CAPÍTULO SEIS

Na quarta-feira, 11 de maio, eles voltaram para casa. Colocaram Regan na cama, instalaram uma trava na janela e tiraram todos os espelhos do quarto e do banheiro dela.

 

“...com cada vez menos momentos lúcidos, e sinto dizer que agora a consciência dela fica completamente obliterada durante os acessos. Isso é novo e pareceria eliminar a histeria real. Enquanto isso, um ou dois sintomas na fronteira do que chamamos fenômeno parapsíquico têm...”

 

Dr. Klein chegou e Chris o recebeu com Sharon enquanto ele ensinava os procedimentos adequados para administrar as doses de Sustagen a Regan durante seus períodos de coma. Ele inseriu a sonda nasogástrica.

— Primeiro...

Chris forçou-se a observar e ainda assim não ver o rosto da filha; forçou-se a apegar-se às palavras que o médico estava dizendo e a afastar outras que tinha ouvido na clínica.

“A senhora disse que ‘não tem religião’, sra. MacNeil. É isso mesmo? Não há qualquer educação religiosa aqui?

“Bem, talvez apenas ‘Deus’. Sabe, de um modo geral. Por quê?”

“Bem, em primeiro lugar, porque, quando não são bobagens, as coisas que ela diz são relacionadas em grande parte à religião. De onde a senhora acredita que ela possa ter aprendido?”

“Bem, primeiro, preciso de um exemplo.”

“Certo: ‘Jesus e Maria, 69’, por exemplo.”

Klein guiou a sonda para dentro do estômago de Regan.

— Em primeiro lugar, a senhora confere se o líquido entrou nos pulmões — disse ele, apertando a sonda para soltar o fluxo de Sustagen. — Se...

 

“...síndrome de um tipo de distúrbio que raramente se vê mais, exceto entre culturas primitivas. Nós a chamamos de possessão sonambuliforme. Para ser sincero, não sabemos muito sobre ela, apenas que começa com um conflito ou culpa que acaba levando o paciente à ilusão de que seu corpo foi invadido por uma inteligência externa; um espírito, podemos dizer. No passado, quando a crença no mal era relativamente forte, a entidade de possessão era geralmente um demônio. Mas, em casos mais modernos, é mais comum que seja o espírito de alguém morto, normalmente alguém que o paciente conhece ou já viu e que é capaz de imitar de forma inconsciente, na voz e nos trejeitos; até mesmo os traços do rosto, em casos mais raros.”

 

Quando o dr. Klein, melancólico, saiu da casa, Chris telefonou para seu agente em Beverly Hills e disse a ele, desanimada, que com certeza não poderia dirigir “Esperança”. Depois, telefonou para a sra. Perrin, que não estava em casa. Chris desligou o telefone com um receio que só crescia. Quem poderia ajudá-la?, pensou de modo desesperado. Havia alguém? Algo? O quê?

 

“...Casos nos quais é mais fácil lidar com os espíritos dos mortos; não se vê a ira na maioria deles, nem a hiperatividade nem a excitação motora. No entanto, no outro tipo principal de possessão sonambuliforme, a nova personalidade é sempre má, sempre hostil em relação à primeira. Seu principal objetivo na vida é prejudicar e, às vezes, até matá-la.”

 

Um conjunto de amarras havia sido entregue à casa na rua Prospect e Chris permaneceu observando, cansada, enquanto Karl as prendia, primeiro à cama e, depois, aos pulsos de Regan. Enquanto Chris movia um travesseiro num esforço para centrá-lo em relação à cabeça de Regan, o suíço ajeitava e olhava com piedade para o rosto alterado da criança.

— Ela vai ficar bem? — perguntou ele.

Chris não respondeu. Enquanto Karl falava, ela tirou um objeto de baixo do travesseiro de Regan e o observava, incrédula. Então, olhou para Karl com seriedade:

— Karl, quem colocou este crucifixo aqui?

 

“A síndrome é apenas a manifestação de algum conflito, de alguma culpa, então tentamos chegar a ela, descobrir o que ela é. Bem, o melhor procedimento num caso como este é a hipnoterapia. No entanto, não conseguimos hipnotizá-la. Então, nós tentamos a narcossíntese, mas parece que também não deu resultado.”

“O que faremos, então?”

“Temos que dar tempo ao tempo. Devemos continuar tentando e esperando que haja uma mudança. Enquanto isso, ela terá que ser hospitalizada.”

 

Chris encontrou Sharon na cozinha, montando sua máquina de escrever sobre a mesa. Ela havia acabado de trazer a máquina do quarto de brinquedos do sótão. Willie fatiava cenouras na pia, para preparar um ensopado.

Com a voz tensa e embargada, Chris perguntou:

— Foi você quem colocou o crucifixo embaixo do travesseiro dela, Shar?

Sharon mostrou-se confusa.

— Do que você está falando?

— Não colocou?

— Chris, nem sei do que você está falando! Já lhe disse isso antes, Chris, já disse no avião, tudo o que disse a Rags sobre religião foram coisas como “Deus fez o mundo”, e talvez coisas sobre...

— Tudo bem, Sharon, tudo bem. Acredito em você, mas...

— Não fui eu! — Willie resmungou de modo defensivo.

— Droga! Alguém colocou isto aqui! — disse Chris de repente. E então ela foi atrás de Karl, que havia entrado na cozinha e aberto a porta da geladeira. — Karl! — disse, chamando-a.

— Sim, senhora — respondeu Karl com calma, sem se virar. Ele estava colocando cubos de gelo numa toalha de rosto.

— Bem, vou perguntar mais uma vez — disse Chris com raiva, a voz falhando e quase aguda. — Você colocou aquele maldito crucifixo embaixo do travesseiro de Regan?

— Não, senhora. Eu, não. Não faço isso — respondeu Karl, pondo mais um cubo de gelo na toalha.

— Aquele maldito crucifixo não andou até lá, inferno! — Chris gritou ao se virar para Willie e Sharon. — Qual de vocês está mentindo? Digam!

Karl parou o que estava fazendo e se virou para observar Chris. Sua raiva repentina havia assustado a todos, e agora, abruptamente, ela se sentou numa cadeira, chorando a ponto de soluçar, com as mãos trêmulas.

— Ah, sinto muito. Não sei o que estou fazendo! — disse ela, chorando. — Ah, meu Deus, eu não sei!

Enquanto Willie e Karl observavam em silêncio, Sharon aproximou-se por trás de Chris e começou a massagear seu pescoço e seus ombros com mãos delicadas.

— Tudo bem, tudo bem.

Chris secou o rosto com a manga da blusa.

— Bem, acho que quem fez isso — disse, encontrando um lenço num bolso e assoando o nariz, e continuou: —, quem fez isso estava tentando ajudar.

 

“Ouçam, estou dizendo e vou repetir, e é melhor vocês acreditarem, eu não vou colocá-la num hospício!”

“Senhora, não é um...”

“Não me importa como vocês se referem àquele lugar! Não permitirei que ela saia de perto de mim!”

“Sinto muito. Todos nós sentimos muito.”

“Sim, claro. Minha nossa, 88 médicos e vocês só me dizem besteiras...!”

 

Chris rasgou o celofane de um pacote azul de Gauloises Blondes, um cigarro francês importado, tragou profundamente algumas vezes, apagou-o depressa num cinzeiro e subiu a escada para ver Regan. Quando abriu a porta, na escuridão do quarto, viu um homem sentado ao lado da cama de Regan, numa cadeira de madeira de espaldar reto, com o braço estendido e a mão sobre a testa de Regan. Chris se aproximou. Era Karl. Quando Chris se aproximou da cama, ele não olhou para ela nem disse nada, mas manteve o olhar voltado para o rosto da menina. Segurava algo. O que era? Ela viu que se tratava de uma bolsa de gelo improvisada.

Surpresa e comovida, Chris olhou para o suíço impassível com um olhar carinhoso; mas ele não se moveu nem reconheceu sua presença, ela deu meia-volta e saiu do quarto sem fazer barulho. Desceu até a cozinha, sentou-se à mesa da copa, bebeu café e ficou olhando para o nada, até que, de repente, levantou-se e caminhou rapidamente em direção ao escritório repleto de móveis de cerejeira.

 

“A possessão tem certa relação com a histeria porque a origem da síndrome é quase sempre autossugestiva. Sua filha deve ter tomado conhecimento da possessão, acreditou no assunto, e possivelmente soube de alguns dos sintomas, e agora seu subconsciente está produzindo a síndrome. Entende? Se isso puder ser de fato estabelecido, e se a senhora continuar não concordando com a hospitalização, pode ser que queira tentar algo que vou sugerir. A chance de cura é pequena, na minha opinião, mas ainda assim é uma chance.”

“Pelo amor de Deus. O que é?”

“A senhora já ouviu falar de exorcismo, sra. MacNeil?”

 

Chris não conhecia os livros do escritório — eles faziam parte da mobília que já existia na casa — e, agora, ela começou a analisar os títulos com atenção.

 

“Trata-se de um ritual estilizado bem antigo, em que rabinos e padres tentavam expulsar um espírito do mal. Apenas os católicos ainda não o descartaram, mas eles mantêm a prática escondida, por vergonha, creio eu. Mas para alguém que realmente se considera possuído, eu diria que o ritual é muito impressionante, e geralmente funciona, na verdade, ainda que não pelo motivo imaginado; era apenas uma sugestão. A crença da vítima na possessão ajudava a causá-la, e, da mesma maneira, sua crença no poder do exorcismo pode fazer com que ela desapareça. É... estou vendo que a senhora está franzindo o cenho. Sim, claro. Sei que é difícil de acreditar. Então, deixe-me dizer algo parecido que sabemos ser verdade. Tem a ver com os aborígenes australianos. Eles acreditam que se um mago lançar um ‘raio da morte’ neles à distância, sem dúvida eles morrerão. E a verdade é que eles morrem mesmo! Apenas se deitam e morrem lentamente! E a única coisa que os salva, na maior parte das vezes, é uma forma parecida de sugestão: um ‘raio’ contraposto por outro mago.”

“Está me dizendo que devo levar minha filha a um bruxo?”

“Como uma medida desesperada, como um último recurso... bem, sim. Acredito que estou dizendo exatamente isso. Leve-a a um padre católico. É um conselho meio bizarro, eu sei, e talvez seja até um pouco perigoso, a menos que consigamos determinar com certeza se sua filha sabia algo sobre possessão, e principalmente exorcismo, antes de os sintomas aparecerem. A senhora acha que ela pode ter lido sobre isso em algum lugar?”

“Não.”

“Pode ter visto num filme? Algo no rádio? Na televisão?”

“Não.”

“Será que ela leu o evangelho? O Novo Testamento?”

“Não, não leu. Por que o senhor está perguntando isso?”

“Existem alguns relatos de possessão e de exorcismos realizados por Cristo nesses textos. As descrições dos sintomas, na verdade, são os mesmos da possessão hoje, então...”

“Olha, não adianta. Certo? Esqueça! Era só o que me faltava o pai dela saber que eu chamei um...!”

 

Os dedos de Chris se moviam de livro a livro, procurando, mas nada encontrou até que... Espere! Seus olhos se voltaram a um título na estante baixa. Era o livro sobre bruxaria que Mary Jo Perrin havia enviado a ela. Chris o pegou e abriu no índice, correndo o dedo pela lista até que, de repente, parou e pensou: “Aqui! Está aqui!”. Sentiu uma onda de ansiedade. Será que os médicos da clínica Barringer estavam certos, afinal? Seria isso? Será que Regan havia desenvolvido o distúrbio e seus sintomas por meio da autossugestão das páginas desse livro?

O título de um capítulo era “Estados de possessão”.

Chris caminhou até a cozinha, onde Sharon estava sentada lendo suas anotações de um bloquinho enquanto datilografava uma carta. Chris levantou o livro.

— Você leu isto, Shar?

Ainda datilografando, Sharon perguntou:

— Li o quê?

— Este livro sobre bruxaria.

Sharon parou de datilografar, olhou para Chris e para o livro e disse:

— Não, não li. — E voltou a trabalhar.

— Nunca o viu? Nunca o colocou numa estante no escritório?

— Não.

— Onde está Willie?

— No mercado.

Chris assentiu e permaneceu pensativa, em silêncio, e subiu ao quarto de Regan, onde Karl ainda mantinha vigília à menina, ao lado de sua cama.

— Karl!

— Sim, senhora.

Chris mostrou o livro.

— Você por acaso encontrou este livro pela casa e o colocou junto com os outros livros do escritório?

O empregado se virou para Chris, inexpressivo, olhou para o livro e de volta para ela.

— Não, senhora — disse ele. — Eu, não. — E voltou a olhar para Regan.

Certo, então talvez Willie.

Chris voltou para a cozinha, sentou-se à mesa e, abrindo o livro no capítulo sobre possessão, começou a procurar algo relevante, qualquer coisa que os médicos da clínica Barringer acreditavam que podia ter causado os sintomas de Regan.

E encontrou.

 

Diretamente derivado da crença prevalente em demônios, o fenômeno conhecido como possessão era um estado no qual muitos indivíduos acreditavam que suas funções físicas e mentais tinham sido invadidas e estavam sendo controladas por um demônio (mais comum no período discutido) ou pelo espírito de alguém morto. Não existe período na história ou localidade no mundo em que esse fenômeno não tenha sido relatado, e em termos razoavelmente constantes, e mesmo assim ele ainda precisa ser explicado de forma adequada. Desde o estudo conclusivo de Traugott Oesterreich, publicado pela primeira vez em 1921, pouco foi acrescentado ao que se sabe, apesar dos avanços da psiquiatria.

 

Chris franziu o cenho. Ainda não tinha sido totalmente explicado? Ela tivera uma impressão diferente dos médicos da Barringer.

 

O que se sabe é que diversos indivíduos, em diversas épocas, passaram por transformações enormes e tão completas que as pessoas ao redor deles sentiam como se estivessem lidando com outra pessoa. Não apenas a voz, os trejeitos, as expressões faciais e os movimentos característicos são, por vezes, alterados, mas o indivíduo acredita ser totalmente diferente da pessoa que era e acredita ter um nome — humano ou demoníaco — e uma história à parte, diferente da sua. No arquipélago malaio, onde a possessão é, até hoje, uma ocorrência comum e corriqueira, o espírito possuidor de alguém morto geralmente faz com que o possuído imite seus gestos, voz e trejeitos de modo tão parecido que os parentes dos falecidos acabam em prantos. Mas além da famosa quase possessão — os casos que podem ser atribuídos à mentira, à paranoia e à histeria —, o problema tem sido interpretar o fenômeno, e a interpretação mais antiga é a espírita, uma impressão que tem chance de ser fortalecida pelo fato de que a personalidade penetrante pode ter efeitos bem diferentes da primeira. Na forma demoníaca da possessão, por exemplo, o “demônio” pode falar em línguas desconhecidas à primeira pessoa.

 

Isso! As coisas ditas por Regan! Seria uma tentativa de falar outro idioma? Chris leu rapidamente.

 

...ou manifesta diversos fenômenos parapsíquicos, como telecinesia, por exemplo: o movimento de objetos sem a aplicação de força física.

 

As batidas? A cama chacoalhando?

 

...Nos casos de possessão por mortos, ocorrem manifestações, como o relato de Oesterreich a respeito de um monge que, repentinamente, enquanto possuído, tornou-se um talentoso e brilhante dançarino, apesar de nunca ter dançado um passo sequer antes da possessão. Essas manifestações são por vezes tão impressionantes que Jung, o psiquiatra, depois de estudar um caso em primeira mão, conseguiu oferecer apenas uma explicação parcial para o que ele tinha certeza de que “não podia ser mentira”...

 

Chris franziu o cenho. O tom do texto era preocupante.

 

...e William James, o psicólogo mais importante dos Estados Unidos, propôs “a plausibilidade da interpretação espírita do fenômeno”, depois de estudar a famosa “Watseka Wonder”, uma adolescente de Watseka, Illinois, que tornou-se totalmente indistinguível, em personalidade, de uma menina chamada Mary Roff, que morrera num manicômio estadual 12 anos antes da possessão....

 

Distraída, Chris não ouviu a campainha tocar; não ouviu Sharon parar de datilografar e atender à porta.

 

Acredita-se que a forma demoníaca de possessão teve origem no início do cristianismo; mas, na verdade, tanto a possessão quanto o exorcismo nasceram antes da era de Cristo. Os egípcios antigos, e também as primeiras civilizações do Tigre e Eufrates, acreditavam que os distúrbios físicos e espirituais eram causados pela invasão de demônios ao corpo. A fórmula a seguir, por exemplo, serve para o exorcismo contra doenças de crianças no Egito antigo: “Vais embora, tu que vens em escuridão, cujo nariz está virado ao contrário, cujo rosto está de cabeça para baixo. Tens que vir beijar essa criança? Não permitirei...”

 

— Chris?

— Shar, estou ocupada.

— Um detetive de homicídios quer falar com você.

— Ah, meu Deus, Sharon, diga a ele para... — Chris parou abruptamente, olhou para a frente e disse: — Ah, sim, claro, Sharon. Peça a ele que entre.

Sharon saiu e Chris olhou para as páginas do livro, sem nada ler, tomada por uma sensação de receio difusa porém crescente. Ouviu uma porta se fechando. Ouviu passos em sua direção. Uma sensação de espera. Espera? Pelo quê? Como um sonho vívido de que alguém nunca se lembra, Chris sentiu uma ansiedade que parecia conhecida e, ainda assim, indefinida.

Com o chapéu amassado nas mãos, ele entrou com Sharon, resfolegando, cumprimentando-a.

— Sinto muito — disse ele ao se aproximar. — Sim, a senhora está ocupada. Dá para ver. Sou inconveniente.

— Como está o mundo? — perguntou Chris.

— Muito ruim. E como está sua filha?

— Nenhuma mudança.

— Sinto muito. — Respirando com dificuldade, Kinderman parou ao lado da mesa, com os olhos de cachorro pidão parecendo preocupados. — Veja, não gostaria de atrapalhar. Sei que sua filha é uma preocupação no momento. Só Deus sabe, quando minha pequena Julie pegou... o quê, mesmo? Qual era a doença? Não me lembro. Era...

— Sente-se — Chris o interrompeu.

— Ah, sim, muito obrigado — disse o detetive enquanto se sentava numa cadeira diante de Sharon, que, aparentando indiferença, continuou a datilografar.

— Desculpe. O que o senhor estava dizendo? — perguntou Chris.

— Bem, minha filha, ela... Bem, não. Não importa. Lá vou eu, contando toda a história da minha vida, talvez fosse possível fazer um filme com ela. É sério! É incrível! Se a senhora soubesse metade das coisas que aconteceram na minha família, iria... Não, não importa. Certo, só uma! Contarei uma! Toda sexta-feira, minha mãe preparava peixe recheado, certo? Mas durante a semana toda, a semana toda, ninguém conseguia tomar banho porque minha mãe mantinha a carpa na banheira, nadando de um lado a outro, para lá e para cá, porque minha mãe dizia que isso tirava o veneno do organismo. Imagine só! Quem via aquela carpa o tempo todo pensava coisas terríveis e maldosas, vingativas! Bem, já chega. Sério. Só uma risada de vez em quando para não chorarmos.

Chris o observou. E esperou.

— Ah, a senhora está lendo! — O detetive estava olhando para o livro sobre bruxaria. — Para um filme?

— Não, só estou me distraindo.

— É bom?

— Acabei de começar.

— Bruxaria — Kinderman murmurou, com a cabeça inclinada enquanto lia o título do livro no topo de uma página.

— Então, o que houve? — perguntou Chris.

— Sim, sinto muito. A senhora está ocupada. Vou concluir. Como disse, eu não a perturbaria, a menos que...

— A menos que o quê?

Aparentando repentina seriedade, o detetive uniu as mãos sobre a mesa de pinheiro.

— Bem, parece que Burke...

— Droga! — disse Sharon com irritação ao tirar uma carta do rolo da máquina de datilografar, amassá-la com as mãos e jogá-la no cesto de papel aos pés de Kinderman. Ele e Chris viraram a cabeça para olhá-la, e, quando a secretária os viu, disse: — Ah, sinto muito. Não percebi que vocês estavam aqui!

— É a srta. Fenster? — perguntou Kinderman.

— Spencer — Sharon o corrigiu ao arrastar a cadeira para trás e levantar-se para pegar a carta amassada do chão, murmurando: — Eu nunca disse que era Julius Erving.

— Não importa, não importa — disse o detetive ao abaixar-se e pegar o papel amassado.

— Ah, obrigada — Sharon se deteve e voltou à cadeira.

— Com licença, a senhorita é a secretária? — perguntou Kinderman.

— Sharon, este é... — Chris virou-se para Kinderman. — Desculpe — disse. — Qual é seu nome, mesmo?

— Kinderman. William F. Kinderman.

— Esta é Sharon. Sharon Spencer.

Com um movimento cortês de cabeça, o detetive disse a Sharon:

— É um prazer. — Sharon agora estava inclinada para a frente, olhando para ele com curiosidade, o queixo apoiado sobre os braços dobrados em cima da máquina de datilografar. — E talvez a senhorita possa me ajudar.

Com os braços ainda dobrados, Sharon se ajeitou e disse:

— Eu?

— Sim, talvez. Na noite do falecimento do sr. Dennings, a senhorita foi a uma farmácia e o deixou sozinho na casa, estou certo?

— Bem, não exatamente. Regan estava aqui.

— É minha filha — Chris explicou.

— Soletre o nome dela, por favor.

— R-e-g-a-n — disse Chris.

— Lindo nome — disse Kinderman.

— Obrigada.

O detetive se virou para Sharon.

— Dennings veio aqui naquela noite para ver a sra. MacNeil?

— Sim, isso mesmo.

— Ele pensou que ela voltaria em pouco tempo?

— Sim, eu disse a ele que acreditava que ela voltaria logo.

— Muito bem. E a senhorita saiu a que horas? Consegue se lembrar?

— Vejamos... Eu estava assistindo ao noticiário, então acho que... Ah, não, espere. Sim, isso mesmo. Eu me lembro de ter ficado irritada, porque o farmacêutico dissera que o menino da entrega havia ido para casa e eu disse: “Ah, não acredito”, ou algo a respeito de serem apenas seis e meia. Então, Burke chegou dez, talvez vinte minutos depois.

— Então — disse o detetive —, ele chegou aqui aproximadamente às 18h45. Certo?

— Do que se trata tudo isso? — disse Chris.

A tensão que ela sentira havia aumentado.

— Bem, isso levanta uma pergunta, sra. MacNeil. Para chegar aqui às, digamos, 18h45, e sair apenas vinte minutos depois...

Chris deu de ombros.

— Bem, era Burke — disse ela. — Ele era assim.

— Ele também frequentava os bares da rua M? — perguntou Kinderman.

— Não. De jeito nenhum. Não que eu saiba.

— É, eu logo pensei que não. Conferi. Então, ele não teria tido um motivo para estar no topo daquela escadaria ao lado de sua casa depois de ter saído daqui naquela noite. E ele também não andava de táxi? Não chamava um táxi para ir embora de sua casa?

— Sim, chamava. Pelo menos, sempre chamou.

— Então, é de se perguntar por que ou como ele foi parar na escadaria aquela noite. E é de se perguntar também por que as empresas de táxi não mostram nenhum registro de ligações desta casa naquela noite, exceto aquela realizada pela srta. Spencer para sair daqui, exatamente às 18h47.

Sem entusiasmo, Chris respondeu:

— Não sei.

— É, duvidei que a senhora soubesse — disse o detetive. — Nesse meio-tempo, a questão se tornou um tanto séria.

Chris ofegava.

— De que modo?

— O relatório do legista — disse Kinderman —, parece mostrar que a possibilidade de que Dennings tenha morrido acidentalmente ainda é grande. Mas...

— Você está dizendo que ele foi assassinado?

— Bem, parece que a posição... — disse Kinderman, hesitando. — Sinto muito, isto será difícil.

— Vá em frente.

— A posição da cabeça de Dennings e um corte nos músculos do pescoço sugerem...

Fechando os olhos, Chris retraiu-se e disse:

— Ah, meu Deus!

— Sim, como eu disse, é difícil. Sinto muito. De verdade. Mas, veja, essa situação... Acho que podemos pular os detalhes, talvez. Isso não teria acontecido se o sr. Dennings não tivesse caído de certa altura antes de bater nos degraus. Por exemplo, talvez de seis ou nove metros antes de rolar até a base. Então, uma clara possibilidade, falando de modo simples, é que talvez... — Kinderman se virou para Sharon. Com os braços cruzados no peito, ela estava prestando atenção, assustada e de olhos arregalados. — Bem, deixe-me perguntar algo, srta. Spencer. Quando a senhorita saiu, onde estava o sr. Dennings? Com a menina?

— Não, ele estava aqui embaixo, no escritório, preparando um drinque.

— Será que sua filha pode se lembrar? — disse, virando-se para Chris. — Se o sr. Dennings esteve no quarto dela naquela noite?

— Por que pergunta?

— Sua filha poderia se lembrar?

— De que forma? Como eu disse, ela estava muito sedada e...

— Sim, sim, a senhora me contou, é verdade, eu me lembro. Talvez ela tenha acordado.

— Não, ela não acordou — disse Chris.

— Ela também estava sedada quando nos falamos pela última vez?

— Sim, estava...

— Acredito tê-la visto na janela aquele dia.

— Bem, o senhor está enganado.

— Pode ser. Talvez. Mas não tenho certeza.

— Ouça, por que está perguntando tudo isso?

— Bem, uma clara possibilidade, como eu estava dizendo, é que talvez o falecido estivesse tão bêbado que tenha caído da janela do quarto de sua filha. Entende?

— De jeito nenhum. Em primeiro lugar, aquela janela sempre fica fechada e, além disso, Burke sempre estava bêbado, mas nunca deixou de ser safo. Burke trabalhava quando estava embriagado. Como ele iria cair de uma janela?

— A senhora estava esperando mais alguém naquela noite?

— Mais alguém? Não, não estava.

— Tem amigos que aparecem sem avisar?

— Só Burke.

O detetive abaixou a cabeça e a balançou.

— Que estranho — disse ele, suspirando. — Confuso. — Então, ele olhou para Chris. — O falecido vem visitar, fica apenas vinte minutos sem sequer vê-la, e deixa uma menina sozinha em casa? E, para ser sincero, como a senhora disse, não é possível que ele tenha caído de uma janela. Além disso, uma queda não faria com o pescoço dele o que vimos; talvez num caso a cada cem, a cada mil. — Ele movimentou a cabeça em direção ao livro de bruxaria. — A senhora leu neste livro algo sobre assassinatos ritualísticos?

Com a ansiedade aumentando, Chris respondeu:

— Não.

— Talvez não neste livro — disse Kinderman. — No entanto... Perdoe-me. Digo isso apenas para que a senhora pense um pouco mais... O pobre sr. Dennings foi encontrado com o pescoço virado da mesma maneira que ocorre nos assassinatos ritualísticos supostamente cometidos por demônios, sra. MacNeil.

O rosto de Chris tornou-se vividamente pálido.

— Algum maluco matou o sr. Dennings e... — Kinderman parou. — Alguma coisa errada? — perguntou ele. Notara a tensão nos olhos dela, a palidez repentina.

— Não, nada de errado. Continue.

— Obrigado. Não disse nada no começo para poupá-la. Além disso, tecnicamente, ainda poderia ser um acidente. Mas eu não acho que tenha sido. Quer minha opinião? Acredito que ele foi morto por um homem forte: primeiro ponto. E, segundo ponto, a fratura de seu crânio, além das várias coisas que mencionei, tornaria muito provável — provável, não certo — que seu diretor tenha sido morto e depois empurrado da janela de sua filha. Mas não havia ninguém aqui além de sua filha. Então, como pode ser? Bem, poderia ser desta forma: se alguém veio entre o momento em que a srta. Spencer saiu e o momento em que a senhora voltou. Não seria possível? Agora, pergunto: quem pode ter vindo?

Chris abaixou a cabeça.

— Meu Deus, espere um pouco!

— Sim, sinto muito. É doloroso. E talvez eu esteja totalmente enganado. Mas a senhora pode pensar em quem poderia ter vindo, por favor?

Com a cabeça ainda abaixada, Chris franziu o cenho por um momento e olhou para a frente.

— Não, sinto muito. Não consigo pensar em ninguém.

Kinderman olhou para Sharon.

— Talvez a senhorita, então? Alguém vem aqui para vê-la?

— Ah, não, ninguém.

— O cavaleiro sabe onde você trabalha? — perguntou Chris. Kinderman ergueu as sobrancelhas.

— O cavaleiro?

— É o namorado de Sharon — explicou Chris.

Sharon balançou a cabeça.

— Ele nunca veio aqui. Além disso, ele estava em Boston naquela noite, numa convenção.

— Ele é um vendedor? — perguntou Kinderman.

— Advogado.

— Ah. — O detetive se virou para Chris. — Os empregados? Eles recebem visitas?

— Não, nunca. Jamais.

— A senhora esperava receber um pacote aquele dia? Alguma entrega?

— Por quê?

— O sr. Dennings era, e não quero falar mal do falecido, mas como a senhora mesma disse, ele era meio... Bem, impulsivo, irritante, capaz de provocar uma discussão ou discórdia, e, nesse caso, talvez até possa ter tido um problema com algum entregador. A senhora estava esperando alguma coisa? A lavanderia, talvez? Mercado? Uma encomenda?

— Não sei. Karl cuida de tudo isso.

— Ah, claro.

— Quer conversar com ele? Fique à vontade.

O detetive deu um longo suspiro. Afastando-se da mesa, enfiou as mãos nos bolsos do sobretudo enquanto olhava o livro de bruxarias.

— Deixe para lá, deixe para lá. Sua filha está muito doente e... Bem, já chega. — disse, balançando a mão. — Pronto. Fim da reunião. — Ele se levantou. — Obrigado por me receber — disse a Chris, e para Sharon: — Um prazer conhecê-la, srta. Spencer.

— O prazer foi meu — respondeu Sharon, distraída e com o olhar distante.

— Estranho — disse Kinderman, balançando a cabeça. — Que estranho, muito estranho. — Estava concentrado em algum pensamento. Olhou para Chris quando ela se levantou e disse: — Bem, sinto muito. Eu a perturbei em vão.

— Por aqui, vou levá-lo à porta — disse Chris.

A expressão e a voz dela estavam sérias.

— Ah, por favor, não se incomode!

— Não é incômodo algum.

— Já que insiste...

— Ah, por acaso — disse o detetive enquanto ele e Chris saíam da cozinha —, só uma chance em um milhão, mas se por acaso sua filha... A senhora poderia perguntar se ela viu o sr. Dennings no quarto aquela noite?

— Olha, para começo de conversa, ele não teria um bom motivo para estar lá em cima.

— Sim, eu sei disso. Sei que é verdade, mas, se determinados médicos britânicos nunca tivessem perguntado “O que é este fungo?”, não teríamos a penicilina hoje em dia. Estou certo? Por favor, pergunte. A senhora pode perguntar?

— Quando ela estiver bem, perguntarei.

— Mal não vai fazer.

Eles estavam na porta da frente da casa.

— Enquanto isso... — O detetive continuou. Mas hesitou e, levando dois dedos aos lábios, disse com seriedade: — Odeio pedir isto, por favor, me perdoe.

Esperando um novo choque, Chris ficou tensa e sentiu novamente o ardor em sua corrente sanguínea.

— O quê? — perguntou ela.

— Para a minha filha... A senhora poderia me dar um autógrafo? — O rosto do detetive ficou corado. Depois de um momento de surpresa, Chris quase riu aliviada: de si mesma, do desespero e da situação.

— Ah, claro! Tem uma caneta?

— Aqui está! — respondeu Kinderman no mesmo instante, tirando uma caneta do bolso enquanto enfiava a outra mão no bolso do sobretudo e, dali, tirava um cartão telefônico. Ele os entregou a Chris. — Ela vai adorar.

— Qual é o nome dela? — perguntou Chris, pressionando o papel contra a porta enquanto segurava a caneta. Hesitou quando ouviu um suspiro atrás de si. Virou-se e, nos olhos de Kinderman e em suas faces coradas, ela viu a tensão de um grande conflito interno.

— Eu menti — disse, enfim, com os olhos desesperados e desafiadores. — O autógrafo é para mim. Escreva “Para William”, William F. Kinderman; está escrito na parte de trás.

Chris olhou para ele com inesperada afeição, checou a grafia de seu nome e escreveu: “Para William F. Kinderman, com amor! Chris MacNeil”, e lhe entregou o cartão, que ele guardou no bolso sem ler o que havia sido escrito.

— A senhora é muito gentil — disse ele, timidamente.

— Obrigada. O senhor é muito gentil.

Ele pareceu corar ainda mais.

— Não, não sou. Sou inconveniente. — Ele estava abrindo a porta. — Não se preocupe com o que eu disse aqui hoje. Esqueça. Pense apenas em sua filha. Sua filha!

Chris assentiu, sentindo o desânimo voltar quando Kinderman passou pelo portão baixo e amplo de ferro forjado. Ele se virou, e, à luz do dia, conseguiu ver com mais facilidade as olheiras da estrela de cinema. Ele colocou o chapéu.

— Mas pode perguntar a ela? — perguntou ele.

— Perguntarei — disse ela. — Prometo.

— Bem, adeus, então. E cuide-se.

— O senhor também.

Chris fechou a porta e recostou-se nela, fechando os olhos; abriu-os quase instantaneamente ao ouvir o toque da campainha. Ela se virou e abriu a porta, encontrando Kinderman. Ele sorriu, como se pedisse desculpas.

— Sou um chato. Sinto muito. Eu esqueci minha caneta.

Chris olhou para baixo e viu a caneta ainda em sua mão. Ela sorriu sem graça e a entregou ao detetive.

— E mais uma coisa — disse ele. — Sim, não faz sentido, eu sei. Mas sei que não vou conseguir dormir esta noite, pensando que pode haver um maluco ou um drogado à solta se eu não cuidar de todos os detalhes. A senhora acha que eu poderia... Não, não, é tolice, é... Não, perdoe-me, mas eu acho que eu realmente deveria... Acha que posso dar uma palavrinha com o sr. Engstrom? É para falar sobre as entregas.

Chris abriu a porta ainda mais.

— Claro, entre. Pode conversar com ele no escritório.

— Não, a senhora está ocupada. É muito gentil, mas já basta. Posso conversar com ele aqui. Aqui está bom.

Ele havia se inclinado para trás e estava recostado na grade de ferro.

— Se o senhor insiste — disse Chris, sorrindo discretamente. — Acho que ele está lá em cima com Regan. Pedirei a ele que desça.

— Agradeço.

Chris fechou a porta e, pouco tempo depois, Karl a abriu. Ele desceu o degrau da entrada com a mão na fechadura, deixando a porta entreaberta. Com as costas retas, ele olhou diretamente para Kinderman com olhos claros e calmos.

— Pois não? — perguntou sem expressão.

— O senhor tem o direito de permanecer calado — disse Kinderman, com o olhar intenso nos olhos de Karl. — Se o senhor abrir mão de seu direito de permanecer calado — disse rapidamente —, qualquer coisa que disser poderá ser usada contra o senhor num tribunal. O senhor tem o direito de falar com um advogado e de ter a presença deste durante o interrogatório. Se assim desejar, e não puder contratar um profissional, um advogado lhe será designado, gratuitamente, antes do interrogatório. O senhor compreende cada um desses direitos que expliquei?

Os pássaros assobiavam nos galhos da árvore antiga ao lado da casa enquanto os sons do trânsito na rua M chegavam a eles baixinhos, como o zunir de abelhas num campo distante.

— Sim — disse Karl, não desviando o olhar ao responder.

— O senhor deseja abrir mão de seu direito de permanecer em silêncio?

— Sim.

— O senhor deseja abrir mão de conversar com um advogado para que ele esteja presente durante o interrogatório?

— Sim.

— O senhor disse, anteriormente, que no dia 28 de abril, na noite da morte do diretor inglês Burke Dennings, o senhor assistiu a um filme exibido no cinema Belas Artes?

— Sim.

— E a que horas o senhor entrou no cinema?

— Eu não me lembro.

— O senhor afirmou, anteriormente, que compareceu à sessão das seis da noite. Isso o ajuda a se lembrar?

— Sim, o filme das seis da noite. Estou me lembrando.

— E o senhor assistiu ao filme desde o começo?

— Sim.

— E saiu quando o filme terminou?

— Sim.

— Não saiu antes?

— Não, assisti ao filme todo.

— E, ao sair do cinema, o senhor entrou no ônibus da D.C. Transit na frente do cinema, e desembarcou na esquina da rua M com a avenida Wisconsin às 21h20 aproximadamente?

— Sim.

— E caminhou até a casa?

— Caminhei até a casa.

— E o senhor chegou a esta residência aproximadamente às 21h30?

— Cheguei exatamente às 21h30 — respondeu Karl.

— O senhor tem certeza?

— Sim, olhei em meu relógio. Tenho certeza.

— E o senhor viu o filme todo até o fim?

— Sim, foi o que disse.

— Suas respostas estão sendo eletronicamente gravadas, sr. Engstrom. Assim, quero que tenha absoluta certeza a respeito do que responde.

— Eu tenho.

— O senhor viu a briga que ocorreu entre o porteiro e um cliente embriagado nos últimos cinco minutos do filme?

— Sim, eu me lembro.

— Pode me dizer a causa da briga?

— O homem estava embriagado e causando problemas.

— E o que acabaram fazendo com ele?

— Eles o colocaram para fora.

— Isso não aconteceu. O senhor também sabia que durante a exibição do filme na sessão das seis, um problema técnico, que durou cerca de 15 minutos, causou uma interrupção na exibição do filme?

— Não sabia.

— O senhor se lembra de a plateia ter vaiado?

— Não, não me lembro de nada, de nenhuma interrupção.

— Tem certeza?

— Não houve nada disso.

— Houve a informação, conforme ficou atestado no registro do projetista, de que o filme não terminou às 20h40 naquela noite, mas sim aproximadamente às 20h55, o que significa que o primeiro ônibus a sair do cinema deixaria o senhor na esquina da rua M com a avenida Wisconsin não às 21h20, mas às 21h45, e que, assim, o senhor não poderia ter chegado em casa antes de 21h55, aproximadamente, não 21h30, como foi relatado também pela sra. MacNeil. O senhor poderia fazer a gentileza de comentar essa discrepância intrigante?

Nem por um momento, Karl perdeu a compostura. Continuou calmo ao responder:

— Não, não poderia.

O detetive olhou para ele em silêncio, suspirou e olhou para baixo ao desligar o dispositivo que mantinha no bolso de seu casaco. Ele manteve os olhos focados no chão por um momento, e depois olhou para Karl.

— Sr. Engstrom... — Ele começou num tom de voz carregado de compreensão. — Um crime sério pode ter sido cometido. O senhor está sob suspeita. O sr. Dennings o agrediu. Eu soube disso por meio de outras fontes. E, ao que parece, o senhor mentiu sobre seu paradeiro no momento da morte dele. Agora, acontece que... somos seres humanos, certo? Às vezes, um homem casado vai a um local onde diz não ter ido. O senhor percebeu que cuidei para que conversássemos a sós? Longe dos outros? Longe de sua esposa? Não estou gravando no momento. O senhor pode confiar em mim. Se aconteceu de o senhor estar com outra mulher, que não fosse sua esposa, naquela noite, pode me contar, eu averiguarei, o senhor ficará livre de problema, e sua esposa não saberá. Agora, diga-me, onde o senhor estava quando Dennings morreu?

Um brilho discreto passou pelos olhos de Karl, mas desapareceu assim que ele disse, quase sem abrir os lábios.

— No cinema!

O detetive olhou para ele com firmeza, sem se mover, sem qualquer som além de sua respiração conforme os segundos passaram.

— Vai me prender? — perguntou Karl com uma voz levemente trêmula.

O detetive não respondeu, mas continuou a olhar para ele, sem piscar, e, quando Karl parecia prestes a falar de novo, Kinderman se afastou da grade, andando na direção de sua viatura e do motorista, sem pressa, com as mãos nos bolsos, olhando para a direita e para a esquerda, como um turista interessado na cidade. Da porta, Karl observou, seus traços firmes e imperturbáveis, quando Kinderman abriu a porta da viatura, pegou uma caixa de lenços de papel no painel, tirou um lenço e assoou o nariz enquanto olhava para o outro lado do rio, como se estivesse decidindo se almoçaria no Marriott Hot Shoppe ou não. Então, entrou na viatura sem olhar para trás.

Quando o carro se afastou e dobrou a esquina na rua 35, Karl olhou para a mão que não estava na fechadura.

Ela tremia.

Quando ouviu a porta da frente sendo fechada, Chris estava no bar de seu escritório, servindo-se de uma dose de vodca com cubos de gelo. Passos. Karl subindo a escada. Chris pegou o copo, deu um gole e voltou devagar para a cozinha, o olhar distraído enquanto remexia a bebida com o dedo indicador. Havia algo muito errado. Como a luz que vaza por baixo da porta em direção a um corredor escuro em algum lugar perdido, o brilho do medo vindouro havia se embrenhado ainda mais profundamente em sua consciência. O que havia atrás da porta?

Ela estava com medo de abrir e olhar.

Entrou na cozinha, sentou-se à mesa, bebericou sua vodca e lembrou-se de modo pensativo: “Acredito que ele foi morto por um homem forte.” Ela olhou para o livro sobre bruxaria. Havia algo sobre ele ou nele. O quê? E então, ouviu passos trôpegos descendo a escada, Sharon voltando do quarto de Regan. Entrando. Sentando-se à mesa e colocando uma folha nova no rolo da máquina de escrever IBM.

— Muito assustador — Ela murmurou, com as pontas dos dedos repousando de leve no teclado e os olhos atentos às anotações a seu lado.

Olhando para o nada, Chris bebeu sua vodca de modo distraído, pousou o copo no balcão e voltou a olhar para a capa do livro.

Uma sensação de intranquilidade pairava no ar.

Ainda de olho nas anotações, Sharon rompeu o silêncio com a voz baixa e embargada.

— Há muitas espeluncas hippies pela rua M e pela avenida Wisconsin. Muitos maconheiros, ocultistas e coisas assim. A polícia os chama de baderneiros. Será que o Burke pode...

— Ah, não é possível, Shar! — Chris gritou de repente. — Esqueça tudo isso, sim? Já estou preocupada demais com Rags. Você se importa?

Fez-se uma pausa, e Sharon começou a datilografar muito depressa, enquanto Chris apoiava os cotovelos na mesa e cobria o rosto com as mãos. Abruptamente, Sharon afastou a cadeira fazendo barulho no piso, levantou-se e saiu da cozinha.

— Chris, vou sair para dar uma volta! — disse ela, com frieza.

— Ótimo! E mantenha distância da rua M! — Chris gritou, com as mãos no rosto.

— Pode deixar!

— E da N também!

Chris percebeu que a porta da frente foi aberta e fechada, e, suspirando, abaixou as mãos e olhou para cima. Sentiu uma onda de arrependimento. A explosão emocional havia liberado a tensão. Mas não toda: apesar de ter ficado menos forte, continuava ali, à beira de sua mente. Acabe com isso! Chris respirou fundo e tentou se concentrar no livro. Conseguiu se controlar e, cada vez mais impaciente, começou a virar as páginas rapidamente, analisando e procurando descrições específicas que combinassem com os sintomas de Regan. “...Síndrome da possessão demoníaca... caso de uma menina de oito anos... anormal... quatro homens fortes para prendê-la...”

Virando uma página, Chris ficou paralisada.

E então, sons: Willie entrando na cozinha com compras.

— Willie? — Chris a chamou, com os olhos grudados ao livro.

— Sim, senhora? Estou aqui — respondeu ela. Estava colocando as sacolas de compra em cima de um balcão de azulejos brancos. Distraída e inexpressiva, com a voz calma e os dedos levemente trêmulos marcando a página, Chris levantou o livro parcialmente fechado e perguntou:

— Willie, foi você que colocou este livro no escritório?

Willie deu alguns passos adiante, olhou para o livro, assentiu brevemente e, quando se virou e começou a caminhar de volta para onde estavam as compras, respondeu:

— Sim, senhora. Sim. Sim, eu o guardei.

— Willie, onde você o encontrou? — perguntou Chris, com a voz séria.

— No quarto — respondeu a empregada ao começar a tirar os produtos de dentro das sacolas para colocá-los sobre o balcão da cozinha.

Chris olhou fixamente para as páginas do livro, que agora estava de novo sobre a mesa.

Qual quarto, Willie?

— O quarto da srta. Regan, senhora. Eu o encontrei embaixo da cama enquanto fazia a limpeza.

Com a voz séria, os olhos arregalados e observadores, Chris olhou para a frente e perguntou:

Quando você o encontrou?

— Quando todos foram ao hospital, senhora. Enquanto eu passava aspirador no quarto de Regan.

— Willie, você tem certeza absoluta?

— Tenho.

Chris olhou para as páginas do livro e, por um tempo, não se mexeu, não piscou, não respirou, enquanto a imagem da janela aberta no quarto de Regan na noite do acidente com Dennings invadiu sua mente com as garras de uma ave de rapina que sabia seu nome; ao reconhecer uma imagem familiar; ao olhar para a página do lado direito do livro aberto onde uma faixa estreita tinha sido arrancada da borda.

Chris levantou a cabeça. Alvoroço no quarto de Regan: batidas, altas e rápidas, com um eco horroroso e muito forte e, de certo modo, abafado, como uma marreta batendo numa parede de calcário dentro de uma tumba antiga.

Regan gritando angustiada, aterrorizada, implorando!

Karl gritando com Regan, com ódio e com medo.

Chris saiu correndo da cozinha.

Santo Deus! O que está acontecendo? O quê?

Assustada, Chris correu para a escada, subiu até o segundo andar; na direção do quarto de Regan, ouviu uma pancada, alguém gritando, alguém caindo no chão e sua filha chorando.

Não! Ah, não, não! Por favor, não!

E Karl urrando! Não! Não era Karl! Era outra pessoa com uma voz grave, ameaçadora e irada!

Chris atravessou o corredor, adentrou o quarto e se sobressaltou e ficou paralisada pelo choque enquanto as batidas soavam fortes, chacoalhando as paredes. Karl estava inconsciente no chão perto da cômoda, e Regan, com as pernas erguidas e abertas na cama que balançava e tremia com força, os olhos arregalados de medo, o rosto manchado com o sangue que escorria de seu nariz, de onde a sonda nasogástrica havia sido arrancada com violência, enquanto ela olhava para um crucifixo branco, que segurava e mirava diretamente na vagina.

— Ah, por favor! Ah, não, por favor!

Ela gritava enquanto suas mãos aproximavam o crucifixo, contra sua vontade.

— Você fará o que eu mandar, sua imunda! Você fará!

O grito ameaçador, as palavras, vinham de Regan, com a voz rouca, gutural e cheia de veneno, e de repente sua expressão e seus traços se transformaram, de modo aterrorizante, nos da personalidade demoníaca que havia aparecido ao longo da hipnose, e Chris observou, assustada, os dois rostos e as vozes se intercalando rapidamente:

Não!

— Você vai me obedecer!

Não! Por favor, não!

— Você vai, sua putinha, ou vou matá-la!

E Regan retorna, com os olhos arregalados e o medo estampado no rosto, como se um fim terrível se aproximasse, gritando com a boca bem aberta até a personalidade demoníaca possuí-la, preenchê-la mais uma vez, tomando o quarto com um odor fétido, com um frio gélido que parecia vir das paredes; então as batidas cessam e o grito aterrorizado e estridente de Regan se funde a uma risada gutural de triunfo malevolente, enquanto ela enfia o crucifixo em sua vagina, várias vezes seguidas, masturbando-se de modo feroz, urrando com a voz profunda, rouca, ensurdecedora.

— Agora você é minha, sua vagabunda, sua puta nojenta. Isso, deixe Jesus foder você, foder você, foder você!

Chris parecia plantada no chão, horrorizada, com as mãos pressionando as bochechas enquanto a risada alta e demoníaca explodia com satisfação mais uma vez, e o sangue escorria da vagina de Regan, sujando os lençóis brancos. Repentinamente, com um grito forte e profundo, Chris correu em direção à cama e agarrou o crucifixo, enquanto Regan, furiosa e com os traços totalmente desfigurados, esticou o braço, agarrou os cabelos de Chris e empurrou a cabeça dela para baixo, pressionando o rosto dela contra sua vagina, manchando-o de sangue, enquanto Regan remexia a pelve.

— Ah, mamãe porca! — disse Regan com uma voz lasciva e ainda gutural. — Me lambe, me lambe, me lambe! Aahhhhh!

A mão que segurava a cabeça de Chris a afastou de Regan e a outra aplicou-lhe um golpe no peito, que fez Chris voar para o outro lado do quarto, onde bateu numa parede com uma força muito grande, enquanto Regan ria e se divertia.

Chris se encolheu no chão, desnorteada de medo, diante de imagens e sons desorientadores, sua visão embaçada, sem foco, seus ouvidos assaltados por distorções caóticas, enquanto, sem forças, tentava se levantar, erguendo-se do chão com as mãos; trôpega, olhou na direção da cama, para Regan, que estava de costas para ela, enfiando o crucifixo de modo delicado e sensual na vagina, dentro e fora, com a voz grossa e grave dizendo de forma suave:

— Ah, essa é a minha porquinha, sim, minha doce porquinha, minha...

Chris começou a engatinhar com dificuldade em direção à cama, com o rosto sujo de sangue, a visão ainda sem foco, os membros doloridos. Retraiu-se, encolhendo-se de pavor ao acreditar ter visto, naquela confusão, como se fosse uma névoa pesada, a cabeça da filha virando para trás lenta e inexoravelmente, uma volta completa, enquanto seu torso se mantinha imóvel, até que, por fim, Chris estava olhando diretamente para os olhos ladinos e irados de Burke Dennings.

— Você sabe o que ela fez, a desgraçada da sua filha?

Chris gritou até desmaiar.