas da árvore e encontrei-o.» Apontou para Alipio, que falava com o catalão em voz baixa. Nesse momento Olivia tornou a sair da casa, acompanhada por Nina e por Vincenzo; Olivia estava pálida como um fantasma e Vincenzo parecia ter sido esmagado por um rolo compressor, as olheiras descendo-lhe pelo rosto como cortinas de chumbo. Nina não parecia em melhor forma, mas, quando viu John McGill, correu para ele; McGill fez o mesmo, e abraçaram-se à entrada do pontão. Mas depois Nina viu o morto e levou a duas mãos à boca. Vincenzo aproximou-se, despenteado e incrédulo, em tronco nu, enquanto Bosco e Alipio continuavam a examinar o corpo.
«Por favor diz-me que isto não está a acontecer.» Vincenzo parecia desesperado. «Diz-me que aquele não é o Metzger.»
«É o Metzger», respondi-lhe, apoiando-me na bengala. «E isto parece ser o cenário de um crime.»
XV
Bosco e Alipio enrolaram o corpo de Metzger numa lona de balão que se encontrava na bagageira do Renault; era a única coisa suficientemente grande para o abarcar. O catalão tinha decidido, depois de ter visto Susanna chorar, descontrolada, ao descobrir o corpo deitado sobre o pontão, que era desnecessário continuar a expor o cadáver. Assim, tinham-no enrolado e colocado à sombra da árvore.
Estávamos na cozinha. Bosco olhou para McGill; pediu-lhe, inquisidor:
«Conta-me o que sucedeu.»
«O Alipio não te contou?»
«Quero ouvir nas tuas palavras.»
Susanna fazia café enquanto chorava; a mulher estava incrédula e Alipio tivera de a abraçar para controlar o seu pranto.
«Encontrei o Alipio na cabana. Perguntei-lhe pela casa do Don Metzger e ele trouxe-me naquele carro antigo», disse McGill. Apontava para o Renault estacionado lá fora. Depois olhou para Bosco em tom de desafio.
«E tu? Onde é que estavas enquanto eu o salvava de ir parar ao fundo do lago?»
Bosco ergueu-se da cadeira na qual se sentara ao contrário, apoiado no espaldar. Nina segurou o braço de McGill, num gesto protector, e Olivia foi-se afastando para o fundo da cozinha. A rapariga parecia aterrorizada e perdera toda a cor; era como se, durante a noite, tivesse sido visitada por uma criatura que lhe houvesse sugado o sangue.
«Era melhor termos calma», disse Vincenzo, que permanecia em tronco nu. Voltou-se para McGill. «Explica a este tipo o que aconteceu. Por favor.»
McGill respirou fundo e falou telegraficamente.
«Chegámos no Renault, ainda era noite. Eu saí do carro e o Alipio ia dar meia-volta quando olhei para o lago e vi o barco a flutuar com um corpo em cima. Fazia um vento fortíssimo e o barco afastava-se da margem. Perguntei-lhe quem era aquela pessoa dentro do barco, e o Alipio também saiu do carro e aproximou-se da água. Gritou alguma coisa em italiano na direcção do barco, uma série de vezes, mas a figura não se mexia. Pensei que fosse alguém desmaiado ou assim e meti-me dentro de água para ir ver o que se passava. Nadei até ao barco e, quando lá cheguei, encontrei o tipo todo nu, deitado. Estava de costas, de olhos abertos, a olhar para o céu; era arrepiante. Tentei fazê-lo reagir, mas tive medo de o abanar demasiado; o barco estava cada vez mais cheio de água. Comecei a tentar trazer o barco para o pontão, mas o homem era demasiado grande e a embarcação demasiado frágil. Vi o Alipio, na margem, a correr para o carro e a meter-se pelo bosque adentro. Julguei que se tinha ido embora e entrei em pânico; comecei aos gritos, a chamar por socorro; não conseguia arrastar o barco para a margem. Depois, mesmo antes de o Alipio regressar, a embarcação começou a afundar-se e o homem ficou dentro de água.» Apontou para mim. «Aquele tipo já tinha aparecido. O da bengala.» Voltou-se para Bosco. «É tudo o que me lembro. Podemos chamar a Polícia?»
Bosco apoiava as mãos na beira da mesa. Olhava para McGill com suspeita e perguntou, franzindo o sobrolho:
«A Polícia? Porquê?»
Os presentes entreolharam-se. Troquei um olhar com Vincenzo, que parecia exausto; ao fundo da cozinha, Olivia abraçava-se. Susanna trouxe uma bandeja com chávenas de café para o meio da mesa.
McGill estava atónito.
«Porquê?! Que tal porque morreu uma pessoa?»
«O Don Metzger foi assassinado», disse Bosco.
«Mais uma razão para chamarmos a Polícia.»
«Foi assassinado esta noite por alguém nesta casa», acrescentou Bosco, cruzando os braços. «E eu faço questão de saber quem foi; faço muita questão de saber.»
Nina riu-se, incrédula, e aproximou-se de Bosco.
«Ouve, tu não podes mandar e desmandar como te apetece.»
Bosco deu uma palmada na mesa com tanta força que as chávenas de café saltaram da bandeja; duas caíram e partiram-se. O café alastrou pela pedra fria, espalhando um aroma intenso. Nina recuou, assustada, e Susanna recomeçou a chorar. Bosco olhava-a com desprezo e, ao mesmo tempo, com os olhos marejados de lágrimas.
«Aquele homem que ali está», disse, apontando para a porta, a sua voz de trovão ecoando pela cozinha, «foi posto inconsciente, estrangulado e depois afogado. Tem marcas no pescoço, um traumatismo na nuca e os pulmões cheios de água. O Don Metzger chegou vivo a esta casa e agora está morto. O culpado – ou os culpados − estão aqui.» Bosco olhou em redor e depois reafirmou, com uma solenidade que roçava a comédia: «Estão aqui.»
McGill abanou a cabeça; perguntou em voz alta:
«O que é que te leva a dizer isso? Que o culpado está aqui? E se o culpado chegou, fez o que tinha a fazer e se pôs a milhas?»
Bosco soltou um riso cínico.
«O Don Metzger tinha dois metros de altura e cento e cinquenta quilos. Quem o matou era alguém da sua confiança ou, pelo menos, alguém suficientemente próximo para o conseguir fazer num momento oportunista. Eu examinei-lhe o corpo; não existem quaisquer marcas de luta ou sinais de resistência.» Bosco respirou fundo; parecia prestes a perder as estribeiras. «O homicida foi um cobarde que se aproveitou da vantagem de aqui estar e de passar despercebido.» Enquanto Bosco falava, todos se encolhiam: a tensão na cozinha era quase insuportável. O catalão fincou as mãos na mesa até os nós dos dedos ficarem brancos; fez uma pausa; do fundo da sua ira disse alguma coisa incompreensível e depois continuou: «… era um homem bom, era um homem honesto. Vocês, seus filhos de uma puta» − abanou a cabeça, tentando lutar contra as lágrimas – «vocês deram cabo dele.»
«Quando é que o Metzger chegou?», perguntei abruptamente. Os olhares voltaram-se na minha direcção, como se tivesse proferido uma obscenidade; a respiração pesada de Bosco ecoava pela cozinha. Reformulei a pergunta: «Eu já estava a dormir, não o cheguei a ver com vida. Quem é que o viu chegar?»
Nina olhou para Vincenzo e este, por sua vez, olhou para Olivia; esta, encostada à porta, tremia, abraçando o próprio corpo, e não devolveu o olhar.
«Eu adormeci muito cedo num dos quartos», disse Olivia. «Só acordei esta manhã com os gritos.»
Alipio parecia seguir a conversa e disse, em italiano, que a sua mulher se tinha deitado sem nunca ver o patrão; Susanna acenou afirmativamente, secando as lágrimas com as costas da mão. Restavam Nina e Vincenzo; olhei-os.
«Toda a gente que estava cá em baixo deu pela chegada», adiantou Vincenzo. «Foi impossível não dar por ela.»
«O que é que isso quer dizer?», perguntou Bosco.
Vincenzo perguntou a Alipio, em italiano, se, na noite passada, se tinha dado conta do carro do patrão a passar; Alipio acenou afirmativamente.
«Passou pela clareira como se fosse uma flecha», confirmou o homem, de boné amarfanhado nas mãos.
Vincenzo perguntou: «Vocês ainda não viram a parede de vidro da sala, pois não?»
Bosco precipitou-se para fora da cozinha e todos o seguiram. Naquela madrugada, por causa dos gritos vindos do lago, eu não me preocupara em olhar para a casa − agora, à luz violenta do dia, a desarrumação era de tal ordem que o lugar parecia ter sido varrido por um pequeno tornado. Havia sofás voltados ao contrário, a televisão estava tombada no chão, havia garrafas vazias largadas por toda a parte; atrás do balcão do bar, uma secção inteira de copos tinha caído e os cacos espalhavam-se caoticamente pelo soalho. Suzanna benzeu-se e, num impulso irracional, começou a tentar arrumar a sala; Bosco deu-lhe ordem para não mexer em nada.
Depois percebemos a pergunta de Vincenzo. Na sala do aquário, a parede de vidro do lado esquerdo – que enfrentava o lago – tinha sido parcialmente destruída pela parte dianteira de um carro. Nina explicou que aquele era o carro de Don Metzger e que fora assim que o produtor chegara à festa: aparentemente viera depressa demais e, embora tivesse tentado travar, tinha acabado por entrar pela sala do aquário dentro do automóvel. Um dos faróis ainda estava aceso e o outro encontrava-se quebrado. O automóvel galgara o terreno fronteiro da casa, arrastando consigo as filas de pedras e cactos que decoravam o relvado e, naquilo que se adivinhava ter sido uma travagem brusca, partira o vidro da janela antes de acabar com as rodas da frente dentro da casa. Lembrei-me, nesse momento, do som de trovão que escutara nos meus sonhos.
Havia pedaços de cacto espalhados pelo chão e uma garrafa de whisky vazia em cima do tejadilho. Bosco dirigiu-se ao carro; os peixes, no aquário, acompanharam os seus passos decididos.
Depois Bosco olhou-nos, como se procurasse uma explicação.
«Foi assim que o Don chegou», disse Vincenzo. «Saiu directamente do carro para o meio da sala.»
Bosco perguntou:
«Quem é que estava aqui quando isto aconteceu?»
«Eu e o Vincenzo», disse Nina. «O actor do filme…»
«Pym», adiantou Vincenzo.
«Pym», repetiu Nina. «A Elsa. A Stella e o Roger.»
Bosco pareceu querer rugir ao ouvir o nome do australiano. O seu corpo retesou-se; cerrava os punhos de fúria. Olhei para o exterior: o descapotável de Roger permanecia no mesmo lugar onde o deixara na noite anterior; não sofrera um arranhão com a chegada tumultuosa de Metzger. Bosco olhava-me.
«E o resto?»
Nina olhou para Vincenzo; este levou a mão à cabeça e sacudiu o cabelo despenteado. Depois esfregou os olhos com a ponta dos dedos.
«Hum. Julgo que éramos só estes quando o Don chegou.» Depois hesitou, abanando a cabeça. «Espera, não sei. Não tenho a certeza. Os últimos a partir foram a Uli e o Albert. Sei que levaram o carro vermelho, aquele que estava junto ao descapotável do Roger. Mas não sei se partiram antes ou depois de o Don ter chegado.»
«Não sabes como?», perguntou Bosco, irritado. «Estavas aqui ou não estavas?»
«Estava», repetiu Vincenzo. «Mas não me lembro.»
Houve um silêncio prolongado; lá fora, o vento abrandara e um bando de pássaros cruzou o céu em rigorosa formação. Bosco olhou para Nina.
«Tu. O que é que tens a dizer?»
Nina hesitou um instante e depois olhou para McGill; este encolheu os ombros e abanou a cabeça, como se não soubesse que resposta lhe dar.
«A Uli e o Albert ainda cá estavam quando o Don chegou», disse Nina.
«Tu lembras-te. Diz-me então o que é que aconteceu depois», exigiu Bosco.
Nina olhou novamente para McGill; descobriu que também este esperava uma resposta. Depois disse-lhe: «Acho que tens razão. Devíamos chamar a Polícia.»
Todos nos voltámos quando Nina deu meia-volta e avançou com determinação para o telefone de parede que ficava à entrada da cozinha; o catalão, furioso, abriu caminho por entre Alipio e Vincenzo e dirigiu-se a Nina, que já pegara no auscultador e o levava ao ouvido. Julguei que Bosco lhe ia arrancar a cabeça, mas depois o que ele fez foi igualmente cruel: com as duas mãos, arrancou o telefone da parede e atirou-o para o chão da cozinha. O aparelho desfez-se em pedaços. Nina recuou e encostou-se à parede; pela primeira vez, vi medo no seu rosto.
«Filho-da-puta», disse, baixinho. «Não tens o direito de fazer isto.»
Bosco estava rubro de fúria; aproximou-se muito dela e disse, numa voz contida:
«Não respondeste à minha pergunta.»
McGill tentou interpor-se, mas o catalão empurrou-o e o inglês caiu ao chão. Vincenzo ajudou-o a erguer-se; McGill parecia atordoado.
«Besta dos infernos», gritou Nina, fuzilando Bosco com o olhar. «Nem mais uma palavra minha. Nem mais uma.»
Bosco sorriu de escárnio. «Se te recusas a falar, vou simplesmente assumir que tens alguma coisa a esconder.»
«Estou-me a cagar para o que tu assumes ou não», disse Nina, empurrando Bosco para o desviar do seu caminho. Num movimento hábil, Bosco segurou o braço de Nina antes que esta pudesse afastar-se.
«Larga-me», gritou ela.
Houve um momento de silêncio. Ao meu lado, McGill preparava-se para se meter outra vez ao barulho; Nina arreganhava os dentes.
«Ela esteve comigo depois de o Don chegar», disse uma voz no cimo das escadas. Era Elsa: usava uma camisa de homem e começou a descer os degraus; parecia estar nua por baixo da camisa. Quando chegou ao patamar, acrescentou: «Estivemos a conversar e a beber vinho no meu quarto durante o resto da noite, enquanto contávamos as estrelas.»
Bosco desviou o olhar de Elsa. Depois de um momento de silêncio, disse:
«Acordem os outros. Quero toda a gente lá fora daqui a cinco minutos.»
Na hora que se seguiu as coisas complicaram-se ainda mais. Bosco meteu-se no Renault, fez-se ao bosque e regressou com uma arma – a espingarda de caça que lhe vira na noite anterior, com uma mira e uma fivela de transportar ao ombro. Quando a espingarda apareceu, soube que aqueles breves minutos em que Bosco se ausentara – os fugazes minutos durante os quais Vincenzo foi acordar Roger e Stella e Elsa subiu para ir buscar Pym – tinham sido os nossos últimos minutos de liberdade: a partir de então, o nosso pequeno mundo, sujo e perverso, transformar-se-ia num cativeiro.
Estávamos reunidos junto do lago, em redor da árvore, onde jazia o corpo de Metzger. Alipio e Susanna tinham ficado à porta da cozinha; a mulher dissera que não queria aproximar-se do cadáver e Bosco concordara. Por volta das oito e meia, Pym emergiu pela mão de Elsa para a luz cruel da manhã, ainda com pior aspecto do que Vincenzo quando despertara: o neo-zelandês parecia um animal doméstico assustado com a vida selvagem, de olhos azuis aguados e ingénuos, acompanhados de uma voz fina e temerosa. Roger e Stella desceram do quarto pouco tempo depois, estremunhados, meio despidos, e quiseram saber o que se passava para terem sido acordados àquela hora. Bosco respondeu levantando a lona que cobria Don Metzger. Stella vomitou sobre a relva; Roger não teve qualquer reacção – ficou a olhar para o cadáver inchado, para aquela baleia azul e imóvel, e depois passou os dedos pelo cabelo oleoso.
«Macacos me mordam», disse, cuspindo para o chão. «Que raio aconteceu aqui?»
Stella parara de vomitar e limpava a boca com as costas da mão. Olivia tinha desviado a cabeça e fitava a superfície tranquila do lago: o vento cessara de vez e dir-se-ia que aquela era uma paisagem bucólica, pintada num quadro naturalista; nos olhos de Olivia, porém, à reflexão do lago juntava-se uma pesada melancolia.
«Diz-me tu», provocou Bosco, tornando a tapar o corpo de Metzger. «Explica-me como é que um palerma do teu tamanho consegue estrangular um homem deste porte, afogá-lo e metê-lo dentro de um barco.»
Roger, espantado, ergueu o olhar para o catalão.
«Que tal se eu ligar para o meu advogado e te meter em tribunal por difamação?»
Bosco sorriu com malícia. Depois pegou na espingarda e apontou-a a Roger. Todos recuámos um passo; Roger lançou-se ao chão; Stella soltou um grito histérico.
«E se eu fizer justiça e te enfiar um tiro na cabeça?»
Roger e Bosco olharam-se durante um longo momento. Depois Roger riu-se, levantou-se, sacudiu a relva da roupa e voltou-lhe as costas.
«Vamos», disse para Stella. «É um bluff. Vamos pôr-nos a andar daqui. Vai buscar as nossas coisas e encontramo-nos no carro.»
Ainda não tinham dado um passo na direcção da casa quando Bosco deu o primeiro tiro, que acertou em cheio num dos pneus dianteiros do carro de Roger. O pneu perdeu imediatamente pressão e o carro descaiu uns centímetros. Depois, Bosco disparou um segundo tiro, que atingiu um dos pneus traseiros. O carro ficou completamente inclinado.
«Este tipo é louco», disse Nina, baixinho.
«Completamente louco», concordou McGill.
Roger, que olhava incrédulo para o descapotável, voltou-se devagar na nossa direcção. Stella tinha instintivamente erguido os braços no ar, num movimento de rendição.
«O próximo é para ti, se me tornares a voltar as costas», disse Bosco.
McGill passou os dedos pelo cabelo louro; tinha a testa suada e as roupas ainda molhadas e sujas. Avançou um passo e, corajosamente, fitou Bosco.
«Ouve, diz-nos o que queres», pediu-lhe, passando outra vez os dedos pelo cabelo. «Diz-nos o que queres antes que isto se descontrole por completo. Nós fazemos o que tu quiseres e, depois, vamos todos embora daqui. Que te parece?»
Bosco deixou a espingarda repousar no ombro.
«O que eu quero?» Riu-se. «Não se trata de fazer o que eu quero. Trata-se de fazer o que é certo. Trata-se de fazer justiça.»
«Se queres justiça, então vamos chamar a Polícia», disse McGill.
«Estamos a falar de um produtor de cinema», corroborei. «A investigação vai ser exaustiva.»
«E o que é que acontece?», perguntou Bosco. Começou a caminhar de um lado para o outro, absorto. «A Polícia investiga. Se encontrarem um suspeito, os tribunais italianos demorarão uma eternidade a levá-lo a julgamento e, entretanto, o assassino arranjou um advogado que é amigo do juiz e o declara inocente ou, na melhor das hipóteses, lhe dá pena suspensa.» O catalão abanou a enorme cabeça. Havia voltado a pôr os pequenos óculos sobre o nariz; parecia um pregador de domingo com uma espingarda ao ombro. Rematou: «Não, isto não vai ser assim. Não funciona. Não é suficiente.»
Elsa acendeu um cigarro. Pym tremia de frio, embora a manhã aquecesse.
«O que é que tu consideras suficiente?», perguntou McGill.
Bosco continuava a caminhar em linha recta: três passos para cada lado.
«Uma confissão. Uma confissão de quem cometeu este crime.»
«E depois da confissão?»
«Encontraremos a punição adequada à ofensa», explicou Bosco.
McGill trocou um olhar preocupado com Nina.
«Homem, isso é uma loucura», disse o inglês.
Bosco olhou-o demoradamente enquanto caminhava.
«Loucura é a impunidade; isto é justiça.»
«Feita pelas próprias mãos», disse eu.
«Tal como o crime», disse Bosco. «Repito: a resposta deve ser adequada à pergunta, bem como a punição adequada à ofensa.»
«Mas porquê?», perguntou Elsa, olhando para a lona que cobria Metzger. «O homem está morto. Que é que lhe interessa a justiça?»
«Quando existe justiça os mortos continuam a viver», insistiu Bosco. «A justiça resgata-os à morte; traz-lhes paz. Don Metzger terá a sua paz e nós também a teremos com ele.»
«Isso não é justiça», disse Nina. «É uma inquisição supersticiosa.»
Bosco deteve-se e respirou fundo; o seu peito largo encheu-se de ar.
«É-me indiferente o nome que lhe atribuis. Vocês sugaram tudo o que puderam ao Don Metzger. Está na altura de retribuírem com a verdade.»
«De repente o Don Metzger é um santo», disse Roger. «Inacreditável.»
Bosco tornou a apontar a espingarda na direcção do australiano; Roger agachou-se e depois ergueu um braço para diante num gesto de defesa. O semicírculo em torno da árvore tornou a alargar-se.
«Queres partilhar alguma coisa?», perguntou Bosco.
«Quero», disse Roger. «Se baixares essa porcaria.»
Bosco fez um compasso de espera e depois baixou a arma. O bando de pássaros cruzava agora o lago, baixando até à água em voos rasantes.
«Sou todo ouvidos», disse Bosco.
Roger aclarou a garganta e olhou para a lona.
«Tu falas em respeitar os mortos; muito bem. Mas se o Don Metzger aqui estivesse, não ia querer justiça. Nem compaixão, nem confissões, nem porra nenhuma. O Don era um homem livre. Não acreditava em deus nem no diabo, no céu ou no inferno.» Espetou o indicador da mão direita no seu próprio peito. «Eu conheci-o como a palma da minha mão. O Don gostava de mulheres, de whisky irlandês, de cinema e dos teus malditos balões.» Bosco escutava-o, impassível. «Se queres respeitar o Don, se lhe queres fazer justiça, então faz o que ele teria feito, e deixa-o morrer. Deixa que os vermes tomem conta do assunto. Não há punição neste mundo que seja adequada às nossas ofensas. Sobretudo para um homem como ele; para homens como nós.»
«Eu não sou igual a ti», disse Bosco num tom gélido. «Certamente que o Don não era igual a ti.»
Roger soltou um riso zombeteiro.
«Só não era igual porque, provavelmente, era mais bêbedo.» Olhou para a casa e apontou para o carro, cuja parte dianteira se encontrava enfiada na sala. «Estás a ver aquilo? Aquele era o teu santo. O mais certo é ter aterrado em Roma já com uns copos em cima; meteu-se no carro, bebeu uma garrafa de whisky pelo caminho e chegou no estado em que chegou. Eu vi-o ontem, Bosco. Parecia um comboio prestes a descarrilar e continuava a beber. Depois, deve ter-se enfiado no barco e deu-lhe uma coisinha má, porque era gordo como um elefante e tinha as veias entupidas de merda. Morreu sozinho, sem a ajuda de ninguém.»
Bosco abanou a cabeça.
«Não sejas idiota», disse. «O Don foi morto e tu sabes disso. Ou também queres sugerir que ele se tenha estrangulado a si próprio?»
«Não faço ideia», disse Roger. «Não sou médico-legista.»
«O Don nunca se mataria», disse Elsa.
Pym, ao seu lado, tinha lágrimas nos olhos. McGill interveio.
«Assumindo que foi um homicídio», disse, «e que o culpado está, como tu julgas, aqui, como é que vais fazer para conseguires a tua confissão? Vamos jogar Cluedo até descobrirmos o criminoso? Foi o mordomo, no salão, com um candelabro?» McGill fechou os olhos, procurando as palavras, e depois abriu-os. «Isto não é um jogo, Bosco. Um homem morreu, e está ali deitado a apodrecer. O que é que vamos fazer ao corpo, enquanto tu arrancas a tua confissão?»
«Fazemos um funeral digno», respondeu o catalão, voltando a colocar a espingarda ao ombro.
XVI
Fomos todos culpados. Nós éramos onze e Bosco apenas um; tinha uma arma, é certo, mas era apenas um. Calámos, obedecemos, pusemos o homem dentro do cesto do balão e deixámo-lo desaparecer no céu pálido do Lácio. Ou talvez as coisas tivessem acontecido precisamente da mesma maneira se todos tivéssemos uma arma, pois o medo transforma-nos, faz de nós presas fáceis, mergulha-nos num torpor pesado e ruminante. Foi assim que, numa triste procissão de condenados, nos arrastámos pelo caminho sinuoso do bosque em direcção à clareira onde Bosco e Alipio construíam os balões. Foram precisos quatro de nós para levantar o corpo de Metzger e o enfiar dentro do Renault – McGill, Roger, Vincenzo e Pym – e os mesmos quatro para o transportar do carro até à gôndola do balão. Depois, Don Metzger fez-se ao céu e nunca mais o tornámos a ver.
Recordo com particular agonia essa tarde; foi um tempo de silêncio e de dor. No caminho da floresta, seguindo o Renault que Alipio conduzia devagar pelo trilho – Bosco a alguma distância do grupo, vigilante, déspota −, Vincenzo deixou-se ficar para trás e acompanhou o meu andar coxo. À nossa frente seguiam, abraçados, Nina e McGill; Olivia, sozinha e circunspecta; Elsa e Pym, fumando cigarros; Stella e Roger, ela pasmada, ele derrotado; Susanna seguia no Renault, no lugar do passageiro. Olhei para Vincenzo. Havia culpa no seu rosto; havia também sofrimento. Tão diferente agora do rosto que, num restaurante de Budapeste, me convencera a passar o Verão naquele lugar com um entusiasmo quase insólito.
«Tinhas razão», disse-lhe em voz baixa, a bengala afundando-se no terreno arenoso. «Sabaudia é, de facto, uma experiência única.»
«Não sei o que hei-de responder a isso», disse Vincenzo.
Sorri com sarcasmo.
«Podias dizer que isto é tudo uma grande partida e que fui apanhado mesmo a jeito. Depois voltamos para a beira do lago e abrimos o champanhe. Que te parece?»
«Sabes que não te posso dizer isso. Isto é tão inesperado para mim como para ti.»
«De maneira alguma», disse-lhe. Num impulso irracional, senti que a culpa era toda dele. «Tu sabes que eu tinha uma vida antes de te conhecer, não sabes? Podia não ser grande coisa, mas não incluía chalados com espingardas nem romarias pelo bosque com cadáveres.»
«Que queres que te diga? Que estou a adorar a situação?»
«Quero que tires esse ar de miserável, porque as coisas não vão ficar melhores e, se eu não consigo andar e tu não consegues pensar, é melhor desistirmos já e juntarmo-nos ao Don Metzger.»
Vincenzo olhou para trás de relance; Bosco permanecia distante e observava o grupo. Atravessávamos agora um trecho denso de arvoredo. No chão viam-se marcas de pneus.
«Escuta», sussurrou Vincenzo, temeroso. «Quem é que pensas que foi?»
«O quê?»
«Quem é que o matou.»
Olhei-o atónito.
«Como é que eu posso saber? Nem sequer cheguei a conhecer o homem.»
Vincenzo suava. Vestira a mesma camisa da noite anterior, que emanava um intenso odor a tabaco.
«É tudo tão estranho», sussurrou; parecia perturbado. «O que é que aconteceu à Olivia ontem? Desapareceu assim que chegámos. E hoje mal falou comigo. Parece hipnotizada, caraças.»
«Eu estava a dormir, tu estavas acordado. Devias saber mais do que eu.»
«Não me lembro de quase nada.»
«Seja como for, não me parece que a culpa seja da Olivia. Olha para ela.» Olivia caminhava alguns metros à nossa frente; o seu corpo magro avançava lentamente na direcção da clareira. «Repara nos pulsos dela.»
«Os pulsos?»
«Tem os pulsos mais finos que alguma vez vi. É impossível que alguém com pulsos daqueles consiga estrangular um homem do tamanho de Metzger.»
Vincenzo observou-a.
«Tens razão», concordou. «Estou a ficar paranóico.»
Houve um momento de silêncio. Debaixo dos nossos pés quebravam-se ramos de árvore caídos; o Sol erguia-se no céu, encoberto por nuvens brancas e cinzentas. Depois Vincenzo perguntou:
«Tens alguma ideia?»
«Para quê?»
«Para nos safarmos desta?»
«Tenho, mas não é brilhante: se não podes vencê-los, junta-te a eles.»
Poucos minutos passados, chegámos à clareira. Bosco e Alipio haviam trazido o balão negro que tínhamos visto no descampado e a gôndola encontrava-se no espaço em frente da cabana; no chão jazia o envelope de lona preta, ligado por cordas ao cesto de vime. Alipio estacionou o Renault ao lado da cabana e, quando eu e Vincenzo nos juntámos aos outros, o homem, com o boné enfiado no bolso de trás das calças, começou a arrastar uma grande ventoinha de propulsão de ar frio para junto da gôndola; depois deitou a gôndola de lado, a abertura voltada na direcção da lona. Quando Bosco chegou, Alipio ligou a ventoinha: o som do ar propulsionado abafou todos os outros sons da manhã e a lona negra começou, lentamente, a insuflar.
Olivia distanciara-se e estava parada junto das pequenas botijas de gás propano, de braços cruzados e olhos no chão; o resto dos presentes formara um grupo junto da porta da cabana, que estava fechada, e observava o procedimento. A operação demorou algum tempo – não sei precisar quanto, dez ou quinze minutos – durante o qual observei atentamente a expressão dos outros. Ainda sentia um ódio irracional por Vincenzo mas, por outro lado, era difícil não concordar com ele: que acontecera a Olivia, que, até ao dia anterior, se mostrara a mais afável das criaturas? Havia outras perguntas: que teria Nina a esconder para negar uma simples resposta? Por que razão tinha McGill colocado em perigo a própria vida para salvar um homem que nunca conhecera numa singular madrugada no Lácio? Que faziam Elsa e Pym naquele lugar – duas pessoas jovens e belas que pertenciam a um outro mundo, um mundo moderno e luminoso onde a sombra da morte não vagueava tão presente por entre os vivos? Que espécie de relação com o produtor teria tido Roger Dormant, o pornógrafo? Que espécie de loucura era a de Bosco, e o que desejaria com o seu repto e a sua perigosa demanda da verdade? Mais importante do que tudo isso: quem, afinal, tinha sido Don Metzger em vida, e quem teria razões para o querer ver morto, e que estranho tempo era aquele, e que estranho destino era o nosso?
Bosco segurava a parte superior da lona nos seus grandes braços para deixar entrar o ar frio que partia da ventoinha; a força daquele vento agitava-lhe as roupas. Quando a lona formou um semicírculo, Alipio foi ao depósito de madeira buscar uma das botijas de gás propano e atarraxou-a a um tubo que pendia do maçarico. Depois acomodou a botija dentro da gôndola, desligou a ventoinha e afastou-se. Bosco foi posicionar-se atrás do maçarico, que estava montado numa estrutura de ferro que partia das extremidades da gôndola e apontava na direcção da lona meio insuflada.
«Tragam o corpo de Don», ordenou.
A seguir rodou a válvula do gás propano, acendeu o maçarico, e uma chama intensa penetrou o ar frio. McGill, Vincenzo, Pym e Roger dirigiram-se ao carro e arrastaram o corpo embrulhado de Metzger do interior deste até perto do local onde Bosco controlava o lança-chamas. Pouco a pouco, o envelope do balão ganhou a forma de uma lágrima e começou a erguer-se no ar; a gôndola abandonou a posição lateral e foi levantada pela força do envelope. Quando a gôndola se encontrava quase vertical, Bosco desocupou-a e acercou-se do corpo embrulhado; a gôndola ficou presa ao chão por uma grossa corda. Com a ajuda de McGill, fizeram rolar duas vezes o cadáver sobre si próprio e libertaram-no da lona − Metzger continuava de olhos abertos (o que era, por si só, assustador), mas o rigor mortis começava agora a invadir-lhe o corpo, os membros hirtos e crispados, as mãos como duas garras azuladas que tivessem petrificado no momento de uma execução. Com a ajuda de Vincenzo e de Roger, o corpo foi levantado da terra e colocado dentro da gôndola; Metzger era tão grande que ocupava o cesto inteiro. Alipio olhou para o céu e, molhando o dedo com saliva, ergueu-o no ar.
«Vento sudoeste», disse, em italiano. Bosco concordou com um aceno de cabeça. «Em menos de uma hora estará no mar.»
«Que descanse em paz», disse o catalão, desatando o nó à corda que segurava a gôndola. Depois tirou os óculos por um momento, limpou, com as costas da mão, o imenso suor que se lhe acumulara na testa, tornou a pôr os óculos e recuou para observar a lenta ascensão do balão. Formávamos um círculo desfeito na clareira do bosque: Roger estava junto de Stella e davam as mãos; McGill, Vincenzo e Pym recuaram para junto de Nina e Elsa; Alipio − cuja lealdade visceral a Bosco chegava a ser repugnante − colocara-se ao meu lado; até Susanna saíra do carro e se aproximara para prestar uma última homenagem. Apenas Olivia se mantinha afastada, como se aquele inusitado funeral não lhe dissesse respeito. Alipio colocara de novo o boné na cabeça e, de pele queimada e envelhecida pelo sol, olhava atentamente, de mãos na cintura, para o primeiro e último voo do patrão, como se observasse o resultado de um gratificante dia de trabalho.
O balão continuou a subir e pouco tempo depois estava cinco metros acima das nossas cabeças. Era uma visão bizarra e, ao mesmo tempo, de uma beleza estonteante, uma massa negra que pairava sobre nós inundando a clareira de sombra. Era, pensei então, o balão mais triste de sempre, e Metzger, provavelmente, o primeiro homem na História que, depois de morto, subia em direcção ao céu em vez de descer às entranhas da terra, fazendo do ar o seu sepulcro e das nuvens pálidas do Lácio os seus anjos coléricos do infortúnio. Bosco despedia-se com solenidade, as mãos unidas à frente do corpo, a cabeça erguida, sem perder de vista a gôndola. Observei a cicatriz que lhe atravessava a nuca e pensei: qualquer um de nós poderia tê-lo derrubado naquele momento. Qualquer um – McGill, Roger, Vincenzo, Nina, Elsa, ou mesmo Pym – poderia ter pegado numa pedra e, com ela, ter aberto um lanho na grande cabeça careca do catalão que o deixasse inconsciente durante o tempo suficiente para fugirmos daquele lugar, chegarmos à civilização e nos apresentarmos às autoridades. Tinha morrido um homem, diríamos à polizia di stato, e um gigante espanhol que vive no meio do bosque tinha metido o seu corpo num balão negro e tinha-o feito voar. O polícia arregalaria os olhos e declararia a nossa insanidade; provavelmente, meter-nos-ia na prisão por fazermos pouco da autoridade. Mas ao menos teríamos feito alguma coisa, se ainda fôssemos humanos, claro; se ainda restasse humanidade em nós e essa humanidade nos mantivesse unidos. Olhei para os outros; nada restava. Éramos destroços, rendidos, mudos, paralisados, isolados. Ninguém avançou, ninguém recuou, ninguém se atreveu sequer a falar antes de Bosco dar por terminada a cerimónia. Depois, como ratos que se escondem no porão, demos meia-volta e regressámos a casa, repetindo a lenta procissão ao longo do bosque em silêncio, enquanto o balão – um ponto final perdido no meio das nuvens – era engolido pela voracidade do infinito.
Bosco anunciou, depois de nos ter seguido até à propriedade de Metzger, que iria regressar à cabana e aguardar por uma confissão. Estávamos junto da porta da cozinha e começara a chuviscar, as gotas mornas caindo do céu sobre os nossos rostos exaustos. Alipio e Susanna já tinham entrado; McGill, de mãos na cintura, olhou para o catalão e depois para nós. A incredulidade no seu rosto começava lentamente a transformar-se em desespero.
«Isto não pode ser a sério», disse o inglês, voltando-se para Bosco. «Diz-me que não estás a falar a sério. Que isto foi um delírio e que o delírio termina aqui e agora.»
Bosco permaneceu imperturbável, com o cano da espingarda a espreitar por cima do ombro esquerdo.
«Vocês sabem onde encontrar-me», disse.
«O que é que vais fazer se ninguém se acusar?», perguntou Nina. «Esperar até sermos velhos?»
«Se for necessário. Temos todo o tempo do mundo.»
«E se nós simplesmente nos formos embora?»
Bosco esboçou um sorriso cruel.
«Ninguém se vai embora.»
Bosco voltou costas e caminhou para o Renault, que Alipio estacionara na curva do lago onde a estrada de terra terminava. Pássaros negros cruzavam as águas ao descerem de um céu melancólico, cuja penumbra se estendia por todo o horizonte conhecido. McGill chamou:
«Bosco!»
Chamou-o duas, três vezes, enquanto o catalão entrava no carro, enquanto ligava o motor e mesmo quando já desaparecia para o interior do bosque. Pym, Roger e Stella regressaram à casa. Permaneci lá fora com Nina, Vincenzo e McGill, os quatro a olharmos para a orla do bosque onde a chuva beijava as copas das árvores.
McGill enterrou as mãos nos bolsos das calças; os olhos brilhavam-lhe àquela luz mortiça. Vincenzo encolheu os ombros e disse:
«Podemos sempre ignorá-lo. Fazemos as malas e partimos pela manhã.»
Olhei para Nina. Estava inquieta; de braços cruzados, esfregava-os com as palmas das mãos.
«Vai ser difícil ignorá-lo», disse ela. «Um homem com este grau de obsessão.»
«O que não nos deixa grandes opções, ou deixa?», disse McGill, sarcástico. «Vamos ter de encontrar um culpado, fazê-lo assinar uma confissão e depois entregá-lo a este maníaco. Se quisermos sair daqui vivos.»
A ideia pairou no ar durante um momento.
«Isso é ridículo», disse eu. «Mais vale sermos nós a executar a sentença; poupávamos ao pobre coitado algum sofrimento.»
Vincenzo começou a andar em círculos. «Isto é um caso de Polícia», disse; a voz tremia-lhe, nervosa. «É absurdo estarmos a contemplar, ainda que por mera ironia, a possibilidade de se fazer justiça pelas próprias mãos. Ou a justiça que ele quer fazer. Seja ela qual for.» Depois olhou para Nina. «Tu tens um telefone. Telefonamos à Polícia, é simples.»
«O meu telefone não funciona há dois dias», disse Nina, olhando para o céu. «Aqui não tem sinal.»
«Então escolhemos um de nós para ir a Sabaudia», disse o italiano. «Tiramos à sorte. É uma questão de correr em qualquer direcção que não seja a da clareira de Bosco.» Vincenzo apontou para o bosque que cercava a casa. «Por ali. Ou por ali. Vá por onde vá, acaba sempre por ir dar a uma estrada qualquer. Depois é procurar um telefone. Ou apanhar boleia até à Polícia.»
«O que é que vais dizer à Polícia?», perguntei-lhe.
«Que há um grupo de pessoas no bosque que estão a ser ameaçadas. Que foram sequestradas por um louco com uma espingarda.»
McGill riu-se e abanou a cabeça. A chuva começou a cair com maior intensidade. No piso superior da casa ligaram-se as luzes de um quarto. Nina voltara-se de costas para nós e olhava, à distância, as nuvens cinzentas que se aproximavam.
«O problema é precisamente esse», contestei. «Ninguém foi sequestrado. Ninguém foi impedido de partir, pelo menos até agora. Como é que vais explicar às autoridades que há onze adultos numa casa amedrontados por um tipo cujo único crime foi meter um cadáver num balão, crime esse com o qual todos pactuámos?»
«Eu não pactuei com coisa nenhuma», corrigiu Vincenzo.
«Ajudaste a transportar o corpo», afirmei.
«O gajo tinha uma espingarda», defendeu-se Vincenzo. A voz dele tornara-se mais aguda; a chuva colara-lhe as roupas ao corpo, realçando-lhe os ossos protuberantes. Olhou para a bengala. «Tu só não participaste por causa disso.»
«Eu participei. Não fazer nada é uma maneira de consentir.»
«O homem exigiu uma confissão. Toda a gente o ouviu. Consiga-a ou não, mais cedo ou mais tarde vai começar a fazer justiça.»
Nina voltou-se e disse: «A autoridade não se costuma preocupar com o que ainda não aconteceu.»
«Temos um morto, mas não temos cadáver», disse McGill. «Estamos acossados, mas não temos maneira de o provar. É uma situação do caraças.»
«E também temos o cenário perfeito para uma rusga policial», disse eu. «Uma casa destroçada, um carro atravessado numa janela, e sabe-se lá o que mais encontrariam lá dentro.»
«Vamos ficar aqui enfiados até o maluco dos balões se passar e nos vir buscar para nos levar para o Inferno? É essa a vossa sugestão?», perguntou o italiano.
McGill olhou para o céu e abriu a boca, deixando a chuva entrar. Depois perguntou:
«E que tal se falássemos disso lá dentro?»
XVII
Mas não chegámos a falar: o resto da manhã passou em silêncio e a tarde chegou melancólica, opressiva. A chuva continuou a cair e, pouco depois das três, a sala do aquário começou a ficar inundada, a água escorrendo pela capota do carro e caindo sobre o vidro que cobria os peixes, pingando, vagarosa. Ninguém pareceu importar-se; cada um parecia entretido nas suas cogitações, cada um assimilando devagar, à sua maneira, a realidade da situação em que caíramos. Pym e Elsa sentaram-se no sofá da sala debaixo da fotografia de Pasolini, fumando cigarros e bebendo vinho de uma das muitas garrafas que sobravam na cozinha; Roger e Stella andaram por ali, e depois retiraram-se para o quarto e tiveram sexo o resto da tarde; Nina, Vincenzo e McGill tomaram um duche e, depois, juntaram-se a Susanna e a Alipio que, na cozinha, prepararam uma refeição; eu fui para o quarto descansar meia hora, antes de comer.
Fechei as venezianas, pousei a bengala no sofá e deitei-me de barriga para cima. As dores tinham regressado e a perna latejava como uma ferida aberta. Fechei os olhos por um momento e amaldiçoei tudo. Prometi a mim próprio que, depois daquele sono breve, deixaria de dar ouvidos a Vincenzo e a McGill e tomaria uma decisão. Fá-lo-ia sozinho: era preciso lidar com Bosco e nenhum daqueles palermas sabia como; era nisto que pensava quando os meus olhos se fechavam. Era preciso sair daquele lugar, abandonar Sabaudia e fazer o caminho de regresso à vida que era minha antes de me deixar levar naquela estúpida quimera que conduzira a um beco sem saída, onde um monstro aguardava, sedento, para devorar uma vítima. Adormeci com o ruído monótono da chuva a bater no telhado e com o som distante das vozes de Roger e Stella que, no quarto ao lado, esqueciam com abandono as premissas fundamentais da sobrevivência. Senti o corpo aquecer e as dores recuarem; caí num sono pesado e profundo.
Quando acordei, pensei que ainda sonhava. O quarto estava escuro e a chuva cessara. Porém, não estava sozinho; havia alguém comigo. Uma voz morna e doce sussurrou, naquele negrume:
«Chhh.»
Tentei levantar a cabeça mas a nuca pesava-me como chumbo. Sem saber porquê, não tive receio. O corpo aos pés da cama subiu e encontrou as minhas pernas; subiu um calor com ele. Depois senti as mãos treparem pelas coxas e procurarem-me o cinto das calças. Lentamente desapertaram-no. A fivela tilintou na escuridão; procurei uma nesga de luz mas nada encontrei. A perna latejava-me, mas uma das mãos ternas pousou sobre ela, sossegando-a. Parei de tremer. Os movimentos começaram: uma boca húmida que se colou ao meu sexo e, em gestos treinados, uma ginástica praticada muitas vezes despertou um tempo esquecido. Fechei os olhos; era inútil mantê-los abertos. A criatura que me interrompera o sono continuou a mover os lábios e a língua sinuosa e eu permaneci imóvel, respirando devagar, compassadamente, uma respiração forte, uma respiração de resistência. Segurei o lençol da cama com os dedos das mãos. Havia sons gorgolejantes dentro do quarto, como água entornada de uma garrafa de vidro; havia um gemido constante, como a ânsia de um animal com fome. Depois tive um orgasmo e os sons cessaram; não foi um orgasmo previsto mas uma ocorrência inesperada, como um soluço ou uma contracção involuntária. A boca desapareceu do meu sexo e senti um enorme alívio por ela deixar de estar ali. De alguma maneira não queria que me voltasse a tocar; queria que me deixasse com a mesma suavidade com que chegara, um restolhar dos lençóis, uma mão descendente, um corpo ausentando-se, e depois a solidão do quarto novamente vazio. Abri os olhos; a criatura obedeceu aos meus desejos. Movia-se na escuridão – deixara um leve perfume no ar com uma película de suor − e afastava-se, deslizando o corpo pelo lençol. Depois ouvi passos e houve uma fresta de luz, tão etérea e fugaz que podia ser um sonho: a porta do quarto abriu-se e fechou-se, o corpo implausível esgueirou-se pela abertura e depois o silêncio reclamou presença. Enterrei a cabeça na almofada; apeteceu-me chorar sem saber porquê.
Despertei com as vozes grosseiras que vinham do andar de baixo. Tentei alcançar o candeeiro junto da cama mas, na escuridão, andei aos apalpões ao ar durante quase um minuto antes de encontrar o interruptor. O quarto iluminou-se: não fazia ideia de que horas seriam; ainda sentia a presença do fantasma. Levantei-me estremunhado, alcancei a bengala, abri a porta e saí para o corredor. Era noite cerrada mas a chuva parecia ter ajudado a limpar o céu, e a luz da Lua banhava todo o corredor deserto. No quarto ao lado, Roger e Stella estavam em silêncio; a casa parecia defunta. Depois tornei a ouvir as vozes que subiram de volume: alguém discutia no andar de baixo. Eram vozes masculinas e descontroladas. A porta do quarto fronteiro ao meu abriu-se e Olivia apareceu, enrolada numa manta que lhe cobria os ombros. Trocámos um olhar e ocorreu-me o mais estranho dos pensamentos.
«Estás a ouvir isto?»
«Estou», respondeu Olivia, que logo desviou o olhar do meu e se pôs a caminhar à minha frente. Olhei para os seus pés nus, os tornozelos finos, a curva das nádegas visível debaixo das calças brancas do pijama. Na sala, Elsa e Pym continuavam sentados no sofá mas tinham adormecido em frente da televisão, que estava ligada sem som e emitia apenas electricidade estática de um planeta distante. Pym dormia em posição fetal aos pés de Elsa; o ecrã de televisão iluminava a sala, a luz tremeluzente formando sombras mórbidas nas paredes; a água que se acumulara no espaço do aquário pingava do pequeno degrau que o separava da sala. Estuguei o passo atrás de Olivia na direcção da cozinha. As luzes estavam apagadas, mas a porta de correr encontrava-se aberta, um vento frio varrendo as panelas e os tachos, que tilintavam baixinho como sinos desafinados. Havia várias garrafas de vinho vazias em cima da mesa e os restos de uma refeição em pratos sujos. As vozes vinham do exterior.
Lá fora, Nina punha-se entre McGill e Vincenzo. O inglês, corado e de cabelo desalinhado, os punhos cerrados, tentava aproximar-se do italiano; Nina tentava protegê-lo. Vincenzo tinha um olho inchado e corria-lhe um fio de sangue do canto da boca.
«John, pára», gritou Nina. «Já chega.»
McGill olhou para Olivia e depois para mim. Avancei um passo na direcção de Vincenzo, mas ele fez-me sinal com a palma da mão para me afastar; olhei para Nina.
«Que aconteceu?»
«Não sei. Quando cheguei aqui estavam à pancada.»
McGill riu-se com cinismo.
«Não sabes?» Voltou-se para Olivia. «Tu aí. Sim, tu, aí especada como uma atrasada mental. Sabes o que é que tem acontecido por aqui?»
Olivia observava McGill, desinteressada. McGill arrastava as palavras; estava bêbedo.
«Não a metas nisto», disse Vincenzo.
«Cala-te, filho-da-puta», ameaçou McGill. «Mais uma palavra e arrumo contigo.»
«John, vai-te deitar», disse Nina. «Não piores ainda mais as coisas.»
«As coisas não podiam ficar piores», disse McGill, que deu um passo atrás, cambaleante. Abanou a cabeça com uma expressão desesperada no rosto. «Queres pior do que isto? Estamos no meio de lado nenhum, cercados por um bosque onde há um psicopata com uma espingarda, e a minha namorada – a puta da minha namorada – anda a fornicar com outro gajo. Achas mesmo que as coisas podiam ficar piores?»
Nina avançou dois passos e deu um estalo a McGill; o barulho da chapada – seco, breve − fez eco na noite.
«Não me voltes a chamar isso», disse Nina. Depois, para Olivia: «Não ouças o que eles dizem. Estão bêbedos e estúpidos.»
«Não faz mal», disse Olivia. A sua voz tranquila e monótona rasgou a tensão palpável no ar. «A sério, não tem importância nenhuma. Vou deitar-me.»
Olivia deu meia-volta e, antes de tornar a entrar na casa, lançou um olhar indiferente a Vincenzo e afirmou:
«Deixo as tuas coisas à porta do quarto.»
O italiano ficou a observar Olivia, que desapareceu dentro da casa; depois limpou o sangue do lábio com as costas da mão, hesitou um segundo e também ele entrou. Ficámos os três parados a olhar uns para os outros. McGill esforçava-se por manter o equilíbrio.
«Que se foda», disse ele, e deixou-se cair de encontro à parede da casa, sentando-se no chão, os joelhos contra o peito; enterrou a cabeça entre os joelhos. Nina levou a mão ao rosto e depois encarou-me.
«Desculpa. Não tens nada a ver com isto.»
«Eu sei», respondi. Ia voltar para dentro quando McGill ergueu subitamente a cabeça e me olhou:
«É tudo verdade, sabes?»
«John, por favor», disse Nina.
«Pergunta-lhe», insistiu McGill.
Nina fitou-me como se me devesse uma explicação. Fez uma breve pausa e depois disse: «Fui deitar-me a seguir ao jantar. Deixei-os aqui em baixo, a beber vinho e a fumar cigarros. Estava tudo bem. Acordei a meio da noite. Desci até à cozinha e havia um silêncio estranhíssimo. O John estava sentado à mesa, às escuras. O Vincenzo estava cá fora.»
«O gajo tinha acabado de me dizer que está apaixonado por ti», disse McGill.
Nina ficou lívida.
«Isso é tão estúpido», disse ela. «É tão desnecessário.»
«Eu sei que tens dormido com ele», disse McGill.
«Como é que sabes isso?», perguntou Nina.
«Porque o cabrão me disse.» McGill tentava erguer-se enquanto falava. «Porque o gajo me encarou e disse com todas as letras que andava a dormir contigo. E sabes o que foi pior? Foi que o disse como se fosse uma coisa divertida. Como se eu fosse dar-lhe uma palmada nas costas ou até os parabéns.» McGill pôs-se de pé e passou os dedos pelo cabelo; depois fungou e esfregou os olhos. «O mais engraçado disto tudo é que eu já sabia, mas recusava-me a ver.»
«Estás a inventar coisas», disse Nina, aproximando-se dele. «O que o Vincenzo diz é uma coisa, o que realmente aconteceu é outra.»
McGill não a encarava.
«Já sabia desde que o fomos visitar a Roma.» John voltou a cabeça na direcção do céu, onde a Lua era a atracção principal num negrume cheio de estrelas; pusera-se uma noite de Verão depois da chuva. «Maldito livro. Quem me dera nunca o ter escrito.»
«Por favor, não digas isso.»
«O livro trouxe-nos até aqui.» As lágrimas assomavam-lhe aos olhos tremeluzentes. «Trouxe-nos a este lugar horrível para nos separar. Eu já sabia de tudo isto e, mesmo assim, fui atraído pelo abismo. É o epílogo da história, entendes? Faltava esta parte para o romance ficar completo. Faltava eu meter-me num avião e depois num comboio, caminhar pelo meio de uma floresta em Itália e vir ao encontro do nosso final, quando tudo me dizia que não o fizesse. Quando tudo me dizia que isto ia ser uma cilada montada pelo destino para nos separar.»
«A única coisa que aconteceu foi a morte do Don Metzger», disse Nina num tom de angústia; tentou agarrar o braço de McGill, mas este deu dois passos atrás na direcção do lago. «E isso nenhum de nós poderia ter adivinhado.»
«Diz-me que não estás apaixonada por ele.»
Nina levou as mãos ao rosto; parecia desesperada. Olhou-me de relance, como se eu pudesse socorrê-la.
«Se calhar bebeste uns copos a mais», intervim, sem convicção, dirigindo-me a McGill. «Que tal se fosses dormir um bocado? Falavam de tudo isto pela manhã.»
McGill ignorou-me. «Diz-me que não gostas daquele palhaço», pediu ele a Nina.
«Não gosto daquele palhaço», respondeu ela.
McGill fitou-a por um momento e começou a rir.
«Mentirosa», acusou. «As viagens, os e-mails, os telefonemas nocturnos. Era tão evidente, e eu fiz tudo por ignorá-lo. Mas sabes que mais? Vai ser um desastre, porque ele só quer o que eu tenho. Mais nada. É tudo uma questão de inveja e, assim que conseguir aquilo que quer, deixa-te para trás e segue em frente. A próxima paragem a caminho da ambição desmedida.»
Nina soltou um longo suspiro e depois, de repente, desistiu.
«Vou para o quarto e espero lá por ti», disse, subitamente tranquila. «Vem falar comigo quando curares esse pifo descontrolado.»
Nina voltou-se e avançou para a porta da cozinha. Senti-me aliviado e preparava-me para a imitar quando McGill disse:
«Psst. Tu. Vou-me embora. Queres vir comigo?»
Nina deteve-se.
«Eu?», perguntei, atónito. «É melhor não me meteres nisso. Com a minha lentidão, chegamos à orla da floresta lá para Setembro.»
«Levamos aquilo», disse McGill, e apontou para o carro de Don Metzger que estava enfiado dentro da sala.
«Perdeste o juízo?», perguntou Nina. «Não vais a lado nenhum nesse estado.»
McGill parecia, de repente, sóbrio e resoluto, como se a decisão o houvesse transformado. Aproximou-se de Nina até os rostos ficarem à distância de um palmo.
«Escuta o que eu te digo. Vou pegar naquele carro, fazer-me à estrada e, depois, dirijo-me à primeira esquadra da Polícia que encontrar. Vou contar-lhes exactamente o que se passou aqui, em inglês, em italiano, se for preciso até lhes explico em russo, caraças. Depois volto para Inglaterra e nunca mais quero ver a tua cara. Estamos entendidos?»
Nina ficou sem resposta. McGill voltou-se e caminhou na direcção da parte da frente da casa, subindo a ligeira encosta relvada a passo estugado. Nina tornou a olhar-me como se eu pudesse confirmar que aquilo estava mesmo a acontecer; como eu nada dissesse, partiu a correr atrás de McGill. Fui atrás deles mas deixei-me ficar na esquina da casa; McGill preparava-se para entrar na viatura pela porta do passageiro. Observei-os enquanto discutiam; era inútil tentar interferir. Era impossível demover o inglês e, na verdade, agradava-me a ideia de alguém ir à Polícia denunciar a situação em que nos encontrávamos. Mais um dia naquela casa e ficaríamos loucos, tão loucos como Bosco, tão loucos como McGill, tão loucos como Metzger tinha sido, embora poucos o tivessem conhecido e eu apenas soubesse da sua vida por intermédio de outros; tão loucos como Metzger indubitavelmente fora. As palavras de McGill e Nina perdiam-se na noite e, de repente, a porta do passageiro do carro fechou-se com estrondo e um dos faróis dianteiros acendeu-se e iluminou o aquário e o chão de água onde os peixes viviam. O motor do carro começou a trabalhar e Nina recuou, gritando pelo nome do inglês. Lá em cima, as luzes do quarto de Stella e Roger acenderam-se. Depois o carro recuou com estrépito, arrastando consigo o que restava da janela partida – o estrépito dos vidros abatendo-se sobre o chão – e desceu a pequena colina em marcha atrás, fazendo um pião e avançando na direcção da estrada de terra que conduzia ao bosque. Elsa e Pym apareceram na sala do aquário, estremunhados; Nina ainda perseguiu o automóvel durante algum tempo, mas cedo a poeira levantada pelas rodas traseiras a obrigou a deter-se. Ficou parada à beira da estrada, o luar sorrindo sobre os seus cabelos ruivos, a poeira caindo em seu redor. Pouco depois McGill desaparecia pelo caminho do bosque4.
XVIII
Olivia dormiu sozinha no que restou dessa noite. Vincenzo ficou na sala, no sofá que não se encontrava ocupado por Pym. Elsa subiu ao primeiro andar e dormiu no quarto de Don Metzger, debaixo dos lençóis da grande cama como uma princesa enfeitiçada. Nina dormitou a espaços num dos quartos vazios. Uma vez por outra, antes de o dia raiar, ouvi os seus passos suaves − vinha ao corredor fumar, o cheiro do tabaco espalhava-se por ali, ouvia-lhe a voz, falava consigo própria num sussurro. Também no corredor, largada por Olivia à porta do seu quarto, estava a mochila de Vincenzo, abandonada como uma coisa que, outrora estimada, tivesse agora perdido o valor.
Deitado na cama, eu era incapaz de voltar a dormir.
Quando amanheceu, tomei um banho de água tépida e vesti roupas lavadas. Vi, pela da janela do meu quarto, que Alipio já se levantara e se dirigia para o bosque. Vestia a mesma roupa do dia anterior ou, então, as suas roupas eram tão parecidas que se tornavam indiscerníveis. De boné enfiado na cabeça, levava na mão uma caneca com café; parecia completamente alheado da situação que vivíamos naquele lugar e, aparentemente, estava disposto a continuar a vida de todos os dias como se os dias permanecessem os mesmos – talvez Alipio fosse tão obediente à vontade de Bosco ou tão ignorante que, apesar da morte do patrão, continuasse a considerar-se um funcionário daquela propriedade e, sendo assim, se havia trabalho a fazer, era uma questão de meter mãos à obra. Talvez Alipio julgasse que, na ausência de Metzger, o catalão assumiria o seu papel; talvez fosse essa a lógica inescrutável daquele vassalo de província, talvez fosse esse o imperativo que não podia ser desmanchado, o imperativo do trabalho. Mas que trabalho poderia ser esse, agora que Metzger se fora? Por que razão avançava o velho italiano na direcção do bosque pela manhã, agora que Don deixara de precisar dos seus balões para celebrar o Bom Inverno? Qualquer que fosse a resposta, parecia evidente que tanto Alipio como Susanna se encontravam fora da lista de suspeitos de Bosco: nada lhes havia sido exigido e a rotina parecia ter regressado à casa. Quando desci à cozinha, a mulher preparava o pequeno-almoço: aquecia, em lume brando, uma velha panela de água e fizera pão fresco que começava a tirar do forno. Quando me viu fez um aceno de cabeça e tentou sorrir; contudo, alguma coisa tinha mudado nela − a sua compleição, antes rosada e calorosa, era agora pálida e mortiça, como se a morte do patrão tivesse tido um efeito físico na sua existência. Era um sinal vago, mas talvez significativo, de que as coisas não eram exactamente como as julgara; de que talvez fosse o medo – o mesmo medo que nos assolava – aquilo que remetia Susanna e Alipio à métrica ordenada do quotidiano.
Preparava-me para me sentar à mesa da cozinha e comer quando, através da porta aberta, vi Alipio parado no princípio da estrada de terra que conduzia ao bosque. Estava de cócoras e remexia alguma coisa que encontrara no chão. Avancei para o exterior; ainda havia uma brisa no ar, mas o céu limpo era prenúncio de um dia de calor, o azul do céu reflectido na superfície tranquila do lago. Susanna seguiu-me até à porta mas deixou-se ficar. À distância não conseguia ver o que Alipio encontrara mas, enquanto me fui aproximando, devagar, a bengala firme na minha mão, ouvi Susanna chamar pelo marido, que se soergueu ligeiramente e olhou para trás para logo voltar a cabeça; era o gesto súbito de um homem preocupado. Compreendi então que havia alguma coisa caída no chão. Julguei, sem saber porquê, que fosse um animal morto, e abrandei o passo ao aproximar-me. Mas Alipio voltou a cabeça para trás uma segunda vez e percebi nos seus olhos que não era um animal: havia um corpo humano deitado sobre a terra e Alipio colocara-lhe um braço debaixo do pescoço, erguendo-lhe ligeiramente o tronco. Era McGill. Fiquei parado durante um momento, sentindo nas costas o calor do Sol que se erguia no horizonte. O inglês estava quase irreconhecível e somente as roupas e o cabelo louro o denunciavam; tinha o rosto parcialmente desfeito, o olho direito tão inchado que desaparecera por detrás de uma massa de carne negra e disforme; o nariz parecia ter sido deslocado, a cana rachada e fora do lugar, o sangue que lhe descera das narinas, agora seco, colado à boca, ao queixo, ao pescoço e à camisa; faltava-lhe um dos dentes da frente, o espaço negro visível através da boca semiaberta, como se tivesse morrido na tentativa de dizer alguma coisa. Mas o mais cruel não era o rosto; o mais cruel era a posição impossível do braço esquerdo de McGill, que, consequência de um golpe violento, tinha sido deslocado com tamanha brutalidade que se encontrava literalmente do avesso – a palma da mão voltada para fora, o cotovelo na parte interior, junto do tronco, como se o homem fosse um boneco de montar e alguém, por descuido, lhe tivesse atarraxado um membro ao contrário.
Ajoelhei-me junto de Alipio e pousei a bengala.
«Estava aqui», disse o homem, em italiano. «Estava coberto de pó quando o encontrei.»
Senti-lhe o pesar na voz. Tirou o boné e, num gesto solene, baixou os olhos para a terra. Peguei na bengala, ergui-me e regressei à casa.
Nina foi a última a saber. Passara grande parte da noite acordada e, quando subi ao andar superior, reparei que adormecera de porta aberta sobre a cama do primeiro quarto do lado esquerdo. Fechei a porta sem fazer barulho e deixei-a dormir; depois desci novamente à sala. Pym dormia a sono solto, enrolado como um caracol no grande sofá. Acordei Vincenzo e pedi-lhe que não fizesse barulho; depois levei-o até à estrada de terra e mostrei-lhe o corpo de McGill, junto do qual permanecia Alipio. O italiano levou as mãos à cabeça e começou a chorar – uma espécie de choro que nascia do desespero, as lágrimas correndo livres por um rosto carregado de uma inquietação que o fez dar duas voltas sobre si próprio e pontapear a terra seca, o pó atingindo o rosto massacrado de McGill.
«Não há nada a fazer», disse eu.
«Dois mortos. Dois mortos em vinte e quatro horas. É um filme de terror e nós estamos mesmo no meio dele.»
Olhei em volta; vi o silêncio do bosque e a lisura do lago. Nada naquele lugar sugeria morte e, no entanto, ela era a presença dominante, uma espécie de rumor vindo das águas e das montanhas de Sabaudia que cedo se transformaria numa tempestade. Nada daquilo era plausível, nada daquilo parecia real; e, no entanto, era tão verdadeiro como o chão arenoso debaixo dos nossos pés.
«A culpa desta morte é minha», disse Vincenzo.
«O que é que tu lhe disseste ontem à noite?»
Vincenzo baixou a cabeça.
«Ontem à noite disseram-se muitas coisas, grande parte delas parvoíces de bêbedo.»
«Disseste-lhe que estiveste com a Nina?»
Vincenzo olhava na direcção do lago.
«Não. Quero dizer, sim. É possível que tenha dito uma estupidez desse género.»
«É verdade?»
Vincenzo hesitou.
«Talvez. Não sei. Talvez seja parcialmente verdade. Talvez já tenha acontecido, no passado. O que é que importa agora? O tipo está morto e a culpa é minha.»
«A culpa não é tua. Mas temos de o enterrar. Preciso da tua ajuda para carregar o corpo.»
«Enterrar?», reagiu Vincenzo em voz alta. À porta da cozinha, Susanna espreitava, tentando decifrar os acontecimentos. «Ouve, nós temos é de nos pôr a milhas daqui e chamar imediatamente a Polícia. Antes que isto se transforme num banho de sangue.»
Vincenzo suava. Procurou um maço de cigarros no bolso das calças e acendeu um. Olhou desconfiado para Alipio, que nos observava em silêncio, de boné na mão.
«Como é que propões fazer isso?», perguntei; Alipio podia ser fiel a Bosco mas, naquele momento, era o menor dos nossos problemas. «Temos um psicopata do outro lado deste bosque que, aparentemente, não vai deixar ninguém partir sem autorização expressa.»
«Como é que sabes que foi o Bosco?», perguntou, chupando avidamente do filtro e caminhando freneticamente de um lado para o outro.
«Quem mais é que podia ter sido? Um animal selvagem? Existem predadores nos bosques de Sabaudia?»
«O McGill foi-se embora no carro do Don Metzger. Eu ouvi o carro partir. Como é que o outro o apanhou, se ele ia de carro?»
Tornei a olhar para o corpo do inglês; parecia ter sido atropelado por uma manada.
«Não faço ideia. O que sei é que, se ele consegue travar um carro e fazer isto a um homem, é capaz de fazer praticamente tudo.»
«Portanto, vamos enterrá-lo e continuar a alinhar nesta chacina?», perguntou Vincenzo, subindo outra vez o tom de voz.
«Vamos enterrá-lo e esboçar um plano. Ver quais são as nossas hipóteses. Não podemos deixar um cadáver a apodrecer, ou podemos? Seja qual for o pé em que as coisas ficaram, o McGill era teu amigo. Ou foi teu amigo. Merece algum respeito, sobretudo depois de morto.»
«E se fôssemos cada um para seu lado?», perguntou subitamente, detendo-se.
«Não percebi.»
«Se cada um de nós pegar nas suas coisas e partir numa direcção diferente. Ele não pode estar em toda a parte ao mesmo tempo, ou pode?»
Olhei em volta. Depois fitei Vincenzo.
«Há dois problemas com essa ideia. Primeiro, estamos no interior de um bosque bastante denso que, aparentemente, nenhum de nós conhece e se estende por vários quilómetros. A oeste e a sudoeste, temos o lago; a leste e a norte, mato e arvoredo sem fim à vista. A sul, temos o único trilho desbravado, que conduz à clareira do Bosco. Já percebemos que o catalão não está a fazer bluff. Se tentarmos fugir durante o dia, o mais provável é andarmos em círculos e sermos apanhados num ápice. Durante a noite, aposto contigo em como nenhum de nós se atreve a meter-se ao caminho. O segundo problema com essa ideia é que é uma lotaria. Pode ser que alguns sobrevivam, mas haverá sempre os sacrificados: os mais fracos ou os mais lentos. Tenho uma vaga ideia de quem possam ser.»
Vincenzo olhou para a minha bengala.
«Foda-se», disse.
«E não é só isso», continuei. «Um homem como o Bosco dificilmente se contentará em apanhar um e deixar os outros fugir. Ele está centrado, obsessivamente, numa ideia de justiça que não se coaduna com uns quantos sacrifícios. Se for cada um para seu lado, tenho a certeza de que irá atrás de cada um de nós. De todos os que conseguir apanhar. Não vai parar até a sua justiça ser feita.»
«A menos que alguém o pare primeiro», disse Vincenzo.
«É uma boa ideia, mas olha o que tens ao dispor. Um semi-inválido, um par de actores, um australiano atarracado. A Nina é a tua melhor hipótese mas, apesar de ser uma mulher determinada, dificilmente fará frente a um gigante como o Bosco. Que tem uma arma, conhece provavelmente este bosque como a palma da mão e está doidinho por que a época de caça seja oficialmente declarada.»
«Pelos vistos já foi», disse Vincenzo, olhando para o corpo de McGill. «Sabes o que acho? Acho que também foi ele quem deu cabo do Metzger.»
Houve um momento de silêncio. Depois eu disse:
«Neste momento essa é a menor das nossas preocupações.»
Vincenzo livrou-se do cigarro atirando-o para a terra; parecia mais calmo.
«O que é que sugeres?»
«Parece-me que este homem é a nossa melhor hipótese.»
«O Alipio?», perguntou Vincenzo.
«Io», repetiu Alipio ao escutar o seu nome.
«Ele trabalha com o Bosco e o homem confia nele», expliquei. «Como, aparentemente, não vai existir qualquer confissão, ficamos sem maneira de apaziguar a fera. Por isso há que negociar.»
Vincenzo fez um compasso de espera antes de se agachar junto do corpo de McGill.
«Está bem. Não sei o que queres dizer com isso, mas dou-te o benefício da dúvida. É a última hipótese que dou a esta porcaria de ser resolvida com diplomacia.»
Alipio também se agachou e os dois levantaram o corpo de McGill.
«E depois o que é que acontece?», perguntei.
«Depois é cada um por si», disse o italiano, grunhindo do esforço. «Alea jacta est.»
Coube a Vincenzo a tarefa de ir acordar Nina. Alipio abriu uma cova no declive que conduzia ao lago; Susanna chorou em silêncio no momento em que finalmente viu o cadáver. Quando Nina desceu do quarto, já Alipio tinha enrolado o cadáver num lençol, a relva e a terra afastadas para darem lugar a um buraco em redor do qual se improvisaria um funeral. Ajudei Alipio como me foi possível, e pensei, nesses momentos, sobre a maneira como eu estava a reagir aos acontecimentos − sobre a frieza inesperada com que ia lidando com cada sucessivo obstáculo. Eu, que fora um cobarde, de estômago sensível, comportava-me agora como um profissional da morte, e o desespero alheio – o choro, os gritos, os insultos, as traições – só tinha servido para me deixar mais alerta e, de certa maneira, encher as medidas daquela minha recém-descoberta familiaridade com o Mal; a minha estranha disposição para resistir ao apelo desesperado da sobrevivência que, mais cedo ou mais tarde, seria o cadafalso dos meus companheiros. De maneira que, quando comecei a ouvir os gritos angustiados de Nina, vindos do andar de cima, não precisei, como Stella ou Pym, de tapar os ouvidos para me evadir à dor alheia.
Estávamos reunidos na cozinha e aguardávamos por Nina e Vincenzo; Alipio encontravam-se lá fora a preparar o enterro. Ficámos alguns minutos em silêncio até que os gritos se desvaneceram e se transformaram num murmúrio de choro.
«Macacos me mordam», disse Roger. O australiano estava encostado ao balcão e bebia vinho pelo gargalo de uma garrafa. Estava despenteado, o cabelo longo e sebento enrolado em volta das orelhas; Stella, ao seu lado, de maquilhagem esborratada e olhar perdido, parecia uma boneca velha que alguém tivesse encontrado no fundo de um baú. Pym esforçava-se por conter as lágrimas – não por causa de McGill, que mal conhecia, mas porque o medo lhe enchia o rosto de criança –, enquanto Elsa fumava um cigarro, mostrando-se calma. Olivia sentara-se a um canto, recatada, de braços cruzados; aparentemente, nem a morte de McGill a conseguira arrancar àquele sonambulismo. Acabara de lhes explicar o plano que discutira com Vincenzo.
«Concordo em absoluto», disse Elsa. «Nos filmes de terror é a mesma coisa. Quem se põe em fuga do assassino acaba sempre mal.»
«Quem é que vai ao covil negociar com a fera?», perguntou Roger. «Se eu me aproximo, aquela besta ainda me arranca o escalpe.»
«Eu vou», ofereci-me. «O Alipio faz-me companhia. Já conversei com o Bosco uma vez e talvez ele me dê oportunidade de lhe expor a situação.»
«E qual é a situação?», perguntou Pym.
Hesitei um momento e depois agarrei no castão da bengala com as duas mãos.
«Antes de continuarmos, queria fazer-vos uma pergunta. Algum de vocês quer partilhar alguma coisa com os outros? Alguma revelação que, neste momento, fosse importante para a nossa sobrevivência?»
Os presentes entreolharam-se; Roger começou a rir.
«Isso faz imenso sentido. Estás à espera de que alguém confesse? Sabendo do que aquele animal é capaz de fazer?»
«Não estou à espera de uma confissão. Estou a perguntar se algum de vocês sabe de alguma coisa que possa explicar esta situação ou que nos possa ajudar a sair dela. Se alguém tem alguma informação sobre a morte do Don Metzger.»
Todos se entreolharam novamente mas ninguém falou; olhei para Olivia.
«Se há alguma coisa que nos queiras dizer, este é o momento.»
Olivia abanou a cabeça, indiferente.
«Não. Não há nada que vos queira dizer.»
Pym riu-se, desesperado. Disse, em voz alta: «É óbvio que ela sabe de alguma coisa.»
«Pym», avisou Elsa, agarrando-lhe o braço.
«Larga-me», rejeitou-a Pym, apontando para Olivia. «Olhem para ela. Tão frágil, tão distante, tão improvável. Onde é que ela estava na noite em que o Don morreu? Eu vi-a chegar, e depois desapareceu como uma nuvem de fumo. Alguém sabe o que ela fez nessa noite ou onde esteve?» Descontrolado, Pym deu um passo em frente na direcção de Olivia. «Vais explicar-nos, ou vamos todos morrer neste lugar, como uns miseráveis, por tua causa?»
A pergunta ficou no ar; Olivia olhava para Pym sem qualquer traço de emoção. Não parecia a mesma pessoa que eu conhecera em Budapeste. Levantou-se e disse, em tom monótono:
«Volto a dizer as vezes que forem necessárias: fui deitar-me cedo e só acordei de madrugada.»
«Mentirosa», gritou Pym.
Elsa agarrou-o. «Pym», disse Elsa, em voz baixa. «Não vale a pena.»
Pym ainda susteve o olhar desafectado de Olivia durante um momento e, depois, recuou e deixou que Elsa o abraçasse; enterrou a cara no ombro dela e pareceu começar a soluçar. Nesse momento Vincenzo apareceu na cozinha, acompanhado por Nina. Esta tinha olheiras profundas mas tinha parado de chorar e o seu rosto assumira uma expressão involuntária de derrota, como se a dor emocional pela morte de McGill se tivesse transformado, no tempo que leva a descer um lanço de escadas, na dor de um desafio perdido.
Lá fora, Susanna começara a colher flores para a campa de McGill. Fizemos o nosso caminho em direcção à cova − Nina caminhou sozinha, de braços cruzados em redor do peito, e Vincenzo acompanhava-a um pouco atrás. Nos olhos dele vi a sombra de uma culpa terrível cuja verdadeira natureza desconhecia: que relação tinha com Nina? Que acontecera entre eles? Teriam as suspeitas de McGill outro fundamento que não um ciúme alcoólico, suspeitas que se haviam transformado em certezas e o tinham conduzido a uma morte violenta?
Junto da cova, Alipio e Vincenzo entregaram o morto à terra. Elsa aproximou-se e entrelaçou o braço no meu, oferecendo-me o calor do seu corpo. O cadáver de McGill, enrolado no lençol, desapareceu para o interior da cova, e Alipio disse uma oração em italiano, que todos rematámos com um amen descompassado. Olhei em redor: Olivia não viera prestar aquela última homenagem; Pym chorava e tremia; Roger fora buscar a câmara de filmar e registava aquele momento fúnebre. Depois Elsa fitou-me com os olhos cheios de ternura e melancolia e disse:
«Boa sorte.»
XIX
Eu e Alipio partimos para o bosque logo a seguir ao funeral. Não havia nenhum carro que nos pudesse transportar – Bosco levara o Renault, McGill o automóvel de Metzger, e o carro de Roger permanecia à entrada da casa com dois pneus completamente vazios – e, por isso, fizemos o caminho a pé. O Sol brilhava num céu muito azul e o calor apertava, fazendo-nos suar.
Alipio tinha a paciência de um homem do campo e acompanhava a minha lentidão sem denunciar qualquer ansiedade enquanto eu fincava a bengala nas partes do terreno que me pareciam mais sólidas, esperando quando era necessário esperar, estugando o passo sempre que eu encontrava um novo fôlego; murmurava uma antiga cantilena italiana para entreter a nossa travessia. No caminho do bosque, ensombrados pelas árvores muito altas que se debruçavam sobre nós, ameaçadoras, existia a sensação de que alguma coisa nos observava a partir dos lugares mais recônditos; existia a sensação insidiosa de que alguma coisa nos acompanhava sem dar tréguas, medindo os nossos passos, dois olhos demoníacos escondidos na semiobscuridade das árvores.
Caminhando, pus-me a pensar em todas as possibilidades. Que teria acontecido a Don Metzger, e quem era o responsável pela sua morte? Vincenzo suspeitava de Bosco, mas o catalão parecera-me demasiado obcecado com a justiça e demasiado fiel a Metzger para ser, ao mesmo tempo, autor e justiceiro do mesmo crime. Ocorriam-me agora pensamentos mais insensatos, pensamentos que nasciam do cruzamento radical de todas as hipóteses: e se, como sugerira Bosco, o crime não tivesse sido perpetrado por um, mas por vários? E se Sabaudia tivesse sido, na verdade, o recôndito lugar de uma vingança colectiva, e cada um deles tivesse uma razão secreta para querer Don Metzger morto, embora não tivessem previsto a ameaça que o catalão viria a constituir? O pensamento era rebuscado e, no entanto, tão verosímil como o que me ocorreu em seguida: e se Vincenzo, possuído pela inveja ou pelo álcool – ou por ambos –, fosse o culpado pela morte? E se Nina fosse, na verdade, sua amante e sua cúmplice, e os dois mentissem para ocultar um homicídio que fora o resultado de um conjunto de circunstâncias infelizes numa noite de descontrolo? Todos os cenários, mesmo os mais bizarros, me pareceram plausíveis no tempo daquela caminhada silenciosa com Alipio. Nina; não sabia, na verdade, o que pensar de Nina. Elsa dissera a Bosco que tinham estado juntas na noite em que Metzger chegara; mas teria Elsa dito a verdade, ou tê-lo-ia dito para proteger Nina da verdade perante Bosco – e perante McGill? Se assim fosse, então Elsa era também cúmplice naquela teia de enganos e conspirações. Contudo Elsa era uma das criaturas que Metzger trouxera do subsolo para a superfície; não fazia qualquer sentido que pactuasse com Nina e Vincenzo, a menos que desconhecesse que estes ocultavam um homicídio e, portanto, protegesse Nina somente porque as mulheres, por vezes, se protegem, e noutras ocasiões se ferem de morte. Havia ainda Roger e Stella; tanto quanto me era possível compreender, Stella encontrava-se acima de qualquer suspeita: ou era a melhor actriz do mundo, ou então era simplesmente idiota, sem qualquer possibilidade de conceber ou pôr em prática um plano tão macabro. Quanto a Roger – embora Bosco nunca tivesse escondido o seu ódio por ele –, parecia-me não ser mais do que um actor secundário naquele enredo a quem o catalão nem sequer exigira um álibi para a noite do crime. Com quem insistira Bosco? Com Nina, sobretudo: o grande conflito fora com Nina, embora isso não significasse necessariamente que desconfiasse dela acima de todos os outros, mas que Nina tivera a coragem de o desafiar. Por outro lado, a pessoa mais misteriosa era Olivia; no seu ar desinteressado, quase infantil, declarara ter dormido a noite toda, e esse seu álibi só fora contestado por Pym num momento de fraqueza; eu próprio me sentira tentado a ilibá-la de culpas ao fazer notar a Vincenzo a finura dos seus pulsos e a sua incapacidade física para dominar e estrangular um homem do tamanho de Don Metzger. Porém, na verdade, que sabia eu sobre Olivia? Praticamente nada. Que era bonita, que parecia moderadamente inteligente e que tinha sido, durante os últimos anos, o caixote do lixo de Vincenzo. Mas e se Olivia, na verdade, sofresse de uma patologia ainda por classificar – uma patologia sobrenatural que transformasse um anjo num demónio? E se debaixo de Olivia – debaixo da sua pele – se escondesse uma criatura nefasta capaz das maiores atrocidades?
Quem entrara no meu quarto a noite passada?
«Avanti», disse Alipio. À nossa frente, a clareira tornou-se visível. O sol penetrava pelos espaços entre as árvores do bosque, criando feixes de luz nos quais esvoaçavam minúsculos insectos. A clareira estava deserta mas, assim que chegámos, ouvimos o restolhar de passos atrás de nós. Voltei-me e ali estava Bosco, que surgira de parte nenhuma; trazia a espingarda ao ombro e tinha gotas de suor dispersas pela cabeça calva. Passou por mim e por Alipio e, dirigindo-se ao centro da clareira, agachou-se junto da terra, onde jazia o envelope azul e vermelho de um balão. Ergueu o olhar por um instante e depois começou a desdobrar o envelope.
«Não vos esperava tão cedo», disse. Olhou para Alipio e pediu-lhe ajuda em italiano.
Alipio obedeceu e foi ajudá-lo; os dois começaram a esticar o envelope. A porta da cabana estava aberta, havia algumas botijas de gás propano fora do depósito, e um dos rolos industriais de corda encontrava-se próximo de Bosco; tinha sido recentemente usado.
«Estás a preparar um voo?», perguntei.
Bosco ergueu os olhar; observava-me como se eu tivesse aparecido para tomar chá.
«Como assim?»
«Vejo que estás a trabalhar num balão», disse. Apontei para a lona com a bengala. «Presumo que o vás pôr a voar.»
Abanou a cabeça. «Por agora, duvido. Mas não gosto de ver coisas por arrumar.»
Limpou o suor da testa com as costas da mão e tirou a espingarda do ombro; pousou-a no chão; depois ergueu-se e levou as mãos à cintura.
«Tens novidades para mim?»
«Novidades?»
«Sabes bem. Uma confissão». Esboçou um sorriso zombeteiro. «Suponho que não; teria sido demasiado rápido. Um criminoso oferece sempre resistência.»
«Estás determinado a vencer essa resistência?»
Bosco foi buscar um pano velho dentro de um balde, à entrada da cabana, e começou a limpar as mãos. Alipio continuava a escrutinar minuciosamente o envelope.
«Estou simplesmente à espera. Tal como vos disse que estaria. Há parasitas que demoram mais tempo a sair do lugar. Estão confortáveis na humidade de um canto escuro ou nos intestinos de um hospedeiro. Vão apodrecendo lentamente tudo em seu redor. Outros demoram menos.» Ergueu as mãos num gesto complacente. «Há tempo para os dois casos. É, uma vez mais, uma questão de esperar.»
«Dificilmente se poderia chamar ‘esperar’ ao que tens feito», afirmei, num assomo de coragem. A presença de Alipio, por alguma razão, fazia-me sentir mais seguro.
«Porquê?»
Bosco aproximou-se.
«Houve um carro que passou por aqui a noite passada. Um carro, aliás, que tu devias conhecer bem, pois pertencia ao Don Metzger.»
Bosco cruzou os braços; estava suficientemente próximo para lhe conseguir ver o branco dos olhos, raiado de vermelho, e a profundidade das olheiras − como se não dormisse há muitas noites.
«Que é que estás a insinuar?»
«Quem conduzia esse carro era o John McGill. O inglês que ontem de madrugada impediu que o corpo de Metzger fosse parar ao fundo do lago.» Houve uma centelha de reconhecimento na expressão de Bosco, mas logo se esfumou. «O McGill – na verdade, o seu cadáver – foi encontrado esta manhã no princípio da estrada que conduz da casa ao bosque.»
Bosco observava-me com grande concentração.
«Lamento», disse.
«Como é que supões que ele foi ali parar?»
Bosco encolheu os ombros.
«Há muita coisa neste bosque que desconhecemos. Animais selvagens. Assassinos à solta. Nunca se sabe.»
«Não há um único animal neste bosque que se meta no caminho de um carro. E, se existem assassinos, haverá outra maneira de os descobrir que não imitá-los.»
O catalão pareceu confuso; depois zombou.
«Tenho alguma dificuldade em seguir-te.»
«Estou a dizer que o McGill foi ali deixado como um aviso.»
«Um aviso?»
«Sim. Uma maneira de nos avisar de que não vale a pena tentarmos fugir.»
«Estás a insinuar que eu o matei?», perguntou Bosco, que tornou a aproximar-se, o seu corpo sólido e ameaçador ensombrando o meu; Alipio parou o que estivera a fazer e olhava-nos.
«Estou a dizer que pouco me interessa se o que aconteceu ao McGill foi puro homicídio, se foi em legítima defesa. Se me disseres que ele te atacou eu acredito em ti; se me disseres que houve uma luta e que, para salvares a tua vida, tiveste de tirar a dele, também acredito. O que não acredito é que sejas cruel − propositadamente cruel, para ser mais preciso. Que deixasses aquele corpo ali com outro propósito que não o de mostrar até onde poderás ir para fazer justiça.»
Bosco franziu o sobrolho.
«Essa tua teoria vai a algum lado?»
«Venho dizer-te que a estratégia não deu resultado. Ou melhor, teve o resultado inverso: a confissão por que esperavas, nenhum deles ta irá dar agora que viram o que lhes pode acontecer.»
Bosco ficou parado durante um momento e depois voltou-me as costas e caminhou na direcção da espingarda. Pegou nela e tornou a colocá-la ao ombro.
«Uma vez que, aparentemente, falas por todos, qual é a tua sugestão?»
«Eu não falo por todos. Isso é uma declaração absurda.»
«Foste tu quem veio ter comigo.»
«Vim tentar arranjar uma solução para este problema.»
Bosco bufou.
«Vamos assumir, por agora, que falas por todos. Qual é a vossa proposta?»
Tínhamos chegado ao âmago da questão: nada me ocorrera a caminho da clareira. Sabia simplesmente que era necessário negociar; compreendia agora que nada tinha para oferecer em troca. O que teríamos nós para oferecer a um homem como Bosco? Disse a primeira coisa que me ocorreu para ganhar tempo:
«Uma vez que não vai existir uma confissão, que tal várias confissões?»
As palmas das minhas mãos começavam a suar; ele pareceu intrigado.
«Como assim?»
«Se cada uma das pessoas naquela casa contar tudo o que viu e que sabe sobre aquela noite, talvez consigamos chegar a uma conclusão. Sobre o culpado da morte do Metzger.» Bosco pareceu confuso durante um momento. «Depoimentos», acrescentei. «Uma colecção de depoimentos com que reconstruir os acontecimentos daquela noite.»
«Depoimentos?»
«Sim. Como fazem na Polícia quando ocorre um crime: chamam os suspeitos à esquadra e eles prestam declarações. Ou depoimentos. Como lhes queiras chamar.»
«Continua.»
Tornei a improvisar:
«Vamos escrevê-los. Cada um de nós irá sentar-se e escrever o seu testemunho. Depois eu irei reuni-los, trazê-los aqui e tu, depois de os leres, tomas uma decisão.»
Bosco demorou uns momentos a reagir; depois assentiu com a cabeça em sinal de aprovação.
«Muito bem. Faremos então isso.»
Fiquei estupefacto com a aceitação; era um plano completamente descabido mas o catalão parecia ter ficado agradavelmente surpreendido. Por alguma razão eu julgara que, quando chegasse o momento, teria capacidade para o convencer a desistir daquela empreitada apocalíptica − que, na hora da verdade, quando o confrontasse com a morte de McGill, o louco abandonaria a sua loucura e procuraria a expiação libertando-nos do Bom Inverno. Agora oferecera a um louco a pior de todas as possibilidades − um novo jogo, conspiratório e paranóico, que acabaria por validar irracionalmente a sua derradeira decisão.
«De quanto tempo precisas para recolher esses depoimentos?»
Vieram-me à cabeça números absurdos: um ano ou dois, apeteceu-me dizer.
«Não sei. Uns dias. Depende.»
«Depende do quê?»
«Primeiro tenho de os convencer. Depois há que esperar por que cada um se sente e cumpra o prometido. Sabes que este é um grupo volátil.»
«Muito volátil», confirmou Bosco.
Finquei os dedos com força no cabo da bengala. Não era capaz de parar; ainda que a minha cabeça me mandasse calar, ainda que a razão me dissesse parar fechar a boca, ia continuar a derramar baboseiras.
«Precisamente», concordei. «Irá levar o seu tempo. A ideia tem primeiro de assentar para, depois, a verdade vir ao de cima.»
Bosco sorriu, meio zombeteiro.
«Traz a verdade ao de cima, então.»
Deu meia-volta e dirigiu-se para a cabana. Agradeceu a ajuda de Alipio e disse que me esperava em breve. A espingarda, aos seus ombros poderosos, parecia um brinquedo.
«Espera», disse-lhe, num assomo tardio de sensatez. «Há mais uma coisa.»
Bosco voltou-se.
«O quê?»
Apontei para o italiano.
«A mulher do Alipio está doente.»
Alipio olhou-me com curiosidade ao escutar o seu nome.
«O que é que aconteceu à Susanna?»
«Susanna?», repetiu Alipio.
«Foi de repente. Não sabemos o que é, mas pode ser grave. Tem uma febre muito alta desde ontem e sente-se muito fraca. Pode ser qualquer coisa passageira mas também pode ser alguma coisa séria. Nenhum de nós é médico e, na idade dela, uma coisa destas pode ser fatal. Precisa de ir ao hospital.»
Bosco hesitou um instante e depois perguntou a Alipio:
«Tua moglie è ammalata?»
Alipio demorou um segundo a assimilar a pergunta; o meu estômago contraiu-se num espasmo involuntário. Se me desmentisse acabava-se tudo e era impossível dizer o que Bosco faria em seguida − provavelmente, eu já não regressaria à propriedade de Metzger para contar a história. Procurei o olhar do homem e tentei oferecer-lhe um sinal, mas não foi necessário: Alipio concordou com um aceno de cabeça e confirmou a minha mentira. O catalão levou a mão direita à nuca e esfregou-a com a palma da mão. Depois aproximou-se de Alipio, ajoelhou-se e conversaram baixinho em italiano; as palavras que trocaram perderam-se nos sons chilreantes do bosque. Em seguida, Bosco ergueu-se e disse que ia providenciar para que Susanna pudesse ser levada ao hospital mais próximo, embora apenas ela e Alipio tivessem permissão para deixar o bosque; mesmo sem o ter dito, era evidente que, para ele, o ajudante e a mulher estavam isentos de qualquer suspeita no que dizia respeito à morte do patrão. Concordei de imediato e, tendo fechado as negociações, regressámos pelo mesmo caminho que nos levara à clareira.
Nessa mesma tarde, reuni os presentes na sala e expliquei que Bosco deixaria Alipio e Susanna partirem. Expliquei o ardil da doença e pedi a Vincenzo que traduzisse as minhas palavras em italiano para que a empregada de Don Metzger ficasse a par do que tinha sido combinado e do que se esperava dela. Não iria ser difícil fazê-la passar por doente; Susanna andava pálida dos horrores dos últimos dias. Alipio e a mulher conversaram com Vincenzo e estabeleceram um plano: o homem iria buscar o Renault à clareira, regressaria para levar a mulher e partiria com o consentimento de Bosco. Assim que chegassem à estrada, iriam à esquadra de Polícia mais próxima e tentariam explicar a situação. Havia agora um corpo acabado de enterrar; existia uma morte possível de provar e que teria de ser investigada pelas autoridades.
Roger estava sentado num dos sofás ao lado de Stella. Tinha uma garrafa de vinho na mão.
«Isso é um delírio», disse com a voz rouca e embriagado. «O mais provável é nunca mais os vermos.»
Pym, ao lado de Elsa, ficou subitamente agitado.
«Que quer isso dizer?», perguntou. Uma vaga de pânico atravessava-lhe o rosto.
«Quer dizer que o homem pode ser maluco mas não é estúpido. Estes dois», apontou para Susanna e Alipio, «são uns campónios e não vão mexer uma palha para nos ajudar.»
Vincenzo pediu a Alipio e a Susanna que se preparassem para a viagem; os dois saíram da sala em direcção à cozinha, ele com o braço sobre o ombro dela. Olivia tinha-se sentado no degrau que conduzia à sala do aquário, o rosto anguloso, de perfil, fitando o bosque distante. Pelo vazio onde antes existira a parede de vidro entravam os raios de sol de uma tarde gloriosa.
«Se calhar ele tem razão», disse Pym, agitando as pernas num movimento nervoso.
«Tem calma», pediu-lhe Elsa.
Tentou segurar-lhe a mão, mas Pym afastou-a e olhou para Roger, perguntando-lhe: «Acreditas mesmo nisso?»
«Claro que acredito, princesa. Vão concordar com tudo o que lhes pedirmos e, assim que estiverem a cem metros da casa, já nos esqueceram.»
Pym estava à beira das lágrimas e, agora, agitava descontroladamente as pernas; a sua voz tornara-se tão aguda como a de uma criança.
«E se os convencermos?», suplicou Pym. «Podemos dar-lhes dinheiro. Eu tenho algum dinheiro. A Elsa também.»
Olhou em redor da sala. Nina, que se encontrava de pé, de braços cruzados e olhos postos no chão, parecia ausente da conversa; via-se-lhe nas maçãs-do-rosto que chorara muito durante o dia. Vincenzo, sentado no chão, contemplava o tecto, derrotado. Sentado numa cadeira, com a bengala em cima dos joelhos, eu procurava aceitar a fragilidade do meu plano.
Pym meteu a cabeça entre as mãos e disse, num tom desesperado:
«O que é que se passa com vocês? Precisamos de ajuda ou vamos todos morrer. Como o pobre coitado que morreu ontem, como o pobre coitado que morreu no dia anterior.»
Houve silêncio; depois Roger adiantou:
«Ao menos há comida e bebida.»
Pym, que já tinha lágrimas no rosto, afundou-se no sofá.
«Por acaso nem isso é inteiramente certo», disse Nina. A voz saiu-lhe fraca mas decidida. «A bebida até pode durar – sabe-se lá quantas garrafas há naquela cozinha − mas, no que respeita à comida, estamos seriamente limitados.»
«O frigorífico e a despensa estão quase cheios», disse Stella.
«Estão cheios de coisas perecíveis», insistiu Nina. «Já reparei no que temos: ovos, legumes, iogurtes, leite, algum peixe. Existem vários pacotes de massa, é certo, mas continuamos a ser oito pessoas. E já não estou a contar com a Susanna e o Alipio. Oito pessoas. Quanto tempo vos parece que aguentamos a comer massa? Massa ao pequeno-almoço, massa ao almoço, massa ao jantar?»
Stella olhou em volta como se procurasse uma resposta. Elsa continuava a consolar um inconsolável Pym. Depois Stella perguntou:
«Não sei. Quanto tempo vamos ter de ficar aqui?»
A pergunta ficou no ar. Vincenzo olhou-me; eu olhei para Nina; Nina encolheu os ombros. Roger riu-se.
«Para o resto da vida», respondeu Roger. «O que vale é que a vida parece que vai ser relativamente curta.»
«E se esperássemos?», sugeri. «Não sabemos o que vai acontecer com o Alipio e a Susanna.»
«Sei-o perfeitamente», tornou Roger.
«Muito bem», repliquei, encarando Roger. «Se sabes assim tanto, oferece-nos uma solução melhor. Oferece-nos uma saída. Estamos à espera.»
Roger fez um esgar contrariado; depois sentiu os olhares todos sobre si, encolheu os ombros e resmungou:
«Estou só a ser realista.»
«Então reza para que o teu realismo não seja real», disse-lhe, levantando-me da cadeira. «Ou vamos passar uma longa temporada no inferno e é melhor aprenderes a pescar. Ou a caçar, já agora.»
«Está decidido», rematou Vincenzo. «Vamos esperar e ver o que acontece.»
Alipio voltou com o Renault ao princípio da noite e, do interior da casa, Nina e Vincenzo acompanharam Susanna até ao carro como se esta estivesse demasiado fraca para se deslocar sozinha. Nina segurava-lhe na mão e Vincenzo fingiu ajudar a suster o tronco da mulher passando-lhe um braço pela cintura. Susanna cumpriu o seu papel com diligência, soltando uns gemidos de dor que, ouvidos de muito perto, facilmente se revelariam falsos. Mas o nosso inimigo não estava perto; estava no interior do bosque e, para o efeito pretendido, o teatro servia perfeitamente. Para além disso, o mais provável era que Bosco nos estivesse a vigiar – tanto quanto sabíamos, podia ter um par de binóculos ou usar a mira da sua espingarda. Depois Vincenzo regressou à cozinha para vir buscar uma mala vazia, voltou ao carro e enfiou a mala no assento traseiro. Alipio e Susanna partiram quando o céu já se enchera de estrelas e a Lua começava a debruçar-se sobre a superfície perfeita do lago.
XX
As flores sobre a campa de McGill murcharam ao fim de alguns dias e, na ausência de Susanna, ninguém mais se deu ao trabalho de as mudar. O corpo foi entregue à terra, aos bichos que se ocupavam da podridão do mundo, e rapidamente a existência do inglês pareceu ser esquecida. Havia, por um lado, uma nova esperança entre nós e, por outro, uma sensação de angústia presente em cada silêncio, em cada sopro de vento, em cada agitar das águas plácidas, uma angústia que nascia do indizível: era impossível voltar atrás. Houvesse ou não um assassino entre nós, a possibilidade de redenção ficara afastada a partir do momento em que permitíramos que o corpo de Don Metzger fosse enviado aos céus no balão de Bosco, perdendo-se, se assim os ventos quisessem, nas profundezas do Mediterrâneo – a partir do momento em que, ao nada fazermos, pactuámos com aquele macabro funeral. E, no entanto, havia esperança – a esperança dos desesperados, a esperança sem redenção; a esperança de que a partida de Alipio e Susana pudesse, de alguma maneira, fazer a realidade regredir aos seus contornos mundanos e nos libertasse daquela prisão, nos resgatasse àquele cerco, nos permitisse, a cada um, partir numa direcção diferente e tentar, na medida do possível, continuar a viver. Era impossível voltar atrás; e, contudo, teríamos dado tudo para voltar atrás ou então para seguir em frente, esquecidos, sem memória, como fantasmas.
A casa transformou-se, durante esses dias, num lugar de espera habitado por sombras. Resolvi adiar a conversa sobre os depoimentos para o caso de Alipio e Susanna desaparecerem sem deixar rasto, tal como Roger previra; ainda que fosse a hipótese mais viável, era difícil aceitá-la sem, ao menos, dar aos caseiros de Don Metzger o benefício da dúvida. Para além disso, seria mais fácil convencer os restantes a colaborar nesse plano caso as circunstâncias se tornassem mais taciturnas. Não era sequer um plano; era apenas uma maneira de adiar a sentença. O resto, concluí, não era problema meu. Um homem tenta encontrar uma solução; os resultados ficam aquém das expectativas; poder-se-á culpá-lo por ter tentado? Era muito mais do que aquilo que Roger fizera; fosse como fosse, que sabia Roger? Que sabia, aliás, qualquer um dos outros que ali se encontravam? Bosco dissera que eu falava por todos; embora a frase me tivesse, na altura, deixado atordoado, com o passar do tempo comecei a entendê-la como um voto de confiança e muitas vezes me ocorreu um pensamento que cedo se transformou numa convicção: a de que o meu corpo tinha ficado debilitado para que a minha atenção se concentrasse em encontrar a solução para um determinado problema. O problema tinha-se apresentado e, menos inclinado a reagir de forma emocional ou intempestiva – coisa mais provável num homem com pleno uso das suas faculdades motoras –, havia em mim a confiança de que, utilizando as regras mais elementares do bom senso e nunca deixando que a pulsão primária pela sobrevivência se adiantasse, era possível encontrar uma resposta.
O Verão instalou-se na sua grandeza e também na sua miséria. A noção de que pouco havia a fazer naquele momento infundiu as almas de uma estranha apatia e, ao mesmo tempo, de uma urgência em regressar ao quotidiano – ou, pelo menos, a um simulacro do quotidiano. Vincenzo e Nina começaram a dormir no mesmo quarto (o primeiro do lado esquerdo, que tinha uma cama de casal e uma clarabóia no tecto) e, à noite, se uma pessoa se pusesse à escuta, conseguia ouvir os suaves gemidos de Nina do corredor. Era impossível saber, porém, se eram gemidos de prazer ou de uma dor profunda; era impossível saber porque dormiam juntos, se por amor, se por desencanto. Pela manhã, os dois despertavam e faziam o pequeno-almoço – ovos estrelados ou mexidos, o aroma do azeite quente invadindo os espaços mais recônditos da casa – e partilhavam-no com quem quer que se encontrasse por ali; algumas vezes tomavam-no sozinhos, em silêncio, como um casal de longa data que nada mais tivesse a partilhar − e os seus silêncios eram longos, melancólicos e pesados.
Roger e Stella mantinham-se alheados e curiosamente despreocupados. Ele convencera-se da morte iminente e ela concordara por osmose; era, assim, fundamental aproveitar aqueles últimos dias ao máximo. Isto resultou em sessões intensas de consumo de álcool, sexo estridente e banhos de sol no pontão do lago. A luz reinava sem desafio e Roger, de câmara em punho, filmava Stella constantemente; ela agradecia a atenção com sorrisos, parvoíces e poses para a lente. Pareciam estupidamente adaptados à situação.
Pym, pelo contrário, transformara-se num enorme problema. Elsa passou grande parte desses dias ao seu lado, assegurando-se de que ele não resvalava da beira do precipício em que se encontrava, mas Pym recusava-se a aceitar que as coisas eram como eram. Não se tratava sequer de estar revoltado moralmente – ou em qualquer outro sentido espiritual – contra o cativeiro imposto por Bosco; não se tratava sequer de obstar ao facto de termos depositado em Alipio e Susanna a esperança de uma salvação; tratava-se do facto de Pym ser, pura e simplesmente, demasiado frágil para viver uma situação como aquela. Por vezes chorava durante a noite e os seus lamentos atravessavam a casa como se um animal ferido habitasse o quarto que fora de Don Metzger; noutras, sentava-se debaixo da árvore, à sombra, as pernas dobradas e a cabeça enterrada nos joelhos, e ali passava as horas, mexendo-se apenas para enrolar a sua marijuana e depois ficar submerso numa nuvem de fumo que o remetia a um sono profundo. Quando se encontrava dentro da casa, Elsa fazia-lhe companhia no grande sofá da sala. Pym deitava a cabeça no seu colo e ela afagava-lhe o cabelo seco e espigado, murmurando-lhe palavras de conforto que pareciam não produzir qualquer efeito na sua vontade: Pym encontrava-se já muito para além dessa vontade, como se um vírus tão destrutivo quanto silencioso o houvesse invadido e o conduzisse, pouco a pouco, a um desespero sem remissão.
Quanto a mim – não vou mentir – esses foram os melhores dias. Caíra sobre a casa de Sabaudia uma tranquilidade que servia como um bálsamo que apaziguava as feridas recentes. Pensei, nessa altura, que o homem era uma coisa fácil de contentar: dêem-lhe sol, ponham-lhe comida na mesa, satisfaçam-lhe o desejo, e ele esquecerá que meteu um cadáver num balão de ar quente e que, no dia seguinte, enterrou um segundo cadáver no jardim. É certo que a espera fazia agora parte do nosso plano; mas também é certo que, se tivesse havido entre nós a urgência da verdade, a ninguém teria sido permitido usufruir do Bom Inverno depois do que acontecera. Havia tanto por explicar; existiam tantas incógnitas. A nenhum de nós cabia encetar uma investigação e, portanto, qualquer um o podia ter feito; qualquer de nós podia ter exigido que Nina expusesse aquilo que recusara revelar a Bosco sobre a noite em que Don morrera, ou ter questionado a natureza da sua relação com Vincenzo, com quem agora dormia, numa atitude cruel que escarrava na face dos mortos; qualquer um de nós podia ter interrogado Olivia pedindo explicações para o seu comportamento soturno e indecifrável; qualquer um de nós podia, mas ninguém pareceu importar-se.
Durante esses dias Olivia esteve quase sempre fechada no quarto, descendo ocasionalmente para se alimentar ou dar um breve passeio pelo jardim. A presença de Nina e Vincenzo – que, agora, estavam sempre juntos – não parecia incomodá-la; parecia, aliás, nem os reconhecer quando, muito raramente, se cruzavam numa divisão qualquer da casa. Durante as horas de sono nada se ouvia atrás da porta do seu quarto; durante as horas de vigília, trocava as palavras necessárias ao normal funcionamento do quotidiano. Passava por nós como um espírito e, sempre que o fazia, um calafrio percorria-me a espinha.
As noites eram bem-vindas. O calor diminuía e uma brisa amena atravessava o bosque e circulava o lago, levantando os aromas doces da terra. Havia sempre alguém que sugeria a hora de jantar, como se cada noite não fosse uma monótona repetição da anterior.
«Podíamos jantar», dizia alguém.
Era Vincenzo quem cozinhava grandes tachos de spaghetti mergulhado em água a ferver e fazia um molho de tomate com alho e orégãos. Cada um comia como lhe aprouvesse, sozinho ou na companhia da pessoa mais próxima. Pym habitualmente recusava o jantar e eu comia com Elsa à mesa da cozinha, onde, para passar o tempo, falávamos sobretudo de cinema: discutíamos os méritos do cinema europeu e do cinema americano e, quando o tédio era maior, escolhíamos uma letra do alfabeto e discutíamos todos os filmes de que nos conseguíamos lembrar começados por essa letra; discutíamo-los até estarmos fartos e, depois, avançávamos para a letra seguinte e repetíamos o processo.
Nina e Vincenzo costumavam levar os pratos lá para fora e comiam sentados na relva junto ao lago, banhados pela lua; a seguir fumavam cigarros enquanto olhavam as estrelas e eram mordidos pelas melgas. Roger e Stella, que passavam o dia no pontão a apanhar sol, resignados ao cativeiro e à morte vindoura, ficavam na sala a beber vinho pela garrafa e, quando já estavam bêbedos, riam muito alto e falavam sobretudo de sexo, entre sussurros e apalpões; depois Roger adormecia embriagado e Stella passava algum tempo a tentar acordá-lo e a convencê-lo a subir para o quarto. Por volta das onze da noite, Olivia descia para comer o que restasse do jantar e, nessa altura, Elsa despedia-se e ia para o quarto fazer companhia a Pym; confessara-me recentemente que Olivia lhe deixava os nervos em franja e, para ser sincero, era fácil compreender porquê: embora fosse bonita, Olivia andava pela casa vestida com um pijama branco que lhe acentuava a palidez e o louro deslavado do cabelo; o rosto sem expressão, como o de um sonâmbulo, conferia-lhe a aparência de um cadáver. Por vezes lembrava-me a Eleonora de Edgar Allan Poe, e imaginava-a doente, vagueando por entre flamingos de plumas escarlates e árvores em forma de serpentes num vale de morte.
No meu quarto, por vezes, era difícil adormecer; a expectativa mantinha-me desperto. Mas de alguma maneira sabia que, se permanecesse acordado, nada aconteceria. Embalado pelo ruído próximo do vento e pela necessidade de repouso, acabava por entrar num sonho tépido do qual sabia que me despertariam nas horas anónimas da madrugada. Por vezes nem sequer ouvia a porta abrir-se. Quando, estremunhado, abria os olhos e tentava adivinhar a escuridão, já o corpo ali estava, aos pés da cama. A voz doce e terna dizia:
«Chhh.»
O ritual começava. Por vezes era apenas uma mão que, desenvolta, me encontrava o sexo e o massajava, devagar, a outra mão gentilmente pousada sobre a minha perna doente; nesses momentos apenas a minha respiração pesada e o restolhar dos lençóis interrompiam o silêncio; de outras vezes a criatura entregava-se e executava, com a destreza de um atirador furtivo, os movimentos da boca e da língua que descrevi algures e tudo terminava com maior rapidez mas também com a sensação de uma derrocada − de uma explosão e de uma derrocada − e havia um gemido como o de um animal com fome e eu cravava a ponta dos meus dedos nos lençóis no terno conforto de já saber o final de uma história. Eu preferia esta segunda forma de prazer, embora ela me suscitasse maior melancolia; talvez porque uma boca é diferente de uma mão, talvez porque implica um compromisso maior e também um desgosto maior se, um dia, a virmos desaparecer para sempre da nossa vida. Por isso gostava de ter prazer naquela boca sem saber na boca de quem tinha prazer. Por vezes ocorreu-me, e se fosse um homem? Mas não podia ser. Um homem não teria aquele perfume levemente fundido com uma película de suor que se retira com a ponta dos dedos; um homem não teria aquela destreza de um atirador furtivo. A porta tornava a abrir-se na escuridão e depois tornava a fechar-se, e eu, novamente sozinho, pensava: se ela viesse mais tarde, se houvesse luz no horizonte, se a madrugada desse lugar à manhã, se as cortinas se abrissem como num passe de mágica, então poderia ver-lhe o rosto, descobri-la, decifrar este enigma. E, de repente, já estava a dormir outra vez.
XXI
Ao final de uma semana, era como se estivéssemos de férias. Bosco mantinha-se oculto do seu lado do bosque e aguardava pelos depoimentos; do nosso lado, a rotina instalara-se como todas as rotinas se instalam – pela calada, sorrateira, apoderando-se dos dias antes de os dias darem pela sua chegada. O Sol ocupou a sua abençoada posição no céu – também ele cumprindo a sua rotina – e iluminou os dias de Sabaudia. Era fácil viver assim: se não fosse a ameaça latente escondida no meio das árvores, não me teria desagradado permanecer naquele lugar durante muito tempo. À noite, um corpo secreto vinha ter comigo e, durante o dia, pouco mais havia a fazer do que ir esquecendo as vicissitudes do mundo exterior ao bosque, as vicissitudes da realidade; realidade que, afinal, sempre se provara uma má companheira. Em certa medida, era Pym (apesar de toda a sua fraqueza e ingenuidade) que representava o apelo choramingas a essa realidade − ou a uma saída daquilo que ele julgava um pesadelo e que, para os outros, começava a assumir os contornos de um sonho. Pym estava acometido daquela pulsão primária pela sobrevivência que já descrevi e, nessa medida, parecia-me um ser irracional no qual não se podia depositar qualquer confiança; fomos ignorando os seus queixumes até ser tarde de mais.
Numa tarde muito quente, cinco ou seis dias depois do meu encontro com o catalão no bosque, adormeci sobre a relva à sombra da árvore junto do lago e, quando acordei, a sombra movera-se, deixando-me a cabeça ao sol. Pym encontrava-se próximo, deitado, de olhos fechados; Nina e Vincenzo estavam sentados em cadeiras de praia sobre o pontão, atirando cartas de jogar para dentro de um cesto com um golpe de dedos; as cartas iam-se espalhando pelas tábuas de madeira. Despertei estremunhado e suado, peguei na bengala e, com a perna a latejar do esforço, subi ao primeiro andar onde pensava deitar-me na cama durante o resto da tarde. No corredor ouvi os gemidos de Stella; ouvi também o som de uma canção, e decidi segui-lo. Avancei na direcção da parede de vidro que enfrentava o bosque e, dobrando o corredor, encontrei a porta do quarto de Don Metzger entreaberta. Bati à porta com os nós dos dedos.
«Sim?»
Era a voz de Elsa. Entrei. Havia um disco a tocar no gira-discos e a voz melodiosa de uma cantora de blues vagueava pelas notas de um piano. Elsa estava sentada na cama e segurava entre as mãos um objecto dourado; era o Óscar de Don Metzger.
«Encontrei-o no chão do quarto», disse, em tom melancólico, sem tirar os olhos da estatueta.
«Devia estar farto do anonimato do armário.»
«É tão triste, não é?», perguntou.
Sentei-me na cama ao seu lado.
«É um extraterrestre dourado. Não tem olhos nem expressão facial. Não chega a ser triste.»
«É tão triste que ele tenha recebido esta coisa e a guardasse ali dentro.» Ela própria parecia triste; o cabelo despenteado escondia-lhe parte do rosto. «Como se pouco ou nada lhe interessasse», continuou, pesando o objecto na mão. «Como se esta coisa que toda a gente ambiciona não tivesse qualquer valor.»
«Triste porquê? Julgava que era isso o que mais gostavas no Don Metzger. O desprendimento.»
«Mas, na morte, o desprendimento transforma-se numa coisa triste. O Don partiu incógnito. Tal como esta estatueta que não tem olhos nem expressão, que vai ganhar pó dentro de um armário e nunca mais ninguém saberá dela. Vai acontecer-lhe precisamente o mesmo: não passará de um nome numa base de dados; nada ficará da sua vida. Será mais um caso curioso de um excêntrico desaparecido em circunstâncias bizarras que, um dia, até chegou a ganhar um Óscar que nem se dignou ir receber.»
Ficámos em silêncio durante um momento. O disco parou de tocar e a agulha, tendo chegado ao final, levantou-se sozinha e cumpriu o seu movimento de regresso. Elsa encostou a cabeça ao meu peito; o seu cabelo roçou na minha barba descomposta. Fechei os olhos e senti-lhe o perfume. Seria o mesmo? A sensação era outra; mas quem podia estar certo de alguma coisa no silêncio estonteante da noite?
«O importante é que tu o recordes», disse-lhe. «Somos nós que mantemos vivos os mortos.»
«E recordo-o. Uma vez, sabes, o Don salvou-me de ser violada.»
Não esperava aquilo e fiquei sem resposta.
Elsa continuou. «Só para veres o quanto ele era diferente dos idiotas que andam por este mundo. Nunca contei isto a ninguém. Mas agora que chegámos aonde chegámos parece-me que te devo contar isto, uma vez que nenhum de nós sabe se alguma vez chegará a sair daqui.»
A janela estava aberta, e um pássaro, pequeno e castanho, pousou no beiral, vasculhando a superfície com o bico em movimentos rápidos. Elsa desencostou a cabeça do meu peito e, com a ponta dos dedos, afastou o cabelo do rosto. Depois pousou a estatueta na cama e acendeu um cigarro.
«Foi durante a rodagem do meu primeiro filme, o do Klaus Kasper. Aquele baseado no romance do Knut Hamsun. Estávamos a filmar na República Checa e havia uma cena nocturna de interiores na qual o protagonista dorme numa cela da Polícia. Eu nem sequer entrava nessa parte, mas o Kasper fazia questão de que todos os actores estivessem presentes em todas as cenas. Isto implicava custos acrescentados e uma logística infernal, como deves imaginar. O Kasper era maníaco e o Don sabia-o, por isso também fazia questão de estar presente sempre que podia. Estaria a mentir se te dissesse que ignorava no que me estava a meter; já tinha ouvido falar das coisas que o Kasper fazia aos actores. Despedia-os a meio das filmagens, torturava-os com horas de espera, chegou a andar à pancada com uns quantos; enfim. Mas nunca imaginei que ele também fosse perverso.»
Elsa fez uma pausa para fumar.
«Pelo menos não imaginava que pudesse ser perverso comigo. Quero dizer, o Kasper nasceu na RDA. Ele sabe, tal como eu, o que é crescer pobre num lugar que nos oprime e nos constrange ao silêncio. Nestes lugares não existem verdadeiras escolhas. Escolhes o teu pão, mas não escolhes a tua vida. O meu pai morreu pelas suas escolhas. Era contra o regime e não tinha medo de o dizer. Passou muito tempo nas prisões e depois morreu de desilusão. Adiante. Nessa noite em Praga, adormeci e fiquei no hotel. Devo ter faltado às filmagens porque alguém bateu à minha porta de madrugada. Era o Kasper. Entrou no meu quarto, furioso, e tentou obrigar-me a ter sexo com ele. E tudo aquilo em que eu conseguia pensar era no meu pai: no meu velho pai, que apodreceu de melancolia. Não te parece que é a mesma coisa? Meter um homem na prisão por discordar, ou violar uma rapariga? São duas maneiras de remeter alguém ao silêncio. Alguns violadores gostam de gritos e outros tapam a boca das vítimas; seja como for, é opressão. É silêncio.» Elsa apagou o cigarro. «Ainda hoje não sei porque é que aquilo aconteceu. Talvez a noite de filmagens tivesse corrido mal; talvez ele estivesse furioso comigo por não ter aparecido. Não te sei dizer. Procuramos sempre razões para o mal, não é?» Fez um compasso de espera. «A princípio tentei dar luta, mas o Kasper é um homem alto e eu sou uma mulher pequena. Às tantas devo ter desistido de lutar, porque a próxima coisa de que me recordo é de o Don Metzger já estar dentro do quarto a levantar o Kasper pelo pescoço. Eu estava meio despida e deitada na cama e o Don estava a levantar o Kasper do chão só com uma mão e a encostá-lo à parede. O alemão parecia um insecto; lutava para se libertar, mas era inútil. Fui eu quem pediu ao Don para o largar. Se não o fizesse, acho que ele o tinha matado ali mesmo. Pedi-lhe gentilmente, e o Don largou-o e deixou-o no chão a resfolegar como um cavalo abatido. Depois o Don disse-lhe para se pôr dali para fora. Disse-lhe que era a última vez que filmava na vida.»
«Foi a última vez?»
«Não. O Kasper voltou a filmar com um produtor diferente, mas nunca mais fez nada que se visse.»
«Que é o mesmo que nunca mais ter filmado.»
«Precisamente.»
«Lamento que isso te tenha acontecido.»
«No fundo não chegou a acontecer.» Elsa sorriu. «Quero dizer, pelo menos com o Kasper.»
«Como assim?»
«Nessa noite dormi com o Don. Uma vez sem exemplo.» Devo ter arregalado os olhos porque Elsa perguntou: «É difícil de imaginar, não é?»
«Confesso que sim.»
«Deixa-me que te diga que também foi difícil de concretizar. Um homem daquele tamanho e eu tão pequena. Quando ele estava em cima de mim pensei que ia desmaiar. Não conseguia mexer-me nem respirar, não conseguia sentir nada. Pedi-lhe para me deixar ficar por cima e ele concordou. Mas depois havia outra coisa.»
«O quê?»
«Ele gostava de ser sufocado.»
«Sufocado?»
«Pediu-me para lhe atar uma corda ao pescoço e a apertar com toda a força que tivesse.»
«E tu fizeste-o?»
Elsa olhou para o pássaro que continuava a bicar o beiral da janela.
«Deu-lhe prazer.»
«E a ti?»
Abanou a cabeça em negação.
«Porque é que dormiste com ele, então?», perguntei.
Elsa encolheu os ombros; era mórbido falar da vida íntima de um morto.
«Porque lhe devia alguma coisa. Porque, se alguém te salva de uma coisa muito má, tu ficas em dívida. Ou não?»
«Suponho que sim. Mas há várias maneiras de saldar uma dívida.»
O pássaro castanho levantou voo subitamente e desapareceu de vista.
«Naquela altura pareceu-me a maneira certa. Seja como for, nunca mais tornou a acontecer. Eu e o Don arrumámos o assunto nessa noite. A seguir voltámos ao normal, regressámos ao registo que sempre tivéramos. Que era o de uma relação quase de pai e filha. Também nunca falámos do assunto. Algumas pessoas referiam-se a mim como a filha adoptiva do Don e foi assim que me continuei a sentir.»
«Foram muito próximos, então.»
Elsa suspirou de tristeza.
«Éramos. Mas o Don… Desde a primeira vez que o vi, sabes o que pensei? Pensei que aquele homem ia durar pouco. Não porque fosse um gigante de gordura; nem mesmo porque o médico já lhe tinha dito uma dúzia de vezes que estava à beira de um ataque cardíaco. Pensei-o porque havia uma tragédia incompleta nos seus olhos. Porque havia alguma coisa naquele rosto que anunciava uma desgraça. Alguma vez te deste conta disso? Que há pessoas que carregam a desgraça no rosto?»
Ocorreu-me, quase sem saber porquê, o rosto de Vincenzo.
«Talvez, no fundo, toda a gente leve a desgraça no rosto», respondi. «Só que alguns o sabem e outros nem por isso. O Bosco disse-me uma coisa parecida no outro dia, ou pelo menos assim entendi: que alguns de nós andam por aí com as marcas da sua finitude à mostra e que outros, embora pareçam não as ter, estão tão condenados como os primeiros.»
«Bosco», repetiu Elsa. Depois abanou a cabeça. «Bosco e Don. Don e Bosco. O raio dos balões. Nunca fez qualquer sentido para mim.»
«É uma obsessão como outra qualquer.»
«Julgo que tem a ver com a infância do Don na África do Sul. Ele nunca falou muito sobre o assunto, nunca quis explicar esse lado mais obscuro da sua cabeça. Mas disse-me que, quando tinha oito ou nove anos, os pais o levaram a dar um passeio de balão. Sabes o que dizem sobre andar de balão em África?»
«E o que é que dizem?»
«Que é uma experiência de tal maneira poderosa que pode mudar uma pessoa. Que as terras de África vistas do céu são demasiado belas para o olhar humano e, portanto, algumas pessoas ficam loucas. Literalmente loucas por serem incapazes de esquecer a experiência.»
«O Don era louco?»
«De certa maneira, era. Só um louco pagava a outro louco para lhe construir balões e depois os mandar para o fundo das águas do Mediterrâneo. Mas o Don era um louco bondoso, ou coisa que o valha; isto, claro está, se houver loucos malvados e loucos bondosos, se a loucura não estiver para além destas coisas. Talvez o Don tivesse passado o resto da vida a tentar recuperar aquele sentimento que vivera na infância; aquele momento perfeito vivido dentro de um balão. Talvez o facto de saber que nunca tornaria a voar num – não com aquele peso, ele que não cabia em parte nenhuma, que tivera de ajustar todas as coisas na sua vida ao seu tamanho... Ele, que tinha de comprar dois lugares nos aviões e compartimentos inteiros nos comboios. Ele nunca mais se atreveria a meter-se num balão, mas precisava de os ver partir incessantemente.»
«Daí a necessidade de ter o Bosco por aqui.»
Elsa sorriu, mas logo abandonou o sorriso.
«A história do Andrés Bosco é muito anterior a Sabaudia», explicou. «Eu nunca a compreendi completamente porque tudo o que fui ouvindo foram rumores por parte de amigos do Don – ou inimigos, se calhar era melhor chamar-lhes assim –, que disseram toda a espécie de maldades sobre a relação entre os dois.»
«Que espécie de maldades?»
«Tudo. Desde uma suposta relação homossexual a tramas elaboradas sobre a verdadeira actividade do Bosco, que, ouvi alguns dizerem, era um mercenário às ordens do Don em países do Médio Oriente.»
«Mercenário? Mas porquê?»
«Não sei. Pura especulação – algumas pessoas estão convencidas de que o Don usava o cinema como fachada para encobrir outros negócios mais lucrativos: tráfico de armas, transporte de droga, derrube de governos de pequenos países… Enfim, ouvi de tudo, até rumores sobre pedofilia. No meio disto tudo, a única ponta de fundamento era a ligação do Bosco ao Médio Oriente.»
«Andou por lá?»
«Durante muitos anos», disse Elsa. E, de súbito, a fotografia que estava dentro do armário, na qual Don aparecia ao lado de um tipo muito alto, muito jovem e muito sorridente, de cabelo louro desordenado, vestido como um soldado, naquilo que parecia ser um movimentado aeroporto, surgiu diante dos meus olhos. Aquele tipo era Bosco, havia muito tempo, numa cidade distante e num mundo ainda mais distante e, enquanto Elsa explicava as coisas que sabia, não consegui deixar de, na minha cabeça, tentar sobrepor as duas imagens – de um Bosco no princípio das coisas e de um Bosco no final delas, de um rapaz louro de sorriso inocente e de um homem careca de olhar assassino – e, de alguma maneira, pareciam não poder ser sobrepostas sem a inóspita sensação de uma trágica perda entre uma e a outra.
«Foi por volta de 1980», continuou Elsa. «O Don e o Bosco eram estudantes em Barcelona, na Escola de Artes. Sim, o Don não foi sempre um tubarão do cinema; aos vinte anos queria ser artista e, com o pai a pagar-lhe os estudos na Europa e a avançar-lhe uma generosa mesada, era natural que isso atraísse tipos como o Bosco, que eram pobres que nem rafeiros. Desconheço, por outro lado, o que terá o Don visto no Bosco nesses tempos; nunca lhe perguntei. O que sei é que o Bosco ficou doente a certa altura.»
«Um tumor cerebral», adiantei.
Elsa olhou-me e franziu o sobrolho; depois acendeu outro cigarro. A tarde continuava do lado de fora da janela, o chilrear intermitente dos pássaros entrecortado pelo mergulhar dos corpos no lago.
«Um tumor cerebral», repetiu ela, dando uma longa passa no cigarro. «E foi o Don quem lhe custeou as despesas. Da operação num hospital de primeira, da recuperação, dos tempos difíceis que se seguiram. Enfim, de tudo. Não me perguntes qual era a história do Bosco antes de o Don aparecer na vida dele; julgo que ninguém a sabe. Mas a verdade é que, se o Don acreditava numa pessoa – se julgava que essa pessoa estava, de alguma maneira, destinada à grandeza –, fazia todas estas coisas por ela sem nunca olhar para trás. O problema foi o que veio depois. O Don disse-me uma vez que, depois da doença, o Bosco nunca mais foi a mesma pessoa; ou, se quiseres, depois da operação que lhe salvou a vida. Disse-me que, subitamente, o homem desenvolveu uma segunda personalidade, que correu paralela à primeira durante algum tempo, revelando-se em episódios esporádicos para, mais tarde, tomar conta dele por completo.»
«Uma espécie de esquizofrenia.»
«Talvez», replicou Elsa. «O que importa é que esta segunda personalidade era conspirativa, paranóica e mitómana. Foram as palavras que o Don usou, se bem me recordo.» Fez uma pausa para fumar; pareceu esquecer-se do que dizia durante um momento e depois retomou: «De tal maneira que, quando o Bosco decidiu desistir da faculdade e juntar-se a um partido radical da Catalunha, Don não interferiu; como também não interferiu quando decidiu partir para o Afeganistão durante a invasão dos soviéticos − sem que nunca antes tivesse mostrado qualquer interesse por aquela guerra ou por qualquer outra. Deixou a Catalunha e, aparentemente, andou por lá durante algum tempo. Não me perguntes o que andou a fazer, não tenho ideia nenhuma. Sei que, nessa altura, estava convencido das ideias comunistas, mas sei que também andou imiscuído nos grupos rebeldes que lutavam contra o governo.»
«Os muhajidin?»
«Sim. Teve de andar clandestino e acabou por fugir para o Paquistão. Mais tarde foi viver para o Líbano, onde assistiu à invasão dos israelitas e ao bombardeamento de Beirute. Teve de fugir outra vez e acabou por se instalar na Turquia mas, mais tarde, aventurou-se novamente no Irão, no Iraque, em Israel… onde quer que houvesse um conflito. Aparentemente, o Don era a única pessoa que ele contactava com alguma regularidade, normalmente para pedir algum dinheiro, nunca demasiado, e sempre com uma justificação plausível, uma situação de desespero radical.»
«E o Don acedia?»
«Que eu saiba, sim.» Elsa apagou o cigarro. «No final de 1980 o Don já começara a produzir cinema e enriqueceu rapidamente; tinha dinheiro de sobra e um estatuto invejável na comunidade. Mudou-se para a Califórnia e, de repente, não teve notícias do Bosco durante uns anos, embora o tivesse informado da sua nova morada. É provável que o tenha dado por morto ou desaparecido; afinal, há um limite para a quantidade de sarilhos em que uma pessoa se pode meter. E, depois, em 1992 ou 1993, já não tenho a certeza, numa viagem de negócios a Barcelona, voltou a encontrá-lo por mero acaso.» Elsa sorriu com alguma saudade no olhar. «Lembro-me sempre desta história porque é muito parecida com a minha. O Don estava a descer as Ramblas uma tarde, algures perto do Bairro Gótico, onde costumava viver nos tempos de estudante, quando viu um homem enorme e careca, mal vestido, sentado num banco com um cartaz de papelão ao colo. O cartaz dizia: Jo visc aquí. Eu vivo aqui, em catalão. Primeiro o Don não o reconheceu, mas a frase intrigou-o: desde que aterrara em Barcelona que aquelas palavras lhe iam aparecendo à frente um pouco por toda a parte, na parede de um prédio, escritas na casa de banho de um bar, num cartaz colado a um poste de electricidade. Aproximou-se e começou a falar com o homem careca; ao fim de alguns momentos percebeu que estava a falar com o Andrés Bosco e este percebeu que aquele era o Don Metzger; o primeiro perdera o cabelo loiro e a inocência e o segundo engordara trinta quilos e usava um fato italiano. Ambos estavam irreconhecíveis.»
«Deve ter sido um encontro memorável.»
Elsa encolheu os ombros. «Foi o encontro que foi: dois amigos que não se vêem há tanto tempo que já nem se reconhecem. Embora tudo esteja diferente, no fundo tudo permanece igual − um é rico, o outro é pobre.»
«O que é que aconteceu então?»
«Aquilo que eu nunca compreendi: o Don tirou-o da rua e trouxe-o para Itália. Ao que consta, o Bosco regressara do Médio Oriente no princípio dos anos noventa e começara a viver, primeiro em casas ocupadas, mais tarde onde quer que o deixassem dormir. Vivia nos parques públicos e em bancos das Ramblas e iniciara o seu próprio movimento de apropriação dos espaços: Jo visc aqui, uma coisa que aparentemente andou na berra durante uns tempos, tão na berra que já nem a Polícia o incomodava. Uma vez mais, o Don deve ter visto alguma coisa nele que mais ninguém foi capaz de ver – ou, então, sentiu pena do pobre diabo, vá-se lá saber − e convenceu-o a mudar-se para Sabaudia. Deve ter-lhe prometido espaço de sobra para o catalão se apropriar dele, ou coisa que o valha.»
Elsa caiu em silêncio; lá fora, a tarde começava a esmorecer.
«E desde então vive aqui.»
«E desde então vive aqui e constrói balões para o Don.»
Ficámos calados durante um longo minuto a escutar os sons do Verão, da tarde que terminava. Depois perguntei:
«Por que é que mentiste a respeito da Nina?»
«Menti como?»
«Quando o Bosco lhe perguntou sobre a noite do homicídio, tu disseste que a Nina tinha passado a noite contigo.»
Elsa olhou-me com curiosidade.
«Como é que sabes que é mentira?»
Encolhi os ombros.
«Sei, simplesmente. Vi nos olhos dela que estava a esconder alguma coisa. Não sei o quê, mas também sei que preferiu ficar em silêncio a mentir. Foi isso que ela fez com o Bosco: recusou-se a responder para não ter de mentir.»
«Ao contrário de mim», disse Elsa, sorrindo.
«Tu és actriz. Pagam-te para mentires.»
«A ti pagam-te para fazeres perguntas?»
«É preciso haver algum sentido nisto tudo. Como tu dizias há bocado: é preciso encontrar razões para o mal.»
«Eu não disse que era preciso encontrar razões, limitei-me a dizer que as procuramos. E se as razões não existirem e o mal for arbitrário?»
«Então vale a pena desistirmos e matarmo-nos antes que o Bosco o faça.»
Elsa fez uma pausa.
«Estou a ver», disse ela.
«Ainda não me respondeste.»
«Não?»
«Porque é que mentiste?»
Elsa desviou o olhar para o azul que entrava pela janela.
«Porque nessa noite a Nina fez coisas de que certamente não se orgulha. O McGill estava ali e eu senti que tinha de lhe oferecer uma saída.»
«Que género de coisas?»
Elsa olhou para os pés descalços que balançavam da beira da cama.
«Escuta», pediu, num tom doce. «Tens de compreender que não é possível saber tudo. Existem certos momentos que, se não os vivermos, são impossíveis de resgatar através dos outros.» Fez um compasso de espera e olhou para a estatueta dourada deitada na cama. «É complicado falar dessa noite, sobretudo depois da chegada do Don. Assumiu os contornos de um sonho demasiado pesado; quem sabe um pesadelo. Houve muito álcool e as coisas tornaram-se difusas. O Vincenzo tinha uns comprimidos e convenceu-me a tomar um. Perdi a noção do tempo e do espaço. Há longos períodos de tempo de que me esqueci. Prefiro pensar nessa noite como um fragmento da minha imaginação, e não como uma coisa real.»
«Que comprimidos eram esses?»
«Não sei. Eu estava bêbeda e, àquela hora, teria tomado qualquer coisa.»
Depois ocorreu-me.
«Os comprimidos de Susanna.»
«O quê?»
«A Susanna deu-me uns comprimidos para as dores nessa mesma noite. Disse que eram do patrão e vinham num frasco sem rótulo. O frasco deve ter ficado na cozinha.»
«Ah.» Elsa riu-se. «Eram a codeína do Don. Doses cavalares.»
«Eu também os tomei e apaguei completamente.»
«Se não beberes muito álcool, põem-te a dormir. Se beberes, é como se andasses na superfície da Lua. Continuas acordado, mas é como se não estivesses cá; começas a levitar, partes para outra. Desapareces, ficando no mesmo sítio.»
«O Vincenzo é um idiota», disse eu, abanando a cabeça.
«Talvez não seja assim tão idiota como julgas.»
«Porquê?»
«Procuramos razões, lembras-te? Razões para o mal. Um idiota não tem razões e, portanto, é geralmente considerado inocente.»
«Não percebo.»
Do exterior chegou-nos o som de um corpo a mergulhar nas águas e o chapinhar de braços; alguém ainda nadava no lago.
«Talvez não queiras perceber», disse Elsa, levantando-se da cama.
«Estás a acusar o Vincenzo?»
Elsa sorriu e estendeu a mão para me ajudar a levantar.
«Quem sou eu para dizer tal coisa? A mim só me pagam para representar.»
Dei a mão a Elsa, pus a bengala no chão e saímos do quarto.
XXIIO dia chegou lentamente ao fim, mas a longa conversa com Elsa continuou a ressoar na minha cabeça. Quando se fez noite, o tempo mudou outra vez, abruptamente, de um céu limpo para um céu carregado de nuvens, um calor infernal subindo da terra e trazendo hordas de mosquitos, atraídos pelas luzes, para o interior da casa. Os antigos pântanos de Sabaudia levantaram as suas brumas para preencher um vazio feito de perguntas sem resposta e, a cada hora que passava, era mais evidente que Susanna e Alipio não regressariam; a cada hora que passava, tornava-se mais premente aplacar a ira de Bosco que, no bosque, aguardava pelos testemunhos que lhe prometera; o tempo de espera estava a chegar ao fim.
Vincenzo preparou outro tacho de spaghetti com tomate. Jantámos todos perto do lago, iluminados por um pequeno candeeiro a petróleo; até Olivia foi obrigada a deixar o quarto no primeiro andar, expulsa do seu esconderijo pelo calor e a humidade; os insectos, vorazes, irritantes, atacavam em toda a parte sem piedade.
Comíamos sentados na relva.
«Está na altura de tomarmos uma decisão», disse eu, interrompendo o silêncio. Vincenzo e Nina pararam de comer e olharam-me.
«Que género de decisão?», perguntou Nina.
«Se a ajuda viesse, a esta hora já teria chegado.»
Olhei para Pym e tentei avaliar a sua reacção; parecia concentrado no prato de massa. Um enorme mosquito voava à frente dos meus olhos.
«Ainda só passaram uns dias», disse Vincenzo.
«Passou quase uma semana», respondi. «É insensato continuarmos a acreditar que Alipio e Susanna vão fazer alguma coisa para nos tirar daqui. É ingénuo pensarmos, por esta altura, que vão falar com alguém sobre a nossa situação.»
Roger riu-se enquanto engolia uma garfada de esparguete; o molho de tomate escorreu-lhe pelo queixo.
«Eles não voltam e nós vamos morrer», disse.
«E se calasses a boca?», ameaçou Nina.
«E se calasses tu a boca?», respondeu Stella.
Pym começou a falar baixinho. Todos olhámos na sua direcção.
«Eles não voltam», dizia, entre dentes, segurando o prato de esparguete por comer. «Eles não voltam e nós vamos morrer.»
Elsa levantou-se e foi sentar-se ao lado de Pym. Tentou sossegá-lo, mas ele estava para além da possibilidade de conforto; via-se nos seus olhos que fumara marijuana. Ergueu-se de prato na mão e, prosseguindo a ladainha, começou a correr pela relva em círculos atabalhoados. Fios de esparguete iam caindo do prato.
«Eles não voltam e nós morremos. Eles não voltam e nós morremos.»
Vincenzo e Nina entreolharam-se; Roger ria-se, divertido com a situação. Elsa ia levantar-se quando Pym passou perto de Roger e este lhe segurou a perna e disse, numa voz tenebrosa:
«O Bosco vem aí buscar-te, princesa.»
O prato caiu sobre a relva ao mesmo tempo que Pym caiu sobre Roger, esmurrando-o duas vezes no nariz que logo explodiu sangue. Nenhum de nós reagiu a tempo: Vincenzo só se ergueu quando Roger (que segurara o nariz durante um momento como se estivesse prestes a cair) já se lançara sobre Pym, atirando-o ao chão e começando a bater-lhe. Stella desatou a gritar; o italiano tentou separar os dois homens que rebolavam sobre a relva e, depois, acabou por ser arrastado para o meio da bulha. Entretanto, Pym, com a destreza própria de um tipo mais jovem e mais magro, conseguiu escapar à fúria de Roger que, de cabelo despenteado e o rosto inundado de raiva e de sangue, foi impedido por Vincenzo de se levantar e correr atrás do outro.
Foi Elsa quem correu atrás dele.
«Pym», gritou.
Pym estava como um louco, atravessando o relvado na direcção da curva do lago sem olhar para trás, gritando por ajuda com todas as forças que tinha; a sua voz aguda ecoava no silêncio da noite e nas águas mornas do lago; era impossível dizer a quem, na cabeça de Pym, poderiam chegar os seus gritos desesperados de socorro. Nina começou a correr atrás de Elsa; quando também eu comecei a coxear no encalço de Pym – Olivia ficou tranquilamente sentada sobre a relva e Stella preocupava-se com o nariz ensanguentado de Roger –, já ele chegara à estrada de terra que conduzia ao bosque. Corria a uma velocidade estonteante, agitando os braços como se fosse um pinguim a escorregar nas superfícies geladas da Antárctida, a sua figura ridícula transformando-se num vulto invertebrado que partia em direcção a uma noite ainda mais profunda.
O tiro aconteceu quando Nina já tinha alcançado Elsa, que continuava a chamar por Pym. Foi apenas um tiro – certeiro, seco, remetendo todas as vozes ao silêncio – e, depois, como se viesse de muito longe, o breve som de um corpo a cair sobre a estrada. Todos olhámos em sintonia para o bosque à procura da origem do tiro. Ficámos imóveis, em silêncio, durante trinta segundos; o bosque era escuridão. Troquei um olhar com Vincenzo, que, subitamente, começou a correr na direcção de Elsa enquanto esta gritava, novamente:
«Pym!»
Mas desta vez com verdadeiro desespero.
O corpo de Pym ficou toda a noite ao relento. Deitado sobre a estrada de terra, a bala entrara-lhe por uma têmpora e saíra abaixo da orelha esquerda; um breve resquício de sangue que jorrara da entrada do projéctil marcava o momento da sua morte.
Vincenzo teve de ir buscar Elsa junto do cadáver e arrastá-la de regresso à casa. Elsa gritou, chorou e insultou Vincenzo, mas o italiano estava certo: era demasiado perigoso aproximarem-se da orla do bosque durante a noite, mesmo que fosse para resgatar um morto. Bosco encontrava-se certamente escondido entre as árvores, furtivo, sorrateiro, muito mais atento do que o julgávamos, escrutinando todos os nossos movimentos. Se houvesse dúvidas de que nos tinha na palma da mão, estas haviam-se dissipado por completo. Pym tentara fugir e pagara o preço da ousadia; quem sabe o que aconteceria se, a meio da noite, outro de nós aparecesse por ali para levar o corpo?
Na casa ninguém dormiu. Primeiro, Elsa teve uma discussão acesa com Roger, culpando-o da morte de Pym; as acusações voaram de um e de outro lado como flechas. Roger defendeu-se culpando Elsa de proteger Pym em demasia, com as consequências que todos haviam testemunhado. A certa altura, Stella começou a chorar descontroladamente, o corpo agitando-se como uma máquina de lavar em centrifugação, as lágrimas caindo-lhe, incontroláveis, pelo rosto; Roger e Elsa interromperam a discussão para que ele pudesse tranquilizar a mulher. Algumas horas depois, quando tínhamos caído num pesado silêncio pontuado por copos de vinho para sossegar o medo – o cadáver de Pym, lá fora, tão só perante a brutalidade da noite −, Olivia, que assistia, impassível, a mais uma crise, anunciou que se ia deitar. Nina, que já bebera muito, impediu-a de deixar a sala e começou a exigir-lhe uma explicação para aquele comportamento. Olivia tornou a sentar-se no sofá, cruzando as pernas com tranquilidade e olhando para Nina sem a mínima consternação.
«Que espécie de monstro és tu?», perguntou Nina.
«Pergunto-te exactamente o mesmo», respondeu Olivia.
Eu estava sentado no degrau que conduzia à sala do aquário, com a bengala entre os joelhos. Elsa estava sentada ao meu lado; Roger e Stella ocupavam o sofá grande e Vincenzo encostara-se à parede, de frente para a imagem de Pasolini.
Nina hesitou.
«O quê?»
«Foste tu quem se esqueceu do John McGill a partir do momento em que ele apareceu morto», explicou Olivia.
Nina atirou o copo de vinho contra a parede; este estilhaçou-se e o vinho começou a escorrer para o chão. Vincenzo desviara-se para fugir dos cacos que tinham voado em todas as direcções.
«Eu nunca me esqueci dele», gritou Nina. «Tu não fazes ideia do que dizes.»
«Estou a dizer o que vejo. E o que vejo é que ficaste com um sem sequer teres feito o luto do outro», continuou Olivia no mesmo tom monocórdico. «Também sei que já tinhas estado com o Vincenzo antes de o McGill morrer.»
Vincenzo olhava para o chão.
«Esta discussão é completamente inútil», disse o italiano.
«Inútil?», zombou Olivia. «Tão inútil como a tua experiência de Sabaudia está a ser?»
«Qual experiência?», perguntou Nina.
«Aquela de que o Vincenzo me falou tantas vezes quando estávamos em Budapeste. Mal conseguia dormir com tanta excitação. Estava sempre a dizer que queria agitar as águas; que queria agitar as águas e mergulhar nesse rio para ver o que acontecia.» Olivia olhou para Vincenzo, desta feita com maldade. «Pois aqui está o teu rio. Aqui estão as tuas águas agitadas.»
«De que raio está ela a falar?», perguntou Roger. Parecia confuso e segurava uma garrafa de vinho pelo gargalo.
Vincenzo levantou-se, inquieto.
«Tu não estás boa da cabeça», disse Vincenzo. «Tu precisas de ajuda, Olivia. A sério que precisas.»
«Deixa-a terminar», disse Elsa. «Quero ouvir isto.»
Olivia esboçou um ligeiro sorriso – alguma coisa entre o escárnio e o momento de uma humilhação. Parecia, subitamente, uma mulher adulta, muito mais velha do que a sua idade, como se houvesse envelhecido vários anos em duas semanas.
«Tudo isto é material de trabalho para o Vincenzo», disse Olivia. «Todos vocês. Todas as agonias, todas as mortes. Ele planeou escrever um livro sobre tudo o que aconteceria em Sabaudia; sobre tudo o que está a acontecer neste preciso momento.»
Elsa olhou para Vincenzo.
«Isto é mentira, não é?»
«Ela perdeu o juízo», disse Vincenzo, de rosto subitamente rubro.
«É completamente verdadeiro», continuou Olivia. «Aquilo que para vocês é um pesadelo é, para ele, motivo de enorme curiosidade. Como se estivesse a viver o romance que nunca seria capaz de imaginar. No fundo, tudo correu de acordo com os planos do Vincenzo a partir do momento em que chegámos a Sabaudia. Era uma aposta arriscada, é certo, mas a morte do Don Metzger foi um excelente ponto de partida para o livro e, agora, aposto que mal pode esperar por ver aonde isto vai parar.»
Roger pousou a garrafa sobre a mesa com estrépito e levantou-se; olhou para Vincenzo.
«Do que é que ela está a falar? Um livro?»
Olivia adiantou-se.
«Pelo menos está a tomar notas. Se quiserem podem encontrá-las no quarto dele, num pequeno caderno preto.»
Roger avançou para as escadas. Vincenzo tentou ir atrás dele, mas Roger voltou-se e disse-lhe:
«Se vieres atrás de mim, juro que acabo contigo.»
Apesar da baixa estatura do outro, Vincenzo recuou. Ouvimos, em silêncio, os passos de Roger subindo as escadas, o abrir da porta do quarto onde Vincenzo e Nina dormiam, depois coisas a caírem ao chão, o roçagar de uma mala arrastada pelo soalho, outros ruídos impossíveis de decifrar. Após alguns minutos de silêncio, Roger regressou à sala com um bloco preto na mão; no seu rosto existia uma fúria silenciosa. Aproximou-se, atirou o bloco para cima da mesa, cuspiu para o chão – embora estivéssemos dentro de casa − e foi sentar-se outra vez ao lado de Stella.
«É verdade. Ele está a escrever sobre esta merda toda.»
Elsa avançou para a mesa e pegou no bloco; abriu-o, passou brevemente os olhos pelas folhas e depois passou-mo. A sala permanecia em expectante silêncio. No interior do bloco havia várias páginas rabiscadas a tinta preta e alguns desenhos. Um dos desenhos era uma planta tosca da casa, com todas as divisões assinaladas e um esboço do lago e do bosque. Noutras páginas existiam, por exemplo, entradas descritivas para cada uma das pessoas que ali estavam ou tinham estado; apontamentos, numa caligrafia difícil, que pareciam definir os pontos principais de um enredo; as palavras ‘Budapeste’ e ‘Sabaudia’ apareciam com frequência; numa outra página existia uma série de títulos ensaiados entre aspas: um deles era, simplesmente, «O Bom Inverno». Olhei para Vincenzo, que se encostara à parede, de braços cruzados, numa atitude defensiva.
«Muito bem», disse ele. «Eu admito que tinha planeado escrever um livro. E depois? Um escritor vai buscar o seu material aonde pode. Não compreendo qual é o problema.»
«O problema é este», disse Roger furioso, subindo o tom de voz. «Se tu estás a planear escrever um livro, então tudo isto que está acontecer me parece terrivelmente conveniente. Um enredo do caraças, atrevo-me a dizer. Ou julgas que somos idiotas?»
«Lá por estar a escrever um livro, não quer dizer que seja responsável por as coisas acontecerem», argumentou Vincenzo.
Roger ignorou-o; apontava para Olivia: «Ela própria disse que tu tinhas planeado escrever um livro sobre tudo o que se passasse em Sabaudia. Como é que tu sabias que o que iria acontecer aqui daria uma história? Quem é que planeia escrever um livro sobre seja que merda for, a menos que tenha a certeza de que vai haver, no mínimo, um ou outro contratempo para entreter o leitor?»
«Não sejas ridículo», acusou Vincenzo.
«Estou errado?», perguntou Roger, exaltado. «Então dá-me uma explicação para isto, foda-se. Explica-me como é que tudo aconteceu, como ela disse, de acordo com os teus planos; explica-me que planos eram esses; explica-me que outros contratempos teremos de enfrentar a seguir e quem mais vai ter de bater a bota para que o teu livro acabe como gostarias. Ou se calhar é pior ainda», escarneceu. «Se calhar tu já sabes o final e até já o escreveste. Se calhar tu sabes mais do que todos nós, sabes praticamente tudo e, nesse caso, gostava que partilhasses connosco essa tua sabedoria.»
«Não há nada para partilhar», disse Vincenzo.
Roger deu um longo gole na garrafa de vinho e apontou para o caderno que eu segurava.
«Depois de ver aquilo, como é que eu sei se não foste tu quem matou o Don Metzger? Quem é que me diz que tu não planeaste isto tudo só para escreveres a merda de um livro?»
«Como é que eu sei se não o mataste tu?», contestou Vincenzo.
«Dá-me uma única razão pela qual eu quisesse matar o Don.»
«Toda a gente sabe que ele te tratava como um criado.»
«És mesmo um filho-da-puta», vociferou Roger.
Os dois fitaram-se durante um momento. Roger parecia prestes a atirar-se a Vincenzo mas, depois, Stella abraçou o marido e, de lágrimas nos olhos, sussurrou-lhe ao ouvido:
«Ele não vale isso», disse-lhe.
Roger resistiu durante uns segundos, mas depois deixou que Stella encostasse a cabeça ao seu ombro. Nina pousara os olhos no chão e cruzara os braços. Tinha-se levantado um vento agreste que uivava por entre as frinchas das portas e das janelas. Olhei para Olivia, que permanecia sentada, de pernas cruzadas, o esboço de um sorriso no rosto; um silêncio desolado caiu sobre a sala.
«Não queria que se zangassem por minha causa», disse finalmente Olivia, com horrorosa ironia. «Parece-me apenas que chegou a altura de se começarem a perguntar em quem podem confiar.»
Elsa disse, numa voz magoada:
«Só nos temos uns aos outros. Há um assassino naquele bosque.»
«Provavelmente há um assassino aqui dentro», disse Roger.
«Até prova em contrário, a única ameaça está lá fora», retorquiu Elsa. «Há um cadáver caído no meio da estrada. Neste momento queremos sair daqui o mais depressa possível. Apenas isso. Lidamos com o resto mais tarde.»
«Se é que isso é verdade», contestou Olivia. «Se é que queremos mesmo sair daqui.»
«Parece-me evidente», disse Elsa.
«Parece-me tudo menos evidente», corrigiu Olivia. «Se pensarem bem no assunto, talvez venham a descobrir que cada um de vocês tem razões para não querer regressar à vida que conhecia antes de Sabaudia.»
Havia uma mistura de provocação e de certeza no rosto de Olivia. O seu repto pairou durante longos momentos, bem como o fantasma de Pym; a noite transformava-se em madrugada, o vento oriundo do bosque entrando pela brecha na parede de vidro e viajando pela casa, trazendo o aroma dos ciprestes e do lago. As palavras de Olivia ressoaram em nós e, depois, a cruel resposta a essas palavras. A perversidade de Vincenzo já havia sido exposta. Mas também a Roger certamente lhe ocorreu como seria a vida depois de Sabaudia, a sua vida de realizador fracassado que Metzger permitira, por comiseração, ter próxima da sua; ou a Nina, que assistira à morte de um amante e logo se entregara nos braços de outro, atraiçoando um passado que regressaria vezes sem conta para lhe assombrar o resto dos dias; ou a mim, que era um inválido por teimosia, que estivera pronto para me retirar prematuramente do mundo e apontara as baterias do cepticismo à realidade e descobria agora – a braços com o horror – que o cepticismo era a armadura dos temerosos e que ainda era possível desejar, temer, amar, sofrer e querer a vida; ou a Elsa, ou até mesmo a Stella; também elas se devem ter perguntado, naquele momento, o estado em que nos acharíamos para o mundo se o nosso cerco chegasse ao fim e sobrevivêssemos. Seria preferível a morte? Seria preferível aguardar pelo instante em que, no escuro, a bala certeira de Bosco nos remeteria ao derradeiro destino de todos aqueles que estão vivos?
Interrompi o silêncio: «Há uma coisa que ficou por contar.» Os olhares voltaram-se na minha direcção. «As razões de cada um para querer sobreviver a isto são privadas. Mas seria injusto que não conhecessem todos os caminhos.»
Vincenzo sentou-se no chão encostado à parede. Nina acendera um cigarro e observava a primeira luz no horizonte, para lá do lago, para lá do bosque, para lá do corpo de Pym que permanecia sobre a estrada poeirenta. Falei-lhes então do acordo que fizera com Bosco quando me deslocara à clareira na companhia de Alipio. Falei com cuidado, tentando medir as palavras, pesando-as, uma a uma, como se fossem pedras atiradas à água e procurasse formar círculos de reverberação tão pequenos quanto possível. Quando terminei houve um compasso de espera durante o qual os presentes se entreolharam.
«Que raio de acordo foi esse?», perguntou-me Roger.
«Foi o acordo que me ocorreu na altura. Foi a única coisa em que consegui pensar para ganharmos tempo. Agora deixámos de ter tempo. O Bosco está a vigiar a orla do bosque e, se eu não lhe apresentar os depoimentos que prometi, tenho medo de que ele comece a carregar no gatilho a torto e a direito.»
«Ou mesmo só a direito», disse Roger.
«Porque é que não soubemos disso mais cedo?», perguntou Stella. O seu rosto, antes maquilhado, era agora uma confusão de cores desbotadas pelo choro.
«Porque era desnecessário até termos a certeza de que Alipio e Susanna não regressariam.»
«E porque o teu acordo implica um sacrifício», concluiu Nina.
Stella olhou-a. «Um sacrifício?»
«Um de nós vai ter de pagar pela morte do Don Metzger, mesmo que nenhum de nós seja o culpado. É isso que está implícito no acordo. Ele lê os depoimentos e escolhe alguém para sacrificar. É o que tem sido evidente desde o princípio, não percebes? O homem não vai desistir enquanto não encontrar um bode expiatório.»
Vincenzo olhava com despeito para Stella.
«Abre os olhos», disse-lhe. «Não podes ser assim tão estúpida.»
Stella parecia aterrorizada.
«Tem cuidado com a língua», ameaçou Roger. «Quem sabe se não acabas por ser tu a nossa moeda de troca.»
«Ou tu», respondeu Vincenzo.
«Não temos de escolher ninguém», interrompi. «Cada um de nós escreve o seu depoimento sobre a noite em que o Metzger morreu e, depois, eu entrego todos os depoimentos ao Bosco. Se formos honestos, acredito que não haverá qualquer sacrifício. O homem pode ser louco, mas mesmo os loucos laboram segundo uma lógica. Se o conseguirmos convencer de que nenhum de nós é culpado pela morte do Don, talvez ele nos deixe partir.»
«Nesta altura parece-me um bocado ingénuo», disse Vincenzo.
«Uma verdadeira utopia», acrescentou Nina.
«Talvez seja. Mas, a menos que tenham um plano fabuloso na manga, é a nossa melhor hipótese», contrapus. «Ou, se querem mesmo saber a verdade, a nossa única hipótese. Se não nos conseguir a liberdade, pelo menos consegue-nos algum tempo para decidirmos o que fazer a seguir. O Bosco vai ter de ler os depoimentos e obrigamo-lo a pensar no assunto.»
«São só palavras», disse Roger.
«As palavras têm o seu poder sobre as pessoas», insisti. «Se forem as palavras certas, podem mover montanhas.»
«Ou transformar a água em vinho», ironizou Vincenzo.
«És tu quem lhe vai levar os depoimentos?», perguntou Nina.
«Fui eu quem lhos prometi.»
«Tudo bem. Cá por mim, vejo uma vantagem óbvia nisto», disse Roger.
«Qual?», perguntou Elsa.
«Quando ele for à clareira entregar os depoimentos; enquanto lá estiver, o Bosco também estará, e é uma janela de oportunidade para os outros. Afinal, o gajo não pode existir em dois lugares ao mesmo tempo.»
Houve um novo silêncio na sala. A manhã acabara de nascer e do bosque chegava-nos o chilrear dos pássaros. Ninguém se olhava; um longo cansaço inundava-me o corpo como uma onda pesada e vagarosa. A perna latejava-me.
«Isso é tremendamente injusto e cruel», disse Elsa.
«A vida é injusta e cruel», argumentou Roger.
«Se acreditas mesmo nisso, então sacrifica-te tu», respondeu Elsa. «Leva os depoimentos ao Bosco e distrai-o enquanto nós fugimos e te abandonamos no bosque.»
«Não estás a perceber o problema», disse Roger, apontando para mim. «Ele é o único que não está em condições de fugir. Tem aquela maldita perna coxa. Tem a bengala. Mesmo que qualquer outro de nós levasse os depoimentos ao Bosco, ele ficaria sempre para trás na eventualidade de uma fuga.»
«Então teríamos dois sacrifícios», disse Vincenzo. «O dele, que não pode correr, e o do pobre coitado que fosse a manobra de distracção.»
Olhei para Vincenzo, mas ele não me devolveu o olhar. Nina tornou a observar o bosque e acendeu outro cigarro. Olivia permanecia sentada, a cabeça repousada num punho fechado, com indiferença ou zombaria no rosto. Elsa esfregou os olhos com as costas da mão.
«Isto é um delírio provocado pela insónia. Só poder ser», disse Elsa. «Ninguém vai ser sacrificado, Roger. Ninguém vai ficar para trás. Não somos animais.»
«Diz isso ao nosso amigo do bosque», respondeu Roger. «Diz isso ao rapaz que está ali deitado na terra e que foi abatido como gado.»
«És mesmo um filho-da-puta», murmurou Elsa.
«Eu não vou morrer aqui», disse Roger. «Se querem armar-se em heróis, estejam à vontade. É o vosso funeral. Mas eu não vou morrer aqui.»
Peguei na bengala e, pousando-a no chão, o braço a tremer de cansaço, pus-me de pé. Coxeei até junto de Vincenzo e entreguei-lhe o caderno preto; este recebeu-o com a vergonha estampada no rosto.
«Cada um fará aquilo que achar melhor», sugeri. «Entretanto, temos de ir buscar o corpo de Pym. Depois é preciso escrever os depoimentos.»
«Que tal se dormíssemos primeiro?», sugeriu Roger.
«E o Pym?», perguntou Elsa. «Não podemos deixá-lo ali.»
«Mais umas horas não o vão matar», respondeu Roger.
XXIII
As revelações da noite tiveram o seu peso nos que restavam. Se, por um lado, foi um alívio ter exposto o meu acordo com Bosco, por outro, as palavras de Roger tinham trazido maior inquietação. Era agora evidente que as minhas tentativas racionais de encontrar uma saída iriam provocar consequências desastrosas e começava a arrepender-me de continuar a resistir ao apelo natural da sobrevivência. O acordo tinha sido um ataque de soberba e de desespero; uma confiança desmesurada nas minhas capacidades de persuasão e uma tentativa de adiar o que agora parecia inevitável; e, portanto, sentia a espada de Dâmocles sobre a cabeça − pronta a sacrificar o mais arrogante dos cordeiros do rebanho. O facto de Bosco me ter oferecido um voto de confiança tornara-me, paradoxalmente, o principal candidato a ficar para trás e, por aquela altura, era impossível adivinhar até que ponto a sugestão de Roger faria sentido para os outros cinco. Se fizesse, eu tinha os dias contados, pois Bosco achar-me-ia responsável pela fuga colectiva; se, pelo contrário, a decisão de tentar a fuga aproveitando a distracção do catalão na entrega dos depoimentos não fosse avante, estaria a entregar nas mãos do assassino do bosque a escolha de um sacrificado. Mesmo que os testemunhos fossem verdadeiros; mesmo que ilibassem cada um e todos; mesmo assim, não havia maneira de provar a sua autenticidade ou, o que era mais importante, convencer Bosco dessa autenticidade. Se, por hipótese, nenhum dos presentes fosse culpado do assassinato de Don Metzger, isso só serviria para suscitar ainda mais incógnitas: quem então o fizera? Obviamente, nem eu próprio acreditava na clemência de Bosco; depois de tudo o que acontecera, seria ridículo esperar que o homem fosse aplacado pelo «poder das palavras» e nos deixasse partir. O «poder das palavras» era uma coisa que só tinha sucesso nos romances – ou em alguns romances − e, embora Vincenzo estivesse a preparar um romance, a situação que vivíamos ultrapassava em larga medida as páginas de um livro.
Foi a última vez que dormimos na casa de Don Metzger, uma vez que a noite seguinte foi de vigília colectiva. Foi a última vez, embora em pleno dia, que nos remetemos à solidão dos nossos quartos, vagueando entre o sono e o sonho numa espécie de período de reflexão que adiava temporariamente o pesado malhete de um julgamento. Nessas horas, embora o tivesse esperado, o corpo que me dava prazer não apareceu. Talvez porque dormíssemos durante o dia; talvez porque o sono fosse demasiado breve e ausente do silêncio e da profundidade da noite; talvez porque alguma coisa houvesse terminado no momento em que Pym morrera e nos arrancara ao nosso torpor; é impossível dizer. Despertei passadas algumas horas na terrível angústia de saber que aquele corpo que me visitava não tornaria; tinha sido um fiel amante e desvanecera-se sem deixar rastro. Contudo, minto: deixara um rastro em mim, como o murmúrio da terra depois de uma avalanche, como os fantasmas de todas as coisas que amamos e nos vão sendo levadas, uma a uma, até nada restar senão essa dor que nos acorda a meio da noite e nos faz perguntar pelo seu paradeiro.
Nessa noite sonhei com Bosco e Don Metzger. Foi um sonho bizarro – tão bizarro como o sonho que tivera na noite do homicídio, em que serrava a minha própria perna e a atirava, borda fora, de um balão de ar quente. Neste sonho encontrava-me à janela do quarto e olhava na direcção do lago. Era noite. Lá em baixo, junto do pontão, estava Bosco, a sua careca luzidia resplandecente ao brilho desimpedido da Lua. Segurava um remo na mão direita. Voltou a cabeça para trás e olhou-me, sorrindo; depois desviou novamente a atenção para o lago. Alguma coisa deslizava suavemente sobre as águas. Era uma coisa maciça e redonda, que emergia da superfície como um submarino acabado de subir das profundezas. Reconheci-a. Era Don Metzger que, de barriga para cima, sulcava tranquilamente as águas tépidas de Sabaudia. Também ele sorria; o rosto, pálido e grande como o balão de uma criança, voltado para o céu. Depois Metzger atracou no pontão e Bosco, com um gesto atlético, sentou-se sobre a barriga imensa do homem como se montasse a sela de um cavalo. Começou então a remar, alternando, de um e de outro lado do corpo, o mergulho do remo nas águas. Alegremente deslizaram para o centro do lago, Bosco remando sem esforço e assobiando uma cantilena italiana. Pouco tempo depois foram engolidos por uma súbita e densa bruma que os fez desaparecer de vista. A cantilena continuava quando acordei.
De maneira que, depois de um sono de algumas horas em pleno dia, fomo-nos levantando a meio da tarde e o plano foi sendo posto em marcha. Primeiro, Vincenzo e Roger foram buscar o cadáver de Pym à estrada. Depois de uma noite ao relento, e de meio dia exposto ao sol do Verão, Pym parecia um morto-vivo: tinha os olhos abertos, o buraco da bala escondido pelo sangue seco, a pele de um cinzento mórbido e os membros paralisados pelo rigor mortis. Vincenzo, em tronco nu, tentou cavar uma sepultura próxima do lugar onde McGill fora enterrado, mas cedo atingiu uma secção rochosa e deixou-se cair sobre a relva, exausto, coberto de suor, a exclamar obscenidades; Roger aguardava à sombra da árvore e, entretanto, o cadáver de Pym via novamente adiado o seu repouso final à torreira do sol. Acabámos por decidir atirá-lo à água e, depois de Elsa dizer algumas palavras à beira do pontão – palavras murmuradas e chorosas que acabei por esquecer –, o corpo foi empurrado por Vincenzo e mergulhou como uma pedra nas profundezas do lago. Pym desapareceu com a mesma velocidade com que surgira nas nossas vidas e, minutos passados, só Elsa se recordava de que ele alguma vez ali tinha estado. O que ninguém esquecia era a crueldade com que o assassino do bosque tinha posto o ponto final na sua vida – um tiro invisível, imprevisto e mortalmente certeiro; a certeza de que, fosse qual fosse o lado para o qual nos movêssemos, Bosco nos seguiria como uma sombra sem remorso.
Depois chegou a altura de escrevermos os depoimentos; as opiniões dividiram-se novamente. Na casa havia apenas uma máquina de escrever antiga, uma Olivetti Lexicon guardada na garagem. Elsa era a única que sabia da sua existência.
«É uma relíquia», disse eu, premindo uma das teclas enferrujadas. Elsa segurava a caixa de papelão onde a máquina tinha sido guardada; por baixo dela havia uma resma de folhas brancas cobertas por um plástico transparente.
«É o que temos», respondeu ela. «A menos que prefiras escrever à mão.»
Na cozinha, o grupo reuniu-se em torno da máquina de escrever que Elsa colocou sobre a mesa. Olivia observava-nos junto da porta que conduzia à sala; tinha permanecido no quarto até mais tarde e nem sequer assistira ao funeral de Pym.
«E agora?», perguntou Vincenzo. «Só temos uma máquina. Somos sete.»
Olhei em redor e contei. Sete. Era o número da sorte, se não contássemos com Bosco.
«Tenho uma sugestão a fazer», disse, apoiando o lado direito do corpo na bengala. «Cada um de vocês dita, e eu escrevo. Fazemo-lo em privado, num dos quartos, um de cada vez. Estou habituado a dactilografar e, desta maneira, aceleramos o processo. Não sei quanto tempo nos resta até Bosco aparecer por aí e começar a reclamar cabeças.»
A sugestão gerou um enorme debate. Elsa concordou imediatamente comigo, mas, para os outros, a ideia dos depoimentos assemelhava-se demasiado a uma confissão para que pudessem confiar-me a tarefa de os dactilografar. Roger foi o primeiro a argumentar que, se cada um tinha direito à sua versão dos acontecimentos na noite da morte de Metzger, tinha também o direito a escrevê-la em paz, sem a pressão de olhos e ouvidos alheios. «Quero dizer, não é o raio de uma redacção da escola», disse ele. «Estamos a tentar salvar a pele e cada um deve ter a sua oportunidade.»
«Isso não faz sentido», argumentou Elsa. «Era melhor que chegássemos a um acordo sobre uma versão dos acontecimentos e que essa versão batesse certo em todos os depoimentos.»
«É impossível», contrapôs Vincenzo. «Um depoimento é um ponto de vista e os pontos de vista naturalmente divergem.»
«Concordo. Mas os factos dentro desse depoimento não têm de divergir, ou têm?», perguntou Elsa. «Quero dizer, uma coisa são os factos, outra é a interpretação que cada um faz deles. Pelo menos no que diz respeito aos factos que vamos oferecer ao Bosco. O que é que interessa se tu, o Roger ou a Nina concordam sobre este ou aquele pormenor? O importante é que as histórias não entrem em contradições tão gritantes que levem o homem a pensar que um de nós está a mentir. Ou alguns de nós, ou mesmo todos.»
Houve silêncio na cozinha enquanto as palavras de Elsa assentavam.
«Estás a sugerir um depoimento conjunto?», perguntou Nina.
«Estou a sugerir uma versão conjunta em depoimentos separados. Se estivermos todos em sintonia em relação a algumas coisas, a história vai parecer muito mais sólida aos olhos de Bosco. Quanto mais sólida for a história, mais facilmente o convenceremos da nossa inocência.»
«Excepto se ele estiver precisamente à espera disso», disse Vincenzo. «É um plano tão previsível que até o mais imbecil dos psicopatas o topava à distância.»
Roger bufou e ajeitou o cabelo revolto.
«Infelizmente tenho de concordar», disse, contrariado. «Arranjar uma história igual para toda a gente vai trazer-nos problemas. O homem não é estúpido.»
«Qual é a alternativa?», perguntou Nina. «Dizer a verdade?»
«Porque não?», perguntou Olivia. A voz, do fundo da cozinha, atravessou o espaço como uma corrente de ar frio. «Se estão assim tão inocentes como afirmam nada têm a temer.»
Nina ergueu o olhar para Olivia com desprezo.
«O John McGill estava inocente. O Pym, provavelmente, também. Um deles está enterrado em frente da casa e o outro no fundo do lago.»
«Não podes afirmar com toda a certeza que eram inocentes», disse Olivia, cruzando os braços. «Nenhum de nós pode. Ambos desobedeceram às regras.»
«As regras? Quais regras?», perguntou Nina.
«Os dois tentaram fugir, quando tinha ficado bem claro desde o início que ninguém poderia partir antes de o caso estar resolvido.»
«É engraçada a maneira como tu colocas o problema e fazes alusão às regras. ‘Se estão assim tão inocentes’, etc. Como se tu não fizesses parte disto; como se já estivesses a salvo por teres desistido de jogar.»
Todos olharam para Olivia.
«Eu nunca cheguei a entrar no jogo», respondeu ela.
«Pois eu aposto que entraste», disse Nina.
«Eu faço as minhas apostas e vocês fazem as vossas», tornou Olivia.
«Acho que devíamos votar», interrompeu Roger.
«Votar em quê?», perguntou Elsa.
«Na tua sugestão para os depoimentos ou na minha.»
«Isso é um exercício bastante perigoso», disse Elsa.
Roger parecia ter perdido a paciência para a conversa. Inquieto, disse:
«Escutem lá. A menos que alguém se acuse e acabe de vez com esta palhaçada, não vejo possibilidade de consenso. Porque só há três hipóteses. Ou somos inocentes, ou alguém aqui é culpado, ou o culpado é o próprio Bosco. Qualquer destas hipóteses nos deixa no mesmo pé. Se formos inocentes, é estúpido estarmos para aqui a combinar uma história. Se houver um assassino, ele não se vai denunciar por esta altura do campeonato. E, se a culpa for de Bosco, então mais vale esquecer o assunto, uma vez que ele irá decidir aleatoriamente quem vive e quem morre.»
«Como é que ficamos?», perguntei.
«Inocentes até prova em contrário», adiantou Vincenzo.
«Votemos então», concordei.
A votação foi rápida e o método de Roger ficou aprovado por maioria; eu e Elsa fomos os únicos a votar a favor de uma história combinada nos depoimentos a apresentar a Bosco. Cada um de nós iria, assim, escrever o seu depoimento em privado e, a seguir, cada folha de papel seria colocada num envelope fechado. A máquina de escrever foi colocada num dos quartos vazios do primeiro andar; quem quisesse poderia usá-la ou, então, escrever o depoimento à mão, caso se sentisse pouco confortável a dactilografar. Calculei que, depois da morte de Pym, todos sentissem a mesma urgência, e que teríamos uma colecção de testemunhos secretos antes de o dia nascer, altura em que eu os levaria até à clareira de Bosco sem ter qualquer maneira de os alterar − isto é, sem uma caneta na minha posse – e sem fazer qualquer ideia do que neles se encontrava escrito.
As horas passaram como se um grupo de contaminados, na sala de espera de um hospital, entrasse à vez num consultório para saber do estado da sua infecção. Ao final da tarde, Nina e Vincenzo foram até à cozinha para preparar o que restava do spaghetti; de resto, todos permanecemos na sala, observando as cores de sangue do Verão dissolverem-se como um fogo do Inferno no horizonte de Sabaudia, cada um escolhendo secretamente a hora da sua confissão, abandonando a companhia dos outros sem aviso prévio e subindo ao quarto onde a máquina de escrever o aguardava. O único som que se ouvia na casa era o das teclas da máquina de escrever a serem premidas – e, numa ocasião, o perturbante silêncio de Roger e Stella, que subiram ao quarto para escreverem um depoimento conjunto e o fizeram à mão; fora isso, a quietude era tão grande que se conseguia ouvir, à distância, o som da água chapinhada pelas brisas nocturnas, a mesma água onde o corpo de Pym apodrecia, o cadáver largado no fundo arenoso do lago, de olhos abertos, como um pirata lançado borda fora de um navio que pagasse agora pelos pecados cometidos em vida.
Esta quietude, contudo, indicava desassossego. Com a passagem das horas, pude ver nos rostos alheios que a decisão tomada lhes começava a pesar no espírito. Uma coisa era falar sobre o assunto; outra pô-lo em prática. O secretismo da empreitada lançava o espectro da dúvida e da suspeição, uma vez que todas as palavras escritas no andar de cima da casa permaneceriam por revelar e, assim, constituíam uma possível ameaça de cada um a todos os outros. Sentado num dos cadeirões, com uma chávena de chá e a bengala por companhia, comecei a imaginar as absurdas possibilidades que o desespero poderia gerar, conduzindo, por exemplo, a uma sucessão rocambolesca de traições: Vincenzo acusaria Roger, Roger acusaria Elsa, Elsa acusaria Olivia, Olivia acusaria Nina, Nina acusaria Stella, Stella acusar-me-ia e eu acusaria Vincenzo apenas para fechar o círculo; ou, então, talvez as cartas se baralhassem de maneira diferente e as denúncias acabassem por ser completamente inesperadas, amantes acusando-se mutuamente e as mentiras empilhando-se como castelos de areia numa praia ventosa, numa ânsia crescente de expiação. Ou talvez me enganasse uma vez mais – talvez todos nos enganássemos – e cada um dos presentes acabasse por contar mesmo a verdade, que seria, já o sabemos, necessariamente confusa e subjectiva, e apesar disso as palavras fossem iluminadas pelo volúvel brilho de todas as coisas honestas e Bosco acabasse por desistir daquela empreitada em direcção ao apocalipse e acatasse, com a contrição dos homens justos, a prova da nossa inocência.
A ordem acabou por ser esta: Vincenzo, Roger e Stella, Olivia, Nina, Elsa e, por último, eu. Foi Elsa quem encontrou um maço de envelopes numa das gavetas do quarto de Don e, um a um, os depoimentos foram sendo colocados dentro de um sobrescrito colado com saliva, escondendo a sua verdade ou a sua mentira (ou a sua ilusão de verdade). Alguns demoraram-se mais lá em cima, outros menos; alguns provocaram maior nervosismo entre os que, cá em baixo, ainda não haviam escolhido a sua vez ou viam o seu destino já selado dentro de um rectângulo de papel. Quando foi a vez de Olivia, por exemplo – faltavam alguns minutos para as dez da noite −, o silêncio instalou-se, acompanhado de uma pesada apreensão. Até Roger, que comia um prato de massa, colocou a refeição de lado e, sentando-se sozinho no degrau que conduzia à sala do aquário, fumou cinco ou seis cigarros durante a hora que Olivia se demorou no andar superior. Stella quis juntar-se a ele, mas Roger preferiu a solidão.
Vincenzo e Nina também se mantiveram distantes durante essa noite. O italiano era incapaz de estar quieto e sentava-se e levantava-se constantemente, caminhando de um lado para o outro, entrando na sala do aquário e ficando a olhar para a Lua em quarto crescente que, suspensa sobre o bosque, era o farol do pequeno mundo que conhecíamos. Nina, sentada num dos sofás, parecia estranhamente distante e brincava com um colar de contas que usava por baixo de uma camisa branca; a camisa realçava a cor fogosa do seu cabelo despenteado, mas os gestos minuciosos das suas mãos deixaram-me inusitadamente triste. Eram gestos de criança; eram os gestos de uma criatura infantil que escrutina detalhadamente um objecto por se espantar com o mero facto de ele existir. A mulher ali sentada, absorta numa actividade inútil, desatenta, era alguém que eu via pela primeira vez, uma Nina despida de todas as barreiras que tinham feito dela uma mulher segura, confiante, por vezes até desejável; como se os dias em Sabaudia a tivessem vencido; como se, depois da morte de McGill, alguma coisa dentro dela tivesse começado a funcionar ao revés, um relógio que pára subitamente e cujos ponteiros revertem a marcha, uma concha esquecida na praia pela maré. Enquanto a observava, soube, atacado de uma enorme melancolia, que em breve diríamos adeus. Aquela mulher que, desde o primeiro momento, eu sentira conhecer desde sempre – como se tivéssemos sido companheiros num tempo anterior a este tempo, como se eu a tivesse escrito num romance muito antes de a ter conhecido em carne e osso –, preparava-se para desaparecer de uma das inúmeras maneiras que o destino reserva para roubar os outros à nossa existência. Não sei como o soube, mas soube-o. E talvez Elsa tenha sentido esta minha angústia, pois veio ter comigo e sentou-se ao meu lado. Era uma angústia que correspondia ao regresso de uma noção perdida – a noção de que a vida não terminava num romance macabro, ou numa perna doente, ou num homem fechado dentro de um apartamento do qual desistira de sair por julgar que o mundo nada mais tinha para lhe oferecer; correspondia à noção de que a vida continuava a nosso despeito, em diante, sempre para diante, e com a mesma facilidade com que nos havia colocado aqui poderia ceifar-nos da superfície do mundo e tudo o que deixaríamos para trás era arrependimento, mágoa, solidão – sobretudo solidão – e um acto de rendição voluntário que manchava todas as coisas que havíamos tocado; um acto que facilmente se confundiria com soberba, mas que não passava de cobardia. Não, eu não queria morrer; não, eu não queria que Nina desaparecesse para sempre da minha vida, nem Elsa, nem Vincenzo, nem mesmo Roger e Stella ou Olivia; naquelas horas de espera, segurando a maldita bengala que inventara para as minhas dores, sorvendo lentamente o chá que Elsa ia aquecendo de tempos a tempos, compreendi finalmente que a ausência, a solidão e o esquecimento eram coisas terríveis, tão terríveis como uma mutilação ou a morte de um filho, tão terríveis como um velho amigo ao qual nunca mais ouviremos a voz nem conheceremos o cheiro nem saberemos a cor dos olhos, tão terríveis que, mesmo nos livros, até nos romances mais pessimistas, não devemos chamar por elas, não devemos enaltecê-las ou tentar transformá-las em beleza.
Depois Elsa subiu, demorou-se trinta minutos no quarto e, por fim, chegou a minha vez. Já só havia três pessoas na sala por essa altura – Roger, Stella e eu −, o resto tinha-se dispersado pela casa silenciosa. Ergui-me com um grunhido de esforço e fiz-me às escadas.
XXIV
O depoimento suscitou em mim um prazer inesperado. Sozinho no segundo quarto do lado direito do corredor – o único que permanecera desocupado e mais pequeno do que os outros, com uma cama de solteiro coberta por lençóis azuis e uma pequena janela que dava para o bosque −, encostei a bengala à parede, sentei-me à secretária e encarei a máquina de escrever durante largos minutos. O monte de papel estava desalinhado e algumas das folhas esborratadas de tinta, manuseadas por dedos incautos; ao lado da máquina havia uma garrafa quase vazia de whisky que, provavelmente, Roger levara para ali e servira de inspiração aos que se haviam sentado em seguida.
Peguei na garrafa e dei um gole; o líquido, amargo e morno, desceu-me pela garganta com um travo inesperado a água salgada. A janela encontrava-se aberta e chegava-me o aroma das árvores e o cheiro pungente da terra. Havia muito tempo que não me sentava para escrever e dei-me conta de que tinha saudades. Tinha saudades da folha em branco, da ligeira angústia, da eterna hesitação antes de começar; tinha saudades de ver as palavras formarem-se perante os meus olhos e serem conduzidas pelos meus dedos. Fiz contas de cabeça e percebi que havia muito tempo que não escrevia nada que fosse verdadeiro ou, de alguma maneira, se assemelhasse à verdade; publicara o último romance há quase dois anos – escrevera-o muito antes – e, depois do incidente de Dezembro em que caíra das escadas abaixo, passara longos meses a isolar-me do mundo, a procrastinar e a alimentar uma conspiração biológica. O álcool chegou-me enfim à cabeça e, poucos segundos depois, comecei a escrever. Mas o que escrevi não teve qualquer significado; não passou de uma acumulação de factos e, ao fim de alguns minutos, batia à máquina apressadamente, procurando despachar o assunto. É escusado estar a aborrecer-vos com o conteúdo desse testemunho; tudo o que nele ficou registado encontra-se também nestas páginas com superior pormenor e, por isso, é inútil reproduzi-lo. Bastará dizer que, no parágrafo final, procurei assegurar Bosco da veracidade da minha história, garantindo-lhe que nunca chegara a conhecer Don Metzger e que as últimas e trágicas horas daquela noite em Sabaudia tinham sido passadas em inconsciência, deitado numa cama para a qual tivera de ser levado. Omiti quaisquer detalhes sobre os outros, limitando-me a descrever a sucessão de acontecimentos desde que havíamos chegado à estação de Priverno. Era um relato aborrecido, sem conflito ou tensão, destinado a apaziguar a voracidade de um animal ferido; nada tinha a ver com literatura, nada tinha a ver com o ofício de um verdadeiro escritor.
Por volta das onze da noite abandonei o quarto, o depoimento dobrado dentro de um envelope fechado. As luzes do corredor estavam acesas e desci as escadas, a ponta da bengala batendo na madeira e ecoando pela solidão da casa. Não havia ninguém na sala, apenas os vestígios de cigarros fumados dentro dos cinzeiros e vários copos de vinho espalhados pela mesa e pelo chão. Guardei o envelope no bolso de trás das calças e fui à cozinha; daí saí para o exterior. A noite estava quente e um enxame de melgas esvoaçava junto da luz do candeeiro de presença acima da porta de correr, que se encontrava aberta. Olhei na direcção do lago: havia alguém sentado no baloiço de madeira suspenso da árvore, que se agitava lentamente. O quarto crescente iluminava a extremidade ocidental do lago.
Avancei na direcção da árvore e reconheci a silhueta de Nina. Quando ela me ouviu chegar voltou-se para trás, segurando as cordas do baloiço com as duas mãos, e sorriu.
«O último dos condenados vem dar a volta final ao pátio antes da execução», disse. Tinha o envelope sobre o colo, debaixo de um maço de cigarros; o seu sorriso era desinspirado e triste. Depois continuou a balouçar levemente, olhando de novo a superfície das águas. Sentei-me sobre a relva húmida; Nina acendeu um Mayfair e ofereceu-me outro. Aceitei e ficámos a fumar durante alguns minutos em silêncio. Depois ela olhou-me, a silhueta do seu rosto elegante recortada contra o céu nocturno.
«Quem te parece que vai ser o escolhido de Bosco?», perguntou casualmente, como se falasse do vencedor de um concurso de televisão.
«Nenhum, se estamos todos inocentes. Não é essa a teoria vigente?»
Nina riu-se e expeliu o fumo pelas narinas. Perdida na lonjura, uma coruja piava.
«Mesmo que fosse verdade, que importância teria? Aquele monstro que está dentro do bosque vai escolher um de nós e terá a sua vingança. Ou a sua justiça. Ou qualquer outra destas perversidades com que os loucos ajustam contas com o mundo.» Nina deu uma passa no cigarro. «Então: quem vai ser o escolhido?»
Também puxei do cigarro, o que me deixou zonzo.
«Não sei.»
Nina suspirou e deteve o baloiço.
«Acho que serei eu a escolhida.»
«Porquê?»
«Fui a primeira a fazer-lhe frente. Na madrugada em que o Don Metzger morreu, lembras-te? Quando o Bosco apareceu e eu lhe chamei louco e filho-da-puta e outras coisas assim. O homem quase me matava ali mesmo, não fosse a Elsa ter intervindo.»
Nina puxou outra passa do cigarro: o fumo subiu no ar e decorou a Lua. Parecia resignada, como se o fim estivesse a caminho e ela nada pudesse fazer para o evitar. Num sentido universal, isto era verdadeiro; mas a vida tratava do contrário, de ignorar o absoluto e viver em absoluta relatividade.
«A Elsa confessou-me que mentiu. Ou quase confessou. No outro dia tivemos uma conversa e ela disse-o. Ou eu disse-o, e ela não me contestou.»
Nina encolheu os ombros.
«Claro que mentiu. Mas eu não lhe pedi que o fizesse, por isso não me sinto propriamente culpada. O Bosco sabia perfeitamente que ela estava a mentir e foi por isso que fez aquilo ao John. Aquela monstruosidade. Para me castigar e para punir a mentira.»
«O Bosco matou-o porque ele tentou fugir. Não me parece que tenha sido uma vingança.»
«Não precisava de o ter matado. Podia tê-lo feito regressar pelo mesmo caminho de onde viera.»
«O McGill saiu daqui num carro, lembras-te?», disse eu, atirando a beata para a água. «De alguma maneira o Bosco conseguiu fazê-lo parar e, depois, deve ter existido um confronto.»
Nina, por sua vez, atirou o cigarro para a relva. Tinha os olhos marejados de lágrimas. «O John era uma boa pessoa, sabes? Um gajo às direitas. Detestava confrontos de qualquer espécie. Eu, com a minha estupidez e o meu egoísmo, consegui fazê-lo atirar-se de um precipício. Se não fosse por mim, ele ainda estaria vivo.»
«Segundo entendi, naquela noite foi o Vincenzo quem o provocou.»
Nina abanou a cabeça; uma lágrima desceu-lhe pelo rosto.
«O Vincenzo só o provocou porque pôde provocá-lo. Porque eu permiti que as coisas chegassem a esse ponto. É verdade que eles sempre tiveram uma relação difícil, que era baseada, do lado do Vincenzo, no ciúme e na inveja. E, embora ele não o admitisse, na admiração. São três coisas terríveis para se sentir por uma pessoa. A verdade é que o John era, dos dois, o melhor escritor; a verdade é que o John era a melhor pessoa.»
«E tinha-te a ti», acrescentei.
«E tinha-me a mim», repetiu.
Ficámos em silêncio durante um longo momento; a coruja continuava a piar, indiferente à nossa presença.
«O que é que aconteceu entre ti e o Vincenzo?», insisti.
«Até chegarmos a Sabaudia, nada. Quero dizer, nada que tivesse importância. Nada que não pudesse ser apagado por aquela borracha da memória que usamos para as coisas fúteis.»
«Estás a dizer-me que nunca tinham dormido juntos?»
«Estou.»
«E que na noite da morte do Metzger dormiram juntos.»
Nina fez uma longa pausa, tentando combater as lágrimas que lhe desciam pelo rosto. Quando parecia que ia dizer alguma coisa, permaneceu calada.
«A Elsa disse-me que tu fizeste coisas de que certamente não te orgulhas», disse-lhe eu, em voz baixa e tranquila. «Seja o que for que tenha acontecido, por esta altura não há nada de que sentir vergonha. Não depois do que se passou aqui.»
«Mas há», disse ela, subitamente firme. «O que acontece num determinado momento não tem importância: as acções duram o tempo que duram e depois passam. O que importa é o que vem depois.» Voltou o rosto para me olhar. «Lembras-te, em Budapeste, de falarmos sobre raios X? Da mão da mulher do médico?»
«A mulher de Wilhelm Rontgen. Lembro-me.»
«Falávamos disso porque tu me dizias que não tinhas fé. Que tinhas perdido a confiança no mundo. Agora olho para ti e, de todos os pobres coitados que ainda aqui estão, és o único que não se rendeu ao desespero.»
«Talvez isso seja uma consequência dessa falta de fé. Se não estivermos muito preocupados com a existência, tendemos a ser mais racionais. Ou menos sujeitos aos nossos impulsos. A vida torna-se menos dolorosa. No fundo é uma forma de cobardia, acho eu. Provavelmente a forma mais dissimulada, mas também a mais poderosa. Agora, curiosamente, estou suficientemente interessado no mundo para querer sobreviver. Por isso talvez tenhas razão; talvez eu tenha recuperado alguma fé.»
«Pois eu perdi-a toda depois da morte do John», disse Nina. «Quero dizer, dificilmente vou aceitar o destino de mão beijada mas, se este chegar como eu julgo que chegará, também não vou lutar contra ele com unhas e dentes. Nesta altura prefiro deixar-me levar.»
«És demasiado nova para pensares dessa maneira.»
«Queres dizer que sou demasiado nova para morrer?»
As palavras dela pareceram agitar as águas do lago, onde um pássaro solitário pousou um instante, bebeu da superfície e tornou a levantar voo.
«Sim.»
«O meu avô costumava dizer que ninguém é demasiado novo para morrer», disse Nina. «Julgo que tinha razão. Há certas coisas que tínhamos para fazer nesta vida, certas coisas que nos estavam destinadas. Se é que esta é a palavra certa. Depois de feitas, deixamos de ter razões para aqui estar. Talvez eu as tenha feito todas e tenha chegado a minha altura.» Nina riu-se, mas era um riso triste. «Quero dizer, como é que eu posso continuar? Em que direcção, com que rumo? Com quem por companhia?»
«E o Vincenzo?»
Nina voltou o rosto na direcção contrária e fitou o lago.
«O Vincenzo é a evidência do meu desespero. A prova provada de que cheguei a um beco sem saída e, por mero acaso, ele se encontrava lá. Nenhum de nós alimenta ilusões. Se houver um mundo para lá deste bosque, será um mundo cruel para mim e pior ainda para ele; uma merda de um mundo. O Don Metzger não foi o único a morrer.»
Fiquei em silêncio por um instante. Pensei em contar-lhe da conversa que tivera com Elsa e da suspeita que esta levantara sobre Vincenzo; pensei em perguntar-lhe o que recordava ela das horas dramáticas da noite do crime; quis saber do que não se orgulhava Nina, se de ter tido relações sexuais com Vincenzo, se de ter permitido que este provocasse McGill, se, pior ainda, de ter participado na morte de Don Metzger. Quis perguntar-lhe todas estas coisas mas, no final, não tive coragem de dizer nada. Tirei o envelope do bolso de trás das calças e ofereci-lho.
«Gostarias de ler?», perguntei.
Tive a breve esperança de que pudéssemos trocar depoimentos. Mas Nina sorriu, recusou e acendeu outro cigarro. Fiquei a segurar o envelope no ar durante um momento e depois voltei a guardá-lo; a noite avançava sem remissão.
No que restou dessas horas de escuridão houve quase uma vigília colectiva; nenhum de nós era capaz de dormir a sono solto. Roger e Stella fecharam-se no quarto, mas Stella chorou sem parar, e as palavras de Roger – primeiro de consolo, depois de desespero – atravessavam o silêncio da casa; Vincenzo e Elsa tinham regressado à sala e puseram-se a beber e a fumar, sem trocarem palavra, o italiano fechando os olhos, a espaços, mas logo despertando de sonos inquietos; Nina ficou à beira do lago, em cima do baloiço, agitando-se ao sabor tranquilo das águas; talvez Olivia tivesse ido dormir – mas quem saberia dizer o que Olivia agora fazia?
Estranhamente, acabei por dormitar. Não foi um sono demorado; talvez uma hora na modorra do meu quarto, escutando os sons intermitentes da manhã vindoura − havia pássaros que chilreavam escondidos por entre as ramagens do bosque próximo, havia o zunido das melgas cansadas das suas aventuras nocturnas; segurava junto do peito o envelope que continha uma improvável redenção. Foi um sono breve, é certo; mas foi também um sono profundo, pois dentro dele um novo sonho assumiu contornos perturbadores e premonitórios.
No sonho despertei na mesma cama onde adormecera; ainda era noite. Escutei os passos leves de alguém que atravessava o corredor. Levantei-me − sem precisar da bengala, porque nos sonhos tudo é irremediavelmente pesado ou fantasticamente leve − e saí do quarto. Fui atrás de uma sombra, uma matéria volúvel, uma nuvem macilenta transportada em pés esquálidos que calcorreavam o chão desabitado da casa. Era Olivia: vi-lhe o cabelo louro, quase branco, suavemente agitado pelos movimentos sinuosos do seu corpo coberto pela fina textura de um pijama branco. Na sala do aquário as fosforescências subaquáticas zuniam como um letreiro em néon, iluminando a caverna de escuridão em que o resto do espaço se transformara. Olivia atravessou-o nas pontas dos pés e saiu da casa pelo vazio da parede derrubada. Seguindo-a, passei também sobre o vidro do aquário e olhei para baixo: as fosforescências eram estranhos filamentos entrelaçados que circulavam pela água como cobras luminosas, em movimentos sinuosos e sinistros; eram criaturas malvadas que tinham assassinado os peixes e estes jaziam, em espasmos, moribundos, no chão de areia.
Olivia corria em direcção ao bosque. A noite era cerrada e fria, a Lua encoberta por nuvens opacas. A sua figura era a de um animalzinho que avançava, assustado, pelo caminho traiçoeiro, descalço, o pijama branco agitando-se e ficando preso, aqui e ali, em espinhos que nasciam das árvores circundantes; as próprias árvores eram criaturas que a tentavam resgatar como se a quisessem impedir de atravessar aquela fronteira imaginada − uma vez do outro lado, não haveria retorno. Mas Olivia seguia em frente e eu seguia atrás dela até que, ao entrar no território de Bosco, a perdi. Os ramos retorcidos e espinhosos das árvores cresceram, expandiram-se, travaram o meu progresso e, quando penetrei na clareira, já Olivia havia desaparecido de vista. Dentro do sonho uma coruja piou.
Os balões de Bosco ensombravam a clareira com as suas formas rocambolescas, uns na forma de lágrimas e outros na forma de ovos, ainda outros semelhantes a um rosto humano recortado contra a imensidão temerosa do céu. A clareira estava iluminada por uma lua súbita; as nuvens tinham-se dissipado na direcção do Sul e os balões eram como estátuas que pairavam acima do mundo, observando tudo, tudo registando nos seus silêncios ancestrais, rostos da ilha da Páscoa flutuando acima da humanidade com os seus olhos cegos. Aproximei-me devagar, a terra esfarelando-se debaixo dos meus pés, como se caminhasse sobre torrões de açúcar; fui em direcção à cabana. Havia uma janela no fundo e dela emanava uma luz quente e acolhedora. Pus-me em bicos de pés e espreitei para o interior. Dentro da cabana estava o meu quarto na penumbra, idêntico ao lugar onde eu sonhava aquele sonho: a mesma cama, o mesmo sofá, a mesma secretária voltada para a janela. Deitado na cama, coberto por um lençol, estava um homem que parecia dormir. Vi-lhe o rosto de relance, iluminado pela lua, quando o homem fez um movimento brusco − o homem sonhava, por certo − e vi que era o meu rosto, que aquele homem era eu. Sonhando, via-me a mim próprio a sonhar o sonho que via. Era estranho e mágico ao mesmo tempo, como espelhos dentro de espelhos que conduzem ao infinito; nunca antes me encontrara a mim próprio em sonhos.
A porta do quarto abriu-se e Olivia entrou. Descalça, o cabelo caía-lhe sobre o rosto, embora o rosto já não fosse o dela – era um rosto distorcido, com dois olhos negros como carvão e uma boca líquida, uma boca que não era humana e que só podia ter sido inventada por um demónio que desenhasse rostos na escuridão. Aproximou-se e, devagar, como um animal que trepa a quatro patas para uma superfície acima do chão, pôs-se sobre a cama. Debaixo dos lençóis, o homem com o meu rosto continuava a dormir; Olivia procurou com um braço leitoso o sexo daquele que dormia e começou a massajá-lo. Olhando-os pela janela, senti a excitação do homem adormecido. O quarto variava entre a luz e as sombras provocadas pelo movimento dos balões que cobriam e descobriam a Lua. O prazer despertou o homem enquanto a mão de Olivia se movia lentamente debaixo do lençol. Partilhei desse prazer. Depois a porta do quarto abriu-se novamente e a figura sinistra do catalão surgiu, diáfana. A porta tornou a fechar-se. Bosco segurava a espingarda na mão direita e apontava-a na direcção da cama. Num assomo de pânico, quis gritar, embora não tivesse voz para o fazer; bati na janela, procurando alertar o meu outro eu, que, deitado, parecia ter-se abandonado ao prazer da mão de Olivia. O rosto dela dissolvia-se em nada, engolido por um buraco negro, um vórtice para onde tudo iria convergir no final dos tempos. Bosco puxou o gatilho da espingarda e, com o sobressalto de quem se vê morrer em sonhos, despertei suado e sem respiração na cama do quarto onde me deitara.
Amanhecera; estava excitado e, ao mesmo tempo, devorado pelo medo.
Um por um, recebi os envelopes; um por um, os sobreviventes do Bom Inverno entraram na cozinha e depositaram as suas derradeiras palavras sobre a mesa, as cartas empilhando-se e cobrindo a superfície de fórmica. Encontrava-me sentado num dos bancos altos e bebia os restos tépidos de um café. Tinha descido do quarto à primeira hora de luz e descobrira que não restava nada para comer, excepto umas quantas latas de anchovas. A despensa vazia era a imagem da fome; as prateleiras estavam cobertas de migalhas e de pedaços minúsculos de esparguete; no frigorífico restava uma embalagem de leite azedo e pacotes de manteiga. Coloquei o meu envelope em cima da mesa e aguardei.
Também nós éramos a imagem da desgraça. Vincenzo foi o primeiro a levantar-se do sofá da sala e a vir até à cozinha. A barba crescera-lhe de forma desordenada, o bigode quase inexistente contrastando com um enorme tufo de pêlos no queixo. Tinha as roupas encardidas e passeava descalço como um náufrago numa ilha deserta; nos seus olhos inchados lia-se a evidência de uma noite de lágrimas. Foi sem esperança que colocou o envelope sobre a mesa e regressou à sala. Seguiu-se Elsa. Depois de pousar suavemente o seu envelope sobre os outros dois, deu-me um beijo no rosto e desejou-me boa sorte. Roger e Stella apareceram a seguir, deixando um envelope mais espesso em cima dos outros três. Vinham de mãos dadas, o australiano atarracado em cuecas e chinelos, a barriga de cerveja pendendo sobre o elástico da roupa interior, Stella vestindo um roupão com as iniciais DM bordadas. Por último, Nina percorreu a distância do lago até à casa e, entrando pela porta de correr, colocou um quinto envelope na pilha. Tentou sorrir, mas o sorriso desfaleceu − como um piano cuja tecla enferrujada é incapaz de fazer soar a nota pretendida − e, sem trocarmos uma única palavra, desapareceu para o interior da casa. Os cinco envelopes sobre a mesa olharam-me na cruel indiferença das coisas mortas. Retribuí o olhar e pressenti a melancolia de um final: fosse qual fosse, o futuro estava hipotecado.
Esperei meia hora por Olivia e, quando esta não apareceu, subi ao primeiro andar e encontrei o quarto vazio. A cama estava feita, as almofadas colocadas naquela posição artificial em que tantas vezes as encontramos nos quartos de hotel; não havia vestígios de qualquer objecto que lhe houvesse pertencido. Pela janela aberta, de par em par, entrava a brisa matinal. Era como se Olivia nunca ali tivesse estado.
Regressei ao piso térreo. Era inútil matutar no assunto; era igualmente inútil pensar que o meu sonho teria alguma semelhança com a realidade. Olivia simplesmente desaparecera e ninguém daria pela sua falta; ninguém se preocuparia com a sua ausência. Podia ter decidido fugir, podia ter-se perdido no bosque, podia simplesmente ter-se transformado num morcego e ter voado pela janela fora em direcção ao clarão escarlate da aurora; tanto fazia. Recolhi os envelopes da mesa da cozinha e segurei-os na palma da mão esquerda; com a direita, finquei a ponta da bengala no chão e atravessei a porta de correr. Estava uma bela manhã de sol, a luz reflectida como ouro na superfície do lago; o céu azul denunciava uma jornada de calor intenso. Quando dobrei a esquina da casa, olhei para trás e vi-os. Estavam os cinco de pé, na sala, um pequeno grupo que me observava enquanto partia para o bosque. Gostaria de dizer que havia candura nos seus olhos e esperança nos seus corações, mas estaria a mentir. Com excepção de Elsa, era como se um bando de abutres vislumbrasse alimento à distância e, na sua paciente necrofagia, aguardasse pelo ataque da besta para depois se deliciar com os restos.
Percorri a estrada de terra com serenidade. Havia alguma coisa de nobre naquele gesto e, desprovido de gestos de nobreza nos últimos tempos, senti-me, de certa maneira, o insuspeitado herói daquela história. Cheguei a sentir que poderia largar a bengala ali mesmo e caminhar com a firmeza de qualquer homem; a verdade, contudo, era que a dor regressava sempre que me punha a pensar nela. Embrenhei-me no bosque. A luz intensa atravessava as copas das árvores em lâminas que cortavam a sombra em todas as direcções; as lâminas porosas, agitadas por minúsculos insectos, criavam um estranho espectáculo de pirotecnia natural que parecia ir abrindo caminho à minha passagem. A bengala encontrava terra, musgo, folhas secas, pedras; os envelopes começavam a ficar impressos com o suor da minha mão. Recordei a sugestão de Roger: o meu encontro com Bosco era o momento ideal para uma fuga. Agora, que o momento chegava, perguntei-me seriamente o que aconteceria se todos fugissem e eu ficasse para trás. Que faria Bosco comigo quando se desse conta de que a minha chegada havia sido uma estratégia de partida? E, no entanto, a fuga parecia-me o menos provável dos cenários naquele momento, de tal maneira a presença malévola do catalão se encontrava propagada por aquele lugar sinistro e enfeitiçado; de tal maneira o cheiro do bosque era o seu cheiro, o cheiro de Bosco; de tal maneira a sombra das árvores do bosque era também a sua sombra, a sombra de Bosco; como se houvesse conseguido uma fusão inusitada com a natureza que só se encontrava ao alcance de quem compreendia os movimentos mais recônditos do subsolo; de quem compreendia os movimentos mais recônditos de todas as criaturas da superfície, das folhas às pedras aos lagos; de quem compreendia todos os movimentos das criaturas do ar, das águias às corujas aos balões de ar quente. O bosque estava impregnado de Bosco e Bosco estava impregnado do bosque. Bosco, bosque. Talvez, no fundo, quisessem dizer a mesma coisa; talvez fossem apenas palavras diferentes para designar o mesmo fenómeno de oclusão do mundo.
Em menos de dez minutos cheguei à clareira.
4 O que aconteceu naquela fatídica madrugada em que Don Metzger soltou o seu último suspiro e nós – tão impreparados para as vicissitudes desta vida – nos transformámos em monstros de indiferença? Aconteceu um crime, ou aconteceram vários? Por exemplo: se um homem não for testemunha de um crime, será que isso o iliba da responsabilidade de, caso esteja ao seu alcance, encontrar o perpetuador dessa ofensa? Ou será que essa inacção constitui, por si própria, um segundo crime a acrescentar ao primeiro? Será que um homem pode, pelo simples facto de não ter matado, ignorar o facto de outro o ter feito, lavando daí as suas mãos e dizendo que a punição, a existir, está entregue ao destino? Pergunto-me muitas vezes como é possível que o destino nos pareça um conceito plausível quando este mundo é uma panóplia de erros que conduzem aos piores horrores. Usamos o destino como álibi, crendo, ingénuos, que as coisas acontecem de certa maneira porque não poderiam acontecer de outra; esta crença, tão válida como a crença em Deus ou na imortalidade da alma, tem consequências terríveis para o espírito que, mais cedo ou mais tarde, se vê corrompido pela dúvida que tem origem na impossibilidade de sabermos, com qualquer grau de certeza, se as nossas decisões nos trarão paz ou, pelo contrário, irão acordar as bestas do Inferno; se, doravante, teremos de caminhar pelo mundo com a cabeça voltada ao contrário como um contrapasso de Dante.