No escuro de seu escritório silencioso, Kinderman ruminava sentado à sua mesa. Ajustou o feixe de luz da luminária. Dentro das gavetas, havia registros, transcrições, fotos, arquivos da polícia, relatórios de crimes, anotações. De modo pensativo, ele os havia montado numa colagem na forma de uma rosa, como se quisesse desmentir a horrenda conclusão à qual eles o haviam levado e que ele não conseguia aceitar.
Engstrom era inocente. No momento da morte de Dennings, ele estava visitando a filha, para entregar a ela dinheiro para a compra de drogas. Ele havia mentido a respeito de onde estava naquela noite para proteger a filha e a esposa, que acreditava que Elvira estava morta e livre de todo o mal e degradação.
Kinderman não havia tomado conhecimento disso por meio de Karl. Na noite em que se encontraram no corredor do prédio de Elvira, o empregado havia se mantido calado. Só quando Kinderman alertou a filha a respeito do envolvimento do pai no caso de Dennings foi que ela decidiu dizer a verdade. Havia testemunhas para confirmar. Engstrom era inocente. Inocente e discreto quando o assunto eram os acontecimentos envolvendo as MacNeil.
Kinderman franziu o cenho diante da colagem: havia algo de errado com a composição. Ele mudou a ponta de uma pétala — o canto de uma deposição — um pouco mais para baixo e para a direita.
Rosas. Elvira. Ele a havia alertado com seriedade de que, se ela não se internasse numa clínica em duas semanas, ele ficaria em seu encalço até ter provas para justificar sua prisão. Ainda assim, ele não acreditava que ela iria. Havia momentos em que ele olhava para a lei sem piscar, como fazia com o sol do meio-dia, na esperança de que ele o cegasse temporariamente enquanto uma presa escapasse. Engstrom era inocente. O que restava? Suspirando, o detetive se remexeu e, fechando os olhos, imaginou que estava entrando num banho quente. Bota-fora de suposições!, disse a si mesmo: Vou me mudar para Novas Conclusões! Tudo deve partir! Então, Definitivamente!, disse com seriedade, e, com isso, o detetive abriu os olhos e observou de novo os dados desnorteadores.
Item: A morte do diretor Burke Dennings parecia estar ligada às profanações da Santíssima Trindade. Ambos envolviam bruxaria e o profanador desconhecido podia muito bem ser o assassino de Dennings.
Item: Um padre jesuíta especialista em bruxaria vinha visitando a casa das MacNeil.
Item: A folha datilografada com o texto religioso repleto de blasfêmias descoberto na Santíssima Trindade havia sido investigada para a identificação de impressões digitais. E elas foram encontradas dos dois lados. Algumas eram de Damien Karras. Mas outro grupo foi encontrado e, pelo tamanho, acreditava-se ser de uma pessoa com mãos bem pequenas, possivelmente uma criança.
Item: A datilografia do cartão tinha sido analisada e comparada com as impressões datilografadas na carta não terminada que Sharon Spencer havia tirado da máquina de datilografar, amassado e jogado num cesto de lixo, não o acertando, enquanto Kinderman fazia perguntas a Chris. Ele pegou o papel e o levou da casa. A datilografia da carta e a do texto religioso tinham sido feitas na mesma máquina. Mas, de acordo com o relatório, o toque dos datilógrafos era diferente. A pessoa que havia datilografado o texto blasfemo tinha um toque bem mais pesado do que o de Sharon Spencer. A datilografia desta pessoa, no entanto, não era de quem ficava pescando letras no teclado, mas sim de alguém bastante competente, o que sugeria que o datilógrafo desconhecido do texto religioso era uma pessoa de grande força.
Item: Burke Dennings havia sido morto por uma pessoa de grande força — isso se a morte dele não tinha sido um acidente.
Item: Engstrom não era mais um suspeito.
Item: Uma averiguação das reservas de voos domésticos revelou que Chris MacNeil havia levado a filha a Dayton, Ohio. Kinderman sabia que a filha estava doente e que estava sendo levada a uma clínica. A clínica em Dayton teria que ser a Barringer. Kinderman havia checado e a clínica confirmou que a menina estivera em observação, mas eles se recusavam a explicar a natureza da doença, apesar de ter ficado claro se tratar de um distúrbio mental.
Item: Graves distúrbios mentais às vezes causam força fora do comum.
Kinderman suspirou, fechou os olhos e balançou a cabeça. Voltara à mesma conclusão. Então, abriu os olhos e olhou para o meio da rosa de papel: uma cópia antiga e gasta de uma revista. Na capa, estavam Chris e Regan. Ele analisou a filha: o rosto meigo e cheio de sardinhas e os rabos de cavalo com laço de fita, o dente da frente ausente no sorriso. Ele olhou através da janela para a escuridão, onde uma chuva constante começara a cair.
Ele foi à garagem, entrou em seu sedã preto e dirigiu pelas ruas molhadas e reluzentes da chuva até Georgetown, onde estacionou do lado leste da rua Prospect e passou vários minutos olhando em silêncio para a janela de Regan. Deveria bater à porta e exigir vê-la? Abaixando a cabeça, ele coçou a sobrancelha. William F. Kinderman, você é doente!, pensou. Você está doente! Vá para casa! Tome um remédio! Durma! Melhore! Olhou a janela de novo e balançou a cabeça. Aquele era o lugar aonde sua lógica assustada o levara. Ele observou quando um táxi parou perto da casa. Ligou o carro e acionou os limpadores de para-brisa a tempo de ver um senhor alto saindo do táxi. Ele pagou ao motorista, virou-se e ficou parado sob a luz meio apagada do poste de luz, olhando para uma janela da casa como um viajante melancólico paralisado no tempo. Quando o táxi se afastou e dobrou a esquina da rua 36, Kinderman rapidamente saiu atrás. Ao virar a esquina, piscou as lanternas, sinalizando para que o táxi parasse; do lado de dentro, na casa das MacNeil, Karras e Karl seguravam os braços marcados de Regan enquanto Sharon injetava Librium, chegando ao total de quatrocentos miligramas nas duas últimas horas, uma dosagem assustadora, Karras sabia; mas, depois de horas de torpor, a personalidade demoníaca havia acordado num acesso de fúria tão grande que o organismo debilitado de Regan não toleraria por muito tempo.
Karras estava exausto. Após sua visita ao Escritório da Ordem naquela manhã, ele voltou para a casa a fim de contar a Chris o que havia acontecido, e, depois de aplicar a alimentação intravenosa em Regan, voltara para seu quarto no centro de residência jesuíta, onde se deitou de bruços na cama e caiu de imediato num sono profundo. Mas, depois de apenas duas horas, o toque estridente do telefone o despertou. Sharon. Regan ainda estava inconsciente e seu pulso vinha diminuindo gradualmente. Karras correu para a casa com a maleta de médico e beliscou o tendão de Aquiles de Regan, procurando reação à dor. Não houve nenhuma. Ele apertou uma de suas unhas. Mais uma vez, nenhuma reação. Ele ficou mais preocupado: apesar de saber que na histeria e em certos estados de transe pode haver, às vezes, insensibilidade à dor, temia o coma, um estado no qual Regan poderia evoluir para o óbito com facilidade. Ele conferiu a pressão sanguínea: nove por seis; depois, a frequência cardíaca: sessenta. Ficou esperando no quarto, e conferiu os sinais vitais outra vez a cada 15 minutos durante uma hora e meia antes de ter certeza de que a pressão sanguínea e a frequência cardíacas tinham se estabilizado, sinal de que Regan não estava em choque, mas sim num estado de torpor. Sharon foi instruída a continuar a checar o pulso de Regan de hora em hora. Karras voltou ao quarto e dormiu. Mas agora, de novo, um telefone o acordava. O exorcista, segundo o Escritório da Ordem, seria Lankester Merrin, e Karras o auxiliaria.
Ficou espantado com a notícia. Merrin! O paleontólogo-filósofo! O intelectual conhecido! Seus livros tinham causado agitação na Igreja, pois interpretaram sua fé como matéria que ainda estava se desenvolvendo e destinada a ser espírito que, no fim dos tempos, se uniria a Cristo, o “Ponto Ômega”.
Karras telefonara imediatamente para Chris para dar a notícia, mas descobriu que o bispo havia dito a ela que Merrin chegaria no dia seguinte.
— Eu disse ao bispo que ele poderia ficar aqui em casa — disse Chris. — Vão ser apenas um ou dois dias, certo?
Antes de responder, Karras parou e disse baixinho:
— Não sei. — Pausando de novo, disse: — A senhora não deve esperar muito.
— Se funcionar, o senhor quer dizer — disse Chris, com o tom de voz mais baixo.
— Eu não quis dizer que não funcionaria — disse o padre. — Só quis dizer que pode demorar.
— Quanto tempo?
— Varia.
Karras sabia que um exorcismo levaria semanas, até meses; sabia que, com frequência, dava totalmente errado. Acreditava que daria errado. Acreditava que o fardo, exceto pela cura por meio da sugestão, cairia mais uma vez e, por fim, sobre ele.
— Pode demorar dias ou semanas — disse ele.
— Quanto tempo ela tem, padre Karras? — respondeu Chris, anestesiada.
Quando desligaram o telefone, ele se sentiu pesado, atormentado; deitado na cama, pensou em Merrin. Merrin! Uma animação e uma esperança tomaram conta dele, apesar de uma sensação de tristeza ter vindo em seguida. Ele próprio havia sido a escolha natural para o exorcismo, mas, ainda assim, o Bispo o rejeitara. Por quê? Porque Merrin já tinha feito isso antes? Ao fechar os olhos, ele se lembrou de que os exorcistas eram escolhidos com base na “devoção” e nos “altos valores morais”; uma passagem no Evangelho de Mateus relatava que Cristo, ao ser indagado pelos discípulos do motivo pelo qual haviam fracassado numa tentativa de exorcismo, respondera: “Porque vocês têm pouca fé.” A Ordem tomara conhecimento de seu problema, assim como Tom Bermingham, o presidente da universidade de Georgetown. Será que um deles os havia relatado ao bispo?
Karras já havia se revirado na cama, desanimado; sentindo-se um pouco indigno, incompetente, rejeitado. Doía. De modo irracional, doía. Finalmente, o sono preencheu seu vazio, preencheu os espaços e as trincas de seu coração.
Mais uma vez, o telefone tocou: era Chris informando sobre o ataque repentino de Regan. De volta a casa, ele checou o pulso de Regan. Estava forte. Ele administrou Librium uma, duas vezes. Três. Por fim, foi até a cozinha e sentou-se à mesa da copa com Chris. Ela estava lendo um livro, um que Merrin que havia comprado e mandado entregar em sua casa.
— Muito além da minha capacidade — disse ela a Karras com delicadeza; ainda assim, ela parecia comovida e profundamente emocionada. — Mas alguns trechos dele são muito bonitos... Maravilhosos. — Ela voltou à página de um trecho que havia marcado, e empurrou o livro a Karras. — Veja, dê uma olhada. Já o leu?
— Não sei. Deixe-me ver.
Karras pegou o livro e começou a ler:
Temos experiência familiar da ordem, da constância, da renovação perpétua do mundo material que nos cerca. Por mais frágeis e transitórias que sejam todas as partes, por mais incansáveis e migratórios que sejam seus elementos, ainda assim ele segue. Está unido por uma lei de permanência e, apesar de estar sempre morrendo, está sempre ganhando vida de novo. A dissolução apenas dá à luz modos novos de organização, e uma morte é a mãe de mil vidas. Cada hora, como vem, não passa de uma prova do quão efêmero (apesar de seguro e certo) é o todo. É como uma imagem nas águas, que é sempre a mesma, apesar de as águas continuarem fluindo. O sol desce, mas sobe de novo; o dia é engolido no escuro da noite, e nasce dela de novo, tão novo como se nunca tivesse sido suprimido. A primavera se transforma em verão, e atravessa o verão, o outono, e vira inverno, e volta mais certa, em um grande retorno, triunfando sobre a sepultura, apesar de seguir a passos apressados e firmes em direção à morte desde o início dos tempos. Lamentamos os desabrochares de maio porque eles morrem; mas sabemos que maio, um dia, vai se vingar de novembro com a revolução daquele ciclo solene que nunca para — que nos ensina em nosso ápice de esperança a sermos sempre sóbrios, e, na profundeza da desolação, a nunca nos desesperarmos.
— Sim, é bonito — disse Karras baixinho, enquanto se servia de uma xícara de café, e os berros do demônio lá em cima aumentavam.
— Desgraçado... escória... beato hipócrita!
— Ela deixava uma rosa em meu prato... de manhã... Antes de eu ir trabalhar — disse Chris de modo distante.
Karras olhou para ela com o olhar questionador, e Chris respondeu:
— Regan. — Olhou para baixo. — Sim, certo. Eu me esqueci.
— Do que se esqueceu?
— Que o senhor não a conheceu. — Ela assoou o nariz e secou os olhos. — Quer um pouco de conhaque no café?
— Não, obrigado.
— O café está fraco — Chris sussurrou, trêmula. — Acho que vou pegar um pouco de conhaque. Com licença. — Ela se levantou e saiu da cozinha.
Karras ficou sozinho e bebericou o café. Sentiu-se aquecido com a blusa que vestia sob a batina; sentiu-se fraco por não conseguir confortar Chris. Então, uma lembrança da infância surgiu com tristeza, uma lembrança de Reggie, seu cachorro vira-lata, que ficou esquelético e desnorteado numa caixa no apartamento alugado e velho. Reggie tremia de febre e vomitava enquanto Karras tentava cobri-lo com toalhas, tentava fazer com que ele bebesse um pouco de leite morno, até que um vizinho passou, observou Reggie e disse, balançando a cabeça: “Seu cachorro tem cinomose. Ele precisa de injeções agora mesmo.” E então, numa tarde depois da escola... na rua... no poste da esquina... sua mãe ali para encontrá-lo... inesperado... com o semblante triste... entregou a ele uma moeda de cinquenta centavos... alegria... tanto dinheiro!... A voz dela, suave e delicada: “Reggie morreu...”
Ele olhou para o líquido quente e amargo em sua xícara e sentiu as mãos desprovidas de conforto e de cura.
— ...Desgraçado hipócrita!
O demônio. Ainda vociferando.
“Seu cachorro precisa de injeções agora mesmo.”
Karras se levantou e voltou para o quarto de Regan, onde ele a segurou enquanto Sharon aplicava uma injeção de Librium, que totalizou a dosagem em quinhentos miligramas. Enquanto Sharon limpava o local furado pela seringa com um cotonete, preparando-se para colocar um band-aid ali, Karras olhou para Regan assustado, já que as obscenidades que lhe escapam da boca não pareciam direcionadas a alguém no quarto, mas sim para alguém invisível, ou que não estava presente.
Ele ignorou essa sensação.
— Volto já — disse ele a Sharon.
Preocupado com Chris, desceu até a cozinha, onde, mais uma vez, ele a encontrou sentada à mesa. Despejava conhaque no café.
— Tem certeza de que não quer um pouco, padre? — perguntou ela.
Balançando a cabeça, ele se aproximou da mesa, onde se sentou e cobriu o rosto com as mãos, apoiado nos cotovelos; ouviu os cliques de uma colher batendo na xícara de porcelana, enquanto mexia o café.
— Você conversou com o pai dela?
— Sim, ele telefonou — disse Chris. — Queria falar com Rags.
— E o que você disse a ele?
— Eu disse que ela estava numa festa.
Silêncio. Karras não ouviu mais cliques. Olhou para a frente e viu Chris olhando para o teto. Notou também que os gritos de obscenidades no andar de cima haviam cessado.
— Acho que o Librium fez efeito — disse ele, aliviado.
A campainha tocou. Karras virou-se na direção do som e para Chris, que olhou para ele com surpresa e dúvida, erguendo uma sobrancelha de modo apreensivo. Kinderman?
Segundos se passaram enquanto eles permaneceram ali, escutando. Ninguém tinha ido atender; Willie descansava em seu quarto, e Sharon e Karl ainda estavam no andar de cima. Tensa, Chris levantou-se abruptamente da mesa e foi para a sala de jantar, onde, ajoelhada no sofá, entreabriu a cortina e espiou pela janela para ver quem tocava. Não, não era Kinderman. Graças a Deus! Era um senhor alto com um sobretudo preto puído e um chapéu de feltro da mesma cor, segurando uma maleta preta, aguardando pacientemente com a cabeça baixa sob a chuva. Por um instante, uma fivela prateada brilhou sob a luz do poste enquanto ele ajeitava a maleta. Quem será este ser humano?
Mais um toque.
Intrigada, Chris saiu do sofá e caminhou até o corredor. Entreabriu a porta da frente, espiando na escuridão enquanto a fina névoa da chuva passava por seus olhos. A aba do chapéu do homem encobria seu rosto.
— Olá, posso ajudá-lo?
— Sra. MacNeil? — disse a voz no escuro, delicada e polida, mas volumosa como uma colheita.
Chris assentia quando o estranho levou a mão à cabeça para tirar o chapéu, e de repente, ela viu olhos que a surpreenderam: brilhavam com inteligência e gentil compreensão, e a serenidade que saía deles fluía para dentro de Chris como as águas de um rio quente e curativo que nascia nele e, de algum modo, além dele; cujo fluxo era contido e, ainda assim, precipitado e infinito.
— Sou o padre Lankester Merrin — disse ele.
Por um momento, Chris olhou confusa para o rosto magro e ascético, para as faces esculpidas como pedra-sabão; abriu a porta.
— Ah, meu Deus, por favor, entre! Entre! Puxa, eu... Que coisa! Não sei onde está minha...
Ele entrou e ela fechou a porta.
— Eu pensei que o senhor só viesse amanhã! — disse ela.
— Sim, eu sei — disse ele.
Quando ela se virou para ele, viu que estava de pé com a cabeça inclinada para o lado, olhando para cima, como se tentasse escutar — não, como se tentasse sentir, pensou ela — alguma presença fora da vista; alguma vibração distante, conhecida e familiar. Confusa, Chris o observou. A pele dele parecia curtida por um sol que brilhava em outro lugar, algum lugar distante de seu tempo e espaço.
O que ele está fazendo?
— Posso pegar sua bolsa, padre?
— Não precisa — disse ele suavemente. Ainda tentava sentir. Ainda tentava perceber. — Ela é como se fosse parte de meu braço: muito velha... muito usada. — Ele olhou para baixo com olhos simpáticos e cansados. — Estou acostumado com o peso. O padre Karras está aqui?
— Sim, está. Na cozinha. O senhor jantou, padre Merrin?
Merrin não respondeu. Apenas olhou para cima ao escutar uma porta sendo aberta.
— Sim, comi alguma coisa no trem.
— Tem certeza de que não quer mais nada?
Nenhuma resposta. O som da porta sendo fechada. Merrin voltou a olhar para Chris.
— Não, obrigado — disse ele. — A senhora é muito gentil.
Ainda surpresa, Chris disse:
— Puxa! Que chuva! Se eu soubesse que o senhor viria hoje, poderia tê-lo encontrado na estação.
— Tudo bem.
— O senhor teve que esperar muito tempo por um táxi?
— Alguns minutos.
— Deixe-me pegar isso, padre!
Karl. Ele havia descido a escada muito rapidamente, pegou a bolsa das mãos do padre e a levou para o corredor.
— Preparamos uma cama no escritório para o senhor, padre — disse Chris. — É muito confortável e imaginei que o senhor fosse gostar da privacidade. Mostrarei onde fica. — Ela começou a se mexer, mas parou. — Ou o senhor quer conversar com o padre Karras?
— Eu gostaria de ver sua filha antes.
— Agora, padre? — perguntou Chris, em dúvida.
Merrin olhou para cima de novo com um ar de atenção.
— Sim, agora. Acredito que agora.
— Tenho certeza de que ela está dormindo.
— Acho que não.
— Bem, se...
De repente, Chris se retraiu com o som vindo de cima, com a voz do demônio. Reverberante e, ainda assim, abafada, rouca, como se estivesse enterrada, ele chamou: “Merriiinnnnn!” E o uivo alto e estremecedor de um golpe de marreta contra a parede do quarto.
— Deus todo-poderoso! — Chris gritou ao levar a mão pálida contra o peito. Assustada, ela olhou para Merrin. O padre não havia se mexido. Ainda estava olhando para cima, com o olhar intenso porém sereno, e em seus olhos não havia qualquer sinal de surpresa. Era como se aquilo lhe fosse familiar, pensou Chris.
Mais um golpe balançou as paredes.
— Merriiiinnnnnnnn!
O jesuíta começou a caminhar, alheio a Chris, que estava boquiaberta; a Karl, que saiu incrédulo do escritório; a Karras, que saía perplexo da cozinha enquanto as batidas e os roncos assustadores continuavam. Merrin subiu a escada calmamente, com a mão magra e pálida deslizando corrimão acima. Karras se aproximou de Chris e, juntos, eles observaram Merrin entrar no quarto de Regan e fechar a porta. Por um momento, fez-se silêncio. De repente, o demônio riu de modo assustador e Merrin logo saiu do quarto, fechou a porta e atravessou o corredor rapidamente enquanto, atrás dele, a porta do quarto se abriu de novo e Sharon colocou a cabeça para fora, olhando para ele com uma expressão estranha.
Merrin desceu a escada rapidamente e pousou a mão no ombro de Karras.
— Padre Karras!
— Olá, padre.
Merrin segurou a mão de Karras; ele se aferrava a ela, observando o rosto do jovem padre com um olhar de seriedade e preocupação, enquanto, no andar de cima, a risada assustadora transformou-se em obscenidades direcionadas a Merrin.
— O senhor parece extremamente cansado — disse Merrin. — Está cansado mesmo?
— Não.
— Que bom. Tem uma capa de chuva aqui?
— Não, não tenho.
— Bem, tome, pegue a minha — disse o jesuíta de cabelos grisalhos, desabotoando a capa respingada. — Gostaria que você fosse ao centro de residência, Damien, e pegasse uma batina para mim, duas sobrepelizes, uma estola roxa, um pouco de água benta e duas cópias de O ritual romano, o grande. — Entregou a capa de chuva a Karras, que parecia confuso. — Creio que podemos começar.
Karras franziu o cenho.
— O senhor quer dizer agora? Agora mesmo?
— Sim, creio que sim.
— Não quer conhecer o histórico do caso antes?
— Por quê?
Karras se deu conta de que não sabia responder. Desviou o olhar daqueles olhos desconcertantes.
— Certo, padre — disse ele, vestindo a capa de chuva e virando-se. — Vou buscá-los.
Karl atravessou a sala, caminhou na frente de Karras e abriu a porta da frente para ele. Os dois trocaram um rápido olhar, e Karras saiu na chuva. Merrin olhou para Chris.
— Eu deveria ter perguntado. A senhora não se importa se começarmos agora?
Ela estava observando, aliviada com a atitude decidida e direcionada que entrava na casa como um dia ensolarado.
— Não, fico contente — disse ela com gratidão. — Mas o senhor deve estar muito cansado, padre Merrin.
O velho padre viu que ela olhava com ansiedade para cima, na direção dos gritos do demônio.
— Quer uma xícara de café? — perguntou ela, com uma voz insistente e levemente suplicante. — Está quente, foi feito agora mesmo. Quer um pouco?
Merrin observou as mãos dela se abrindo e fechando levemente; seus olhos fundos.
— Sim, aceito — disse ele com simpatia. — Obrigado. — Algo pesado havia sido deixado de lado de forma gentil, mandado esperar. — Se não for dar trabalho.
Chris o levou para a cozinha e logo ele estava recostado ao fogão com uma xícara de café puro na mão. Chris pegou uma garrafa de conhaque.
— Quer um pouco de conhaque, padre?
Merrin abaixou a cabeça e olhou de modo inexpressivo para dentro da xícara.
— Bem, os médicos dizem que eu não deveria — disse ele —, mas, graças a Deus, minha vontade é fraca.
Chris hesitou e olhou para ele sem saber como reagir por não entender o que ele queria dizer, até ver a expressão de simpatia do padre ao levantar a cabeça e a xícara.
— Sim, obrigado, aceito.
Sorrindo, Chris serviu a bebida.
— Que belo nome você tem — disse Merrin a ela. — Chris MacNeil. Não é nome artístico?
Despejando conhaque no próprio café, Chris balançou a cabeça.
— Não, meu nome não é Sadie Glutz.
— Agradeça a Deus por isso — disse Merrin olhando para baixo.
Com um sorriso simpático, Chris sentou-se.
— E o nome Lankester, padre? Tão incomum. O senhor foi batizado em homenagem a alguém?
— Acho que talvez em homenagem a um navio de carga — disse Merrin ao desviar o olhar. Levando a xícara aos lábios, ele bebericou o café, refletiu e disse: — Ou uma ponte. Sim, creio que foi uma ponte.
Olhando para Chris, sua expressão era de diversão.
— Mas “Damien” — disse ele —, como eu queria ter um nome assim. Lindo.
— De onde vem esse nome, padre?
— Foi o nome de um padre que dedicou a vida a cuidar dos leprosos na ilha de Molokai. Ele acabou pegando a doença. — Merrin olhou para o lado. — Lindo nome — disse ele de novo. — Acredito que, com um nome como Damien, eu ficaria até feliz se o sobrenome fosse Glutz.
Chris riu. Sentiu-se mais leve, mais tranquila. Durante alguns minutos, ela e Merrin trocaram amenidades. Por fim, Sharon apareceu na cozinha, e só então Merrin se levantou para sair. Parecia que ele esperava pela chegada dela, pois imediatamente levou a xícara à pia, lavou-a e a colocou no escorredor com cuidado.
— Estava ótimo, exatamente o que eu queria — disse ele.
— Levarei o senhor a seu quarto — disse Chris, levantando-se.
Merrin agradeceu e a acompanhou à porta do escritório, onde ela lhe disse:
— Se precisar de qualquer coisa, é só dizer, padre.
Ele colocou a mão no ombro dela e apertou com suavidade, e Chris sentiu um calor, uma força adentrando seu corpo, além de uma sensação de paz e de algo parecido com... O quê?, perguntou-se. Segurança? Sim, algo assim.
— O senhor é muito gentil — disse.
— Obrigado — respondeu ele, com os olhos sorrindo.
Tirou a mão e, enquanto a observava se afastando, um nó doloroso pareceu tomar seu rosto. Entrou no escritório e fechou a porta. De um dos bolsos da calça, tirou uma latinha na qual se lia Aspirina, abriu-a, tirou um comprimido de nitroglicerina e o colocou cuidadosamente sob a língua.
Ao entrar na cozinha, Chris parou na porta e olhou para Sharon, que estava perto do fogão, com a palma da mão contra o batente enquanto esperava o café esquentar de novo. Parecia confusa e olhava para o nada. Preocupada, Chris se aproximou dela e disse:
— Querida, por que não descansa um pouco?
Por um momento, não houve resposta. De repente, Sharon virou-se e olhou inexpressivamente para Chris.
— Desculpe. O que você disse?
Chris observou a seriedade em seu rosto, o olhar distante.
— O que aconteceu lá em cima, Sharon? — perguntou ela.
— Onde?
— Quando o padre Merrin entrou no quarto de Regan.
— Ah, sim... — Franzindo o cenho levemente, Sharon pareceu dividida entre a dúvida e a lembrança. — Sim. Foi engraçado.
— Engraçado?
— Estranho. Eles apenas... — disse, hesitando. — Eles apenas se entreolharam por um momento, e Regan, aquela coisa, disse...
— O quê?
— “Desta vez, você vai perder.”
Chris olhou para ela, esperando.
— E então?
— Foi isso — respondeu Sharon. — Ele se virou e saiu do quarto.
— E como ele estava? — perguntou Chris.
— Com uma cara engraçada.
— Ah, pelo amor de Deus, Sharon, pense em outra palavra! — Chris disse, e estava prestes a dizer outra coisa quando percebeu que Sharon havia inclinado a cabeça um pouco para o lado, distraída, como se estivesse ouvindo. Seguindo seu olhar, Chris também ouviu: o silêncio; a pausa nas vociferações do demônio; mas algo mais... algo além... que crescia.
As mulheres se entreolharam.
— Está sentindo também? — perguntou Sharon.
Chris assentiu. Algo na casa. Uma tensão. Um pulsar gradual e o peso no ar, como energias opostas crescendo lentamente. A campainha tocou e pareceu surreal.
Sharon virou-se.
— Vou atender.
Ela caminhou pelo corredor e abriu a porta. Era Karras. Ele carregava uma caixa de papelão.
— Padre Merrin está no escritório — disse Sharon.
— Obrigado.
Karras caminhou apressadamente ao escritório, bateu de leve à porta e entrou com a caixa.
— Sinto muito, padre — disse ele. — Eu tive um pequeno...
Karras parou. Merrin, de calça e camiseta, estava ajoelhado, rezando ao lado da cama, com as mãos na testa, e por um momento Karras ficou parado, como se, de repente, tivesse encontrado a si mesmo na infância, com uma roupa de coroinha no braço, passando por ele com pressa e sem qualquer sinal de reconhecimento.
Karras olhou para a caixa aberta, para as gotas de chuva que a haviam molhado. Caminhou até o sofá, onde, sem qualquer barulho, deixou o conteúdo da caixa. Quando terminou, tirou a capa de chuva e a pôs com cuidado em cima de uma cadeira. Olhando para Merrin, ele viu o padre se benzendo e rapidamente desviou o olhar. Pegou a sobrepeliz maior, de algodão branco, e começou a colocá-la sobre a batina quando ouviu Merrin se levantando e caminhando em sua direção. Ajeitando sua sobrepeliz, Karras virou-se para olhá-lo quando o velho padre parou diante do sofá, observando com afeição os itens da caixa.
Karras pegou uma blusa.
— Trouxe isto para o senhor vestir embaixo da batina, padre — disse ele ao entregar a peça. — O quarto dela fica muito frio às vezes.
Ao olhar para a blusa, Merrin a tocou com os dedos.
— Muito gentil de sua parte, Damien. Obrigado.
Karras pegou a batina de Merrin do sofá e o observou vestir a blusa. Muito repentinamente, ao ver este gesto prosaico e trivial, sentiu o imenso impacto do homem, do momento, da pesada calma na casa, pesando sobre ele, sufocando sua respiração e sua impressão de que o mundo era sólido e real. Voltou à realidade ao sentir a batina sendo tirada de suas mãos. Merrin. Ele a vestiu.
— Conhece as leis do exorcismo, Damien?
— Sim.
Merrin começou a abotoar a batina.
— É especialmente importante o alerta para que se evite conversar com o demônio.
O demônio!, pensou Karras.
Ele dissera aquilo de modo tão banal. Isso o abalou.
— Podemos perguntar o que for relevante — Merrin continuou. — Mas ir além disso é perigoso... Muito perigoso. — Ele pegou a sobrepeliz das mãos de Karras e começou a vesti-la sobre a batina. — Acima de tudo, não dê ouvidos a nada do que ele disser. O demônio é um mentiroso. Vai mentir para nos confundir, mas também misturará mentiras e verdades para nos atacar. O ataque é psicológico, Damien. E poderoso. Não dê ouvidos. Lembre-se disso. Não dê ouvidos.
Enquanto Karras entregava a estola, o exorcista acrescentou:
— Quer me perguntar alguma coisa, Damien?
Karras negou, balançando a cabeça.
— Não, mas creio que seria útil se eu desse ao senhor informações sobre as diferentes personalidades que Regan tem manifestado. Até agora, parece que são três.
Ao colocar a estola sobre os ombros, Merrin disse baixinho:
— Só há uma. — Em seguida, pegou os exemplares de O ritual romano e entregou um deles a Karras. — Pularemos a Ladainha dos Santos. Você está com a água benta, Damien?
Karras pegou o frasco arrolhado de dentro de seu bolso. Merrin o segurou e assentiu em direção à porta.
— Vá na frente, por favor, Damien.
No andar de cima, perto da porta do quarto de Regan, Sharon e Chris esperavam. Tensas. Agasalhadas com blusas e casacos grossos, elas se viraram ao ouvir a porta se abrindo e olharam para Merrin, com Karras atrás dele, aproximando-se da escada de forma lenta e séria. Os dois tinham a aparência muito impressionante, pensou Chris; Merrin tão alto e Karras com o rosto marcado em contraste com o branco inocente da sobrepeliz. Ela os observou subindo os degraus sem parar, e, ainda que sua razão lhe dissesse que eles não tinham superpoderes, ela se sentiu profunda e estranhamente emocionada quando algo suspirou à sua alma que talvez eles os tivessem, sim. Ela sentiu o coração começar a bater com mais força.
À porta do quarto, os jesuítas pararam. Karras franziu o cenho ao ver a blusa e o casaco que Chris vestia.
— A senhora vai entrar?
— O senhor acha que eu não deveria?
— Por favor, não entre — Karras pediu. — Não entre. Seria um erro.
Chris virou-se confusa para Merrin.
— O padre Karras sabe o que está dizendo — disse o exorcista de modo discreto.
Chris voltou a olhar para Karras. Abaixou a cabeça.
— Tudo bem — disse ela com desânimo. Recostou-se na parede. — Esperarei aqui fora.
— Qual é o segundo nome de sua filha? — perguntou Merrin.
— É Teresa.
— É um lindo nome — disse o padre, de modo simpático. Olhou para Chris por um momento, de modo a confortá-la, e, quando virou a cabeça e olhou para a porta do quarto de Regan, Chris sentiu aquela tensão, a escuridão pesando atrás dela. Dentro do quarto.
Além daquela porta.
Merrin assentiu.
— Certo — disse com suavidade.
Karras abriu a porta, e quase caiu para trás com o fedor e o vento frio que sentiu ao entrar. Num canto do quarto, abrigado numa jaqueta grossa de pelo de carneiro, Karl estava encolhido numa cadeira. Ele se virou para Karras, que rapidamente olhara para o demônio na cama. Os olhos brilhantes dele estavam voltados na direção do corredor. Fixos em Merrin.
Karras caminhou em direção aos pés da cama enquanto Merrin, de pé e com a coluna reta, andou lentamente para o lado da cama, onde parou e viu o ódio. Agora, um silêncio pesado tomava conta do quarto. Regan passou a língua escura pelos lábios rachados e inchados. O som emitido parecia o de uma mão alisando um pergaminho amassado.
— Pois bem, sua escória orgulhosa! — A voz demoníaca vociferou. — Finalmente! Você veio!
O velho padre ergueu a mão e fez o sinal da cruz acima da cama e repetiu o gesto na direção de todos no quarto. Virando-se, tirou a rolha do frasco de água benta.
— Ah, sim! A urina benta agora — disse a voz demoníaca. — O sêmen dos santos!
Merrin ergueu o frasco e a face demoníaca tornou-se lívida e contorcida enquanto a voz dizia:
— Ah, vai fazer isso, desgraçado? Vai?
Merrin começou a jogar gotas de água benta, e o demônio levantou a cabeça, com os músculos da boca e do pescoço tremendo de ódio.
— Sim, espirre! Espirre, Merrin! Molhe-nos! Afogue-nos em seu suor! Seu suor é santificado, santo Merrin! Incline-se e peide nuvens de incenso! Incline-se e mostre a sua bunda sagrada para que todos possamos adorar, Merrin! Beijar! Faça...
— Cale-se!
As palavras foram ditas como trovões. Karras se retraiu e inclinou a cabeça surpreso para Merrin, que olhava implacavelmente para Regan. E o demônio ficou calado. Olhando para o padre.
Mas os olhos agora estavam hesitantes. Piscavam. Assustados.
Merrin tampou o frasco de água benta e o devolveu a Karras. O psiquiatra o guardou no bolso e observou Merrin ajoelhar-se ao lado da cama, fechar os olhos e murmurar uma oração:
— “Pai nosso...” — Ele começou.
Regan cuspiu e acertou um monte de muco amarelo no rosto de Merrin. A gosma escorreu devagar pelo rosto do exorcista.
— “...Venha a nós o Vosso reino...” — Com a cabeça ainda baixa, Merrin continuou a rezar sem parar enquanto enfiava a mão no bolso para pegar um lenço e limpar sem pressa o catarro — “...e não nos deixeis cair em tentação” — Finalizou.
— “Mas livrai-nos do mal”— respondeu Karras.
Ele olhou para para a frente rapidamente. Os olhos de Regan rolavam para dentro das órbitas até a esclera ficar exposta. Karras sentiu-se inseguro. Sentiu algo no quarto se solidificar. Voltou à oração com Merrin:
— “Senhor Deus, pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, intercedo a vós, a seu santo nome, e imploro por sua bondade, que o Senhor me conceda ajuda contra o espírito que agora atormenta essa criatura Sua; por Cristo, nosso Senhor.”
— Amém — respondeu Karras.
Merrin colocou-se de pé e continuou rezando.
— “Deus, Criador e defensor da raça humana, olhai com piedade para esta serva, Regan Teresa MacNeil, agora presa nas garras do velho inimigo do homem, inimigo de nossa raça, que...”
Karras olhou para a frente ao ouvir Regan silvando, viu que ela estava sentada ereta com a esclera à vista, enquanto a língua saía de sua boca com rapidez, remexendo a cabeça lentamente como uma cobra, e, mais uma vez, ele sentiu uma inquietação. Olhou para seu livro.
— “Salve sua serva” — Merrin rezou, lendo o Ritual.
— “Que em Ti crê, meu Deus” — respondeu Karras.
— “Deixe-a encontrar no Senhor uma torre fortificada.”
— “Na face do inimigo.”
Enquanto Merrin continuava na linha seguinte — “Não permita que o inimigo tenha poder sobre ela” —, Karras ouviu Sharon assustar-se atrás dele e, virando com rapidez, viu seu rosto estupefato. Confuso, ele voltou a olhar para a cama, e se chocou.
A parte da frente da cama estava se erguendo do chão!
Karras olhou para a cama, incrédulo e atordoado. Dez centímetros. Quinze. Trinta. As pernas de trás começaram a subir.
— Gott in Himmel! — Karl sussurrou, amedrontado. Mas Karras não o ouviu nem viu quando ele fez o sinal da cruz no momento em que a parte de trás da cama ficou no mesmo nível que a da frente.
Isso não está acontecendo!, pensou ele.
A cama se ergueu mais trinta centímetros e ali permaneceu, balançando de leve como se fosse um barco num lago calmo.
— Padre Karras?
Regan ondulava e silvava.
— Padre Karras?
Karras virou-se. O exorcista olhava para ele com serenidade, e assentiu em direção ao exemplar de O ritual romano nas mãos de Karras.
— A resposta, por favor, Damien.
Karras estava inexpressivo e parecia não compreender, sem perceber que Sharon havia saído correndo do quarto.
— “Não permita que o inimigo tenha poder sobre ela” — Merrin repetiu.
Rapidamente, Karras voltou a olhar para o texto e, com o coração acelerado, leu a resposta:
— “E que o filho da iniquidade seja impotente para prejudicá-la.”
— “Senhor, ouça minha prece” — Merrin continuou.
— “E que meu apelo chegue a Ti.”
— “Que o Senhor esteja contigo.”
— “E com seu espírito.”
Merrin deu início a uma oração comprida, e Karras mais uma vez se concentrou na cama, na esperança que tinha em seu Deus e no movimento sobrenatural do móvel pairando no ar. Sentiu uma emoção tomar seu ser. Está ali! Bem ali! Bem na minha frente! Olhou para trás de repente quando ouviu a porta sendo aberta, e Sharon entrando com Chris, que parou, sem acreditar, e disse:
— Jesus Cristo!
— “Pai poderoso, Deus eterno...”
O exorcista levantou a mão de maneira comum e fez o sinal da cruz rapidamente, três vezes diante do rosto de Regan, enquanto continuava a ler o texto do Ritual:
— “...que enviou Vosso amado Filho ao mundo para destruir o leão que ruge...”
Os silvos cessaram e, da boca de Regan, que estava aberta em formato de O, foi emitido um grunhido.
— “...livre da destruição e das garras do demônio esse ser humano feito à vossa imagem, e...”
O grunhido ficou mais alto, rasgando a carne e estremecendo os ossos.
— “Deus e Senhor de toda a criação...” — Merrin levantou a mão e pressionou uma parte da estola no pescoço de Regan enquanto continuava a rezar: — “...por quem Satanás caiu do céu como um raio, afaste a fera que agora devasta vossa vinha...”
O grunhido parou e, a princípio, um silêncio pesado tomou conta; em seguida, um vômito denso, fedorento e verde começou a sair da boca de Regan em rajadas lentas e regulares, escorrendo por seus lábios em ondas finas para as mãos de Merrin. Mas ele não se limpou.
— “Permita que vossa mão poderosa retire esse demônio cruel de Regan Teresa MacNeil, que...”
Karras percebeu que a porta estava sendo aberta, e que Chris saíra correndo do quarto.
— “Expulse esse perseguidor da inocente...”
A cama começou a balançar devagar, deu algumas batidas e, de repente, sacodia-se com violência. Com o vômito ainda saindo da boca de Regan, Merrin fez ajustes com calma e manteve a estola firme em seu pescoço.
— “Dê a vossos servos coragem para lutar contra o dragão que humilha aqueles que em Ti confiam, e...”
De repente, os movimentos diminuíram e, enquanto Karras observava assustado, a cama abaixou-se como uma pluma, com leveza em direção ao chão, onde se posicionou sobre o tapete com um som abafado.
— Senhor, dê a esta...
Atordoado, Karras desviou o olhar. A mão de Merrin. Não conseguiu vê-la, pois estava coberta de vômito verde e quente.
— Damien?
Karras olhou para a frente.
— “Senhor, escutai a minha prece” — disse gentilmente o exorcista.
Karras virou-se.
— “E que meu apelo chegue a Ti.”
Merrin levantou a estola, deu um passo para trás e gritou, ordenando:
— “Eu o expulso, espírito imundo, juntamente com todos os poderes do inimigo. Todas as sombras do inferno! Todo companheiro do mal!” — A mão de Merrin pingava vômito no tapete. — “É Cristo quem ordena, aquele que criou o vento, o mar e a tempestade! Que...”
Regan parou de vomitar e ficou sentada, calada e imóvel, com a esclera voltada para Merrin. Aos pés da cama, Karras a observou com atenção quando seu choque e excitação começaram a diminuir, enquanto sua mente se agitava sem parar, revirando compulsivamente os recôncavos da dúvida lógica: poltergeists, ação psicocinética, tensões adolescentes e força direcionada à mente. Ele franziu o cenho quando se lembrou de algo. Caminhou até a lateral da cama, inclinou-se para a frente, segurou o pulso de Regan. E encontrou o que temia. Como o xamã na Sibéria, o pulso de Regan batia a uma velocidade inacreditável. O fato o deixou desanimado e, olhando para o relógio, Karras contou os batimentos cardíacos, como argumentos contra sua vida.
— “É Ele que o obriga, Ele que o expulsou do céu!”
As palavras reverberantes de Merrin atingiram a consciência de Karras com golpes ressoantes e inexoráveis conforme a pulsação aumentava. E aumentava. Karras olhou para Regan. Ainda calada. Sem se mexer. Sob o vento gelado, névoas de vapor saíam do vômito como uma oferenda de mau cheiro. Os pelos dos braços de Karras começaram a se arrepiar, com lentidão assustadora, um pouco por vez, e a cabeça de Regan girava, como a de uma boneca, com o som de um mecanismo enferrujado, até que aqueles olhos assustadores se fixaram nos dele.
— “E, assim, trema de medo agora, Satanás...”
A cabeça virou lentamente de volta a Merrin.
— “Seu corruptor da justiça! Pai da morte! Traidor das nações! Ladrão da vida! Seu...”
Karras olhou de forma cautelosa ao redor, quando as luzes do quarto começaram a piscar, seu brilho diminuindo, e se tornaram mais amareladas e sombrias. Karras estremeceu. O ambiente ficou ainda mais frio.
— “...Você, príncipe dos assassinos! Inventor de todas as obscenidades! Inimigo da raça humana! Você...”
Um baque abafado tomou o quarto. Depois, mais um. As paredes começaram a estremecer, pelo chão, pelo teto, rachando e batendo de modo constante, como a batida de um coração grande e doente.
— “Desapareça, seu monstro! Seu lugar é na solidão! Sua moradia é num ninho de víboras! Abaixe-se e rasteje como elas! É o próprio Deus quem o obriga! O sangue de...”
As batidas se tornaram mais fortes e cada vez mais rápidas.
— “Eu exijo, velha serpente...”
E mais rápidas...
— “...pelo juiz dos mortos e dos vivos, por seu Criador, pelo Criador de todo o universo, para...”
Sharon gritou, pressionando as mãos contra os ouvidos conforme as batidas se tornavam ensurdecedoras e, de repente, se aceleraram a um ritmo aterrorizante.
A pulsação de Regan estava extremamente alta, rápida demais para acompanhar. Do outro lado da cama, Merrin estendeu o braço com calma e, com a ponta do polegar, traçou o sinal da cruz no peito coberto de vômito da menina. As palavras de sua oração foram encobertas pelas batidas.
Karras sentiu a pulsação cair de repente, e, enquanto Merrin rezava e fazia o sinal da cruz na testa da menina, as batidas assustadoras pararam repentinamente.
— “Ó Deus, do céu e da terra, Deus dos anjos e dos arcanjos...” — Karras ouvia a oração de Merrin conforme a pulsação continuava caindo, caindo...
— Desgraçado orgulhoso, Merrin! Escória! Você vai perder! Ela vai morrer! A porca vai morrer!
As luzes se tornaram gradualmente mais claras e o demônio voltou a falar com ódio com Merrin.
— Maldito sem-vergonha! Herege velho que ousa acreditar que o universo um dia se tornará Cristo! Eu ordeno que você olhe para mim! Sim, olhe para mim, desgraçado! — O demônio se lançou para a frente e cuspiu no rosto de Merrin, vociferando em seguida: — E assim seu mestre cura os cegos!
— “Deus e Senhor de toda criação” — Merrin rezou, pegando o lenço com calma para limpar o cuspe.
— Agora, siga os ensinamentos dele, Merrin! Faça isso! Coloque seu pênis santificado na boca da porca e purifique-a, esfregue-a com sua relíquia enrugada e ela será curada, Santo Merrin! Sim, um milagre! Um...
— “...ajude esta serva...”
— Hipócrita! Você não se importa nem um pouco com a porca. Não se importa nada! Você a tornou uma disputa entre nós dois!
— “Eu humildemente...”
— Mentiroso! Mentiroso desgraçado! Diga onde está sua humildade, Merrin? No deserto? Nas ruínas? Nas tumbas para onde você escapou para fugir do próximo? Para fugir de seus inferiores, dos doentes da cabeça? Você fala com homens, seu nojento?
— “...ajude...”
— Seu lar é num ninho de pavões, Merrin! Seu lugar é dentro de si mesmo! Volte para o topo da montanha e converse com seu único semelhante!
Merrin seguiu com as orações, inabalável, enquanto as ofensas continuavam.
— Está com fome, santo Merrin? Aqui, dou a você néctar e ambrosia, dou a você o pão de cada dia de seu Deus! — O demônio gritava de modo sarcástico enquanto Regan defecava. — Porque este é meu corpo! Agora, abençoe isso, Santo Merrin!
Enojado, Karras voltou sua atenção para o texto enquanto Merrin lia uma passagem de São Lucas:
— “‘Meu nome é Legião’, respondeu o homem, pois muitos demônios haviam entrado nele. E implorou a Jesus que não os mandasse para o abismo. Uma grande manada de porcos pastava ali, na encosta da montanha. E os demônios pediam a Jesus para entrarem nos animais. E Ele lhes deu permissão. E os demônios saíram do homem e entraram nos porcos, que se jogaram do abismo, para dentro do lago, e morreram afogados. E...”
— Willie, tenho boas notícias! — O demônio vociferou. Karras olhou para a frente e viu Willie perto da porta, parada com os braços cheios de toalhas e lençóis. — Trago a você notícias de redenção! — disse ele. — Elvira está viva! Ela vive! Ela...
Willie ficou chocada e Karl virou-se e gritou para ela.
— Não, Willie! Não!
— ...Uma drogada, Willie, uma perdida...
— Willie, não ouça! — Karl gritou.
— Devo dizer onde ela mora?
— Não ouça! Não ouça! — disse Karl, empurrando Willie para fora do quarto.
— Vá visitá-la no dia das mães, Willie! Faça uma surpresa! Vá e...
De repente, o demônio parou e olhou para Karras. Mais uma vez, ele conferiu a pulsação de Regan e, ao ver que estava forte o bastante para lhe dar mais Librium, ele se dirigiu a Sharon para instruí-la a preparar mais uma injeção.
— Karras, você a quer? — perguntou o demônio. — Ela é sua! Sim, a vaca é sua! Pode montá-la o quanto quiser! Sabe, ela pensa em você todas as noites! Sim, em você e em seu pau grosso e grande!
Sharon corou e não olhou para Karras enquanto o padre lhe dizia que era seguro dar Librium a Regan.
— E um supositório de Compazina, para o caso de ela vomitar mais — disse ele.
Sharon assentiu, olhando para o chão, e se afastou. Ao passar pela cama, com a cabeça ainda baixa, Regan gritou para ela:
— Vagabunda! — Sentou-se e acertou seu rosto com uma rajada de vômito, e, enquanto Sharon permanecia paralisada e chocada, a personalidade de Dennings apareceu, vociferando: — Piranha! Puta!
Sharon saiu correndo do quarto.
A personalidade de Dennings fez uma careta de raiva, olhou ao redor e perguntou:
— Alguém pode abrir uma janela, por favor? Está fedendo aqui dentro. Simplesmente... Não, não, não! Não, pelo amor de Deus, não abram, ou mais alguém pode acabar morrendo! — E então ele riu, fazendo uma careta monstruosa a Karras, e desapareceu.
— “É Ele quem lhe expulsa...”
— É mesmo, Merrin? Ele expulsa?
A entidade demoníaca havia se virado e Merrin continuou as adjurações, a aplicação da estola e o traçar do sinal da cruz enquanto a entidade o atacava de modo obsceno.
Tempo demais, pensou Karras; o acesso estava demorando tempo demais.
— Agora, aqui está a leitoa! A mãe da porquinha!
Karras virou-se e viu Chris caminhando na direção dele com um chumaço de algodão e uma seringa descartável. Ela manteve a cabeça baixa enquanto o demônio gritava, e Karras prosseguiu, franzindo o cenho.
— Sharon está trocando de roupa — Chris explicou —, e Karl...
— Tudo bem — disse Karras, interrompendo-a de modo brusco.
Juntos, eles se aproximaram da cama.
— Ah, sim, venha ver seu trabalho, leitoa-mãe! Venha!
Chris tentou não ouvir, não olhar, enquanto Karras segurava os braços fortes de Regan.
— Veja o vômito! Veja a vaca acabada! — O demônio gritou. — Está feliz? Foi você quem fez isso! Sim, você, com sua carreira sempre antes de qualquer coisa, sua carreira antes de seu marido, antes dela, antes...
Karras olhou ao redor. Chris ficou paralisada.
— Continue! — disse ele com firmeza. — Não dê ouvidos! Continue!
— ...de seu divórcio! Procurou padres, não é? Padres não vão resolver! A porca está louca! Você entendeu? Você a levou à loucura e ao assassinato e...
— Não consigo! — Com o rosto contorcido, Chris olhava para a seringa na mão trêmula. Balançou a cabeça. — Não consigo fazer isso!
Karras tirou a seringa de sua mão.
— Tudo bem! Passe o algodão! Passe! Ali!
— ...ao caixão dela, sua vaca, ao...
— Não dê ouvidos! — Karras aconselhou Chris de novo.
A entidade demoníaca virou a cabeça, com os olhos vermelhos cheios de fúria.
— E você, Karras! Sim! Você!
Chris passou o algodão no braço de Regan.
— Agora, saia! — disse Karras ao enfiar a seringa na pele machucada.
Chris correu para fora.
— Sim, nós sabemos de sua gentileza com as mães, Karras! — disse o demônio. O jesuíta empalideceu e por um momento não se mexeu. Então, lentamente, tirou a agulha e olhou para as partes brancas dos olhos de Regan enquanto de sua boca saía um canto baixo, lento, com uma voz doce e clara, como a de um menino de coral. — “Tantum ergo sacramentum veneremur cernui...”
Era um hino entoado na missa católica. Karras continuou pálido. Estranho e assustador, o hino era um vácuo dentro do qual Karras sentiu o horror da noite ganhando uma forte claridade. Ele olhou para a frente e viu Merrin com uma toalha nas mãos. Com movimentos cansados, ele limpou o vômito do rosto e do pescoço de Regan.
— “...et antiquum documentum...”
O hino. De quem era a voz?, pensou Karras. E então, fragmentos: Dennings... a janela... Esgotado, viu Sharon voltar para o quarto e pegar a toalha das mãos de Merrin.
— Vou terminar isso, padre — disse ela. — Estou bem agora. Gostaria de mudar a roupa dela e limpá-la antes de administrar a Compazina. Tudo bem? Vocês dois podem esperar um pouco lá fora?
Os padres saíram do quarto, indo para o calor e para a claridade do corredor, onde se recostaram na parede, com a cabeça baixa e os braços dobrados enquanto escutavam o canto assustador e abafado de dentro. Foi Karras quem interrompeu o silêncio.
— Padre, o senhor disse mais cedo que havia apenas uma personalidade com a qual estávamos lidando.
— Sim.
Os tons de voz sussurrantes, as cabeças baixas, eram confessionais.
— Todas as outras são formas de ataque — Merrin prosseguiu. — Há uma... só uma. É um demônio. — Fez-se silêncio. E, então, Merrin disse simplesmente: — Sei que você duvida, mas eu já encontrei esse demônio antes. E ele é forte, Damien. Poderoso.
Silêncio. Karras voltou a falar.
— Dizemos que o demônio não pode mudar a vontade da vítima.
— Sim, é isso mesmo. Não existe pecado.
— Então, qual seria o propósito da possessão? Qual é o sentido?
— Como saber? — respondeu Merrin. — Quem pode saber? E ainda acho que o alvo do demônio não é o possuído. Somos nós... que observamos... Todas as pessoas desta casa. E eu acho... Acredito que o objetivo é fazer com que nos desesperemos, que rejeitemos nossa humanidade, Damien: que vejamos a nós mesmos como bestas, maus e podres; deploráveis; horrorosos, indignos. E talvez aí esteja o cerne da questão: na indignidade. Porque eu acho que a crença em Deus não é uma questão de razão; acredito que é, no fundo, uma questão de amor: de aceitarmos a possibilidade de que Deus possa nos amar.
Merrin parou e prosseguiu mais lentamente, com um ar de introspecção:
— Mas quem sabe? Está claro, pelo menos para mim, que o demônio sabe em que ponto tocar. Ah, sim, ele sabe. Há muito tempo, eu me desesperava por não amar o próximo. Certas pessoas... me repeliam. Então, como eu poderia amá-las?, pensava. Isso me atormentava, Damien, me levava a perder as esperanças em relação a mim mesmo e, em pouco tempo, em relação a meu Deus. Minha fé foi destruída.
Surpreso, Karras virou-se e olhou para Merrin com interesse.
— E o que aconteceu? — perguntou ele.
— Ah, bem... Pelo menos, eu percebi que Deus nunca me pediria algo para o qual eu soubesse ser psicologicamente incapaz; que o amor que Ele pedia estava na minha vontade e não devia ser sentido como emoção. Não. De jeito nenhum. Ele queria que eu agisse com amor; que eu fizesse pelos outros; e que eu devia fazer isso com quem me repelia, creio, pois seria um ato maior de amor do que qualquer outro. — Merrin abaixou a cabeça e falou ainda mais baixo. — Sei que tudo isso deve parecer muito óbvio para você, Damien, eu sei. Mas, na época, não conseguia ver isso. Uma cegueira estranha. Quantos maridos e esposas devem ter acreditado que não mais amavam porque seus corações não mais batiam acelerados quando viam seus amados. Ah, santo Deus! — Ele balançou a cabeça e assentiu. — Acho que é aí que está, Damien... A possessão. Não nas guerras, como algumas pessoas acreditam, não tanto. E muito raramente em intervenções extraordinárias como aqui... Esta menina... Esta pobre criança. Não, costumo ver a possessão nas coisas pequenas, Damien. Nas picuinhas e nos desentendimentos; na palavra cruel e cortante que salta livre à língua entre amigos. Entre namorados. Entre marido e mulher. Temos muito disso e não precisamos de Satanás para criar nossas guerras. Conseguimos criá-las sozinhos... Sozinhos.
O hino no quarto ainda podia ser ouvido, e Merrin observou a porta com o olhar distante.
— E mesmo disto, do mal, finalmente virá o bem de alguma maneira. De alguma maneira que nunca poderemos entender ou até mesmo ver. — Merrin fez uma pausa, e continuou: — Talvez o mal seja a provação da bondade. E talvez até mesmo o Satanás sirva, de certa forma, para testar a vontade de Deus.
Merrin não disse mais nada e, por um tempo, permaneceu em silêncio enquanto Karras refletia, até que mais uma objeção lhe ocorreu.
— Quando o demônio for expulso — perguntou Karras —, o que o impedirá de voltar?
— Não sei — respondeu Merrin. — Mas, de todo modo, nunca acontece. Não, nunca. — Merrin levou a mão ao rosto, apertando os cantos dos olhos. — Damien... Que nome lindo — Ele murmurou. Karras percebeu a exaustão em sua voz. E mais alguma coisa. Ansiedade. Algo como uma dor reprimida.
De repente, Merrin se afastou da parede, e, com o rosto ainda coberto pelas mãos, pediu licença e atravessou o corredor até um banheiro. O que havia de errado?, pensou Karras. Ele sentiu uma inveja e admiração repentinas pela fé forte e simples do exorcista. Então, virou-se na direção da porta. O hino. Havia parado. Será que a noite, enfim, havia chegado ao fim?
Alguns minutos depois, Sharon saiu do banheiro com um monte de roupas e lençóis sujos.
— Ela está dormindo agora — disse ela, desviou-se o olhar rapidamente e se afastou.
Karras respirou fundo e voltou a entrar no quarto. Sentiu o frio. Sentiu o fedor. Caminhou devagar até o lado da cama. Regan. Adormecida. Finalmente. E, finalmente, pensou Karras, ele poderia descansar. Esticou a mão, segurou o pulso fino de Regan e, erguendo o outro braço, observou seu relógio, o ponteiro dos segundos.
— Por que você faz isso comigo, Dimmy?
O coração do jesuíta parou.
— Por que você faz isso?
Karras não se mexeu, não respirou, não ousou olhar para aquela voz pesarosa para ver se aqueles olhos realmente estavam ali. Olhos de acusação. Olhos solitários. Os olhos de sua mãe. De sua mãe!
— Você me abandonou para ser padre, Dimmy, me mandou para a instituição...
Não olhe!
— E agora me expulsa?
Não é ela!
— Por que você faz isso?
Com a cabeça latejando, o coração na boca, Karras fechou os olhos com força enquanto a voz parecia mais suplicante, mais assustada e chorosa.
— Você sempre foi um bom menino, Dimmy. Por favor! Eu tenho medo! Por favor, não me expulse, Dimmy! Por favor!
Você não é a minha mãe!
— Lá fora não tem nada! Só escuridão, Dimmy! Solidão.
— Você não é a minha mãe — Karras sussurrou com firmeza.
— Dimmy, por favor!
— Você não é a minha mãe! — Karras gritou com angústia.
— Ah, pelo amor de Deus, Karras!
A personalidade de Dennings havia aparecido.
— Veja, não é justo nos tirarem daqui! — disse ele. — Falando por mim, admito ser uma injustiça o fato de eu estar aqui. Mas aquela vaca destruiu meu corpo e acho que é justo que eu fique no dela, não acha? Ah, pelo amor de Deus, olhe para mim, Karras, por favor? Vamos! Nem sempre consigo falar! Vire-se agora. Não vou morder, vomitar, nem nada dessas coisas nojentas. Sou eu agora.
Karras abriu os olhos e viu a personalidade de Dennings.
— Isso, bem melhor — Ele prosseguiu. — Olha, ela me matou. Não a nossa anfitriã, Karras... Ela! Ah, sim. — Ele assentia. — Ela! Eu estava no meu canto, no bar, sabe? E ouvi uns gemidos no andar de cima, vindos do quarto dela. Eu tive que ver o que ela tinha, então eu subi e, veja só, a malvada me pegou pela garganta, a safada! — A voz estava resmungando agora, ridícula. — Deus, nunca na vida vi alguém tão forte! Começou a gritar que eu estava pegando a mãe dela ou coisa assim ou que eu causei o divórcio. Não ficou claro. Mas, olha, querido, ela me jogou da maldita janela! — A voz tornou-se esganiçada e estridente. — Ela me matou, porra! Entendeu? Agora, você acha justo me tirar dela? Sinceramente, Karras! Você acha?
Karras hesitou, e falou com rouquidão.
— Bem, se você é realmente Burke Dennings...
— Eu estou dizendo que sou! Você é surdo, porra?
— Bem, se é ele, conte-me como sua cabeça foi virada.
— Jesuíta desgraçado! — Ele xingou baixinho.
— O que disse?
Ele olhou ao redor de modo evasivo.
— Bem, a cabeça. Assustador, não é? Sim. Bem assustador.
— Como aconteceu?
Ele se virou.
— Bem, francamente, quem se importa? Para a frente ou para trás são apenas detalhes, sabe? Coisinhas.
Olhando para baixo, Karras segurou o braço de Regan de novo e olhou para o relógio enquanto analisava a pulsação.
— Dimmy, por favor. Não me deixe sozinha!
Sua mãe.
— Se você fosse médico em vez de padre, Dimmy, eu ia viver numa casa boa. Não com baratas, não sozinha nesse apartamento ruim!
Olhando para o relógio, Karras se esforçou para bloquear todo o resto, quando mais uma vez ouviu som de choro.
— Dimmy, por favor!
— Você não é minha mãe!
— Ah, não vai encarar a verdade? — Era o demônio. Irado. — Você acredita no que Merrin diz, seu tolo? Acredita que ele é santo e bom? Mas ele não é! Ele é orgulhoso e indigno! Vou provar a você, Karras. Vou provar matando a porca! Ela vai morrer, e nem você nem o Deus de Merrin vão salvá-la! Ela vai morrer por causa do orgulho de Merrin e por sua incompetência! Incompetente! Não deveria ter dado Librium a ela!
Assustado, Karras olhou para a frente, para olhos que brilhavam triunfantes e com ódio, e olhou para o relógio de pulso de novo.
— Está checando a pulsação dela, Karras? Está?
Karras franziu o cenho com preocupação. A pulsação estava rápida e...
— Fraca? — perguntou o demônio. — Ah, sim. Por enquanto, só um pouco. Só uma coisinha de nada.
Karras soltou o braço de Regan, levou sua maleta depressa até a cama, tirou o estetoscópio e pressionou a peça auscultatória contra o peito do demônio, que disse:
— Ouça, Karras! Ouça! Ouça com atenção!
Karras ouviu e ficou ainda mais preocupado. As batidas do coração de Regan estavam distantes e pareciam ineficientes.
— Não permitirei que ela durma!
Aterrorizado, Karras olhou para o demônio.
— Sim, Karras! — Ele resmungou. — Ela não vai dormir! Está me ouvindo? Não permitirei que a porca durma!
Enquanto o demônio jogava a cabeça para trás para rir, Karras observou, impassível. Só percebeu que Merrin voltara ao quarto quando o exorcista se colocou ao lado dele e observou o rosto de Regan com cuidado e preocupação.
— O que foi? — perguntou ele.
— O demônio — respondeu Karras — disse que não permitiria que ela dormisse. — Ele olhou para Merrin. — O coração dela começou a bater com fraqueza, padre. Se ela não descansar em breve, morrerá de exaustão cardíaca.
Merrin franziu o cenho, com a expressão séria.
— Não podemos administrar algum remédio? — perguntou ele. — Algo que a faça dormir?
— Não, seria perigoso. Ela pode entrar em coma. — Karras olhou para Regan. Ela cacarejava como uma galinha. — Se a pressão sanguínea cair mais...
O padre hesitou.
— O que podemos fazer? — perguntou Merrin.
— Nada — respondeu Karras. — Nada. — Ele olhou para Merrin com ansiedade. — Mas não sei. Não tenho certeza. Talvez tenha havido algum avanço recente. Vou telefonar para um médico cardiologista!
— Sim, seria bom — disse Merrin, assentindo.
Ele observou enquanto Karras fechava a porta e disse baixinho:
— E eu vou rezar.
Karras encontrou Chris de vigília na cozinha e no espaço da despensa, e ouviu Willie soluçando e a voz consoladora de Karl, enquanto explicava a necessidade urgente de consultar um médico e tomar o cuidado de não mencionar a situação de Regan em detalhes. Chris deu permissão, e Karras telefonou para um amigo, um especialista da escola de medicina da universidade de Georgetown, a quem acordou.
— Já estou indo — disse o especialista.
Em menos de meia hora, ele chegou a casa, e, no quarto de Regan, reagiu ao frio, ao fedor e à situação de Regan com susto, horror e compaixão. Quando ele entrou no quarto, Regan estava dizendo palavrões em voz baixa, e, enquanto ele a examinava, ela alternou músicas e ruídos animalescos. Dennings apareceu.
— Ah, que terrível — Ele resmungou ao especialista. — Que horror! Espero que você possa fazer alguma coisa! Há o que ser feito? Porque, caso contrário, não teremos aonde ir, e tudo porque... Ah, que se dane o demônio teimoso! — Enquanto o especialista arregalava os olhos e checava a pressão de Regan, Dennings olhou para Karras e reclamou: — Que diabos você está fazendo? Não vê que vaquinha deveria ser internada? O lugar dela é num hospício, Karras! Você sabe disso! Minha nossa, por que não para com essa enrolação? Se ela morrer, sabe, a culpa será sua! Sim, toda sua! Afinal, não é porque o autonomeado segundo filho de Deus está sendo teimoso que você tem que se comportar como um idiota! Você é médico! Deve ser sensato. Karras! Agora, vamos, seja bondoso, tenha compaixão. Há uma falta terrível de moradias atualmente!
E o demônio voltou, uivando como um lobo. Inexpressivo, o especialista tirou o medidor de pressão e, ainda assustado, assentiu para Karras. Havia terminado.
Eles foram até o corredor, onde o especialista olhou para a porta do quarto e, em seguida, para Karras, e perguntou:
— O que diabos está acontecendo aqui, padre?
O jesuíta desviou o olhar.
— Não posso contar — disse ele baixinho.
— Não pode ou não quer?
Karras olhou para ele.
— Talvez as duas coisas. Como está o coração dela?
A resposta foi séria.
— Ela precisa parar com isso. Precisa dormir... Dormir antes que a pressão caia.
— Há alguma coisa que eu possa fazer, Mike?
— Rezar.
Quando o especialista se afastou, Karras o observou, e todo o seu corpo implorava por descanso, esperança, milagres, apesar de ele ter certeza de que não teria nada disso. Fechando os olhos, fez uma careta ao se lembrar de “Não deveria ter dado Librium a ela!”. Levou o punho cerrado à boca enquanto soluçava de arrependimento e de culpa. Respirou fundo uma, duas vezes; abrindo os olhos e caminhando para a frente, abriu a porta do quarto de Regan com mão menos pesada do que sua alma.
Merrin estava ao lado da cama, observando enquanto Regan relinchava como um cavalo. Ouviu Karras entrar e virou-se para ele, que apenas balançou a cabeça. Merrin assentiu. Havia tristeza em seu rosto; em seguida, aceitação; quando se virou de novo para Regan, viu uma sombria determinação.
Merrin ajoelhou-se ao lado da cama.
— Pai nosso... — Ele começou.
Regan cuspiu bile escura e fétida em seu rosto e rosnou:
— Você vai perder! Ela vai morrer! Ela vai morrer!
Karras pegou seu exemplar de O ritual romano. Ele a abriu. Olhou para a frente, manteve o olhar fixo em Regan.
— “Salve sua serva” — Merrin rezou.
— “Diante do inimigo.”
Durma, Regan! Durma!, gritou a alma de Karras.
Mas Regan não dormiu.
Nem durante a madrugada.
Nem na hora do almoço.
Nem à noite.
Nem no domingo, quando sua pulsação estava a 140 e ainda mais fraca, enquanto os acessos continuavam sem parar. Karras e Merrin repetiam o ritual, sem dormir. Karras procurava meios de amenizar a situação: um lençol para amarrar os membros de Regan para que ela se mexesse o mínimo possível; manter todos fora do quarto por um tempo para ver se a falta de provocação podia pôr fim aos ataques. Nenhum método funcionou. Os gritos de Regan eram tão esgotantes quanto os movimentos. Ainda assim, a pressão sanguínea se mantinha. Mas por quanto tempo mais?, pensou Karras. Deus, não permita que ela morra! A oração fervorosa de sua mente foi repetida diversas vezes, quase como uma litania.
Não permita que ela morra! Deixe-a dormir! Deixe-a dormir!
Aproximadamente às 19h daquele domingo, Karras sentou-se em silêncio ao lado de Merrin no quarto, exausto e esgotado pelos ataques do demônio, por sua falta de fé, por sua incompetência como médico, por ter abandonado a mãe em busca de status. E Regan! Regan! Era culpa dele!
“Não deveria ter dado Librium a ela!”
Os padres tinham acabado um ciclo do ritual e estavam descansando, ouvindo Regan cantar “Panis Angelicus” com aquela mesma voz doce de menino de coral. Eles raramente saíam do quarto; Karras saiu uma vez, para trocar de roupa e tomar um banho. Mas era mais fácil permanecer desperto no frio, mesmo em meio ao fedor, que desde cedo havia se alterado, tornando-se mais próximo do cheiro de carne podre.
Olhando intensamente para Regan com olhos vermelhos, Karras acreditou ter ouvido um barulho. Algo rangendo. Acontecia sempre que ele piscava. Karras percebeu que o som era de suas pálpebras cheias de crostas. Virou a cabeça para olhar para Merrin. Ao longo das horas, o exorcista mais velho havia dito poucas coisas; alguma história de sua infância, de vez em quando. Lembranças. Coisinhas. Uma história sobre um pato que ele tinha, chamado Clancy. Karras estava profundamente preocupado com ele. Por sua idade. Pela falta de descanso. Pelos ataques verbais do demônio. Quando Merrin fechou os olhos e encostou o queixo no peito, Karras olhou para Regan, levantou-se e caminhou até a cama, onde conferiu a pulsação dela e começou a aferir a pressão. Ao envolver seu braço com a faixa preta do medidor, piscou diversas vezes para afastar a visão borrada.
— Hoje é dia das mães, Dimmy.
Por um momento, o padre não conseguiu se mexer ao sentir o coração sendo arrancado do peito; lentamente, muito lentamente, ele fitou olhos que não mais pareciam ser de Regan, mas olhos que o repreendiam com tristeza. Os olhos de sua mãe.
— Não sou boa para você? Por que me deixou sozinha para morrer, Dimmy? Por que você...
— Damien! — Merrin segurou com força o braço de Karras. — Vá descansar um pouco, Damien.
— Dimmy, por favor!
— Não ouça, Damien! Vá! Vá agora!
Com um nó crescendo na garganta, Karras virou-se e saiu do quarto. Por um momento, deteve-se no corredor, fraco e irresoluto. Café? Queria beber um pouco. Mas queria um banho, acima de tudo. Mas, quando saiu da casa das MacNeil e voltou para seus aposentos no centro de residência, só precisou olhar para a cama para mudar de ideia. Esqueça o banho, cara! Dormir! Meia hora! Quando esticou o braço para pedir à recepção que o despertasse, o telefone tocou.
— Alô — Ele atendeu com a voz rouca.
— Tem alguém aqui para vê-lo, padre Karras. É o sr. Kinderman.
Karras prendeu a respiração por um momento e soltou o ar resignado.
— Certo, diga a ele que sairei num minuto — respondeu ele sem forças. Quando desligou o telefone, Karras viu um maço de cigarros Camel sem filtro em sua mesa. Havia um bilhete de Dyer preso.
Uma chave para o Playboy Club foi encontrada nos genuflexórios da capela, diante das velas de sete dias. É sua? Pode buscá-la na recepção.
Joe
Com expressão carinhosa, Karras colocou o bilhete sobre a mesa, trocou de roupa, saiu do quarto e foi para a recepção, onde Kinderman estava ao balcão do telefone, cuidadosamente organizando um vaso cheio de flores. Quando ele se virou e viu Karras, estava segurando o caule de uma camélia cor-de-rosa.
— Ah, padre! Padre Karras! — Kinderman o recebeu com alegria, mas sua expressão mudou rapidamente para preocupação quando viu o cansaço no rosto do jesuíta. Devolveu a camélia ao vaso e caminhou até ele. — O senhor está péssimo! O que houve? É isso o que acontece depois de correr tanto na pista? Pare com isso, padre, você vai morrer de todo jeito. Vamos! — Ele segurou o cotovelo de Karras e o levou adiante, em direção à saída. — O senhor tem um minuto? — perguntou enquanto passavam pela porta.
— E olhe lá — respondeu Karras. — O que houve?
— Queria conversar um pouco. Preciso de um conselho, nada mais. Apenas um conselho.
— Sobre o quê?
— Só um minuto. Por enquanto, vamos apenas conversar. Tomar um ar. Vamos aproveitar. — Ele deu o braço para o jesuíta e o levou diagonalmente para o outro lado da rua. — Ah, sim, veja só! Que lindo! Maravilhoso! — Ele estava apontando para o sol que se punha no Potomac, e, no silêncio, um riso repentino soou; o falatório de muitos alunos da Georgetown na frente de um bar perto da esquina da rua 36. Eles trocavam socos nos braços, e dois começaram a travar uma luta de brincadeira. — Ah, a faculdade... — disse Kinderman ao olhar para os jovens reunidos. — Não frequentei, mas gostaria... — Olhando para Karras, ele franziu o cenho com preocupação. — É sério, o senhor me parece péssimo. O que houve? Andou doente?
Quando Kinderman vai dizer o que quer, afinal?, pensou Karras.
— Não, apenas ando ocupado — respondeu o jesuíta.
— Acalme-se, então — disse Kinderman. — Devagar. O senhor viu o Balé Bolshoi, por acaso, no Watergate?
— Não.
— É, eu também não. Mas gostaria. Eles são tão graciosos... Tão bonitos!
Eles estavam diante do muro baixo do Car Barn, onde a vista para o pôr do sol era livre, e pararam, Karras apoiando o braço em cima do muro e deixando de olhar o poente para olhar para Kinderman.
— O que está pensando? — perguntou Karras.
— Ah, bem, padre — disse Kinderman, sussurrando. Ele se virou, apoiando as mãos no muro enquanto olhava para o outro lado do rio e dizia: — Infelizmente, tenho um problema.
— Profissional?
— Em parte. Apenas em parte.
— O que foi?
— Bem, é que... — Kinderman hesitou e prosseguiu: — Bem, em grande parte é algo relacionado à ética, podemos dizer, padre Karras. Uma pergunta... — Sua voz falhou, o detetive virou-se e, recostando-se no muro, olhou para a calçada e franziu o cenho. — É que não tenho ninguém com quem falar sobre isso. Não posso falar com meu chefe, sabe? Não poderia. Não poderia contar a ele. Então, eu pensei... — Ali, abruptamente, os olhos do detetive brilharam. — Tenho uma tia... O senhor precisa ouvir, é engraçado. Ela morria de medo, morria mesmo, do meu tio durante anos. A coitada nunca ousava dizer nada a ele, nunca!, muito menos levantar a voz. Sempre que se irritava com ele por algum motivo, ela saía correndo, entrava no armário de seu quarto e ali, no escuro, o senhor não vai acreditar!, no escuro, sozinha, com todas as roupas penduradas e as traças, ela xingava, xingava! meu tio e dizia tudo o que pensava dele durante uns vinte minutos! É sério! Ela gritava! Ela saía, sentindo-se melhor, e o beijava o rosto. O que acha, padre Karras? É uma boa terapia ou não é?
— É muito bom — respondeu Karras com um sorriso fraco. — E agora sou seu armário? É isso o que senhor quer dizer?
— De certo modo — respondeu o detetive com seriedade. — Só que mais sério. E o armário deve falar.
— Tem um cigarro?
Kinderman olhou para Karras de modo inexpressivo, incrédulo.
— Um problema como o meu e eu fumaria?
— Não, não fumaria — disse Karras ao se virar para olhar o rio e apoiar as mãos no muro. Era para fazer com que elas parassem de tremer.
— Que médico! Deus me livre de eu estar doente em alguma floresta e, em vez de Albert Schweitzer, eu me ver preso ao senhor! O senhor ainda cura verrugas com sapos, doutor Karras?
— Com pererecas — respondeu Karras, desanimado.
Kinderman franziu o cenho.
— Você não está sorrindo com alegria hoje, padre Karras. Tem alguma coisa errada. O que é? Vamos, conte.
Karras abaixou a cabeça e ficou em silêncio:
— Tudo bem — disse baixinho. — Pergunte ao armário o que quiser.
Suspirando, o detetive olhou para o rio.
— Eu estava dizendo... — Coçou a sobrancelha com a unha do polegar e continuou: — Eu estava dizendo... Bem, digamos que eu esteja trabalhando num caso, padre Karras. Um homicídio.
— Dennings?
— Não, o senhor não conhece, padre. É algo totalmente hipotético.
— Entendi.
— Como um ritual de assassinato na bruxaria, ao que parece — O detetive continuou, escolhendo as palavras lenta e cuidadosamente. — E digamos que nesta casa, a casa hipotética, morem cinco pessoas, e que uma deve ser o assassino. — Ele gesticulava para enfatizar. — Mas eu sei disso. Sei disso. Tenho certeza. — Então, ele parou, soltando o ar lentamente. — Mas o problema é que toda a evidência aponta que foi uma criança, padre Karras. Uma menininha que talvez tenha dez, doze anos... Uma criança. Talvez ela pudesse ser minha filha. Sim, eu sei. Parece impossível, ridículo... Mas é verdade. Mas aí, padre Karras, um padre católico famoso vai até essa casa, e como o caso é totalmente hipotético, padre, fico sabendo por meio de meu talento também hipotético que esse padre já havia curado um tipo de doença muito específico. Uma doença mental, a propósito, um fato que menciono muito por acaso para o senhor tomar conhecimento.
Karras abaixou a cabeça com tristeza e assentiu.
— Sim, continue. O que mais?
— O que mais? Muito mais. Parece que há... Bem, satanismo envolvido nessa doença, além de força... Sim, uma força incrível. E essa... menina hipotética, digamos, conseguiu virar a cabeça de um homem para trás. — Com a cabeça baixa, o detetive assentia. — Sim... Sim, ela conseguiu. E então, a pergunta... — Hesitando, o detetive fez uma careta e continuou: — Veja... A menina não é responsável, padre. Ela é louca, padre, totalmente problemática, e é apenas uma criança, padre Karras! Uma criança! Mas, ainda assim, a doença que ela tem... poderia ser perigosa. Pode acabar matando mais alguém. Quem sabe? — E, mais uma vez, o detetive virou-se e olhou para o rio, dizendo de modo baixo e lento: — É um problema. O que fazer? Hipoteticamente, quero dizer. Apenas esquecer tudo? Esquecer e torcer para que ela... — Kinderman fez uma pausa — para que ela melhore? — Ele pegou um lenço com o qual assoou o nariz. — Bem, não sei. Não sei. É uma decisão horrorosa — disse, enquanto procurava uma parte limpa do lenço. — Sim, terrível. Péssima. Horrorosa. E detesto ser a pessoa a fazê-la. — Mais uma vez, ele assoou o nariz, limpou a narina de leve e voltou a colocar o pano no bolso. — Padre, o que seria certo fazer em tal caso? — perguntou ele, virando-se para Karras. — Hipoteticamente, quero dizer. O que o senhor acha que seria o mais certo a fazer?
Por um instante, Karras sentiu uma vontade de se revoltar, com a raiva forte aumentando o peso em cima dele. Deixou que ela se transformasse em calma e, olhando para o detetive com firmeza, respondeu:
— Eu deixaria o caso nas mãos de uma autoridade superior.
— Acredito que ela está lá neste momento.
— Sim, e eu deixaria as coisas assim, detetive.
Por alguns momentos, os dois se encararam. Kinderman assentiu, dizendo:
— Sim, padre. Sim, sim. Pensei que o senhor diria isso. — Ele se virou para observar o pôr do sol de novo. — Que lindo. O que nos faz pensar que tal cenário tem beleza enquanto a Torre de Pisa não? A mesma coisa com lagartos e tatus. Outro mistério. — Ele puxou a manga para checar o relógio de pulso. — Ah, bem, preciso ir. A qualquer momento, a sra. K. vai gritar dizendo que o jantar está frio. — Ele se virou para Karras. — Obrigado, padre. Eu me sinto melhor... Bem melhor. Ah, por acaso poderia me fazer um favor? Pode mandar um recado? Se o senhor porventura encontrar um homem cujo sobrenome é Engstrom, diga a ele... Bem, apenas diga que “Elvira está numa clínica. Está tudo bem”. Ele vai entender. Poderia fazer isso? Digo, se por um acaso o senhor encontrá-lo.
Um pouco confuso, Karras respondeu:
— Farei isso.
— Olha, poderíamos ir ao cinema qualquer dia, padre?
Karras olhou para o chão e, assentindo, murmurou:
— Em breve.
— O senhor parece um rabino falando do Messias: sempre “em breve”. Ouça, faça-me mais um favor, sim? — Olhando para a frente, Karras viu que o detetive parecia muito preocupado. — Pare de correr na pista por um tempo. Apenas caminhe. Está bem, padre? Vá com calma. Pode fazer isso por mim, por favor?
Karras sorriu levemente e disse:
— Pode deixar.
Com as mãos no bolso do casaco, o detetive olhou para a calçada com resignação.
— Sim, eu sei — disse ele, assentindo. — Em breve, sempre em breve. — Quando começou a se afastar, parou, colocou a mão no ombro do jesuíta e apertou, dizendo: — Elia Kazan, seu diretor, manda lembranças.
Por um momento, Karras observou enquanto ele descia a rua; observou com afeição e surpresa as idas e vindas labirínticas e as redenções improváveis do coração. Olhou para cima, para as nuvens tingidas de rosa acima do rio, e além do oeste, onde elas se misturavam na beira do mundo, brilhando suavemente como uma promessa lembrada. Houvera um tempo em que ele via Deus em tais vistas, sentia a respiração Dele na cor das nuvens, e agora os versos de um poema que ele passara a amar voltavam para assombrá-lo:
Glória a Deus pelas coisas de cor variada —
Céu pintalgado como novilha malhada;
Pintas-rosa salpicando a truta que nada;
Castanhas que caem como carvões em brasa; asa de pintassilgo
(...)
Aquele cuja beleza é imutável os cria:
Louvai-o.
Karras pressionou a lateral de um punho nos lábios e olhou para baixo contra a tristeza e a dor da perda que inchavam em sua garganta em direção aos cantos dos olhos enquanto pensava numa frase de um salmo que antes o enchia de alegria.
— Ah, Senhor — Ele relembrou —, tenho amado a beleza de Vossa morada.
Karras esperou. Não arriscou olhar o pôr do sol de novo.
Em vez disso, olhou para a janela de Regan.
Sharon abriu a porta para ele e disse que nada havia mudado. Ela carregava um monte de roupas fedorentas. Pediu licença para se retirar.
— Preciso colocar isto na máquina de lavar.
Karras a observou. Pensou em tomar um café. Mas ouviu o demônio vociferando para Merrin. Caminhou em direção à escada, mas parou quando se lembrou do recado que devia dar a Karl. Onde ele poderia estar? Virou-se para perguntar a Sharon e viu que ela descia a escada para o porão. Procurou o empregado na cozinha. Não estava ali. Chris estava lá, sozinha. Com os cotovelos apoiados e as mãos nas têmporas, ela estava sentada à mesa da copa olhando para... O que era aquilo? Karras aproximou-se em silêncio. Parou. Um álbum de fotos. Pedaços de papel. Fotos coladas. Chris não o viu.
— Com licença, por favor — disse Karras com delicadeza. — Karl está aqui?
Chris olhou para ele e balançou a cabeça, negando.
— Ele precisou sair para fazer algo — respondeu, de modo rápido e suave. Karras ouviu seu suspiro: — Tem café aqui, padre. Deve estar quase pronto.
Quando Karras olhou para a frente, para a luz da cafeteira, ouviu Chris levantando-se da mesa; quando ele se virou, viu-a passando rapidamente por ele com o rosto virado. Ouviu um trêmulo “Com licença” e, num minuto, Chris havia deixado a cozinha. Karras olhou para o álbum de fotografias. Fotos espontâneas. Uma menina. Muito bonita. Com uma pontada de dor, Karras percebeu que estava olhando para Regan: ali, assoprando as velas de um bolo de aniversário coberto por chantili e velas; ali, sentada diante do lago de short e camiseta, acenando alegremente para a câmera. Havia algo escrito em sua camiseta: acampamento... Ele não conseguiu ler. Na página ao lado, uma folha de papel pautado trazia a caligrafia de uma criança:
Se em vez de massinha
Eu pudesse reunir todas as coisas mais lindas
Como um arco-íris,
Ou nuvens, ou o canto dos pássaros,
Talvez então, querida mamãe,
Se eu reunisse todos eles
Eu poderia fazer uma escultura sua.
Embaixo do poema: eu te amo! feliz dia das mães! A assinatura, a lápis, era Regs.
Karras fechou os olhos. Não conseguia lidar com aquela descoberta. Virou-se desanimado e esperou que o café ficasse pronto. Com a cabeça baixa, segurou-se na ponta do balcão e fechou os olhos mais uma vez. Esqueça!, pensou. Esqueça tudo! Mas não conseguiu. Enquanto ouvia o barulho e o borbulhar da água fervendo, suas mãos começaram a tremer de novo quando a compaixão cresceu de repente e se transformou em ódio pela doença e pela dor, pelo sofrimento de crianças e pela fragilidade do corpo e da corrupção monstruosa e absurda da morte.
“Se em vez de massinha...”
A ira se transformou em pena e em frustração.
“... todas as coisas mais lindas...”
Não conseguiu esperar pelo café. Precisava ir. Devia fazer algo. Ajudar alguém. Tentar. Saiu da cozinha e, quando chegou à sala de estar, olhou pela porta aberta e viu Chris no sofá, soluçando convulsivamente, enquanto Sharon tentava consolá-la. Ele desviou o olhar e subiu a escada, escutou o demônio vociferando a Merrin.
— ...Teria perdido! Você teria perdido e sabe disso! Seu desgraçado, Merrin! Maldito! Volte! Venha e...
Karras bloqueou tudo.
“...ou o canto dos pássaros.”
Quando entrou no quarto de Regan, Karras notou que havia se esquecido de vestir a blusa. Tremendo de frio, ele olhou para Regan. A cabeça dela estava inclinada e a voz demoníaca continuava a vociferar.
Caminhou lentamente até sua cadeira, pegou um cobertor e, apenas naquele momento, em sua exaustão, notou a ausência de Merrin. Momentos depois, lembrando-se de que precisava conferir a pressão de Regan, Karras levantou-se de novo e caminhou cambaleante até ela, quando parou, chocado. Imóvel e desconjuntado, Merrin estava deitado de bruços no chão ao lado da cama. Karras ajoelhou-se, virou o padre e, ao ver o tom azulado de seu rosto, apressou-se em tentar sentir seu pulso. Num momento forte e pungente de angústia, percebeu que Merrin estava morto.
— Santíssima flatulência! Morreu, né? Morreu? Karras, cure-o! — vociferou o demônio. — Traga-o de volta e permita que terminemos, permita que...
Parada cardíaca. Artéria coronária.
— Ah, Deus! — Karras sussurrou. — Deus, não! — Ele fechou os olhos e balançou a cabeça com incredulidade e desespero. Abruptamente, com uma onda de pesar, ele apertou o polegar com força no pulso pálido de Merrin, como se apertando suas veias a vida voltasse a fluir.
— ...hipócrita...
Karras se recostou e respirou fundo. Viu as pequenas pílulas espalhadas no chão. Pegou uma delas e, com pesar, viu que Merrin sabia. Nitroglicerina. Ele sabia. Com os olhos vermelhos, Karras olhou para o rosto de Merrin. “...Vá descansar um pouco, Damien.”
— Nem mesmo minhocas vão comer seu cadáver, seu...!
Ao ouvir as palavras do demônio, Karras olhou para a frente e começou a tremer visivelmente com uma fúria incontrolável e assassina.
Não ouça!
— ...bicha...
Não ouça! Não ouça!
Uma veia saltou na testa de Karras. Quando ele segurou as mãos de Merrin e começou a colocá-las em forma de cruz sobre o peito, ouviu o demônio dizer:
— Agora, coloque o pau nas mãos dele! — E uma gotícula de saliva fétida acertou o olho do padre morto. — Os ritos finais! — disse o demônio, rindo. Jogou a cabeça para trás e riu sem parar.
Karras observou paralisado o cuspe. Não se mexeu. Não conseguia ouvir acima do ruído de seu sangue. Lentamente, com reflexos trêmulos, olhou para a frente com o rosto transformado em ira, um espasmo forte de ódio.
— Seu filho da puta! — Karras vociferou num sussurro intenso, e, apesar de não ter se mexido, ele parecia estar se desenrolando, os músculos de seu pescoço tensos como cabos. O demônio parou de rir e olhou para ele com maldade. — Você estava perdendo! — disse Karras. — Você é um perdedor! Sempre foi um fracasso! — Regan o sujou com vômito. Ele ignorou. — Sim, você é muito bom com crianças! — disse entre os dentes. — Menininhas! Pois venha! Vamos ver se consegue em alguém maior! Venha! — Ele manteve as mãos grandes como ganchos, chamando, convidando lentamente. — Venha! Vamos, fracassado! Entre em mim! Deixe a menina e venha me pegar! Entre em mim!
No instante seguinte, Karras se ergueu repentinamente, com a cabeça jogada para trás, olhando o teto; em convulsões, os traços do jesuíta se contorceram numa máscara de ódio e ira impensáveis, enquanto suas mãos grandes e fortes se apertavam com movimentos espasmódicos, como se lutassem contra uma força invisível, enquanto iam em direção à garganta de Regan MacNeil, que gritava.
Chris e Sharon ouviram o barulho. Estavam no escritório. Chris estava sentada perto do bar e Sharon estava atrás do balcão, preparando um drinque, quando ambas olharam para o teto ao perceberem a movimentação no quarto de Regan: a menina gritava aterrorizada e Karras gritou muito alto:
— Não!
Em seguida, luta. Batidas fortes contra os móveis. Contra uma parede. Chris derrubou a bebida ao se retrair quando ouviu um barulho forte, barulho de vidro se quebrando. Um instante depois, ela e Sharon corriam escada acima em direção ao quarto de Regan, entraram, e viram as cortinas da janela no chão, arrancadas! E a janela! O vidro estava totalmente destruído!
Assustadas, elas correram em direção à janela e, ao fazerem isso, Chris viu Merrin no chão, perto da cama. Assustou-se e ficou parada em choque. Correu até ele, ajoelhando-se a seu lado.
— Ai, meu Deus! — disse ela. — Sharon! Shar, venha aqui! Rápido, venha...
O grito horrorizado de Sharon a interrompeu. Chris olhou para cima com o rosto pálido, boquiaberta, e viu Sharon na janela, olhando para a escadaria, com as duas mãos no rosto.
— Shar, o que foi?
— É Karras! O padre Karras! — Sharon gritou histericamente, correndo do quarto.
Com o rosto lívido, Chris levantou-se e caminhou depressa até a janela. Olhou para baixo. E sentiu o coração parar. No fim da escadaria da rua M, Karras estava jogado e ensanguentado, enquanto uma multidão se aglomerava ao redor dele.
Chris levou a mão ao rosto ao olhar para baixo aterrorizada, e tentou mover os lábios. Para falar. Não conseguiu.
— Mãe?
Uma voz frágil, fraca e chorosa atrás dela. Chris virou a cabeça levemente, olhos arregalados, sem conseguir acreditar no que ouvira. A voz a chamou de novo. Era a voz de Regan.
— Mãe, o que está acontecendo? Venha aqui! Estou com medo, mamãe! Por favor, mamãe! Por favor! Por favor, venha aqui!
Chris se virou, viu as lágrimas de medo e se precipitou em direção à cama, chorando:
— Rags! Ah, meu amor, meu amor! Ah, rags! É você mesma! É você mesma!
No andar de baixo, Sharon saiu correndo da casa em direção ao centro de residência jesuíta, onde pediu para ver Dyer com urgência. Ele chegou depressa à recepção. Ela contou a ele. Ele olhou para ela, chocado.
— Chamaram uma ambulância? — perguntou ele.
— Ai, meu Deus! Não, não chamei! Nem sequer pensei!
Rapidamente, Dyer deu instruções ao atendente da recepção, e correu pelo corredor com Sharon. Eles atravessaram a rua. Desceram a escadaria correndo.
— Deixe-me passar, por favor! Quero passar!
Quando passou entre as pessoas da calçada, Dyer ouviu murmúrios indiferentes. “O que aconteceu?” “Um cara caiu da escada.” “Sim, devia estar bêbado. Está vendo o vômito?” “Vamos, queridos, ou vamos nos atrasar.”
Finalmente, Dyer conseguiu passar. Por um instante, ficou paralisado numa dimensão atemporal de pesar, num espaço onde respirar era doloroso demais. Karras estava deitado e desconjuntado, de costas, com a cabeça no meio de uma poça de sangue que se espalhava. Com a mandíbula torta, um brilho estranho nos olhos, olhava fixamente para cima como se esperasse, paciente, as estrelas de um horizonte misterioso. Mas seus olhos se voltaram para Dyer. Pareciam brilhar de alegria. De completude. De algo parecido com triunfo.
Expressaram um apelo. Algo urgente.
— Vamos, afastem-se! Afastem-se agora!
Um policial. Dyer ajoelhou-se e pousou a mão delicadamente, como que afagando, no rosto ferido. Tantos cortes. Um fio de sangue escorria de sua boca.
— Damien... — Dyer parou para engolir o nó em sua garganta, ao ver o brilho fraco e sôfrego nos olhos de Karras, o apelo caloroso. Inclinando-se para a frente, Dyer perguntou: — Consegue falar?
Lentamente, Karras levou a mão ao pulso de Dyer. Ele o segurou e apertou.
Afastando as lágrimas, Dyer se inclinou ainda mais perto e, aproximando os lábios do ouvido de Karras, perguntou baixinho:
— Quer fazer sua confissão agora, Damien?
Um aperto.
— Você se arrepende de todos os seus pecados em vida e por ter ofendido Deus todo-poderoso?
A mão estava se soltando aos poucos, mas voltou a apertar.
Afastando-se um pouco, Dyer lentamente traçou o sinal da cruz sobre Karras enquanto recitava as palavras de absolvição, muito emocionado:
— Ego te absolvo... — Uma lágrima enorme rolou do canto do olho de Karras, e Dyer sentiu o punho sendo apertado com ainda mais força, continuamente, enquanto finalizava a absolvição: — ...in nomine Patris, et Filii, et Spiritus Sancti. Amen.
Dyer se inclinou para a frente de novo, com os lábios próximos ao ouvido de Karras. Esperou. Forçou o nó de sua garganta a se desfazer. E murmurou:
— Você...?
Dyer parou. A pressão em seu punho havia desaparecido de repente. Ele levantou a cabeça e viu os olhos tomados pela paz; e por algo mais: como a alegria diante do fim do anseio do coração. Os olhos continuavam fixos. Mas em nada neste mundo. Nada aqui.
De modo lento e delicado, Dyer abaixou as pálpebras. Ouviu a sirene da ambulância ao longe. Começou a dizer: “Adeus”, mas não conseguiu terminar. Abaixou a cabeça e chorou.
A ambulância chegou. Eles puseram Karras numa maca, e, enquanto o levavam para dentro, Dyer entrou e sentou-se ao lado do enfermeiro. Esticou o braço e segurou a mão de Karras.
— Não há nada que o senhor possa fazer por ele agora, padre — disse o enfermeiro com uma voz gentil. — Não torne as coisas mais difíceis para si mesmo. Não venha conosco.
Com os olhos fixos naquele rosto marcado, Dyer balançou a cabeça devagar e disse:
— Não, eu vou junto.
O enfermeiro olhou para a porta de trás da ambulância, onde o motorista esperava pacientemente e espiava com as sobrancelhas erguidas, de modo questionador. O enfermeiro assentiu calado e a porta de trás foi fechada.
Da calçada, Sharon assistia a tudo, atordoada, enquanto a ambulância se afastava lentamente. Escutou os murmúrios das pessoas ao redor.
“O que houve?”
“Quem sabe?”
A sirene da ambulância tomou conta da noite. Repentinamente, calou-se.
O motorista se lembrou de que o tempo não mais importava.