Sexta-feira, 29 de abril. Enquanto Chris esperava no corredor, fora do quarto, o dr. Klein e um famoso neuropsiquiatra examinavam Regan, observando-a por quase meia hora. Remexendo-se, debatendo-se. Puxando os cabelos e, de vez em quando, fazendo caretas e levando as mãos às orelhas, como se quisesse bloquear um som repentino e ensurdecedor. Berrava obscenidades. Gritava de dor. E, por fim, jogou-se de frente na cama e, com as pernas encolhidas embaixo da barriga, passou a gemer baixo e sem qualquer coerência.
O psiquiatra fez um sinal para que Klein se aproximasse dele.
— Dê a ela um tranquilizante — disse ele. — Talvez eu consiga conversar com ela.
O médico assentiu e preparou uma injeção de cinquenta miligramas de torazina. No entanto, quando os doutores se aproximaram da cama, Regan pareceu notar a presença deles e se virou com agilidade. Quando o neuropsiquiatra tentou segurá-la, ela começou a gritar, furiosa. A mordê-lo. A lutar contra ele. A afastá-lo. Só quando Karl foi chamado para ajudar que eles conseguiram manter Regan parada o suficiente para que Klein conseguisse aplicar a injeção.
A dosagem não foi adequada e mais cinquenta miligramas foram injetados. Eles esperaram. E logo Regan ficou dócil. E, então, distraída. Passou a olhar os médicos com uma confusão repentina.
— Onde está minha mãe? Quero a mamãe! — dizia ela, chorosa e assustada.
Com um sinal do neuropsiquiatra, Klein saiu do quarto.
— Sua mãe vai chegar daqui a pouco, querida — disse o psiquiatra a Regan. Ele se sentou na cama e acariciou sua cabeça. — Pronto, pronto, está tudo bem, querida. Sou médico.
— Quero a minha mãe!
— Sua mãe está vindo. Está vindo. Está com dor, querida?
Enquanto as lágrimas escorriam de seu rosto, Regan assentiu.
— Onde dói? Onde está doendo?
— Dói o corpo todo — disse Regan, chorando.
— Ah, minha querida!
— Mãe!
Chris correu até a cama e a abraçou. E beijou. Tentou consolá-la e confortá-la. Chris começou a chorar de alegria.
— Ah, você voltou, Rags! Você voltou! É você mesma!
— Ai, mãe, ele me machucou! — disse Regan a ela, fungando. — Por favor, faça com que ele pare de me machucar. Está bem, mamãe? Por favor?
Chris olhou para a filha, confusa, e se virou para os médicos, com dúvida nos olhos.
— O quê? O que é isto?
— Ela está muito sedada — disse o psiquiatra gentilmente.
— Está dizendo que...
— Veremos — disse ele, interrompendo-a.
Ele se virou para Regan.
— Pode dizer o que está acontecendo, querida?
— Não sei! — respondeu ela, chorando. — Não sei! Eu não sei por que ele faz isso! Ele sempre foi meu amigo!
— Quem é ele?
— O Capitão Howdy! Parece que tem outra pessoa dentro de mim, que me faz fazer coisas!
— O Capitão Howdy?
— Não sei!
— Uma pessoa?
Regan assentiu.
— Diga quem é.
— Eu não sei!
— Bem, certo. Vamos tentar uma coisa, Regan. O que acha de fazermos uma brincadeira? — disse, enfiando a mão no bolso do avental e tirando uma bola brilhante presa a uma corrente de prata. — Já viu filmes em que as pessoas são hipnotizadas? — perguntou ele.
Com os olhos arregalados, Regan assentiu.
— Bem, sou um hipnotizador, Regan. Sim, sou mesmo! Eu hipnotizo as pessoas o tempo todo. De verdade! Claro, se elas deixarem. Mas acho que se eu hipnotizar você, Regan, conseguirei ajudá-la a melhorar. Sim, essa pessoa dentro de você vai sair. Você quer ser hipnotizada? Veja, sua mãe está bem aqui, do seu lado.
Regan olhou para Chris de modo confuso.
— Vá em frente, querida. Faça isso — disse Chris.
Regan olhou para o psiquiatra e assentiu.
— Tudo bem — disse, baixinho. — Mas só um pouco.
O psiquiatra sorriu e olhou rapidamente para trás quando ouviu o som de um vaso se quebrando. Era um vaso delicado que havia despencado da estante onde Klein apoiava o braço. Klein olhou para o braço e para os cacos sem entender, e então se pôs a recolhê-los.
— Não se preocupe, doutor. Willie pode juntá-los — disse Chris.
— Pode fechar as janelas para mim, Sam? — O psiquiatra pediu. — E as cortinas também?
Quando o quarto ficou escuro, o psiquiatra pegou a corrente e começou a balançar o pêndulo de um lado a outro com um movimento rápido. Ele acendeu uma pequena lanterna na direção dele. O pêndulo brilhou.
Ele começou a entoar o ritual hipnótico.
— Observe isto, Regan, fique olhando, e logo sentirá suas pálpebras cada vez mais pesadas...
Dentro de pouco tempo, Regan pareceu entrar em transe.
— Extremamente sugestionável — O psiquiatra murmurou. E então perguntou: — Você está confortável, Regan?
— Sim — respondeu a menina com uma voz baixa e suave.
— Quantos anos você tem, Regan?
— Doze.
— Tem alguém dentro de você?
— Às vezes.
— Quando?
— Em momentos diferentes.
— É uma pessoa?
— Sim.
— Quem é?
— Não sei.
— É o Capitão Howdy?
— Não sei.
— Um homem?
— Não sei.
— Mas ele está aí.
— Sim, às vezes.
— Ele está agora?
— Não sei.
— Se eu pedir a ele que me conte, você permitirá que ele responda?
— Não!
— Por que não?
— Estou com medo!
— Do quê?
— Não sei!
— Se ele conversar comigo, Regan, acho que sairá de você. Você quer que ele saia de você?
— Sim.
— Então, deixe-o falar. Vai deixar?
Um longo silêncio. E então:
— Sim.
— Estou falando com a pessoa que está dentro de Regan agora — disse o psiquiatra de maneira firme. — Se estiver aí, você também está hipnotizado e deve responder a todas as minhas perguntas. — Por um momento, ele pausou para permitir que a sugestão entrasse na corrente sanguínea de Regan. E repetiu: — Se estiver aí, você também está hipnotizado e deve responder a todas as minhas perguntas. Manifeste-se e responda agora. Você está aí?
Silêncio. Então, algo curioso aconteceu. O hálito de Regan tornou-se fétido, de repente. E denso. O psiquiatra conseguiu sentir o odor a meio metro. Virou a lanterna para o rosto de Regan e, chocada e com os olhos arregalados, Chris cobriu a boca com a mão para abafar um grito, ao observar o rosto de Regan se contorcer numa máscara de ira, os lábios repuxados em direções opostas, e a língua túmida serpenteando para fora da boca.
— Você é a pessoa que está dentro de Regan? — perguntou o psiquiatra.
Regan assentiu.
— Quem é você?
— Nowonmai — respondeu ela, com um som gutural.
— É o seu nome?
Mais uma confirmação.
— Você é um homem?
— Diga — disse ela.
— O que respondeu?
— Diga.
— Se isso for um “sim”, confirme com a cabeça.
Regan confirmou.
— Está falando outro idioma?
— Diga.
— De onde você veio?
— Cachorro.
— Está dizendo que veio de um cachorro?
— Cãomorfomoção — respondeu Regan.
O psiquiatra parou, e, depois de pensar um pouco, decidiu tentar outra abordagem:
— Quando eu fizer perguntas a partir de agora, você responderá mexendo a cabeça: “sim” para cima e para baixo, e “não” para um lado e para o outro. Entendeu?
Regan assentiu.
— Suas respostas tiveram sentido? — perguntou ele. Sim.
— Você é alguém que Regan conheceu? Não.
— Que já viu? Não.
— É alguém que ela inventou? Não.
— Você existe? Sim.
— Faz parte de Regan? Não.
— Fez parte de Regan em algum momento? Não.
— Você gosta dela? Não.
— Você desgosta dela? Sim.
— Você a odeia? Sim.
— Por algo que ela fez? Sim.
— Você a culpa pelo divórcio dos pais? Não.
— Tem algo a ver com os pais dela? Não.
— Com um amigo? Não.
— Mas você a odeia. Sim.
— Está punindo Regan? Sim.
— Deseja feri-la? Sim.
— Matá-la? Sim.
— Se ela morresse, você também morreria? Não.
A resposta pareceu inquietá-lo e ele abaixou a cabeça, pensativo. As molas da cama rangeram quando ele se ajeitou. Naquele silêncio, a respiração de Regan se tornou forte, como se viesse de recôncavos podres. Ali. Mas, ainda assim, distante. E sinistra.
Quando ele olhou de novo para aquele rosto horroroso e contorcido, os olhos do psiquiatra brilharam quando ele perguntou:
— Tem alguma coisa que ela possa fazer para que você a deixe? Sim.
— Pode me dizer o que é? Sim.
— Vai me dizer? Não.
— Mas...
Repentinamente, o psiquiatra começou a gritar de dor ao ver, horrorizado, que Regan estava apertando seu escroto, com uma força além do comum. Com os olhos arregalados, ele tentou se livrar, mas não conseguiu.
— Sam! Sam, me ajude! — Ele gritou desesperado.
Tumulto.
Chris correu para acender a luz.
O dr. Klein se lançou para a frente.
Regan, com a cabeça jogada para trás, rindo de modo demoníaco, uivava como um lobo.
Chris deu um tapa no interruptor, virou-se e viu um pesadelo digno de um filme preto e branco, granulado, em câmera lenta: Regan e os médicos agarrados na cama, uma confusão de braços e pernas, caretas, gritos, palavrões, berros, urros e aquela risada assustadora. Regan roncando como um porco, Regan relinchando como um cavalo, e a cena ganhando velocidade com a cama chacoalhando e batendo de um lado a outro, enquanto os olhos da menina reviravam dentro das cavidades, e ela soltou um berro cru e sangrento de terror vindo da base de sua espinha.
Regan contorceu-se e caiu inconsciente.
Algo indescritível deixou o quarto.
Por um momento, ninguém se mexeu. Lenta e cuidadosamente, os médicos se desenrolaram. Levantaram-se e olharam para Regan, que não conseguia falar. Klein, inexpressivo, aproximou-se da cama, checou a pulsação da menina e, satisfeito, cobriu-a delicadamente com o cobertor; assentiu para Chris e para o psiquiatra. Eles saíram da sala e foram ao escritório, onde, durante um tempo, ninguém disse nada. Chris estava no sofá, com Klein e o psiquiatra próximos a ela, nas cadeiras de frente. O psiquiatra estava pensativo, apertando o próprio lábio enquanto olhava para a mesa de canto, então suspirou e olhou para Chris, que também olhou para ele.
— O que diabos está acontecendo? — perguntou ela com um sussurro.
— A senhora reconheceu o idioma que ela estava falando?
Chris negou, balançando a cabeça.
— Tem alguma crença religiosa?
— Não, não tenho.
— E sua filha?
— Não.
A partir de então, o psiquiatra fez uma série de perguntas relacionadas ao histórico psicológico de Regan, e, quando finalmente terminou, parecia perturbado.
— O que foi? — perguntou Chris, apertando o lenço amarrotado na mão. — Doutor, o que ela tem?
O psiquiatra agiu de maneira evasiva.
— Bem, é meio confuso — disse ele —, e, para dizer a verdade, seria muito irresponsável de minha parte tentar dar um diagnóstico após um exame tão curto.
— Bem, o senhor deve ter uma ideia — Chris insistiu.
Passando o dedo pela sobrancelha e olhando para baixo, o psiquiatra suspirou, olhou para a frente e disse:
— Certo. Sei que a senhora está ansiosa, então direi algumas impressões que tive. Mas são apenas impressões, certo?
Chris inclinou-se para a frente, assentindo de modo tenso.
— Tudo bem. O que foi? — disse, remexendo os dedos com o lenço no colo, contando os pontos na bainha como se fossem contas de um rosário.
— Para começar — disse o psiquiatra —, é bastante improvável que ela esteja fingindo. Certo, Sam? — Klein assentiu, concordando. — Acreditamos nisso por diversos motivos — disse o psiquiatra. — Por exemplo, as contorções anormais e dolorosas. E principalmente, creio eu, pela mudança nos traços dela enquanto conversávamos com a suposta pessoa que ela acredita estar dentro dela. Um efeito psíquico como este não ocorre, a menos que ela acreditasse nessa pessoa. Compreende?
— Sim, acho que sim — respondeu Chris. — Só não entendo de onde vem essa pessoa. Sabe, sempre ouvimos falar de “dupla personalidade”, mas nunca vi nenhuma explicação.
— Bem, ninguém nunca explicou. Usamos conceitos como “consciência”, “mente”, “personalidade”, mas não sabemos bem o que eles são. Quando eu começo a falar sobre algo, como personalidades múltiplas ou dupla, só temos algumas teorias que geram mais perguntas do que respostas. Freud acreditava que certas ideias e certos sentimentos são, de algum modo, reprimidos pela mente consciente, mas permanecem vivos no subconsciente de uma pessoa. Na verdade, eles continuam muito fortes, e continuam buscando expressão por meio de diversos sintomas psiquiátricos. Mas quando o material reprimido... ou, digamos, dissociado, e aqui a palavra “dissociação” significa uma separação do fluxo de consciência. Está acompanhando meu raciocínio?
— Sim, prossiga.
— Certo. Bem, quando esse tipo de material se torna forte o bastante, ou onde a personalidade da pessoa for desorganizada e fraca, o resultado pode ser uma psicose esquizofrênica. Mas isso não é a mesma coisa que dupla personalidade. Esquizofrenia significa dilaceramento da personalidade. Mas onde o material dissociado é forte o suficiente para, de certo modo, se unir e se organizar no subconsciente do indivíduo... Bem, sabe-se que às vezes age de modo independente, como uma personalidade separada. Em outras palavras, assume as funções corporais.
— E é isso o que o senhor acredita que está acontecendo com Regan?
— Bem, é apenas uma teoria. Há diversas outras. Algumas que envolvem a ideia de fuga dentro da inconsciência; a fuga de um problema emocional ou de um conflito. Sua filha não tem histórico de esquizofrenia e o eletroencefalograma não mostrou o padrão de ondas cerebrais que geralmente acompanha tal quadro. Assim sendo, ficamos com o campo geral da histeria.
— Não estou entendendo mais nada — Chris murmurou.
O psiquiatra deu um sorriso amarelo.
— A histeria é uma forma de neurose em que os distúrbios emocionais são transformados em distúrbios físicos. Em certos casos, existe a dissociação. Na psicastenia, por exemplo, a pessoa perde a consciência de seus atos, mas vê a si mesma agindo e atribui suas atitudes a outra pessoa. A ideia que tem da segunda personalidade é vaga, no entanto, e a de Regan parece específica. Então, chegamos ao que Freud chamava de forma de “conversão” da histeria, que parte dos sentimentos inconscientes de culpa e da necessidade de ser punido. A dissociação é a característica principal aqui, até mesmo personalidades múltiplas. E a síndrome também deve incluir convulsões parecidas com ataques epilépticos, alucinações e descontrole motor anormal.
Chris escutava com atenção, os olhos arregalados e o rosto sério, esforçando-se para tentar entender.
— Bem, tudo isso parece descrever o caso de Regan — disse ela. — Não acha? Bem, exceto pela parte da culpa. Afinal, de que ela sentiria culpa?
— Veja, uma resposta clichê seria o divórcio. As crianças geralmente sentem que elas foram rejeitadas e às vezes assumem total responsabilidade pela partida de um dos pais; no caso de sua filha, pode ser isso. Estou pensando nos sintomas da tanatofobia, uma depressão neurótica com a ideia da morte. — Chris passou a prestar mais atenção. — Nas crianças — disse o psiquiatra — percebemos esta depressão acompanhada pela culpa, que está relacionada ao estresse familiar, e muitas vezes pelo medo de perder um dos pais. Ela causa ira e frustração profunda. Além disso, a culpa, nesse tipo de histeria, não precisa ser conhecida pelo consciente. Pode até ser a culpa que chamamos de “livre”, que não se relaciona a nada em especial.
— Então, esse medo da morte...
— A tanatofobia.
— Sim, certo, o que você disse. Ela é passada dos pais para o filho?
Desviando o olhar levemente para evitar exibir a curiosidade que a pergunta despertou, o psiquiatra disse:
— Não, não. Creio que não.
Chris abaixou e balançou a cabeça.
— Não consigo entender — disse ela. — Estou confusa. — Ela olhou para a frente, franzindo o cenho. — Quero saber onde entra essa nova personalidade.
O psiquiatra virou-se para ela.
— Bem, repito que é apenas uma opinião — disse ele —, mas imaginando que seja a histeria de conversão originada da culpa, a segunda personalidade é apenas o agente que aplica o castigo. Se a própria Regan se punisse, seria como reconhecer sua culpa. Mas ela quer fugir dessa noção. Por isso existe a segunda personalidade.
— E é isso, então, o que o senhor acha que ela tem?
— Como eu disse, não sei — disse o psiquiatra, que parecia estar escolhendo as palavras com cuidado, como se pisasse em ovos. — É extraordinário, para uma criança da idade dela, reunir e organizar os componentes de uma nova personalidade. E certas coisas... bem, outras coisas são confusas. O desempenho dela com o tabuleiro Ouija, por exemplo, indicaria enorme sugestionabilidade. E, ainda assim, parece que eu não a hipnotizei de fato. — Ele deu de ombros. — Talvez ela tenha resistido. Mas o mais assustador é a aparente precocidade da nova personalidade. Não é de uma criança de 12 anos, de jeito nenhum. É de alguém muito mais velho. E ainda o idioma que ela estava falando... — Ele hesitou, enquanto olhava para a lareira, pensativo. — Há um estado similar, claro, mas não sabemos muito sobre ele.
— Qual é?
O psiquiatra se virou para ela.
— Bem, é um tipo de sonambulismo no qual, de uma hora para a outra, o indivíduo manifesta conhecimento ou habilidades que nunca aprendeu, e no qual a intenção da segunda personalidade é... — Então se interrompeu. — Bem, é extremamente complicado — disse, resumindo —, e eu simplifiquei as coisas de modo muito arriscado.
Ele também não havia completado seu raciocínio, com medo de chatear Chris além do necessário: a intenção da segunda personalidade, ele teria dito, era destruir a primeira.
— Então, qual é a conclusão?
— É um pouco complicada. Ela precisa de um exame cuidadoso realizado por uma equipe de especialistas, duas ou três semanas de estudo muito concentrado num ambiente clínico. Um lugar como a clínica Barringer, em Dayton.
Chris se virou e olhou para baixo.
— Algum problema? — perguntou ele.
Ela balançou a cabeça e disse baixinho:
— Não, é só que perdi a “Esperança”, só isso.
— Não entendi.
— É uma longa história.
O psiquiatra telefonou para a clínica Barringer. Eles concordaram em admitir Regan no dia seguinte. Os médicos partiram.
Chris engoliu a dor da saudade de Dennings. Pensou de novo na morte, no vazio e na solidão inexplicável, na quietude, no silêncio e na escuridão que esperavam escondidos: não, nenhum movimento; nenhuma respiração, nada. Demais... Demais. Chris abaixou a cabeça e chorou por um momento. E então secou as lágrimas.
Arrumando a mala para a viagem, Chris estava de pé em seu quarto, escolhendo uma peruca para usar em Dayton, quando Karl apareceu na porta. Havia alguém ali para falar com ela, disse o empregado.
— Quem?
— O detetive.
— Detetive? E ele quer falar comigo?
— Sim, senhora.
Karl entrou e deu a Chris um cartão de visita. William F. Kinderman, era o que estava escrito, Chefe de investigação. As palavras estavam impressas na fonte Tudor, maiúscula, que poderia ter sido escolhida por um vendedor de antiguidades. No canto, como se não tivessem muita relação, estavam as palavras menores Divisão de homicídios.
Chris olhou para Karl com desconfiança.
— Ele está trazendo algo que possa ser um roteiro? Sabe como é, um envelope grande de papel pardo, ou algo assim?
Chris havia se dado conta de que não havia pessoa no mundo que não tivesse um romance ou um roteiro ou uma ideia de um dos dois guardada numa gaveta ou na mente. Ela parecia atrair essas pessoas assim como padres atraem bandidos e bêbados.
Karl balançou a cabeça, negando.
— Não, senhora.
Detetive. Será que ele tinha alguma coisa a ver com Burke?
Chris o encontrou na saleta, com a aba de seu chapéu mole e amassado presa por dedos curtos e gorduchos, cujas unhas tinham o brilho de uma recente ida à manicure. Rechonchudo, com sessenta e poucos anos, ele tinha faces coradas e brilhantes. Usava uma calça amassada, marcada e larga, por baixo de um sobretudo cinza de lã, comprido, largo e fora de moda. Quando Chris se aproximou, o detetive disse com uma voz rouca e fraca:
— Eu reconheceria esse rosto em qualquer relação de suspeitos, sra. MacNeil.
— Eu estou numa relação de suspeitos? — perguntou ela.
— Meu Deus! Não, não, não. Claro que não! É apenas um procedimento de rotina — disse ele. — Escute, a senhora está ocupada? Posso voltar amanhã. Sim, voltarei amanhã.
Ele estava se virando, como se pretendesse partir, quando Chris disse ansiosamente:
— O que foi? É sobre Burke? Burke Dennings?
A atitude calma do detetive havia, de algum modo, aumentado sua tensão. Ele se virou e voltou-se para ela, com olhos castanhos e úmidos, caídos nos cantos, que pareciam estar sempre relembrando o passado.
— Que horror — disse ele. — Uma tristeza.
— Ele foi morto? — perguntou Chris abruptamente. — Afinal, o senhor cuida de homicídios. É por isso que está aqui? Burke foi morto?
— Não, como eu disse, é apenas algo de rotina — O detetive repetiu. — Um homem tão importante, não poderíamos simplesmente deixar passar. Não poderíamos — repetiu, com um olhar perdido, dando de ombros. — Pelo menos, uma ou duas perguntas. Ele caiu? Foi empurrado? — Enquanto falava, balançava de um lado a outro com uma das mãos erguida, a palma para a frente. Então, deu de ombros e sussurrou: — Quem sabe?
— Ele foi assaltado?
— Não, não foi assaltado, sra. MacNeil, de jeito nenhum. Mas quem precisa de uma motivação nos dias de hoje? — As mãos do detetive estavam sempre em movimento, como luvas flácidas manipuladas pelos dedos de um ventríloquo desanimado. — Afinal, hoje em dia, uma motivação é um estorvo, talvez até um impedimento. — Ele balançou a cabeça. — Essas drogas — Ele murmurou. — Todas essas drogas. — Ele bateu no peito com as pontas dos dedos. — Pode acreditar, sou pai, e, quando vejo o que está acontecendo, fico com o coração partido. A senhora tem filhos?
— Sim, uma filha.
— Que Deus a proteja.
— Venha ao escritório — disse Chris a ele ao se virar, muito ansiosa para saber o que ele tinha a dizer sobre Dennings.
— Sra. MacNeil, posso lhe incomodar um pouco?
Chris parou e se virou para olhá-lo, imaginando que ele fosse pedir um autógrafo para seus filhos. Nunca era para a própria pessoa. Era sempre para os filhos.
— Sim, claro — disse ela de modo amável, num esforço de esconder sua impaciência.
O detetive fez um gesto e uma careta.
— Meu estômago — disse ele. — A senhora teria um pouco de água com gás? Se for atrapalhar, não se preocupe.
— Não, não atrapalha em nada — respondeu Chris com um sorriso forçado. — Sente-se no escritório — disse, apontando para o cômodo, e então se virou na direção da cozinha. — Creio que há uma garrafa na geladeira.
— Não, eu posso ir à cozinha — disse o detetive, seguindo-a com um jeito de andar que lembrava um gingado. — Detesto atrapalhar.
— Não atrapalha.
— Não, a senhora está ocupada, eu a acompanharei. Tem filhos? — perguntou o detetive enquanto eles caminhavam. — Não, esqueça — Ele se corrigiu imediatamente. — Sim, você tem uma filha. Você me contou. Isso mesmo. Só uma. Quantos anos ela tem?
— Acabou de completar 12.
— Ah, então não precisa se preocupar. Não, ainda não. Mas, mais tarde, cuidado — disse, balançando a cabeça. — Quando se vê toda a loucura do mundo todos os dias. Incrível! Inacreditável! Insano! Sabe, olhei para a minha esposa há alguns dias, ou semanas, talvez, e disse: “Mary, o mundo... o mundo inteiro...” — Ele havia erguido as mãos num gesto abrangente — “...está tendo um ataque de nervos.”
Eles haviam entrado na cozinha, onde Karl estava limpando e polindo o interior de um forno. Ele não se virou nem olhou para o detetive.
— Isto é muito vergonhoso — disse o detetive enquanto Chris abriu a porta da geladeira. Mas olhava para Karl, observando a nuca do empregado com olhos rápidos e curiosos, como um passarinho esquadrinha um lago de perto. — Encontro uma atriz famosa de cinema e peço um pouco de água. Que piada.
Chris havia encontrado a garrafa e procurava um abridor.
— Quer gelo? — perguntou ela.
— Não, normal. Sem gelo está ótimo.
Chris abriu a garrafa, encontrou um copo e serviu a água.
— Sabe aquele filme que fez, chamado Anjo? — perguntou o detetive com um olhar leve e terno, avivando lembranças. — Eu vi seis vezes.
— Se ficou procurando o culpado, prenda o diretor.
— Ah, não, não, foi excelente... Sério. Eu adorei! Só um pouco...
— Venha, podemos nos sentar aqui — disse Chris, interrompendo-o. Ela estava apontando para a mesa da copa, perto da janela. Era uma mesa de pinheiro encerado, com almofadas forradas com tecido florido.
— Sim, claro — disse o detetive.
Eles se sentaram, e Chris deu a água a ele.
— Ah, sim, obrigado — disse ele.
— De nada. O que o senhor estava dizendo?
— Bem, o filme... Foi adorável, de verdade. Muito emocionante. Mas talvez tenha apenas uma coisinha — disse o detetive. — Um errinho pequeno, quase minúsculo. E, por favor, sei que sou um leigo nesses assuntos. Certo? Apenas como espectador. Não sei de nada, não é? No entanto, me pareceu que a trilha sonora estava atrapalhando um pouco certas cenas. Intrusiva demais. — Chris tentou não demonstrar sua impaciência enquanto o detetive falava sem parar, envolvido no calor da discussão. — Fez com que eu me lembrasse o tempo todo de que aquilo era um filme. Sabe? Tantas cenas filmadas em ângulos esquisitos. Distraem muito. Falando nisso, a música... Será que o compositor a roubou de Mendelssohn?
Chris havia começado a tamborilar sobre a mesa, mas conteve-se. Que detetive era aquele?, perguntou-se ela. E por que não parava de olhar para Karl?
— Não chamamos isso de roubo, mas sim de homenagem — disse Chris, sorrindo levemente —, mas fico feliz que tenha gostado do filme. Melhor beber sua água — disse ela, apontando para o copo. — Vai perder o gás.
— Sim, claro. Sou tão falastrão. Perdoe-me.
Erguendo o copo num brinde, o detetive virou o conteúdo, com o mindinho levantado.
— Ah, ótimo, isso é ótimo — disse ele. Quando pousou o copo na mesa, olhou com carinho para a escultura de pássaro feita por Regan. Ocupava agora o ponto central da mesa, com o bico comprido acima do saleiro e do pimenteiro. — É muito pitoresco — disse, sorrindo. — Muito gracioso. — Ele olhou para Chris. — Quem fez?
— Minha filha.
— Muito bom.
— Olha, odeio interromper...
— Sim, sim, eu sei. A senhora está muito ocupada. Olha, só uma ou duas perguntas e irei embora. Na verdade, apenas uma pergunta e, pronto, irei. — Ele estava olhando para o relógio em seu braço como se estivesse ansioso para outro compromisso. — Como o pobre sr. Dennings realizou as filmagens nesta área, gostaríamos de saber se ele visitou alguém na noite do acidente. Além da senhora, claro, ele tinha outros amigos nesta região?
— Ah, ele esteve aqui naquela noite — disse Chris.
— Ah, é mesmo? — disse o detetive, erguendo as sobrancelhas. — Próximo ao horário do acidente?
— A que horas o acidente ocorreu?
— Às 19h05.
— Sim, creio que sim.
— Ah, isso explica, então. — O detetive assentiu, virando-se na cadeira como se estivesse se preparando para levantar. — Ele estava embriagado, estava indo embora e caiu da escada. Sim, isso explica. Sem dúvida. Mas, ouça, apenas para registrar, pode me dizer aproximadamente o horário em que ele saiu da casa?
Inclinando a cabeça para o lado, Chris olhou para o detetive. Ele estava tateando a verdade como alguém escolhe legumes e verduras na feira.
— Não sei — respondeu ela. — Eu não o vi.
O detetive mostrou-se confuso.
— Não compreendo.
— Bem, ele veio e foi embora enquanto eu estava fora. Eu estava no consultório de um médico, em Rosslyn.
O detetive assentiu.
— Ah, entendo. Sim. Claro. Mas, então, como a senhora sabe que ele esteve aqui?
— Sharon me disse...
— Sharon? — Ele a interrompeu.
— Sharon Spencer. É minha secretária.
— Ah.
— Ela estava aqui quando Burke chegou. Ela...
— Ele veio para ver Sharon?
— Não, ele veio para me ver.
— Sim, continue, por favor. Perdoe-me por interromper.
— Minha filha estava doente e Sharon o deixou aqui enquanto foi à farmácia buscar uns remédios. Quando voltou, Burke já havia saído.
— E a que horas foi isso, por favor? A senhora se lembra?
Chris deu de ombros.
— Talvez 19h15, mais ou menos; 19h30.
— E a que horas a senhora havia saído daqui?
— Às 18h15, aproximadamente.
— E a que horas a srta. Spencer saiu?
— Não sei.
— Entre o momento em que a srta. Spencer saiu e o momento em que a senhora voltou, quem ficou aqui na casa com o sr. Dennings, além de sua filha?
— Ninguém.
— Ninguém? Ele deixou uma criança doente sozinha?
Chris assentiu, inexpressiva.
— Nenhum empregado?
— Não, Willie e Karl estavam...
— Quem são eles?
Chris repentinamente sentiu o chão faltar sob seus pés ao ver que as perguntas informais haviam se tornado um interrogatório sério.
— Bem, Karl está ali — disse Chris, movimentando a cabeça, com o olhar fixo nas costas do empregado enquanto ele continuava a limpar e a polir o forno. — E Willie é a esposa dele. São meus empregados. — Polindo. Polindo. Por quê? O forno tinha sido totalmente limpo e polido na noite anterior. — Eles estavam de folga naquela tarde e quando cheguei em casa, eles ainda não tinham retornado. Mas então, Willie... — Chris parou, com os olhos ainda fixos nas costas de Karl.
— Willie o quê? — perguntou o detetive.
Chris virou-se para ele e deu de ombros.
— Bem, nada — disse. Pegou um cigarro. Kinderman o acendeu.
— Então, somente a sua filha saberia quando Burke Dennings saiu da casa?
— Foi mesmo um acidente?
— Ah, claro. É um procedimento de rotina, sra. MacNeil. Sem dúvida. Seu amigo Dennings não foi roubado, então qual seria a motivação?
— Burke sabia irritar as pessoas — disse ela com seriedade. — Talvez alguém na escada o tenha empurrado.
— Esse pássaro tem um nome? Não consigo me lembrar. Acho que tem... — disse o detetive, tocando a escultura de Regan. Ao notar o olhar de Chris, ele afastou a mão, mostrando-se vagamente envergonhado. — Perdoe-me, a senhora está ocupada. Bem, só mais um minuto e terminaremos. Sua filha... saberia quando o sr. Dennings partiu?
— Não, não saberia. Estava fortemente sedada.
— Ah, que pena, que pena — disse ele, parecendo preocupado. — É grave?
— Sim, temo que sim.
— Posso perguntar...? — Ele ergueu a mão num gesto delicado.
— Ainda não sabemos.
— Cuidado com as correntes de ar — disse o detetive com seriedade. — Uma corrente de ar no inverno, quando a casa está quente, é um tapete mágico para as bactérias. Minha mãe dizia isso. Talvez seja mito. Talvez. Não sei. Mas, para ser sincero, para mim, um mito é como o cardápio de um restaurante francês de luxo, uma camuflagem glamorosa e complicada de um fato que você não aceitaria de outra forma, como, talvez, as ervilhas sempre nos servem quando pedimos um filé.
Chris sentiu-se relaxar. A digressão estranha e simpática fez com que ela se acalmasse. O cão são-bernardo, inofensivo, estava de volta.
— Aquele é o quarto dela, sra. MacNeil? O de sua filha? — disse o detetive, apontando para o teto. — Aquele com a janela grande que dá vista para aquela escadaria?
Chris assentiu.
— Sim, é o quarto de Regan.
— Mantenha a janela fechada e ela vai melhorar.
Tensa um momento antes, Chris teve que se esforçar para não rir.
— Sim, farei isso — disse ela. — Na verdade, ela sempre fica fechada e coberta.
— Sim, só uma dica de prevenção — disse o detetive. Ele enfiou a mão gorducha no bolso de seu sobretudo quando viu Chris tamborilar sobre a mesa de novo. — Ah, sim, a senhora está ocupada — disse ele. — Bem, terminamos. Era só para deixar registrado... É rotina, já acabou. — Do bolso, ele havia retirado uma programação mimeografada e amassada de uma produção de Cyrano de Bergerac, de ensino médio, e agora procurava, no bolso de fora, um toco de lápis grafite número 2, amarelo, cuja ponta parecia ter sido apontada com uma faca ou uma tesoura. Desamassando o papel sobre a mesa, ele segurou o lápis e disse: — Só um ou dois nomes, nada mais. Spencer com c?
— Sim, com c.
— C — O detetive repetiu, escrevendo o nome num canto da folha. — E os empregados? Joseph e Willie...?
— Não. São Karl e Willie Engstrom.
— Karl. Sim, isso mesmo. Karl Engstrom — disse, escrevendo os nomes com letra grossa. — Eu me lembro dos horários — suspirou enquanto virava a folha à procura de espaço em branco. — Ah, não, espere. Eu me esqueci! Sim, os empregados. A senhora disse que eles chegaram em casa às...?
— Eu não disse. Karl, a que horas você chegou ontem à noite? — perguntou Chris para ele. O suíço virou a cabeça, inescrutável.
— Cheguei exatamente às 21h30.
— Ah, sim, isso mesmo. Você se esqueceu da chave — disse, voltando a olhar para o detetive. — Eu me lembro de ter olhado no relógio da cozinha quando escutei a campainha tocar.
— Vocês assistiram a um bom filme? — perguntou o detetive. — Eu nunca vou pelas críticas — disse ele com a voz baixa. — Vou pelo que as pessoas pensam, o público.
— Paul Scofield, em Rei Lear — Karl informou ao detetive.
— Ah, eu vi esse! Excelente!
— Eu o assisti no cinema Gemini — Karl prosseguiu. — Na sessão das 18h. E então, logo depois, peguei o ônibus na frente e...
— Por favor, não é necessário — disse o detetive levantando a mão, com a palma virada para a frente. — Não, não, por favor!
— Não me incomodo.
— Se o senhor insiste.
— Desci na esquina da avenida Wisconsin com a rua M. Eram 21h20, acho. Então, caminhei até a casa.
— Olha, o senhor não precisava ter me contado — disse o detetive —, mas, mesmo assim, obrigado, muito gentil de sua parte. A propósito, o senhor gostou do filme?
— Foi bom.
— Sim, também achei. Excepcional. Bem, agora... — disse, virando-se para Chris e para os rabiscos do papel. — Desperdicei seu tempo, mas tenho um trabalho a fazer. É o lado ruim. Existem os dois lados. Bem, só mais um instante e vai terminar — disse ele. — Trágico, trágico — disse, enquanto anotava coisas nas margens. — Burke Dennings era um homem muito talentoso. E um homem que conhecia as pessoas, tenho certeza, e como lidar com elas. Com tantas pessoas que podem falar bem dele ou talvez falar mal, como o cinegrafista, o rapaz do som, o compositor, sem contar, me perdoe, os atores. Por favor, corrija-me se eu estiver enganado, mas parece que, hoje em dia, um diretor de importância também tem que ser quase um psicólogo com o elenco. Estou errado?
— Não, não está, porque somos todos inseguros.
— Até mesmo a senhora?
— Principalmente eu. Mas Burke era bom nisso, em manter nosso moral alto — disse Chris, dando de ombros acanhadamente. — Mas, claro, ele tinha um gênio difícil.
O detetive mudou a posição do papel.
— Ah, sim, talvez sim, com os astros e estrelas. Pessoas do nível dele. — Mais uma vez, ele começou a rabiscar. — Mas o segredo são as pessoas menores, aquelas que lidam com detalhes menos importantes, porque, se não fizerem as coisas certas, criam grandes problemas. Não concorda?
Chris olhou para as próprias unhas e balançou a cabeça.
— Quando Burke tinha seus acessos — disse ela —, ele não fazia distinção. Mas só se tornava mau quando bebia.
— Bem, terminamos. Pronto. — Kinderman estava fazendo o pingo final de um i quando, de repente, lembrou-se de algo. — Ei, espere. Os Engstrom. Eles saíram e voltaram juntos?
— Não, Willie foi assistir a um filme dos Beatles — respondeu Chris, enquanto Karl se virara para responder. — Ela chegou alguns minutos depois de mim.
— Ah, bem, por que eu perguntei isso? — perguntou-se Kinderman. — Não tem nada a ver com nada. — Ele dobrou o papel e o guardou com o lápis, no bolso de dentro de seu sobretudo. — Bem, é só isso — disse ele, satisfeito. — Quando eu voltar ao escritório, sem dúvida me lembrarei de algo que deveria ter perguntado. Sim, isso sempre acontece comigo. Bem, que seja. Talvez eu telefone para a senhora, se precisar. — Ele ficou de pé e Chris levantou-se com ele.
— Bem, passarei algumas semanas fora daqui — disse ela.
— Posso esperar — disse o detetive. — Posso esperar. — Ele estava olhando para a escultura com carinho, sorrindo. — Ah, que bonitinho, muito, muito bonitinho. — Ele a pegou e passou o dedo pelo bico, e então a colocou de novo sobre a mesa e começou a sair da casa. — A senhora encontrou um bom médico? — perguntou ele enquanto Chris o acompanhava até a porta. — Para a sua filha?
— Bem, já consegui vários — disse ela com seriedade. — Bem, vou interná-la numa clínica que é ótima em investigação, como o senhor, mas eles investigam vírus.
— Vamos torcer para que eles sejam muito melhores, sra. MacNeil. Essa clínica fica em outra cidade?
— Sim, em Ohio.
— É boa?
— Vamos ver.
— Mantenha sua filha longe de correntes de ar.
Eles chegaram à porta da frente da casa.
— Bem, eu diria que foi um prazer — disse o detetive de modo sério enquanto segurava o chapéu pela aba com as duas mãos —, mas sob essas circunstâncias... — Ele abaixou a cabeça levemente e a balançou, e voltou a olhar para a frente. — Sinto muitíssimo.
Com os braços cruzados, Chris abaixou a cabeça e disse baixinho:
— Obrigada. Muito obrigada.
Abrindo a porta, o detetive saiu, colocou o chapéu e virou-se para olhar Chris.
— Bem, boa sorte com sua filha — disse ele.
Chris deu um sorriso amarelo.
— Boa sorte com o mundo.
O detetive assentiu com simpatia e tristeza, virou-se para a direita e, sem fôlego, desceu a rua lentamente. Chris observou quando ele se dirigiu a uma viatura estacionada perto da esquina. Levou a mão ao chapéu quando uma rajada repentina de vento soprou do lado sul e fez a barra de seu sobretudo esvoaçar. Chris olhou para baixo e fechou a porta.
Quando acomodou-se no lado do passageiro da viatura, Kinderman virou-se para olhar de novo para a casa, pois teve a impressão de que vira uma movimentação na janela de Regan, alguém movendo-se rapidamente para o lado, fora de vista. Não teve certeza. Havia visto a imagem de esguelha e tão brevemente que logo pensou que tinha sido apenas impressão. Ficou olhando e percebeu que as persianas da janela estavam abertas. Estranho. Chris dissera que elas sempre ficavam fechadas. Durante um tempo, o detetive continuou observando. Ninguém apareceu. Franzindo o cenho, ele olhou para baixo e balançou a cabeça, abriu o porta-luvas da viatura, tirou dali um canivete e um saco de prova e, com a ajuda da menor lâmina do canivete, manteve o polegar dentro do envelope e tirou de debaixo da unha fragmentos microscópicos da argila de cor verde que sorrateiramente raspara da escultura de Regan. Quando terminou, selou o envelope e o colocou no bolso de dentro do sobretudo.
— Certo — disse ele ao motorista —, podemos ir. — Eles partiram e, enquanto desciam a rua Prospect, ao ver o trânsito intenso mais à frente, Kinderman alertou o motorista: — Vá devagar. — E então, abaixando a cabeça, ele fechou os olhos, suspirando ao passar a mão pelo nariz. — Ah, meu Deus, que mundo. Que vida.
Mais tarde naquela noite, enquanto o dr. Klein injetava cinquenta miligramas de promazina para garantir a tranquilidade de Regan durante a viagem a Dayton, Ohio, Kinderman estava refletindo em seu escritório, com as palmas das mãos pressionadas sobre a mesa enquanto analisava cuidadosamente os intrigantes dados coletados, sem qualquer outra luz na sala além do feixe estreito de uma antiga luminária de mesa que iluminava uma série de artigos. Ele acreditava que, daquela forma, conseguia diminuir o foco de sua concentração. Sua respiração estava forte na escuridão; seu olhar ia de um lado a outro. Ele respirou fundo e fechou os olhos. Limpeza mental!, instruiu a si mesmo, como sempre fazia quando queria esvaziar a mente para pensar num ponto de vista distinto. Tudo deve sair! Ele abriu os olhos e voltou a analisar o relatório do legista sobre Dennings:
...Rompimento da espinha com crânio e pescoço fraturados, além de diversas contusões, lacerações e arranhões; rompimento da pele do pescoço; equimose da pele do pescoço; corte do platisma, esternomastoide, esplênio, trapézio e diversos músculos menores do pescoço, com fratura da espinha e das vértebras e rompimento dos ligamentos anteriores e posteriores...
Ele olhou para a escuridão da cidade pela janela. O domo do Capitólio brilhava, num sinal de que o Congresso estava trabalhando até tarde, e mais uma vez o detetive fechou os olhos, relembrando a conversa que teve com o legista às 23h55 na noite da morte de Dennings.
“Isso pode ter ocorrido na queda?
“Veja, é muito improvável. Os esternomastoides e o trapézio bastam para impedir algo assim. Além disso, temos também as diversas articulações da coluna cervical e os ligamentos que unem os ossos.”
“Ou seja, é possível?”
“Sim. O cara estava embriagado e esses músculos estavam, de certo modo, relaxados. Talvez se a força do impacto inicial tivesse sido forte o suficiente e...”
“Caindo cerca de nove, dez metros, antes de bater?”
“Sim, isso. E se, imediatamente depois do impacto, a cabeça dele ficasse presa em algo. Em outras palavras, se houvesse uma interferência imediata com a rotação normal da cabeça e do corpo juntos, talvez, e eu digo talvez, fosse possível termos esse resultado.”
— Outra pessoa poderia ter feito isso?
— Sim, mas teria que ser um homem excepcionalmente forte.
Kinderman havia checado o relato de Karl Engstrom a respeito de seu paradeiro no momento da morte de Dennings. Os horários dos filmes batiam, assim como os horários dos ônibus daquela noite. Além disso, o motorista do ônibus em que Karl afirmava ter subido, perto da entrada do cinema, terminou seu trabalho na Wisconsin com a M, onde Karl afirmara ter descido, aproximadamente às 21h20. Uma mudança de motoristas ocorreu, e o motorista dispensado havia registrado o momento de sua chegada no ponto de transferência: exatamente às 21h18. Sobre a mesa de Kinderman, porém, havia um boletim de ocorrência contra Engstrom, de 27 de agosto de 1963, atestando que ele havia roubado uma quantidade de narcóticos ao longo de meses da casa de um médico em Beverly Hills, onde ele e Willie trabalhavam à época.
...Nascido a 20 de abril de 1921, em Zurique, Suíça. Casado com Willie (nome de solteira: Braun), no dia 7 de setembro de 1941. Filha: Elvira, nascida na cidade de Nova York, em 1943, endereço atual desconhecido. Defensor...
O detetive considerou o restante surpreendente:
O médico, cujo testemunho havia sido considerado sine qua non para uma acusação formal, repentinamente, e sem qualquer explicação, retirou a queixa. Por que ele havia feito isso? E como os Engstrom tinham sido contratados por Chris MacNeil apenas dois meses antes, o médico havia dado a eles uma referência favorável.
Por que faria isso?
Engstrom certamente havia furtado as drogas e, apesar disso, as investigações médicas na época da acusação não conseguiram dar indício algum de que o homem era viciado, nem sequer de que era usuário.
Por que não?
Com os olhos ainda fechados, o detetive recitou o início de “Jaguadarte”, um poema de Lewis Carroll: “Era briluz. As lesmolisas touvas roldavam e relviam nos gramilvos...” Era outro truque usado por Kinderman para limpar a mente, e quando terminou de recitar o verso, abriu os olhos e fixou o olhar na rotunda do Capitólio. Estava tentando manter a mente vazia, ainda que, como sempre, percebesse que seria algo impossível. Suspirando, olhou para o relatório do psicólogo da polícia a respeito das recentes profanações na Santíssima Trindade: “...estátua... falo... excremento humano... Damien Karras”, ele havia sublinhado de vermelho. Com a respiração audível no silêncio total, ele pegou um trabalho acadêmico sobre bruxaria e abriu numa página que havia marcado com um clipe de papel.
Missa Negra (...) uma forma de adoração ao demônio, e o ritual consiste, principalmente, em (1) exortação (o “sermão”) para a prática do mal na comunidade; (2) coito com o demônio (reconhecidamente doloroso, e o pênis do demônio é invariavelmente descrito como “gélido”); e (3) uma variedade de profanações que eram amplamente sexuais por natureza. Por exemplo, hóstias de tamanho incomum eram preparadas (feitas de farinha, fezes, sangue de menstruação e pus), e então cortadas e usadas como vaginas artificiais com as quais os padres copulariam ferozmente enquanto alucinavam que estavam estuprando a Virgem Mãe de Deus ou sodomizando Cristo. Em outro momento de tal prática, uma estátua de Cristo era penetrada fundo na vagina de uma menina, e no ânus era inserida a hóstia, que o padre amassava ao gritar blasfêmias e sodomizar a menina. Imagens de tamanho real de Cristo e da Virgem Maria também desempenhavam um papel frequente no ritual. A imagem da Virgem, por exemplo — normalmente pintada de modo a lhe dar uma aparência dissoluta ou vulgar —, tinha seios que os cultores chupavam e também uma vagina dentro da qual o pênis podia ser inserido. As estátuas de Cristo tinham um falo para felação praticada por homens e por mulheres, e também para ser inserido nas vaginas das mulheres e nos ânus dos homens. Às vezes, em vez de uma imagem, uma figura humana era presa a uma cruz e passava a fazer as vezes da estátua, e, no momento da ejaculação, o sêmen era coletado num cálice blasfemamente consagrado e usado na preparação da hóstia, que deveria ser consagrada num altar coberto por excrementos. Esse...
Kinderman virou as páginas até encontrar um parágrafo sublinhado a respeito de assassinato ritualístico, e o leu lentamente enquanto mordia a ponta de um dos dedos indicadores. Quando terminou, franziu o cenho e balançou a cabeça, e então olhou para a luminária, pensativo. Apagou a luz e saiu de seu escritório.
Dirigiu até o necrotério.
O jovem atendente à mesa comia um sanduíche de presunto e queijo no pão de centeio e afastou as migalhas de cima de um jogo de palavras cruzadas quando Kinderman se aproximou dele.
— Dennings — disse o detetive, com a voz rouca.
O atendente assentiu, terminou de escrever uma palavra de cinco letras na horizontal, levantou com seu sanduíche e percorreu o corredor.
— Por aqui — disse ele de modo lacônico. Kinderman o seguiu, com o chapéu na mão, seguindo o cheiro fraco de sementes de alcaravia e mostarda até chegar às fileiras de refrigeradores, às gavetas tristes usadas para colocar olhos que não mais viam.
Eles pararam diante da gaveta 32. O atendente a puxou, inexpressivo. Mordeu seu sanduíche, e um pedaço da casca melada de maionese caiu no lençol. Kinderman olhou. Lenta e delicadamente, afastou o lençol para expor o que ele já tinha visto e não conseguia aceitar: a cabeça de Dennings estava totalmente virada para trás.