Karras colocou uma fita num compartimento vazio sobre a mesa do escritório de Frank Miranda, o diretor rechonchudo e de cabelos grisalhos do Instituto de Idiomas e Linguística. Depois de editar partes das duas fitas em compartimentos separados, Karras ligou o gravador, e os dois escutaram com fones de ouvido a voz irada vociferando coisas sem sentido. Quando terminou, Karras escorregou o fone para os ombros e perguntou:
— Frank, o que é isto? Poderia ser um idioma?
Também sem o fone de ouvido, Miranda estava sentado à beira de sua mesa, com os braços cruzados, olhando para o chão e franzindo o cenho, confuso.
— Não sei — disse ele, balançando a cabeça. — Muito estranho. — Ele olhou para Karras. — Onde conseguiu isso?
— Estou trabalhando num caso de dupla personalidade.
— Está brincando? Um padre?
— Não posso contar.
— Sim, claro. Eu compreendo.
— Bem, e quanto a isso, Frank? O que você acha?
Olhando para o nada, Miranda tirou seus óculos de leitura de aros grossos, fechou-os distraidamente e os colocou dentro do bolso da lapela de seu blazer.
— Não, não é um idioma que eu conheça — disse ele. — Mas... — Franzindo o cenho levemente, olhou para Karras. — Quer tocar de novo?
Karras rebobinou a fita, tocou-a de novo, desligou o gravador e perguntou:
— Alguma ideia?
— Bem, devo dizer que tem cadência.
O jesuíta sentiu uma pontada de esperança, o que iluminou seus olhos por um instante; o brilho diminuindo ao combater a esperança.
— Mas não o reconheço, padre — disse ele. — É antigo ou moderno?
— Não sei.
— Bem, por que não deixa isso comigo? Posso conferir com mais cuidado com alguns dos rapazes. Talvez um deles saiba do que se trata.
— Poderia, por gentileza, fazer uma cópia dela, Frank? Gostaria de manter o original.
— Ah, sim, claro.
— Enquanto isso, tenho outra fita. Você tem tempo?
— Sim, claro. Uma fita de quê?
— Deixe-me perguntar algo antes.
— Claro. O que é?
— Frank, e se eu desse a você amostras de discursos comuns de duas pessoas diferentes, aparentemente? Você poderia me dizer, por meio de uma análise semântica, se uma única pessoa seria capaz de realizar os dois modos de discurso?
— Ah, acho que sim. Sim, com certeza. Uma avaliação “tipo-símbolo” seria uma boa maneira de descobrir isso, e, com amostras de mil palavras ou mais, seria possível conferir apenas a frequência da ocorrência das diversas partes do discurso.
— E você consideraria isso conclusivo?
— Sim. Veja, esse tipo de teste descartaria qualquer mudança no vocabulário básico. Não são as palavras, mas a expressão das palavras, o estilo. Nós chamamos isso de “índice de diversidade”. Muito confuso para o leigo, o que, claro, é o que desejamos. — O diretor sorriu de modo seco. Em seguida, assentiu em direção à fita nas mãos de Karras. — Então, a voz dessa outra pessoa está sobre aquela outra?
— Não é bem isso.
— Não é bem isso?
— As vozes e as palavras das duas fitas foram ditas por uma única pessoa.
O diretor ergueu as sobrancelhas.
— Pela mesma pessoa?
— Sim. Como eu disse, é um caso de dupla personalidade. Pode compará-los para mim, Frank? Quero dizer, as vozes parecem totalmente diferentes, mas ainda gostaria de ver o que uma análise comparativa pode mostrar.
O diretor se mostrou intrigado, até satisfeito. E disse:
— Fascinante! Sim. Sim, faremos a análise. Estou pensando que talvez eu a dê ao Paul, meu principal instrutor. Uma mente brilhante. Acredito que ele sonhe em “códigos” indígenas.
— Mais um favor. Muito importante.
— Qual?
— Preferiria que você mesmo fizesse a comparação.
— É mesmo?
— Sim. E o mais depressa possível. Há como?
O diretor percebeu a urgência na voz e nos olhos de Karras.
— Tudo bem — disse ele, assentindo. — Vou cuidar disso.
Ao voltar para seu quarto no centro de residência jesuíta, Karras encontrou uma mensagem que havia sido deixada embaixo da porta: os relatórios de Regan, feitos pela clínica Barringer, haviam chegado. Karras foi até a recepção, assinou para pegar o pacote, e voltou ao quarto, sentou-se a sua mesa e começou a ler sem parar. Mas, no fim, enquanto lia a conclusão da equipe psiquiátrica da clínica, sua ansiedade e sua esperança haviam se transformando em decepção e em derrota: “...indícios de obsessão pela culpa resultando em sonambulismo histérico...” Sentindo que não precisava continuar a leitura, parou, apoiou os cotovelos na mesa e, suspirando, cobriu o rosto com as mãos. Não desista. Há espaço para a dúvida. Interpretação. Mas quanto aos estigmas na pele de Regan, que, de acordo com os relatórios, tinham ocorrido várias vezes enquanto a menina permanecera em observação na Barringer, o resumo da análise afirmava que Regan tinha pele hiper-reativa e poderia, sozinha, ter produzido as letras misteriosas riscando-as na pele com um dedo um pouco antes do aparecimento delas, por meio de um processo conhecido como dermatografia, uma teoria suportada pelo fato de que, assim que as mãos dela tinham sido imobilizadas por amarras, o fenômeno misterioso desapareceu.
Karras levantou a cabeça e olhou para o telefone. Frank. Será que havia, de fato, necessidade de realizar uma comparação das vozes nas fitas? Deveria ele telefonar e pedir para que não fizesse nada? Sim, eu deveria fazer isso, concluiu o padre. Pegou o telefone. Discou. Ninguém atendeu. Deixou um recado para que o diretor do instituto telefonasse e, exausto, levantou-se e caminhou lentamente até o banheiro, onde jogou água fria no rosto. “O exorcista deve tomar cuidado para que nenhuma das manifestações do paciente passe sem explicação.” Karras olhou para o próprio rosto no espelho, com preocupação. Havia deixado algo escapar? O quê? O cheiro de chucrute? Virou-se, puxou uma toalha do porta-toalhas e secou o rosto. Não, a autossugestão justificaria isso, ele se lembrou, assim como os relatórios que expunham que, em certos momentos, os doentes mentais pareciam capazes de direcionar seu corpo de modo inconsciente para emitir uma variedade de odores.
Karras secou as mãos. As batidas. As gavetas se abrindo e fechando. Isso seria a psicocinese? De verdade? “O senhor acredita nessas coisas?” De súbito, consciente de que não estava pensando com clareza, Karras voltou a pendurar a toalha. Cansado. Cansado demais. Mas seu ser recusava-se a desistir, a entregar aquela criança a teorias e a especulações tortuosas, à história sangrenta de traições da mente humana.
Ele saiu do centro de residência e subiu rapidamente a rua Prospect, até as paredes de pedra da biblioteca Lauinger da universidade de Georgetown. Entrou no recinto e procurou no Guia de literatura periódica, correndo um dedo por assuntos que começavam com a letra P, e, quando encontrou o que procurava, sentou-se a uma mesa comprida de carvalho com uma publicação científica que continha um artigo a respeito do fenômeno poltergeist, escrito pelo famoso psiquiatra alemão, dr. Hans Bender. Sem dúvida, concluiu o jesuíta quando terminou de ler o texto: depois de anos sendo documentado, filmado e observado em clínicas psiquiátricas, o fenômeno psicocinético era real. Havia um porém! Em nenhum dos casos relatados no artigo havia uma conexão com a possessão demoníaca. Em vez disso, a hipótese favorita para explicar o fenômeno era a “energia direcionada pela mente”, inconscientemente produzida, e geralmente — e de modo significativo, percebeu Karras — por adolescentes em estágios de “tensão, ira e frustração internas extremamente altas”.
Karras passou os dedos devagar nos cantos dos olhos úmidos e cansados, e, ainda sentindo-se negligente, repassou os sintomas de Regan, tocando em cada um deles como um menino que derruba todos os dominós de uma fila. Karras queria saber qual sintoma havia deixado de abordar.
Nenhum, concluiu ele com desânimo.
Ele caminhou de volta à casa de Chris MacNeil, onde Willie o atendeu e permitiu sua entrada até o escritório, que estava fechado. Willie bateu à porta.
— É o padre Karras — disse ela, e de lá de dentro Karras escutou um abafado “Entre”.
O padre entrou e fechou a porta em seguida. De costas para ele, Chris mantinha o cotovelo apoiado sobre o balcão e a testa sustentada na mão. Sem se virar, ela o cumprimentou:
— Olá, padre. — Com a voz rouca, porém baixa e desesperada.
Preocupado, o padre se aproximou.
— A senhora está bem?
— Sim, padre. Estou, sim.
Karras franziu o cenho, cada vez mais apreensivo: a voz de Chris estava tensa, e a mão com que ela cobria o rosto tremia. Abaixando o braço, ela se virou e olhou para o padre, revelando um rosto banhado em lágrimas, os olhos vermelhos.
— Como estão as coisas? — perguntou ela. — Quais são as novidades?
Karras a observou antes de responder.
— Bem, a última notícia é que analisei os registros da clínica Barringer e...
— Sim? — perguntou Chris, tensa.
— Bem, eu acredito...
— Em que o senhor acredita, padre Karras? Em quê?
— Bem, minha opinião sincera neste momento é que Regan se beneficiaria mais com um intenso cuidado psiquiátrico.
Chris olhou para Karras sem nada dizer e com os olhos um pouco mais arregalados enquanto balançava a cabeça, recusando aceitar.
— De jeito nenhum!
— Onde está o pai dela? — perguntou Karras.
— Na Europa.
— A senhora contou a ele o que está acontecendo?
— Não.
— Bem, acho que ajudaria se ele estivesse aqui.
— Ouça, nada vai ajudar, a menos que seja algo diferente! — respondeu Chris com a voz alta e vacilante.
— Acredito que a senhora deveria chamá-lo.
— Por quê?
— Seria...
— Pedi ao senhor que tirasse um demônio, inferno, não que trouxesse um! — Chris gritou, seus traços contorcidos pela angústia. — O que houve com o exorcismo, de uma hora para outra?
— Veja...
— O que diabos eu posso querer com Howard?
— Podemos falar sobre isso mais tarde, quando...
— Vamos conversar agora, caramba! Que diabos Howard faria de bom neste momento?
— Bem, existe uma grande probabilidade de que o distúrbio de Regan tenha raízes em sua culpa por...
— Culpa pelo quê? — Chris gritou com os olhos arregalados.
— Poderia...
— Pelo divórcio? Toda aquela bobagem psiquiátrica?
— Veja...
— Regan sente culpa porque ela matou Burke Dennings! — Chris vociferou, pressionando as têmporas com seus punhos. — Ela o matou! Ela o matou e será internada. Ela será internada! Ah, meu Deus, ah, meu...
Karras a segurou quando ela se encolheu, soluçando, e a levou em direção ao sofá.
— Está tudo bem — dizia ele baixinho —, está tudo bem.
— Não, eles vão... interná-la. — Chris não parava de soluçar. — Eles vão... vão...!
— Está tudo bem.
Karras acalmou Chris e a ajudou a se deitar no sofá, e então se sentou na beirada e segurou sua mão. Os pensamentos não paravam. Pensou em Kinderman. Em Dennings. Em Chris soluçando. Irrealidade.
— Está tudo bem... Está tudo bem.. Calma... Vai ficar tudo bem...
Em pouco tempo, o choro diminuiu e ele a ajudou a se sentar. Trouxe água e uma caixa de lenços que ele havia encontrado numa estante atrás do bar, e se sentou ao lado dela.
— Ah, estou feliz — disse Chris, assoando o nariz.
— A senhora está feliz?
— Sim, estou feliz por ter colocado isso para fora.
— Ah, bem, sim. Sim, sim, isso é bom.
E agora, mais uma vez, o peso recaía nos ombros do jesuíta. Chega! Não diga mais nada!, tentou alertar a si mesmo. No entanto, perguntou a Chris:
— Quer dizer mais alguma coisa?
Chris assentiu, sem nada dizer.
— Sim, sim, quero — disse ela, desanimada. Secou um dos olhos e começou a falar de modo entrecortado, em espasmos: a respeito de Kinderman; a respeito das faixas estreitas cortadas das bordas do livro de bruxaria e da certeza que tinha de que Dennings estivera no quarto de Regan na noite de sua morte; da força anormal da menina e do fato de Chris acreditar ter visto a personalidade de Dennings quando a filha virou completamente a cabeça para trás. Ao terminar, exausta, ela esperou pela reação de Karras, e, quando ele estava prestes a dizer o que pensava, ele olhou para a expressão suplicante de seus olhos.
— A senhora não pode ter certeza de que ela fez isso — disse ele.
— Mas e a cabeça virada, como a de Burke? E as coisas que ela diz?
— A senhora tinha acabado de bater a cabeça com força na parede — respondeu Karras. — Estava em choque. Deve ter imaginado isso.
Mantendo o olhar inexpressivo nos olhos de Karras, Chris disse baixinho:
— Não. Foi Burke que disse que ela fez isso. Ela o empurrou da janela e o matou.
Momentaneamente abalado, o padre permaneceu olhando para ela sem qualquer expressão, mas voltou a se recompor.
— A mente de sua filha está perturbada — disse ele —, por isso as frases dela não significam nada.
Chris abaixou a cabeça e a balançou.
— Não sei — disse ela, quase sem ser ouvida. — Não sei se estou fazendo o que é certo. Acredito que ela fez isso e que talvez pudesse matar mais alguém. Não sei. — Ela olhou desesperançosa para Karras e, num sussurro rouco, perguntou: — O que devo fazer?
Karras se retraiu por dentro. O peso agora era concreto, que, ao secar, havia se moldado a suas costas.
— A senhora já fez o que deveria fazer — disse ele. — Já contou a alguém, Chris. Já contou para mim. Então deixe que eu decida o melhor a fazer. Pode fazer isso, por favor? Deixe comigo.
Secando um dos olhos com as costas da mão, Chris assentiu e disse:
— Sim, sim, claro. Isso seria o melhor. — Tentando sorrir, ela disse sem ânimo: — Obrigada, padre. Muito obrigada.
— Está se sentindo melhor agora?
— Sim.
— Pode me fazer um favor?
— Claro, qualquer coisa. O que é?
— Saia de casa e vá ver um filme.
Por um momento, Chris olhou para ele sem qualquer expressão, depois sorriu e balançou a cabeça.
— Detesto filmes.
— Então vá visitar um amigo.
Chris o observou com ternura.
— Tenho um amigo bem aqui.
— Pode apostar. Descanse um pouco. Promete?
— Sim, prometo.
Karras pensou em algo, outra pergunta:
— A senhora acha que Dennings levou o livro para o andar de cima ou o volume já estava lá?
— Acredito que já estava lá.
Olhando para o lado, Karras assentiu.
— Compreendo — disse ele discretamente. E levantou-se abruptamente. — Bem, certo. A senhora precisa do carro de volta?
— Não, pode ficar com ele.
— Certo. Voltarei mais tarde.
Abaixando a cabeça, Chris respondeu:
— Tudo bem.
Karras saiu da casa e foi para a rua com pensamentos tomando sua mente. Regan matara Dennings? Que loucura! Ele a imaginou lançando-o pela janela do quarto na escadaria comprida e íngreme, rolando, caindo sem parar até que seu mundo chegasse a um fim repentino. Impossível!, pensou Karras. Não! E, ainda assim, Chris estava praticamente convicta de que era o que havia acontecido. Histeria dela! E é exatamente o que é!, tentou dizer a si mesmo. Não passa de imaginação histérica! E ainda assim...
Karras perseguiu certezas como se fossem folhas caídas numa ventania.
Enquanto passava pela escadaria ao lado da casa, Karras ouviu um som vindo de baixo, perto do rio; parou e olhou na direção do Canal C&O. Uma gaita. Alguém tocando “Red River Valley”, a canção favorita do jesuíta desde sua juventude. Ele parou e ficou ouvindo até o semáforo ficar verde e a melodia melancólica ser abafada pelo barulho do tráfego recomeçando na rua M, estilhaçada rudemente por um mundo que estava agora, naquele momento, em meio à tormenta, pingando sangue na fumaça dos escapamentos, enquanto gritava por socorro. Olhando para a escada, Karras enfiou as mãos nos bolsos, pensando mais uma vez no dilema de Chris MacNeil e de Regan e em Lucas chutando o cadáver de Tranquille. Devia fazer algo. O quê? Podia tentar fazer melhor do que os médicos na Barringer? “Ah, o senhor é mesmo um padre ou é um ator?” Karras assentiu de modo distraído, lembrando-se do caso de possessão de um francês chamado Achille, que, assim como Regan, havia dito ser um demônio, e, como Regan, seu distúrbio estava ligado à culpa, no caso dele, ao remorso por ter sido infiel em seu casamento. A grande psicóloga Janet havia realizado uma cura sugerindo, de modo hipnótico, a presença da esposa, que apareceu diante dos olhos alucinados de Achille e o perdoou solenemente. Karras assentiu. Sim, a sugestão poderia funcionar para Regan. Mas não por meio da hipnose. Eles haviam tentado a hipnose na Barringer. A sugestão contraposta para Regan, acreditava ele, era a de que sua mãe insistira desde o começo. Era o ritual de exorcismo. Regan sabia o que era e qual era seu efeito desejado. Sua reação à água benta. Ela havia lido a respeito naquele capítulo do livro e, na passagem em questão, também havia descrições de exorcismos bem-sucedidos. Poderia dar certo! Poderia mesmo! Mas como conseguir permissão da Ordem? Como formar um caso sem mencionar Dennings? Karras não podia mentir para o bispo. Mas que fatos ele tinha que poderiam convencê-lo? Suas têmporas começaram a latejar, e Karras levou uma mão à sobrancelha. Sabia que precisava dormir. Mas não poderia. Não naquele momento. Quais eram os fatos? As fitas do Instituto? O que Frank descobriria? Havia alguma coisa que ele pudesse descobrir? Não. Mas como saber? Regan não diferenciava água benta de água da torneira. Claro. Mas, se ela supostamente consegue ler minha mente, por que não soube a diferença entre elas? Karras, mais uma vez, levou a mão à testa. A dor de cabeça. Confusão. Vamos, rapaz! Tem alguém morrendo! Acorde!
De volta a seu quarto, Karras telefonou para o Instituto. Não encontrou Frank. Pensativo, ele desligou. Água benta. Água da torneira. Alguma coisa. Ele abriu o Ritual para ver “Instruções para exorcistas”: “...espíritos do mal... respostas enganosas... de modo a parecer que a vítima não está possuída de modo algum.” Seria aquilo?, pensou Karras. Instantaneamente, ele perdeu a paciência com aquela ideia. De que diabos você está falando? Que “espírito do mal”?
Ele fechou o livro e releu os registros médicos, analisando-os de modo apressado e ansioso, em busca de qualquer coisa que pudesse ajudá-lo a criar um caso justificável para o exorcismo. Aqui. Não há histórico de histeria. É algo. Mas é fraco. Também há outra coisa aqui, lembrou-se, uma discrepância. O que seria? Ele se lembrou. Não muito. Mas, ainda assim, é algo. Ele telefonou para Chris MacNeil. Ela parecia grogue.
— Oi, padre.
— A senhora estava dormindo? Sinto muito.
— Não, tudo bem, padre. O que houve?
— Chris, onde posso encontrar... — disse Karras, correndo um dedo pelos registros. Parou. — Doutor Klein. Samuel Klein.
— O doutor Klein? Ah, do outro lado da ponte. Em Rosslyn.
— No prédio de consultórios?
— Sim, isso mesmo. Qual é o problema?
— Por favor, telefone para ele e avise que o doutor Karras vai visitá-lo e que eu gostaria de dar uma olhada no eletroencefalograma de Regan. Diga a ele que é o doutor Karras.
— Entendi.
Quando desligou o telefone, Karras soltou o botão da gola, tirou a batina e a calça preta, e rapidamente vestiu uma calça cáqui e um moletom, e, por cima dessa roupa, um sobretudo preto; observando-se no espelho, Karras franziu o cenho e pensou: Padres e policiais! Eles tinham auras identificáveis que não podiam disfarçar. Karras tirou o sobretudo e os sapatos, e calçou os únicos que tinha que não eram pretos, um par de tênis Tretorn brancos, surrados.
No carro de Chris, dirigiu em direção a Rosslyn. Enquanto esperava na rua M para que o semáforo abrisse na Key Bridge, olhou para a esquerda e viu Karl saindo de um sedã preto estacionado na frente da Dixie Liquor Store.
O motorista do carro era Kinderman.
O semáforo ficou verde. Karras avançou com o carro, entrou na ponte e olhou pelo espelho retrovisor. Será que eles o tinham visto? Achava que não. Mas o que os dois estavam fazendo juntos? Teria algo a ver com Regan? Com Regan e...?
Esqueça isso! Uma coisa de cada vez!
Ele estacionou no prédio de consultórios e subiu a escada até as salas do doutor Klein. O médico estava ocupado, mas uma enfermeira entregou o eletroencefalograma a Karras, e, em pouco tempo, ele estava dentro de uma baia estreita analisando um papel repleto de gráficos.
Klein entrou apressado, olhando brevemente para a roupa de Karras.
— O senhor é o doutor Karras?
— Sim.
— Sam Klein. Prazer em conhecê-lo.
Enquanto eles trocavam um aperto de mãos, Klein perguntou:
— Como está a menina?
— Melhorando.
— Fico feliz em saber.
Karras olhou de novo para o gráfico e Klein se aproximou dele para observar o exame, passando os dedos por cima das ondas.
— Aqui, está vendo? É muito regular. Não há flutuações — disse Klein.
— Sim, estou. É curioso.
— Curioso? De que modo?
— Bem, se levarmos em conta que estamos lidando com a histeria.
— O que o senhor quer dizer?
— Não acho que seja muito difundido — respondeu Karras, enquanto continuava passando o papel pelas mãos num fluxo constante —, mas um belga chamado Iteka descobriu que a histeria parecia causar um tipo de flutuação estranha no gráfico, um padrão muito pequeno, mas sempre idêntico. Estou procurando aqui e não o vejo.
— Aqui — disse Klein entre os dentes.
Karras parou de mexer no papel e olhou para ele.
— Ela certamente estava alterada quando vocês realizaram este exame, certo?
— Sim, eu diria que sim. Estava alterada, sim.
— Nesse caso, não é curioso que o exame tenha sido tão perfeito? Até mesmo indivíduos com estado mental normal podem influenciar suas ondas cerebrais pelo menos dentro da frequência normal, e, como Regan estava alterada na época, deveria haver algumas alterações. Se...
— Doutor, a senhora Simmons está ficando impaciente — disse uma enfermeira, interrompendo-os ao abrir a porta.
— Tudo bem, estou indo — disse Klein. Quando a enfermeira se afastou, ele deu um passo em direção ao corredor, mas se virou, com a mão segurando a porta. — Por falar em histeria... — comentou ele de modo seco. — Sinto muito, preciso ir.
Ele fechou a porta ao sair. Karras ouviu seus passos em direção ao corredor, a porta sendo aberta e o médico dizendo: “Bem, como a senhora está se sentindo hoje...” A porta fechada abafou o resto. Karras voltou a analisar o gráfico, e, quando terminou, dobrou-o e o fechou, e voltou para onde estava a enfermeira, na recepção. Algo. Era algo que ele poderia usar com o bispo para argumentar que Regan não era histérica e, assim, poderia estar possuída. Mas, ainda assim, o eletroencefalograma havia trazido mais um mistério: nenhuma alteração, nenhuma mesmo?
Karras dirigiu de volta à casa de Chris, mas ficou paralisado ao volante ao parar num semáforo na esquina das ruas Prospect e 35: sentado ao volante de um carro estacionado entre Karras e o centro de residência jesuíta estava Kinderman, com o braço para fora da janela e o olhar fixo à sua frente. Karras dobrou à direita antes que o detetive o visse. Logo encontrou uma vaga, estacionou e deu a volta na esquina, como se fosse em direção ao centro de residência. Será que ele está vigiando a casa?, pensou Karras. O espectro de Dennings mais uma vez o assombrou. Seria possível que Kinderman acreditasse que Regan havia...?
Calma, rapaz! Devagar!
Ele se aproximou da lateral do carro e enfiou a cabeça pela janela do lado do passageiro.
— Olá, detetive! — disse ele com simpatia. — Veio me visitar ou está apenas relaxando um pouco?
O detetive se virou depressa, com cara de surpreso, e lançou um amplo sorriso a ele.
— Olá, padre Karras! Aqui está o senhor! Muito bom revê-lo!
Disfarçando, pensou Karras. O que ele está aprontando? Não deixe que ele saiba que você está preocupado! Fique calmo!
— Não sabe que vai acabar ganhando uma multa? — disse Karras, apontando para uma placa. — Nos dias de semana, não é permitido estacionar entre 16h e 18h.
— Não tem problema — Kinderman resmungou. — Estou conversando com um padre. Todos os guardas de trânsito em Georgetown são católicos.
— Como o senhor está?
— Para ser sincero, padre Karras, mais ou menos. E o senhor?
— Não posso reclamar. O senhor solucionou aquele caso?
— Qual?
— Aquele do diretor de filmes?
— Ah, aquele. — O detetive balançou a mão. — Nem me fale! Ei, o que vai fazer esta noite? Está ocupado? Tenho ingressos para o cinema Biograph, para assistir a Otelo.
— Depende do elenco.
— O elenco? John Wayne é Otelo e Doris Day interpreta Desdemona. Está satisfeito? É de graça, padre Irritantemente Parecido com Marlon Brando! É uma obra de William F. Shakespeare. Não importa quem está ou não está no elenco. O senhor vai ou não?
— Sinto muito, mas terei que recusar. Estou cheio de coisas para fazer.
— Estou vendo — disse o detetive enquanto olhava para o rosto do jesuíta. — O senhor está trabalhando até tarde? Sua cara está péssima.
— Minha cara sempre está péssima.
— Mas agora está mais do que o normal. Vamos! Saia apenas uma noite! O senhor vai gostar!
Karras decidiu testá-lo, tocá-lo num ponto fraco.
— O senhor tem certeza de que é este filme que está passando? — perguntou ele. Seu olhar estava firme no do detetive. — Eu poderia jurar que um filme de Chris MacNeil estava sendo exibido no Biograph.
O detetive hesitou e disse rapidamente:
— Não, o senhor está enganado. Está passando Otelo.
— Ah. E o que trouxe o senhor aqui?
— O senhor! Eu vim para convidá-lo para assistir ao filme!
— Bem, acho que é mais fácil dirigir do que usar o telefone, não é?
O detetive ergueu as sobrancelhas numa tentativa bastante inconvincente de parecer inocente.
— Seu telefone estava ocupado.
O jesuíta olhou para ele em silêncio e com seriedade.
— O que há de errado? — perguntou Kinderman. — O quê?
Karras enfiou a mão dentro do carro, levantou a pálpebra de Kinderman e analisou seu olho.
— Não sei — disse ele, franzindo o cenho. — O senhor está péssimo. Talvez esteja acometido por um caso de mitomania.
— Não sei o que isso quer dizer. É sério?
— Sim, mas não fatal.
— O que é? O suspense está me deixando maluco!
— Pesquise — disse Karras.
— Olha, não seja tão presunçoso. De vez em quando, é preciso dar a César o que é de César. Sou a lei. Eu poderia tê-lo deportado, sabia?
— Por quê?
— Um psiquiatra não deveria irritar as pessoas. Além disso, os gentios, para ser sincero, adorariam isso. O senhor os incomoda, padre. É sério, o senhor os envergonha. Quem precisa disso? Um padre que usa moletom e tênis!
Abrindo um sorriso amarelo, Karras assentiu.
— Preciso ir. Cuide-se — disse, batendo a mão na janela duas vezes em despedida, e se virou e caminhou lentamente em direção à entrada do centro de residência.
— Procure um analista! — disse o detetive com a voz rouca.
Então, olhou para ele com grande preocupação. Olhou para o centro pelo vidro da frente, ligou o carro e subiu a rua. Ao passar por Karras, buzinou e acenou. Karras acenou também, e quando o carro de Kinderman dobrou a esquina na rua 36, ele parou e permaneceu parado por um tempo, passando a mão trêmula na sobrancelha. Será que ela poderia realmente ter feito isso? Será que Regan poderia ter matado Burke Dennings de modo tão horrível? Com o olhar intenso, Karras se virou e olhou para a janela de Regan, pensando, Pelo amor de Deus, o que há naquela casa? E quanto tempo demorará até Kinderman exigir ver Regan? Até perceber nela a personalidade de Dennings? Ouvi-la? Quanto tempo demoraria até Regan ser internada? Ou até morrer?
Ele precisava levar o caso de exorcismo à Ordem.
Karras atravessou a rua depressa até a casa de Chris MacNeil, tocou a campainha e esperou Willie deixá-lo entrar.
— A senhora está cochilando agora — disse ela.
Karras assentiu.
— Ótimo. — Ele passou por ela e subiu a escada até o quarto de Regan. Ele procurava assimilar algo.
Ele entrou e viu Karl numa cadeira perto da janela. Silencioso e presente como uma árvore grande e escura, ele estava sentado com os braços cruzados e com os olhos fixos em Regan.
Karras se aproximou da cama e olhou para baixo. A parte branca dos olhos parecia uma névoa leitosa; os murmúrios, feitiços de outro mundo. Karras se inclinou lentamente e começou a soltar as amarras de Regan.
— Não, padre! Não!
Karl correu até a cama e agarrou o braço do jesuíta.
— Ela é muito má, padre! Forte! Muito forte!
Nos olhos de Karl havia um medo que Karras percebeu ser real. E agora ele sabia que a força de Regan era real. Ela poderia ter feito aquilo, poderia ter torcido o pescoço de Dennings. Vamos, Karras! Depressa! Encontre uma evidência! Pense!
Ele ouviu uma voz vinda de baixo. Na cama.
— Ich möchte Sie etwas fragen, Herr Engstrom!
Com surpresa e esperança, Karras virou a cabeça e olhou para a cama, onde viu o rosto demoníaco de Regan olhando para Karl.
— Tanzt Ihre Tochter gern? — perguntou ela, e começou a rir de modo sarcástico. Alemão. Havia perguntado se a filha coxa de Karl gostava de dançar! Exaltado, Karras virou-se para Karl e viu que seu rosto estava muito vermelho. Com as mãos em punhos, ele olhava para Regan com fúria enquanto ela continuava a rir.
— Karl, é melhor você sair — disse Karras.
O suíço balançou a cabeça.
— Não, vou ficar!
— Saia, por favor! — disse o jesuíta com firmeza, olhando implacavelmente para Karl até que, depois de um momento de resistência, o empregado se virou e saiu correndo do quarto. Quando a porta se fechou, a risada parou de forma abrupta e foi substituída pelo silêncio pesado.
Karras olhou para a cama. O demônio o observava. Parecia satisfeito.
— Então, você voltou — disse ele. — Estou surpreso. Pensei que o embaraço com a água benta pudesse ter feito você mudar de ideia e não voltar mais. Mas eu me esqueci de que um padre não tem vergonha.
Karras respirou fundo algumas vezes para se forçar a se concentrar, a pensar com clareza. Ele sabia que o exame de línguas para comprovar a possessão exigia uma conversa inteligente como prova de que o que fosse dito não estivesse ligado a lembranças linguísticas escondidas. Fácil! Acalme-se! Você se lembra daquela menina? Uma empregada adolescente e parisiense, supostamente possuída, enquanto delirava, havia balbuciado num idioma que acabou sendo reconhecido como sírio. Karras forçou-se a pensar na agitação que isso havia causado, em como finalmente se descobriu que a menina havia trabalhado numa pensão na qual um dos moradores era estudante de teologia que, na noite anterior às provas, caminhava pelo quarto e descia e subia as escadas enquanto repassava sua lição em sírio em voz alta. E a menina o ouvira.
Vá com calma. Não se precipite.
— Sprechen Sie deutsch? — perguntou Karras.
— Mais brincadeiras?
— Sprechen Sie deutsch? — O jesuíta repetiu, com o coração acelerado de ansiedade.
— Natürlich — respondeu o demônio, olhando-o com malícia. — Mirabile dictu, não acha?
O jesuíta sentiu o coração aos pulos. Ele falava não apenas alemão, mas também latim! E dentro do contexto!
— Quod nomen mihi est? (Qual é o meu nome?) — perguntou ele rapidamente.
— Karras.
E o padre se animou.
— Ubi sum? (Onde estou?)
— In cubiculo. (Num quarto.)
— Et ubi est cubiculum? (E onde fica o quarto?)
— In domo. (Numa casa.)
— Ubi est Burke Dennings? (Onde está Burke Dennings?)
— Mortuus. (Ele está morto.)
— Quomodo mortuus est? (Como ele morreu?)
— Inventus est capite reverso. (Ele foi encontrado com a cabeça virada.)
— Quis occidit eum? (Quem o matou?)
— Regan.
— Quomodo ea occidit ilium? Dic mihi exacte! (Como ela o matou? Conte-me em detalhes.)
— Bem, já chega de emoção por enquanto — disse o demônio sorrindo. — Sim, já basta, eu diria. Mas creio que você certamente vai perceber, você sendo você, que, enquanto você fazia as perguntas em latim, estava formulando as respostas mentalmente em latim. — O dêmonio riu. — Tudo inconsciente, claro. Sim, o que faríamos sem o inconsciente, Karras? Está entendendo aonde quero chegar? Não sei falar nada em latim! Eu li sua mente! Simplesmente arranquei as respostas de sua mente!
Karras sentiu um desânimo no mesmo instante, diante da falta de certeza. Sentiu-se atormentado e frustrado pela dúvida perturbadora que havia sido plantada em sua mente.
O demônio riu.
— Sim, eu sabia que isso aconteceria com você, Karras. É por isso que gosto tanto de você, meu caro. Sim, é por isso que adoro todos os homens razoáveis.
O demônio jogou a cabeça para trás, rindo.
A mente do jesuíta estava desesperada, formulando perguntas para as quais não havia uma resposta correta, mas sim muitas. Mas talvez eu fosse pensar em todas elas!, ele percebeu. Então faça uma pergunta cuja resposta você não sabe!, raciocinou. Ele poderia conferir a resposta mais tarde para ver se estava correta.
Esperou o riso diminuir e falou:
— Quam profundus est imus Oceanus Indicus? (Qual é a profundidade máxima do oceano Índico?)
Os olhos do demônio brilharam.
— La plume de ma tante.
— Responde Latine.
— Bon jour! Bonne nuit!
— Quam...
Karras parou quando os olhos reviraram dentro das órbitas, para cima, e a entidade dos balbucios ininteligíveis apareceu. Impaciente e frustrado, Karras exigiu:
— Deixe-me falar com o demônio de novo!
Nenhuma resposta. Apenas a respiração de um lugar desconhecido.
— Quis es tu? — disse ele com a voz rouca.
Apenas silêncio. A respiração.
— Deixe-me falar com Burke Dennings!
Um soluço. Uma respiração forte. Um soluço.
— Deixe-me falar com Burke Dennings!
O soluço, constante e forte, continuou. Karras abaixou a cabeça, balançou-a e caminhou até uma poltrona acolchoada, onde se sentou, recostou-se e fechou os olhos. Tenso. Atormentado. E esperou...
O tempo passou. Karras cochilou. Depois olhou para a frente. Fique acordado! Em seguida, piscando, com as pálpebras pesadas, olhou para Regan. Não mais soluçou. Olhos fechados. Ela estava dormindo?
Ele ficou de pé, caminhou até a cama, abaixou-se e sentiu a pulsação de Regan. Inclinando-se para a frente, examinou seus lábios. Eles estavam ressecados. Ele se endireitou e esperou um pouco, até que finalmente saiu da sala e foi até a cozinha, à procura de Sharon. Encontrou-a à mesa, tomando sopa e comendo um sanduíche.
— Gostaria de comer alguma coisa, padre Karras? — perguntou ela. — O senhor deve estar faminto.
— Não, não estou — respondeu ele. — Obrigado. — Sentando-se, ele pegou um lápis e um bloquinho de anotações que estavam ao lado da máquina de datilografar de Sharon. — Ela está soluçando — disse ele. — Vocês têm Compazina?
— Sim, temos um pouco.
Ele estava escrevendo no bloco de anotações.
— Então, esta noite, dê a ela metade de um frasco de 25 miligramas.
— Tudo bem.
— Ela está começando a desidratar — Karras continuou —, então mudarei a alimentação intravenosa. Logo de manhã, ligue para uma empresa de equipamentos médicos e peça a eles para entregarem os alimentos logo. — Ele escorregou o bloco sobre a mesa até Sharon. — Enquanto isso, ela está dormindo, portanto você pode começar a alimentá-la com Sustagen.
Sharon assentiu.
— Sim, pode deixar. — Pegando a sopa com a colher, ela virou o bloco e olhou para a lista.
Karras a observava. Ele franziu o cenho, concentrado, e perguntou:
— Você é a professora dela?
— Sim, isso mesmo.
— Você ensinou latim a ela?
— Latim? Não, não sei nada de latim. Por quê?
— E alemão?
— Apenas francês.
— Que nível? La plume de ma tante?
— Basicamente.
— Mas não ensinou latim nem alemão?
— Não.
— Mas os Engstrom... Eles não falam alemão às vezes?
— Ah, sim, certamente.
— Perto de Regan?
Sharon ficou de pé e deu de ombros.
— Bem, às vezes, creio que sim. — Ela começou a caminhar em direção à pia da cozinha levando os pratos, quando disse: — Na verdade, estou certa de que sim.
— Você já estudou latim? — perguntou Karras.
Sharon riu ao responder:
— Eu? Latim? Não, nunca.
— Mas você reconheceria os sons?
— Sim, creio que sim.
Ela enxaguou a tigela de sopa e a colocou no escorredor.
— Ela já falou latim com você?
— Regan?
— Sim. Desde que adoeceu.
— Não, nunca.
— Algum outro idioma?
Sharon fechou a torneira, pensativa.
— Bem, acho que posso ter imaginado, mas...
— Mas o quê?
— Bem, eu acho... — disse Sharon, franzindo o cenho. — Bem, poderia jurar que eu a ouvi falando russo, certa vez.
Karras ficou olhando, com a garganta seca.
— Você fala russo? — perguntou ele.
— Mais ou menos. Fiz dois anos na faculdade, e só.
Karras ficou desanimado. Então, Regan pegou o latim de meu cérebro! Olhando para a frente, inexpressivo, ele levou a mão à sobrancelha, em dúvida. A telepatia é mais comum em estados de grande tensão: falar sempre num idioma conhecido por alguém no ambiente: “...pensa as mesmas coisas que estou pensando...”, “Bon jour...”, “La plume de ma tante...”, “Bonne nuit...” Com pensamentos como esses, Karras observou com tristeza o sangue voltando a ser vinho.
O que fazer? Dormir um pouco. Voltar e tentar de novo... tentar de novo... Ele ficou de pé e olhou para Sharon. Ela estava recostada de costas para a pia, com os braços cruzados enquanto o observava de modo pensativo e curioso.
— Vou ao centro de residência — disse ele. — Assim que a Regan acordar, gostaria que você me avisasse.
— Sim, avisarei.
— E a Compazina, está bem? Não vai se esquecer?
Ela balançou a cabeça.
— Não, vou cuidar disso agora mesmo.
Karras assentiu e, com as mãos nos bolsos, olhou para baixo, tentando se lembrar do que poderia ter se esquecido de dizer a Sharon. Sempre algo a ser feito; sempre algo de que se esquecia quando tudo já tinha sido feito.
— Padre, o que está havendo? — Ele ouviu a secretária perguntar. — O que foi? O que de fato está ocorrendo com Rags?
Karras olhou para a frente com os olhos assombrados.
— Não sei — disse ele. — Não sei mesmo.
Ele se virou e saiu da cozinha.
Enquanto passava pelo corredor, Karras ouviu passos vindo apressadamente atrás dele.
— Padre Karras!
Karras se virou e viu Karl com sua blusa.
— Sinto muito — disse o empregado ao entregar a peça. — Pensei que terminaria muito antes. Mas eu me esqueci. — Entregou a blusa ao padre. As manchas de vômito haviam desaparecido e o cheiro estava agradável.
— Muito gentil de sua parte, Karl — disse o padre com delicadeza. — Obrigado.
— Eu é que agradeço, padre Karras — disse Karl com a voz trêmula, os olhos marejados. — Obrigado por ajudar a srta. Regan. — Então, virando a cabeça, Karl virou-se e afastou-se rapidamente.
Enquanto Karras o observava, ele se lembrou dele no carro de Kinderman. Por quê? Mais mistério agora; mais confusão. Cansado, Karras se virou e abriu a porta. Estava escuro. Era noite. Aflito, ele saiu da escuridão e entrou na escuridão.
Atravessou a rua até o centro de residência, com sono, mas decidiu parar no quarto de Dyer. Bateu à porta, ouviu um “Entre e será convertido!” do lado de dentro e, ao entrar, encontrou Dyer datilografando em sua máquina IBM Selectric. Karras sentou-se à beira da cama enquanto o jesuíta mais jovem continuava a datilografar.
— Oi, Joe!
— Sim, estou ouvindo. O que foi?
— Você conhece alguém que tenha feito um exorcismo formal?
— Joe Louis, Max Schmeling, em 22 de junho de 1938.
— Joe, é sério.
— Não, você precisa falar a sério. Exorcismo? Está de brincadeira?
Karras não respondeu e, durante alguns momentos, observou inexpressivo enquanto Dyer datilografava, até que, por fim, levantou-se e caminhou até a porta.
— Sim, Joe — disse ele. — Eu estava brincando.
— Foi o que pensei.
— Nós nos vemos por aí.
— E volte com piadas mais engraçadas.
Karras atravessou o corredor e, ao entrar em seu quarto, olhou para baixo e viu uma mensagem no chão num papel cor-de-rosa. Ele o pegou. De Frank. Um número de telefone. “Por favor, telefone para...”
Karras pegou o telefone e solicitou que uma chamada fosse feita ao número do diretor do Instituto, e, enquanto esperava, olhou para a mão livre, à direita. Estava tremendo de ansiedade.
— Alô? — Uma voz estridente. Um menininho.
— Posso falar com seu pai, por favor?
— Sim, só um minuto. — O garoto repousou o telefone sobre alguma superfície. E então voltou a pegá-lo. — Quem é?
— O padre Karras.
— Padre Karits?
— Karras. Padre Karras.
E o telefone foi pousado de novo.
Karras levantou a mão trêmula, tocando a sobrancelha com a ponta dos dedos.
Barulho na linha.
— Padre Karras?
— Sim, alô, Frank. Estou tentando falar com você.
— Ah, sinto muito. Tenho trabalhado com as suas fitas aqui em casa.
— Já terminou?
— Sim, terminei. A propósito, o conteúdo é bem esquisito.
— Sim, eu sei — disse Karras enquanto se esforçava para diminuir a tensão em sua voz. — Como estamos até agora? O que descobrimos?
— Bem, esse tipo-símbolo, primeiro...
— Sim, Frank?
— Não tive uma amostra suficiente para ter certeza, mas diria que está bem perto, ou pelo menos que está o mais perto do que conseguimos chegar com essas coisas. Bem, de qualquer modo, eu diria que as duas vozes diferentes nas fitas são provavelmente de personalidades distintas.
— Provavelmente?
— Bem, eu não juraria no tribunal, porque a variação é de fato muito pequena.
— Pequena... — Karras repetiu. Bem, fim de jogo. — E o falatório? — perguntou ele. — É algum idioma?
Frank riu.
— Qual é a graça? — perguntou o jesuíta, impaciente.
— Isso foi um exame psicológico disfarçado, padre?
— O que quer dizer?
— Bem, acho que você confundiu suas fitas ou algo assim. É...
— Frank, é um idioma ou não? — Karras interrompeu.
— Ah, eu diria que é um idioma, sim.
Surpreso, Karras ficou tenso.
— Está brincando?
— Não, não estou.
— Qual é o idioma?
— Inglês.
Por um momento, Karras ficou perplexo, e, quando voltou a falar, estava mais irritado.
— Frank, acho que não estamos nos entendendo muito bem. Ou quer me contar qual é a piada?
— Você está com seu gravador aí?
Estava sobre a mesa.
— Sim, estou.
— Tem um botão de tocar de modo reverso?
— Por quê?
— Tem ou não?
— Só um segundo. — Irritado, Karras soltou o telefone e abriu a tampa do gravador para ver. — Sim, tem. Frank, por que essa pergunta?
— Coloque a fita no tocador e toque ao contrário.
— O quê?
— Você não entende — disse Frank, rindo com bom humor. — Olha, toque ao contrário e nos falamos amanhã. Boa noite, padre.
— Boa noite, Frank.
— Divirta-se.
— Sim, claro.
Karras desligou. Parecia estupefato. Pegou a fita com o falatório e a colocou no tocador. Primeiro, ele a tocou normalmente e assentiu. Nenhum engano. Eram apenas resmungos.
Ele deixou que ela fosse até o fim e, depois, tocou de trás. Ouviu sua voz falando de trás para para frente. E então a voz de demônio de Regan: Marin marin karras nos deixe nos deixe...
Inglês! Sem sentido! Mas, ainda assim, inglês!
Como ela conseguiu fazer isso?, perguntou-se Karras.
Ouviu tudo, rebobinou a fita e a tocou de novo. E mais uma vez. E percebeu que a ordem do discurso estava invertida. Parou a fita, rebobinou e, com um lápis e um bloco de anotações na mão, sentou-se a sua mesa e começou a tocar a fita do começo, esforçando-se para transcrever as palavras, com diversas pausas e retomadas no processo. Quando finalmente terminou, fez mais uma transcrição numa segunda folha de papel e trocou a ordem das palavras. Então, recostou-se e leu:
...perigo. Ainda não. [ininteligível] morrerá. Pouco tempo. Agora o [ininteligível]. Deixe-a morrer. Não, não, deliciosa! Deliciosa no corpo! Eu sinto! Há [ininteligível]. Melhor [ininteligível] do que o vazio. Temo o padre. Dê-nos tempo. Temo o padre! Ele é [ininteligível]. Não, não este: o [ininteligível], aquele que [ininteligível]. Ele está doente. Ah, o sangue, sinta o sangue, como ele [canta?].
Karras perguntou na gravação: “Quem é você?” E a resposta:
Eu sou ninguém. Eu sou ninguém.
E então, Karras: “Este é seu nome?” E a resposta:
Não tenho nome. Eu sou ninguém. Muitos. Deixe-nos. Deixe-nos esquentar no corpo. Não [ininteligível] do corpo no vazio, no [ininteligível]. Deixe-nos. Deixe-nos. Deixe-nos. Karras. Merrin. Merrin.
Karras releu a transcrição muitas vezes, assombrado pelo tom, pela sensação de que mais de uma pessoa falava, até finalmente a repetição em si mesclar as palavras e ele deixar a transcrição e esfregar o rosto, os olhos, seus pensamentos. Não era um idioma desconhecido. E escrever de trás para a frente não era paranormal nem mesmo incomum. Mas falar de trás para a frente, ajustar e alterar a fonética de modo que, ao ouvir as palavras de trás para a frente, elas fosse inteligíveis; tal ato não estava além do alcance até mesmo de um intelecto superestimulado, do inconsciente acelerado ao qual Jung se referiu? Não, algo... Algo à beira da lembrança. Ele se lembrou. Caminhou até as estantes para pegar um livro: Psicologia e patologia dos supostos fenômenos ocultos. Há algo parecido aqui, pensava ele enquanto pesquisava rapidamente pelas páginas do livro. O que era?
E encontrou: um relato de uma experiência com escrita automática em que o inconsciente do indivíduo parecia capaz de responder suas perguntas com anagramas. Anagramas!
Ele abriu o livro sobre a mesa, inclinou-se para a frente e leu um relato de uma parte do experimento:
terceiro dia
O que é homem? Tefi hasl esble lies.
É um anagrama? Sim.
Quantas palavras tem? Cinco.
Qual é a primeira palavra? Ver.
Qual é a segunda palavra? Eeeee.
Viu? Posso interpretá-la como quiser? Tente!
O indivíduo encontrou esta solução: “The life is less able” [A vida é menos capaz”]. Ficou estupefato com esse pronunciamento intelectual, que parecia provar a existência de uma inteligência independente da dele. Por este motivo, ele continuou a perguntar:
Quem é você? Clelia.
É uma mulher? Sim.
Você viveu na Terra? Não.
Você ganhará vida? Sim.
Quando? Em seis anos.
Por que está conversando comigo? E if Clelia el.
O indivíduo interpretou essa resposta como um anagrama para “I, Clelia, feel” [Eu, Clelia, sinto].
quarto dia
Sou eu quem responde às perguntas? Sim.
Clelia está aqui? Não.
Quem está, então? Ninguém.
Clelia existe? Não.
Então, com quem eu estava conversando ontem? Com ninguém.
Karras parou de ler e balançou a cabeça. Não havia nada de paranormal ali, pensou, apenas prova das habilidades ilimitadas da mente. Ele pegou um cigarro, sentou-se e o acendeu. “Eu sou ninguém. Muitos.” De onde vinha aquilo, perguntou-se Karras, aquele conteúdo misterioso do discurso de Regan? Do mesmo lugar de onde vinha Clelia? Personalidades emergentes?
“Merrin... Merrin...” “Ah, o sangue...” “Ele está doente...”
Assustado, Karras olhou para seu exemplar de Satã e folheou o livro até a inscrição inicial. “Que o dragão não seja meu líder...” Fechando os olhos ao soltar a fumaça, Karras levou a mão à boca e tossiu; percebendo que a garganta estava dolorida e inflamada, apagou o cigarro num cinzeiro. Exausto, lenta e desajeitadamente, ele se levantou, apagou a luz do quarto, fechou as cortinas, tirou os sapatos e deitou-se de bruços em sua cama estreita. Cenas intensas e fragmentadas tomaram sua mente: Regan. Kinderman. Dennings. O que fazer? Ele precisava ajudar! Tinha que ajudar! Mas como? Tentar convencer o bispo com o pouco que tinha? Não acreditava que devesse. Nunca conseguiria convencê-lo do caso.
Pensou em se despir, em se enfiar embaixo dos cobertores.
Cansado demais. Que fardo. Ele queria se libertar.
“...Deixe-nos!”
Na lenta passagem para um sono pesado, os lábios de Karras se mexerem quase imperceptivelmente, formando a expressão “Deixe-me”, inaudível. De repente, ele estava levantando a cabeça, desperto por uma respiração ofegante e pelo som suave de celofane sendo amassado, e, ao abrir os olhos, viu um estranho em seu quarto, um padre um pouco acima do peso, de meia-idade e com o rosto coberto por sardas, com mechas finas de cabelos ruivos penteados para trás na cabeça calva. Sentado a uma poltrona estofada no canto do quarto, ele observava Karras e rasgava a embalagem de um pacote de cigarros Gauloises. O padre sorriu.
— Ah, olá.
Karras jogou as pernas para fora da cama e sentou-se.
— Olá e adeus — Karras resmungou. — Quem é você e que merda está fazendo no meu quarto?
— Olha, sinto muito, mas bati e você não atendeu. Daí vi que a porta estava destrancada, por isso pensei que seria melhor entrar e esperar. E aqui está você! — O padre apontou para duas bengalas encostadas na parede perto da cadeira. — Eu não poderia esperar muito tempo no corredor, sabe? Posso permanecer de pé por um tempo, mas logo preciso me sentar. Espero que me perdoe. Sou Ed Lucas, a propósito. O presidente sugeriu que eu viesse falar com o senhor.
Franzindo o cenho, Karras inclinou a cabeça.
— Você disse “Lucas”?
— Sim, é Lucas o tempo todo — disse o padre, e seu sorriso revelou dentes compridos e manchados pela nicotina. Ele havia tirado um cigarro do maço e procurava um isqueiro dentro do bolso. — Você se importa se eu fumar?
— Não, vá em frente. Eu também fumo.
— Ah, sim — disse Lucas ao olhar para algumas bitucas de cigarro num cinzeiro na mesa de canto ao lado de sua cadeira. O padre ofereceu o pacote de cigarros a Karras. — Quer um Gauloise?
— Não, obrigado. Você disse que Tom Bermingham o mandou aqui?
— O velho Tom. Sim, somos “camaradas”. Éramos da mesma turma de ensino médio na Regis, e depois disso estudamos juntos na St. Andrews, em Hudson. Sim, Tom recomendou que eu viesse, então peguei um ônibus em Nova York. Estou em Fordham.
Karras ficou mais animado de repente.
— Ah, Nova York! Tem a ver com meu pedido de transferência?
— Transferência? Não, não sei de nada sobre isso. É um assunto pessoal — disse o padre.
Os ombros de Karras se encolheram junto com suas esperanças.
— Bem, tudo bem — disse ele com um tom mais contido. Ficou de pé e caminhou até uma cadeira de madeira de espaldar reto, virou-a, sentou-se e começou a observar Lucas com atenção. Para Karras, ali, mais perto, o terno preto do padre estava amassado e largo, até surrado. Havia caspa nos ombros. O padre havia pegado um cigarro do maço e agora o acendia com uma chama grande de um isqueiro Zippo, que tirou do bolso tão discretamente que pareceu um truque de mágica, e então soltou uma fumaça cinza-azulada, que observou com o que parecia ser uma profunda satisfação enquanto dizia:
— Ah, nada como um Gauloise para os nervos!
— Está nervoso, Ed?
— Um pouco.
— Bem, relaxe. Vá em frente e me conte tudo. Como posso ajudá-lo?
Lucas observou Karras com um olhar de preocupação.
— Você parece exausto — disse ele. — Talvez fosse melhor se a gente se encontrasse amanhã. O que me diz? — E logo acrescentou: — Sim, sim, com certeza amanhã! Pode me passar as bengalas, por favor?
Ele estendeu o braço em direção às bengalas.
— Não, não, não! — disse Karras. — Estou bem, Ed. Muito bem! — Inclinando-se para a frente com as mãos unidas entre os joelhos, Karras observou o rosto do padre enquanto dizia: — A procrastinação é o que chamamos de “resistência”.
Lucas ergueu uma sobrancelha, e seu olhar parecia levemente intrigado.
— Ah, é mesmo?
— Sim, é mesmo.
Karras olhou para as pernas de Lucas.
— Isso o deprime? — perguntou ele.
— Como assim? Ah, minhas pernas! Ah, às vezes, creio eu.
— Congênito?
— Não, não. Aconteceu numa queda.
Por um momento, Karras observou o rosto do visitante. Aquele sorriso leve e secreto. Será que o vira de novo?
— Que pena — disse Karras de modo solidário.
— Bem, é o mundo que herdamos, certo? — respondeu Lucas, com o Gauloise ainda pendurado no canto da boca. Ele o tirou dos lábios entre os dois dedos e lamentou em meio a uma nuvem de fumaça. — Bem...
— Certo, Ed, vamos ao ponto. Está bem? Você certamente não saiu de Nova York para vir aqui e ficar brincando comigo, então vamos abrir o jogo. Diga tudo. Certo? Cartas na mesa.
Lucas balançou a cabeça devagar e olhou para o lado.
— Bem, é uma longa história — Ele começou, mas teve de levar a mão à boca quando um novo acesso de tosse teve início.
— Quer beber alguma coisa? — perguntou Karras.
Com os olhos marejados, o padre negou, balançando a cabeça.
— Não, não, tudo bem — disse ele, meio engasgado. — De verdade! — E os espasmos foram diminuindo. Ele olhou para baixo e afastou as cinzas do cigarro da frente de seu blazer. — Vício nojento! — Ele resmungou, enquanto Karras notava o que parecia uma macha de gema de ovo na camisa preta por baixo do blazer.
— Certo, o que houve? — perguntou Karras.
Lucas olhou para ele e disse:
— Você.
Karras hesitou e perguntou:
— Eu?
— Sim, Damien, você. Tom está muitíssimo preocupado com você.
Karras olhou fixamente para Lucas, começando a entender as coisas, porque havia uma profunda compaixão em seus olhos e em seu tom de voz.
— Ed, o que você faz em Fordham? — perguntou Karras.
— Eu aconselho — disse o padre.
— Aconselha.
— Sim, Damien. Sou um psiquiatra.
Karras olhou para ele.
— Um psiquiatra — Ele repetiu, inexpressivo.
Lucas olhou para o lado.
— Bem, por onde começo? — disse, suspirando de modo relutante. — Não sei bem. É tão complicado. Muito complicado. Bem, deixe-me ver o que podemos fazer — disse baixinho, inclinando-se para a frente e batendo as cinzas de seu Gauloise no cinzeiro. — Mas você é especialista — disse ele, olhando para a frente —, e às vezes é melhor colocar as cartas sobre a mesa de uma vez. — O padre voltou a tossir, levando a mão à boca. — Droga! Sinto muito! — A tosse parou, Lucas olhou para Karras com seriedade. — Olha, é essa confusão com você e as MacNeil.
Karras reagiu com surpresa.
— MacNeil? — perguntou ele. — Como pode saber disso? Não haveria como Tom lhe contar isso. Não, de jeito nenhum. Seria prejudicial à família.
— Há fontes.
— Que fontes? Como quem? Como o quê?
— Isso importa? — perguntou o padre. — Não, nem um pouco. Tudo o que importa é sua saúde e sua estabilidade emocional. E as duas estão claramente em perigo, e essa história com as MacNeil apenas vai piorar a situação, então a Ordem exige que você se afaste. Afaste-se pelo seu bem, Karras, e também pelo bem da Ordem! — disse o padre, franzindo as sobrancelhas volumosas, que quase se tocavam, e abaixou a cabeça de modo que seu olhar parecesse ameaçador. — Afaste-se! Antes que ocorra uma catástrofe maior, antes que as coisas fiquem piores, muito piores! Não queremos mais profanações, certo, Damien?
Karras olhou surpreso para o homem, chocado.
— Profanações? Ed, de que está falando? O que minha saúde mental tem a ver com elas?
Lucas se recostou na cadeira.
— Ah, vamos! — disse ele com sarcasmo. — Você se une aos jesuítas e deixa sua pobre mãe morrer sozinha e em total pobreza? E então o que se odiaria inconscientemente por tudo isso senão a Igreja Católica? — O padre voltou a se inclinar para a frente, encurvando-se ao sussurrar: — Não seja obtuso! Mantenha-se longe das MacNeil!
Com os olhos estreitos, a cabeça inclinada, Karras se levantou e olhou para o padre, dizendo com a voz rascante:
— Quem diabos é você, amigo? Quem é você?
O toque baixo do telefone na mesa de Karras atraiu o olhar assustado do padre Lucas.
— Cuidado com Sharon! — disse com intensidade, alertando Karras; de repente, o telefone começou a tocar alto de modo que Karras despertou e percebeu que estivera sonhando. Ensonado, ele se levantou da cama, aproximou-se de um interruptor, acendeu a luz, caminhou até a mesa e pegou o telefone. Era Sharon. Que horas eram?, perguntou ele a ela. Três e pouco da madrugada. Ela perguntou se ele podia ir a casa naquele momento. Ah, Deus!, resmungou Karras por dentro, mas disse que poderia. Sim. Iria. E, mais uma vez, ele se sentiu preso; pressionado, enredado.
Entrou no banheiro de azulejos brancos, onde lavou o rosto com água, e, ao se secar, lembrou-se do padre Lucas e do sonho. Qual seria o significado? Talvez nenhum. Ele pensaria melhor mais tarde. Quando estava prestes a sair de seu quarto, parou na porta, virou-se e voltou para pegar uma blusa de lã preta, que vestiu; ao ajeitá-la no corpo, parou abruptamente, olhando para a mesa de canto. Respirando profundamente e dando um passo adiante, ele se abaixou na direção do cinzeiro, pegou uma bituca e ficou imóvel por um momento, surpreso. Era um Gauloise. Pensamentos a toda. Suposições. Uma sensação de frio. E, então, um pedido: “Cuidado com Sharon!” Karras deixou a bituca no cinzeiro, saiu do quarto, atravessou o corredor e chegou à rua Prospect, onde o ar estava ralo, fraco e úmido. Passou pela escada, atravessou diagonalmente para o outro lado e encontrou Sharon observando e esperando por ele na porta da casa de MacNeil. Parecendo assustada e perplexa, ela segurava uma lanterna com uma das mãos, e com a outra agarrava um cobertor ao redor do pescoço.
— Sinto muito, padre — disse ela quando o jesuíta entrou na casa —, mas acho que o senhor precisa ver isto.
— Ver o quê?
Sharon fechou a porta sem fazer barulho.
— Preciso mostrar ao senhor — Ela sussurrou. — Mas façamos silêncio. Não quero acordar Chris, não quero que ela veja.
Ela fez um sinal para que Karras a seguisse, subindo as escadas até o quarto de Regan na ponta dos pés. Ao entrar, o jesuíta sentiu frio. O quarto estava gelado. Franzindo o cenho, ele olhou para Sharon de forma questionadora, e ela assentiu e disse:
— Sim, padre. O aquecedor está ligado.
Eles se viraram e olharam para Regan, para as partes brancas de seus olhos que brilhavam assustadoramente à luz fraca da luminária. Ela parecia estar em coma. Respiração pesada. Estava imóvel. A sonda nasogástrica levava o Sustagen lentamente para dentro de seu corpo.
Sharon caminhou em silêncio em direção à cama. Karras a seguiu, ainda assustado com o frio. Quando estavam ao lado da menina, ele viu gotas de suor na testa dela; olhou para baixo e viu seus braços presos pelas amarras de couro. Sharon inclinou-se sobre a cama, abriu a parte de cima do pijama branco e cor-de-rosa de Regan, e Karras se compadeceu profundamente ao ver o peito magro, com as costelas aparentes que sinalizavam que aquelas seriam suas últimas semanas ou dias de vida. Sentiu o olhar assustado de Sharon sobre ele.
— Não sei se parou — Ela sussurrou. — Mas observe: fique olhando para o peito dela.
Sharon acendeu a lanterna e a mirou no tórax nu da menina, e o jesuíta, confuso, seguiu o olhar dela. E, então, silêncio. A respiração levemente assobiante de Regan. Atenção. O frio. O jesuíta franziu o cenho ao ver algo acontecendo à pele do peito: uma vermelhidão fraca, mas com clara definição. Ele observou mais de perto.
— Aqui, está aparecendo! — Sharon sussurrou.
Abruptamente, o arrepio nos braços de Karras não foi causado pelo frio do cômodo, mas pelo que ele estava vendo no peito da menina; pelas letras em alto relevo, explícitas, cor de sangue. Duas palavras:
me ajuda
Sharon passou da longa observação às palavras, e um vapor gélido saiu de seus lábios quando murmurou:
— É a letra dela, padre.
Às nove da manhã, Karras procurou o presidente da universidade de Georgetown e pediu permissão para fazer um pedido de exorcismo.
Conseguiu, e imediatamente procurou o bispo da diocese, que ouviu com muita atenção tudo o que Karras tinha a dizer.
— Tem certeza de que é real? — perguntou o bispo, por fim.
— Bem, fiz uma avaliação prudente e percebi que condiz com todas as condições estabelecidas no Ritual — respondeu Karras de modo evasivo. Ainda não ousava acreditar. Seu coração, e não sua mente, o havia guiado àquele momento: pena e a esperança de cura por meio da sugestão.
— Gostaria de realizar o exorcismo sozinho?
Karras sentiu júbilo. Viu a porta se abrindo para os campos, para a libertação do peso do cuidado para ir ao encontro de cada anoitecer com o que restava de sua fé. E ainda:
— Sim, Vossa Excelência — respondeu ele.
— Como está sua saúde?
— Minha saúde está bem, Vossa Excelência.
— Já esteve envolvido com esse tipo de coisa antes?
— Não, nunca.
— Bem, veremos. Pode ser melhor se tivermos um homem com experiência. Não existem muitos deles hoje em dia, mas talvez alguém de missões estrangeiras. Vou ver quem está por perto. Enquanto isso, espere, e telefonarei assim que soubermos.
Quando Karras partiu, o bispo entrou em contato com o presidente da universidade de Georgetown, e eles conversaram sobre Karras pela segunda vez naquele dia.
— Bem, ele conhece bem a história — disse o presidente em determinado ponto da conversa. — Duvido que exista algum risco em deixá-lo acompanhar apenas. De qualquer modo, deve haver um psiquiatra presente.
— E o exorcista? Alguma ideia? Não consigo pensar em ninguém.
— Bem, Lankester Merrin está por aqui.
— Merrin? Pensei que ele estivesse no Iraque. Acho que ele estava trabalhando numa escavação perto de Nínive.
— Sim, perto de Mossul. Isso mesmo. Mas ele terminou e voltou cerca de três ou quatro meses atrás, Mike. Está na faculdade de Woodstock.
— Lecionando?
— Não, está escrevendo outro livro.
— Deus nos ajude! Você não acha que ele é velho demais? Como está de saúde?
— Olha, deve estar bem. Do contrário, não estaria por aí escavando tumbas, não acha?
— Sim, creio que sim.
— Além disso, ele tem experiência, Mike.
— Não sabia disso.
— Bem, pelo menos é o que dizem.
— E quando foi isso? Essa experiência?
— Ah, talvez dez ou doze anos atrás, acho, na África. Supostamente, o exorcismo durou meses. Soube que quase o matou.
— Bem, nesse caso, duvido que ele gostaria de realizar outro.
— Aqui nós fazemos o que nos mandam fazer, Mike. Todos os rebeldes estão por aí com os mundanos.
— Obrigado por me lembrar.
— Então, o que você acha?
— Bem, terei que deixar essa decisão a você e à Ordem.
No começo daquela noite plácida, um jovem estudioso que se preparava para o sacerdócio percorria a propriedade da faculdade de Woodstock, em Maryland. Ele procurava um jesuíta magro de cabelos grisalhos. Encontrou-o num caminho, passeando por um bosque. Entregou a ele um telegrama. Com serenidade, o velho padre agradeceu e se virou para renovar a contemplação, para continuar caminhando pela natureza que amava. Às vezes, ele parava para ouvir o canto de um pintarroxo, para observar uma borboleta colorida sobre um galho. Não leu o telegrama, sequer o abriu. Sabia do que se tratava. Ele o havia lido na poeira dos templos de Nínive. Estava pronto.
Ele prosseguiu com suas despedidas.