Há certas ocasiões em que somos compelidos a acreditar no destino arquitetando aventuras insólitas para nossas vidas, apesar de sermos nós mesmos os patrocinadores desse destino. Foi exatamente o que aconteceu quando aceitei, sem pestanejar, de bate-pronto, participar de um prestigiado programa de jornalismo investigativo numa TV aberta, como repórter.

Eu explico: no meio daquela confusão do festival Lollapalooza, recebi um chamado telefônico da produção do dito programa me fazendo um convite formal para que eu integrasse a equipe. Confesso a vocês estar um tanto cansado de fazer televisão, iniciando as minhas novas composições, fazendo riffs na guitarra, temas na viola de dez cordas, entabulando levadas na bateria, enfim, estava em pleno processo de concepção do que será meu próximo álbum, portanto estaria fora de cogitação aceitar qualquer coisa que me desviasse desse objetivo.

Todavia, sob o impacto da explanação infame do simpático empresário responsável pela pauta da efeméride musical já citada, me veio à cabeça que, aceitando o convite do programa, eu, em algum momento, poderia sugerir uma pauta investigativa sobre como a cena do rock funciona aqui no Brasil, como os grandes festivais tratam os artistas nacionais e internacionais, como a subserviência patológica do “astro” de rock brasileiro o leva a aceitar qualquer proposta, como o empresário nacional se utiliza disso e o grande abismo existente nas relações entre artistas locais e de outras partes do globo, em especial quando se tratava de um festival de características alternativas, como o Lollapalooza.

Com essa ideia ingênua e delirante em mente, no decorrer de uma semana já fazia parte da equipe do programa.

Isso foi em meados de novembro, mas eu só começaria a trabalhar mesmo dali a três meses, numa megaempreitada cujos jovens produtores do programa estavam customizando, justo para minha retumbante estreia: uma viagem de uma semana a um garimpo recém-legalizado, no coração da floresta amazônica, com direito a jornada de três dias de barco, mais meio dia de caminhonete, muito calor, tempestades tropicais, mosquitos e o escambau. Fiquei animadíssimo!

Embarcaríamos para Manaus em meados de fevereiro, e até lá tive tempo de adquirir meu equipamento de selva, tomar as devidas vacinas e dar tratos à minha imaginação do que estaria por vir naquela aventura, pois, de uma forma ou de outra, iria fazer uma viagem não como músico, mas em condições completamente diversas das que estou acostumado.

INÍCIO DA JORNADA

Estou em Manaus, num hotel cinco estrelas, absorvendo os últimos momentos de conforto que a civilização poderia me proporcionar. Saboreio a temperatura amena do ar-condicionado, cercado por uma dúzia de travesseiros, assisto a um documentário no History Channel depois de um belo jantar em um restaurante de comidas típicas do norte do Brasil, que eu e o Diego, o cameraman, tivemos o prazer de desfrutar.

No dia seguinte, parto com uma equipe de mais três pessoas (câmera: Diego, diretor: Rondon, e produtor local: Denilson) para a tão imaginada jornada ao coração da Amazônia, rumo ao garimpo do Eldorado do Juma, localizado às margens do rio Juma, entre os municípios de Novo Aripuanã e Apuí, o primeiro garimpo legalizado no Brasil. Nosso trajeto seria feito por barco e essa viagem de Manaus até Novo Aripuanã duraria umas 32 horas (2.319km).

Iniciamos as filmagens na entrada do magnífico Teatro Municipal de Manaus, fazendo algumas indagações sobre o paradeiro do garimpo para populares, transeuntes e turistas sob um sol de rachar. O ar é pesado, úmido, sufocante, e lá estava eu, todo aparatado para aquela aventura equatorial, de bermudas, chapéu, repelente de mosquito, protetor solar, mochila, sapatos especiais e meu violão com o corpo de fibra de carbono, instrumento feito com um material virtualmente indestrutível e imune a qualquer temperatura.

 

Logo de cara, recebo o roteiro e constato não se tratar simplesmente de um programa de jornalismo investigativo: era uma espécie de reality show também!

Começo a lê-lo e verifico ser algo além de uma simples reportagem: deveria atuar! E o roteiro sugeria a aventura de um músico falido (eu), lançado no meio da mata em desesperada busca por ouro. O detalhe é que essa “piada” já havia sido sugerida pela produção em São Paulo e eu já não tinha achado muita graça naquele script. Houve uma reunião e, depois de algum tempo e um certo esforço, confessei aos jovens executivos do programa não me sentir muito à vontade com aquele tipo de humor, que aceitara entrar no programa para fazer reportagens sérias, sempre participando da feitura das pautas, e não gostaria de bancar o metido a engraçadinho, principalmente quando o personagem em questão era eu mesmo.

Todavia, lá estava o roteiro intacto, como se não houvesse acontecido nada, e comecei a desconfiar que o fato de ter aceitado o convite para fazer aquele programa naquelas condições não tinha sido exatamente um bom negócio.

Não preciso comentar sobre minha total perplexidade quando, ainda aturdido, iniciei a minha vã tentativa de convencer o Rondon a reformular imediatamente aquele texto, pois não era aquilo o acordado etc. e tal.

O grande problema, segundo Rondon, era o tal programa ser um franchising e haver regras rígidas a seguir, além de os jovens executivos serem bastante rígidos quanto à fidelidade da pauta e, por conseguinte, ele lamentava muito, mas seria forçado a realizar o roteiro exatamente como estava no papel.

Eu ainda iria ter brigas homéricas com o Rondon, muito embora, desde o primeiro instante que o conheci, tivesse sentido imensa simpatia por ele (e ele, certamente, por mim). No transcurso de toda a viagem, estaríamos condenados a atritos por motivos dos mais diversos, com impropérios dos mais furibundos de ambos os lados. Ele, resoluto em me fazer cumprir o roteiro, e eu, tentando de tudo e por tudo escapar daquela armadilha.

Estava em ampla desvantagem, pois eram três contra um no meio do nada. Apesar de tudo isso, ou talvez por tudo isso, nos tornaríamos grandes amigos, e acabou prevalecendo a camaradagem entre nós quatro.

 

Logo após fazer a primeira cabeça do programa, o Denilson sugere almoçarmos num boteco tradicional de Manaus, o Galo Carijó, para logo em seguida prosseguirmos o trabalho. (Cabeça é o termo designado para a introdução de cada parte da matéria, e essas cabeças seriam feitas e refeitas inúmeras vezes, até a exaustão, quando acabou virando uma piada interna, uma vinheta entre nós, tipo “se não se comportar direitinho a gente vai fazer uma cabeça, hein?”)

Pensei que ainda poderia desfrutar de mais alguns momentos de uma temperatura menos abrasiva enquanto estivéssemos almoçando, mas não era aquele o caso: apesar de haver uma série de restaurantes refrigerados, o Rondon achou de bom alvitre abandonarmos os velhos hábitos e nos aclimatarmos de vez à nossa nova realidade.

Perambulamos por dezenas de ruas de Manaus fazendo algumas cenas fakes em que eu perguntava onde poderia encontrar ouro, tudo, é claro, filmado com todo aquele aparato, de mochila nas costas, violão pendurado, como se estivesse em plena selva. Me sentia um palhaço, suando em bicas e exausto com toda aquela tralha pesada e desnecessária no meio do calor sufocante. Tudo era feito no sentido de me provocar a maior fadiga possível, no intento de extrair “maior dramaticidade” à história.

Nossa última e mais fundamental providência na capital manauara foi a compra da minha rede numa casa especializada, onde fui tratado com toda a atenção pelo simpático proprietário, que acabou me oferecendo a melhor rede de sua loja, rede salvadora, companheira de toda aquela viagem (e até os dias de hoje). Em seguida, nosso imediato embarque no cais de Manaus.

E lá vou eu, debaixo de uma chuva de proporções amazônicas, de mochila nas costas, chapéu, violão e um saco enorme com a rede dentro, parecendo mais um Indiana Jones retirante, com um sem-número de curiosos a observar aquela improvável criatura, fazendo inúmeras “cabeças” e alguns “fakes”, simulando perguntas de forma um tanto afetada a qualquer transeunte que passasse naquela via-crúcis encharcada, até chegarmos ao cais.

A PARTIDA DE MANAUS

A barcaça Almirante Alfredo Zanys estava ancorada na borda do cais, com uma visível escada de acesso, mas a equipe achou mais interessante pegar uma voadeira, dar uma volta em torno da barcaça e embarcar de maneira mais... retumbante.

Depois de uma escalada desajeitada pelas grades da lateral da popa, no meio daquele toró dos infernos, embarco com toda aquela tralha (fora o equipamento de filmagem da equipe) e sou notificado de um fato que não me deixou nem um pouco empolgado: somente eu iria habitar a terceira classe, ou seja, dormiria ao relento, na rede. O restante da equipe viajaria de camarote na primeira classe, com direito a cama e ar-condicionado (muito embora eu comprovasse posteriormente não serem as suas instalações lá muito superiores às minhas).

O calor e a umidade são intensos, o barco, todo pintado de branco, tem uns trinta metros de comprimento, com três andares: o porão onde ia a carga (muitos aparelhos eletrônicos, como televisores, antenas parabólicas, vídeos, computadores, e víveres) era também local de descanso de tripulantes. No segundo andar, onde eu me alojaria, ia a rapaziada. Havia mais de uma centena de pessoas empoleiradas em suas redes naquele convés, só se conseguia andar com alguma desenvoltura nos corredores, e olhe lá.

Fiquei perturbado com a visão do amontoamento de redes, o burburinho, as malas e pertences pessoais espalhados pelo chão, bichos, galinhas, cachorros e até um gatinho recém-nascido, de uma argentina hiponga que viajava para Porto Velho com o propósito de experimentar o Santo Daime. No terceiro andar ficava o deque enorme, que nos permitia uma vista esplêndida de 360 graus, com uma seção de cabines na proa, onde ficava a sala de comando, a lanchonete, cadeiras, mesinhas de ferro e uma imensa caixa de som plantada na frente do balcão que não parava de tocar um tecnobrega ensurdecedor.

 

Estávamos no final da tarde, a chuva tinha dado uma trégua e o cenário era deslumbrante, bíblico! O céu iluminado pelos últimos raios de sol varando as nuvens carregadas, o rio Negro a se perder de vista, as embarcações ao redor e nós no deque, chupando um picolé cor-de-rosa sabor não-sei-o-quê. Após mais algumas discussões, outras tantas “cabeças” cobrindo as boas-vindas e as explicações técnicas do capitão, o registro de meu primeiro banho no banheiro comunitário, mínimo, fétido e cheio de baratas (acabei tomando dois, pois o primeiro não tinha sido filmado), e o providencial encontro com Isvar, um ex-garimpeiro e aventureiro que seria meu bom companheiro até chegarmos em Novo Aripuanã.

Isvar, um caboclo safo, muito prestativo, cheio de histórias, me ajudou a montar a rede, me ensinando como atar o nó numa coluna de madeira do convés. Coloquei minhas tralhas do lado da rede, firmando o meu apertado território, quando percebi de cara que meu chapéu havia sumido. Pensei: bom sinal não é... Indiana Jones não perde chapéu...

Como era de se esperar, me aboletei num dos piores lugares do navio, pois, infelizmente, eu fora o último passageiro a chegar e acabei sendo contemplado com um espaço em cima do motor. Além do calor e do barulho insuportáveis, a trepidação me dava a nítida sensação de estar dentro de um liquidificador. Ainda por cima, estava no meio do corredor, onde todas as pessoas, ao passar, roçavam e tropeçavam na minha rede, me causando uma profunda irritação, isso sem falar do inesperado frio à noite, do vento da chuva e da água do rio na maré alta, que entrariam pelas frestas das grades do convés durante as madrugadas.

 

Quando a rapaziada da equipe se recolhe em seus camarotes, dá um desamparo e um alívio ao me sentir só naquela imensidão. De repente, me flagro estendido no chão de madeira da proa da embarcação, olhando o céu escuro e denso, sem estrelas, a ouvir aquele tecnobrega estridente, quando percebo um alvoroço de vozes vindas da lanchonete, com gritos e frases do tipo: “Parem com essa música dos infernos, em nome de Jesus! Isso é coisa de Satanás! Parem essa música do demônio!” É um grupo de uma dúzia de evangélicos cercando o sujeito da lanchonete, com suas Bíblias em riste, obrigando-o a parar de imediato aquela manifestação profana.

Nunca imaginei que em algum dia da minha vida conseguiria ficar tão feliz com qualquer ato de repressão religiosa e desfrutar de um alívio redentor nos meus ouvidos, permitindo à minha alma ignorar o significado sombrio daquela manifestação intransigente dos crentes.

Todavia, aquele silêncio imposto, infelizmente, seria momentâneo. Em poucos instantes, como uma espécie de castigo dos céus, retornou o barulho ensurdecedor, só que a partir de então, e até o fechamento da lanchonete (que abria às oito da manhã e fechava às 22), ouviríamos música tecnobrega, mas... evangélica!... acompanhada pela cantoria fervorosa dos fiéis.

Como deveriam ser umas oito da noite, teria pela frente umas duas horas de som rebolativo/religioso na caixa, no volume 11, com direito a um karaokê ensandecido dos crentes, numa manifestação de sua fé cheia de suingue, furiosa, impositiva e barulhenta.

Permaneço no deque até não haver mais ninguém por perto, quando a temperatura começa a baixar bruscamente e, pela primeira vez desde que acordei no já longínquo hotel cinco estrelas, tenho um momento de paz, solidão e silêncio.

Até retornarmos a Manaus, não haveria mais contato com a civilização: sem celular, sem internet, a equipe aboletada em seus camarotes e eu no meio daquela imensidão.

 

Fico naquele estado de torpor filosófico até o momento em que começa a chover forte, a fazer muito frio e, sendo assim, decido enfrentar o meu destino lá embaixo, em cima do trepidante e ruidoso motor, meu novo cafofo.

Quando estou arrumando meus pertences embaixo da rede, surge, em meio àquela iluminação precária, o simpático rosto de uma moça pendurado na rede vizinha que, num radiante sorriso, me dá boas-vindas: “Bem-vindo, Lobão! Não se assuste, não, que aqui todo mundo se ajuda, viu? Muito prazer, meu nome é Ivana e eu estou indo pra Porto Velho. Vai pra lá também?”

A sua voz e sua solicitude renovaram minhas forças e impediram que eu caísse em depressão. “Olha, se quiser carregar o iPad ou o celular, tem uma tomada logo aí, em cima da sua rede, viu?” Em seguida, começou a contar sua história: estava internada no hospital do câncer de Barretos, São Paulo, e, por falta de dinheiro, teve que voltar para Santarém, onde morava sua família.

Para renovar seu direito de internação através do SUS, Ivana pegou aquele barco em Santarém (já estava viajando havia mais de três dias até chegar a Manaus) para ir até Porto Velho (mais cinco dias), onde conseguiria o passe do SUS para então poder fazer o mesmo trajeto de volta a Santarém, pegar um avião para São Paulo, um ônibus para Barretos e retornar ao hospital, e aí, sim, continuar o tratamento. Tinha uma perna amputada bem acima do joelho em virtude de um câncer e, segundo ela, apesar de sua alegria, não lhe restava muito tempo. Era comovente perceber o seu carinho pelo pessoal do hospital, pelos médicos, enfermeiras. Me pediu para que a visitasse (em tempo) em Barretos e, na medida do possível, que realizasse um programa especial sobre a bela obra do hospital.

Ivana viajava com uma irmã e um menino com sua rede colada à minha e transformou-se num porto seguro no meio daquela confusão, precariedade e barulho.

Toda vez que a chamava, a qualquer hora do dia ou da noite, Ivana vinha em meu auxílio. Conversávamos, cada um com a cabeça de fora da rede, como se elas estivessem soltas no ar, como o gato de Alice no País das Maravilhas... Sempre aos berros, em virtude do barulho implacável do motor. Ela me desconcertava tanto com seu bom humor desafiando a severidade de sua doença, fazendo troça de seu estado de saúde, me deixando bastante envergonhado pelas razões frívolas das minhas aflições e dos meus mesquinhos infortúnios.

 

No meio da madrugada, aparece a equipe para filmar uma “cabeça” noturna para o programa, eternizando a grandeza da minha fadiga, do meu desconforto, tudo de maneira tão bem-produzida e tão repetida que era inevitável me sentir um tremendo canastrão. Além daquelas intervenções, o Diego sempre me dava uma minicâmera para me filmar durante as noites.

Pela manhã, lá pela hora do café, a fila para o rango cobria toda a extensão do convés, e acordei levando um monte de cutucadas de pernas, joelhos e canelas. Como sou um poço de timidez, simulei procrastinar minha soneca reforçando nervosamente as bordas da rede (estava a centímetros do chão) com os braços em cruz, acreditando me refugiar naquele invólucro, como uma lesma na concha pronta para ser esmagada por uma botina.

Havia uma outra fila para o fétido banheiro, das mesmas proporções que a fila do café, cada um com sua toalha, escova e pasta de dente na mão, e percebi que não adiantaria fugir daquela realidade: eu teria que me levantar e enfrentar a situação.

Após os registros da minha já enturmadíssima pessoa nas duas respectivas filas, subimos para o deque, a fim de pegar uma brisa benfazeja, um ar fresco e uma temperatura agradável enquanto se podia, pois, a partir das nove horas, o calor voltaria inclemente e o deque ficaria inabitável.

Como estávamos praticamente sozinhos, decidi levar um som com meu violão, me sentando no banco lateral do deque e, sem muitas delongas, comecei a tocar um teminha hidrofolk em homenagem àquela paisagem monumental das águas do rio Madeira desfilando diante dos nossos olhos, quando, para nossa surpresa, eis que ouço uma voz ao meu lado, a uns dois metros de distância, de um rapaz sentado no mesmo banco, numa atitude de ostensiva repreensão à minha humilde e despretensiosa performance, em estado de transe a entoar fervorosos cânticos de louvor a Jesus, num volume bem superior ao meu, como se enxotasse Satanás!

Sim! Era um rapaz de uns 19, 20 anos, evangélico e, pelo visto, ofendidíssimo com o som que eu estava produzindo, a bradar com a convicção inviolável dos eleitos, a plenos pulmões, hinos religiosos com o firme intuito de parar a minha execução, coisas do tipo “Jesus vencerá em sua glória e esplendor, xô, Satanás!”. Tudo de maneira tão sutil que não pude evitar me sentir um Exu de beira de rio sendo exorcizado por um fanático intolerante. Acabei botando a viola no saco...

Filmamos uma “cabeça” registrando a insólita intervenção, aquela cena inacreditável, glauberiana e, se não fosse algo verdadeiramente assustador em sua essência, seria um incidente hilariante.

 

Começava a perceber um clima de escancarada patrulha religiosa por todo lugar que passávamos (em Manaus, um grupo de evangélicos na praça do teatro me deu uma encarada feia e começou a rezar alto, fazendo o sinal da cruz), e o barco não seria exceção, sendo a minha vez de levar uma carteirada daquele ser enviado sei lá de quem...

Em seguida, fiquei matutando o porquê daquele frenesi intenso em relação à minha pessoa e, num estalo, matei a charada! Me lembrei que eu era uma das figuras mais exibidas (em termos televisivos, é claro) nos horários religiosos de uma televisão evangélica de espectro nacional como a encarnação do demônio! Não deixava de me sentir um tanto importante com tanta precaução a meu respeito.

Na verdade, eu e a Rita Lee, sempre que havia um assunto relacionado a delinquência, roquenrou, drogas e mau comportamento de qualquer natureza, lá estávamos na telinha evangélica marcando presença como exemplos a não serem seguidos.

Fiquei alguns instantes meditabundo lá na popa, ao lado de uma enorme bandeira do Brasil fincada a tremular, olhando para o horizonte varonil daquelas matas, e concluí meio assustado: “Rapaz, a Mensagem é a Mídia, Rita Lee é o Diabo e eu sou o Terror dessas criaturas!”

 

Antes do almoço, Isvar, com sua extensa experiência na selva, me contou os perigos a caminho daquela aventura que só estava em seu início, me alertando sobre a malária, os jacarés-açus, as piranhas, as onças-pintadas, o corrupião, os naufrágios no rio Madeira, a drástica diminuição da fofoca no garimpo do Juma (fofoca é a gíria dos garimpeiros para designar um fluxo grande de ouro no garimpo). “Olha, pelo que eu sei, você não vai mais encontrar ouro por lá, não. A fofoca acabou já faz tempo, mais fácil você dar de cara com uns jacarés-açus na margem do rio ou uma onça-pintada te espreitando na mata... E toma cuidado com piranha (as do rio), que tem muita, e ainda por cima periga de você voltar com malária, rapaz!”

Ele estava adorando ver meu espanto.

Já havíamos passado pelo rio Negro, descido pelo Amazonas para o leste e dobrado o cotovelo fluvial na cidade de Itacoatiara, voltando para oeste, pelo rio Madeira. O Diego e o Denilson pediram ao capitão permissão para filmar a barca dentro de uma voadeira e passaram boa parte da tarde rodeando o Alfredo Zanys. Eu e Rondon assistimos a tudo do deque, na lanchonete, tomando um guaraná. Estava só na base da barra de cereal e não conseguia de forma alguma comer o rango do almoço. Por isso mesmo, me sentia um fefeca, um fresco, mimado.

Por sinal, tentamos fazer uma “cabeça” na sala do almoço comigo, sentado com os outros comensais, tipo Jesus na última ceia (estava aboletado bem no centro de uma larga mesa). Quando chega o macarrão, câmera rodando, eu, de microfone de lapela, começo a falar o texto meio engrolado e, ao me servir, meu estômago dá uma revirada, tenho vontade de vomitar. Vexame. Abortada a “cabeça”, saio do recinto com cara de tacho.

 

Passamos por algumas cidades ribeirinhas, gente nas vilas saindo para pescar, fiéis em bando indo rezar a caminho das igrejas, ao sol equatorial... Uma paisagem luxuriante. Naquela região dá para se ver as duas margens do rio. Na água barrenta, centenas de troncos enormes flutuam ameaçadoramente correnteza abaixo, indo ao encontro do barco que sobe rio acima... Se um daqueles tarugos pegasse a proa, poderia facilmente furá-la, provocando um enorme rombo, e acontecer um sério acidente. E o Isvar a desfilar histórias de naufrágio.

No horizonte, muitas nuvens escuras despejando uma cortina de chuva grossa fundindo-se com a fumaça que brotava do coração da floresta... Fogo e água. Muito calor ao entardecer. O sol mergulha no rio, a chuva começa a riscar o céu a perseguir o barco, nos pegando em cheio.

Não havia muita coisa para fazer, o tempo se arrastava, só nos restavam as “cabeças”, alguns takes e papos ocasionais.

 

Quando ficava sozinho, entrava facilmente naquele estado de marasmo psicodélico, promovido pelo excesso de calor e pelo tédio, me lembrando de aventuras pretéritas nos inúmeros rincões desse Brasil...

Me veio à cabeça um acústico em Barra do Garças, cidade dos discos voadores, onde fiz um show dentro de uma reserva indígena, responsável por contatos com ETs locais e pela credibilidade de todos os avistamentos na região, misturando pajelança com ficção científica. Lembrei da nossa intrépida e improvisada saída da reserva, num fusquinha azul, o piloto com a mão quebrada manuseando o câmbio, acelerando enlouquecido a pequena viatura, até a hora em que nos aparece, no final de uma curva, uma boiada sagarânica, obrigando-o a pisar bruscamente no freio, parando, providencialmente, em cima de dezenas de zebus imóveis, com aqueles olhares contemplativos, nos deixando cercados por um monte de vacas que botavam seus carões curiosos dentro da janela, no meio daquela imensidão de savana empoeirada. Isso quando já tínhamos cruzado o sul de Mato Grosso, em pleno planalto goiano, na tentativa desesperada de pegar o último voo para casa naquele dia.

Ao chegar ao aeroporto, sabendo que o avião já estava com os motores ligados, um desespero tomou conta de mim, invadi a pista numa correria destrambelhada e me aboletei esbaforido na frente da aeronave, como fez aquele chinês na frente de um tanque, na praça da Paz Celestial, implorando para que o comandante me deixasse entrar de qualquer maneira. O comandante, comovido com meu desespero e minha determinação, abriu a porta, ordenou que eu subisse imediatamente, me deu um reservado esporro indicando um assento e prosseguiu a decolagem...

Me veio também à lembrança as castanheiras gigantes despejando castanhas fatais, que faziam um barulhão surdo ao cair em terra, nas imediações de Santarém, quando eu e meu amigo do peito, o produtor e poeta Byra Dorneles, nos embrenhamos na floresta com um cara que fez questão de nos levar até uma ilha paradisíaca no meio do rio Tapajós, a apenas duas horas da cidade. Isso depois de termos visitado um terraço de uma lanchonete na beira do rio, para ver o boto-cor-de-rosa, sendo que a grande atração mesmo foi um urubu pousado, hierático como uma estátua, a meio metro de nossa mesa. Desconfiei que se tratava de um animal concursado pelo Ministério do Turismo, diante de sua civilidade e profissionalismo no trato com os turistas.

A ilha, fora a frondosa paisagem e o ruído das castanhas despencando de árvores de mais de quarenta metros no meio da mata, me fazia lembrar de vez em quando o piscinão de Ramos, com aquelas centenas de carros de portas traseiras escancaradas, tocando tecnobrega a todo o volume, churrasco de peixe, farofa e cerveja na prainha. Cada carro tocando uma coisa diferente do outro... A Amazônia e seus contrastes.

E por falar em piscinão... Passava uma torrente de imagens na minha cabeça, como um trailer de filme B de terror, os shows de playback na Baixada Fluminense, aquele Ford Galaxy preto, caindo aos pedaços, em plena contramão na Rio-Petrópolis, às duas da matina, sem farol, a 120 por hora, para chegarmos mais rapidamente ao nosso destino, depois de seis shows realizados numa noite, num clube cujo palco era o trampolim de uma piscina abandonada e vazia... E a pedrada que me nocauteou em Conselheiro Lafaiete, num show dentro de uma exposição agropecuária, antes mesmo que eu sequer pudesse dar um “boa tarde, rapaziada”. Fiquei uns seis meses com o topo da cabeça completamente dormente...

Entrava em devaneios relembrando momentos venturosos nos puteiros de beira de estrada que nossa banda tanto tinha carinho em animar, em plena e moribunda Transamazônica. Nossa turma, depois de dias perdida na selva, conseguindo uma carona na boleia de um caminhão que, providencialmente, nos recolocava na civilização.

Me recordo, melancólico, de Porto Velho, na época da eleição de 1989, “patrocinado” por simpáticos deputados do estado, cheirando epadu sabor querosene, de graça, num palacete cheio de belas garotas de programa, tudo por conta dos nossos parlamentares anfitriões (dinheiro público, na certa), numa festa que duraria uma semana inteira...

Inevitável cair em nostálgica divagação e reviver meu mergulho semissuicida nas águas turbulentas de fim de tarde do rio Amazonas, num píer em ruínas, em Macapá, testemunhando um bando de moleques alegres a mergulhar na margem, todos caindo de bicicleta na água, achando aquilo uma barbada, e eu, ingênuo, no afã de imitá-los, quase sendo tragado pela correnteza pororóquica do magnífico rio, pois resolvi mergulhar justo na virada da maré... Atualmente, construíram um belo restaurante na ponta do tal píer, onde já comi algumas vezes, grelhado, um delicioso “filhote”, que é um peixe amazônico.

E quando quase fui linchado em Garanhuns? Que emoção! É delicioso e surreal saborear um fondue na serra pernambucana, em plena cidade da pistolagem. Em Rio Branco, a Polícia Federal em nosso encalço, mais um show com energia elétrica cortada, nossa equipe sendo apedrejada com o ônibus batendo em retirada. Em Boa Vista, apagão toda noite... Apagão, não: racionamento de energia.

A pitoresca sensação de chegar de busum em Imperatriz e poder assistir a um duelo, como num bangue-bangue glauberiano... Ninguém acertou ninguém, com direito a happy end! Em seguida, meus pensamentos migravam em direção ao sul, em plena excursão na serra gaúcha, quando a filha de um delegado, nossa fã, fugiu de casa dentro do nosso ônibus e teve uma overdose de cocaína na porta do hotel. Nós a abandonamos delicadamente, depois de constatar que havia sobrevivido ao ataque, para uma fuga cinematográfica pelas curvas daquela serra maravilhosa...

Em Maceió, recordo a multidão iracunda porque a polícia desligou, como de costume, a energia elétrica em toda a cidade em minha homenagem, destruindo o equipamento e jogando areia no que restou. As blitzes em qualquer aeroporto que parávamos, em todas as estradas, todo o equipamento revirado, anos a fio a conviver com aquele estranho protocolo... Quantas recordações!

Aquilo, sim, era puro roquenrou tupiniquim. Aquilo, sim, era o Brasil que aprendi a amar, mesmo sendo o nosso Brasil um lugar onde a própria história é de mentirinha, suas conquistas são de mentirinha, seus heróis são de mentirinha, suas revoluções são de mentirinha... Onde só o autoengano coletivo é de verdade.

 

Cai a noite e o rio se estreita mais ainda. Depois do jantar, a maioria dos passageiros vai para o deque assistir a novela da Globo, tão onipresente quanto as Assembleias de Deus plantadas por todo o caminho. A imagem é cheia de fantasmas, fato que me ajuda a abstrair mais os meus pensamentos.

Quando termina a novela, o cara da lanchonete liga o tecnobrega a todo o vapor e dá para se ouvir o eco surdo da batida na floresta a nossa volta, encoberta pelo breu. Não tinha jeito: ou você encarava o barulho do motor ou a zoeira daquela caixa de som enorme.

Tudo se acalma depois da meia-noite e o Rondon descobre um passageiro pitoresco com uma história interessante do outro lado do convés. Alcançamos o lado oposto, no meio daquele monte de redes, num escuro absoluto, quando aparece o nosso entrevistado. Chama-se Mário, um senhor que ficou cego e ganha a vida vendendo canetas nas ruas de Manaus. Seu Mário também exibia, como todas as pessoas que encontrávamos, uma alegria improvável e exuberante quando começamos a nossa curiosa conversa. Ele nos explica que sua cegueira era de família, que 90% dos homens ficavam cegos com a idade, porém, exceto por aquele detalhe, era uma pessoa muito vigorosa etc. e tal, quando, de súbito, irrompe das trevas uma voz fantasmagórica e familiar no meio daquele murundu de redes, a bradar palavras de cura, com os braços estendidos e mãos espalmadas em direção ao simpático ceguinho: “Abra o olho e enxergue em nome de Jesus!”

Das profundezas de sua rede, iluminado pelo flash do Diego, eis que surge o semblante transfigurado daquele mesmo sujeito que, no dia anterior, cantava hinos religiosos e preventivos no deque em minha intenção, quando eu tentava levar um sonzinho no meu violão.

Nós não acreditamos na cena! O jovem beato nos encara com os olhos arregalados esperando por uma ação milagrosa que, infelizmente, teimava em não se concretizar. Seu Mário, sem perder o humor, se dirige ao aspirante a Antônio Conselheiro dizendo: “Dá licença um pouquinho?” E engata uma quinta... “Aí, o meu sobrinho foi tirar de madrugada o leite e a vaca ficou preta e ficou tudo na sombra... Ele não achou mais a vaca... he, he, he! Ficou ceguinho!” O minimessias de araque desapareceu como por encanto dentro da sua rede e não mais foi visto em todo o transcorrer da viagem.

 

Depois de uma pequena dose de eternidade, o Isvar me avisa que chegaremos em Novo Aripuanã pela madrugada, e eu não sei se fico alegre ou mais desamparado.

O barco atraca lá pelas três e meia da manhã. Arrumo minhas coisas, violão no bag, mochila nas costas. Isvar e eu trocamos nossos telefones, jurando nos falar assim que possível, as redes ao meu redor balançam ritmadamente, com a rapaziada toda dentro delas nos dando o último adeus. Fico de coração apertado ao abraçar a Ivana, que, com um sorriso invencível, me dá um beijo e um bilhetinho que carrego comigo até hoje: “Eu não tenho religião, eu tenho um Deus lindo que cuida de mim e me faz essa pessoa feliz. Ivana Nascimento.”

CHEGADA NA CIDADE-FANTASMA

Ao pisar em terra firme, sinto o bafo quente no ar, mesmo no meio da madrugada, e logo, a alguns metros do ancoradouro, me deparo com uma estupenda escadaria íngreme de uns cem degraus, que era o único acesso à cidade. Subimos com toda a nossa tralha enquanto o Rondon me explica que não há um local definido para ficar, e eu deveria sair pelas ruas vazias em busca de pousada.

Depois de perambular em desassossego, encontro um cidadão que me indica um hotelzinho a uns quinhentos metros dali. Chego à portaria do hotel, um homem atende e me leva até os meus aposentos. Abro a porta e dou de cara com um baratão andando tranquilo pelo chão. Um forte cheiro de urina dá ao cômodo um clima de banheiro de estádio de futebol, mas não fazia mal... o quarto tem um ar-condicionado! Corro e ligo o aparelho no máximo e me encosto nele sorvendo cada lufada de ar fresco. Estou em estado de graça com aquela temperatura magnífica, quando o pior acontece: um apagão (ou um blecaute, como assim sugere nossa governanta máxima). Breu total, ligo o iPad para poder enxergar alguma coisa e tento, do jeito que posso, me acomodar na cama. Rezo para ter bateria o suficiente até o amanhecer.

O cansaço me vence e acabo tirando um cochilo.

 

Acordo com a luz matinal vindo direto nos meus olhos.

Lá pelas sete da manhã, o pessoal aparece e vamos todos tomar um delicioso café da manhã no hotel. Não comia nada de mais substancioso desde o Galo Carijó, só guaraná e barra de cereais. Estamos nos preparando para partir quando o Rondon me adverte que não há nenhuma condução programada pela produção para seguirmos viagem, e dependeríamos da minha iniciativa para conseguir sair dali.

Depois de perambular naquele sol de nove da manhã em busca de transporte, me deparo com uma Rural Willys que num passado distante deveria ter sido pintada de verde, toda suja de lama, com uma caçamba carregada de um galão de plástico de mil litros de óleo diesel, além de outras tantas tralhas.

Era esse o nosso transporte! Sem cinto de segurança e ar-condicionado, suspensão claudicante, os bancos forrados por uma espécie de tapeçaria vermelha de lã, que só turbinava o calor...

Os rapazes da equipe viajariam atrás feito sardinhas (eles não podiam aparecer na reportagem) e eu na frente, de copiloto, ao lado do nosso intrépido piloto, o Ailton. O Denilson “escolheu” viajar na caçamba, em cima do enorme galão de diesel, e passou todo o percurso dependurado, enfrentando heroicamente o sol de rachar e a chuva torrencial.

Depois de muita briga e reclamações indignadas da minha parte, seguimos viagem lá pelas nove e meia da manhã com aquele sol de rachar o bico. Depois de uns 15 minutos, o Ailton para e dá carona para mais dois passageiros que magicamente conseguiram se empoleirar, a fazer companhia ao Denilson.

Começa a chover forte e a Rural adentra a mata fechada. O Ailton, um exímio piloto, faz o percurso como quem dirige num Rali Paris-Dakar. Os galhos entram chicoteando pela janela, buracos enormes fazem a caminhonete pular feito pipoca, sempre, naturalmente, numa velocidade estonteante.

 

Percebo que estamos nos infiltrando no meio do nada, a quilômetros de distância de qualquer vivalma, posto de gasolina, lanchonete, poste de luz, só mata fechada, mata queimada, pântanos, pontes de troncos de madeira prestes a desabar. Se não fosse o cenário dantesco do abandono e das terras devastadas pelo fogo, seria de uma beleza única.

De vez em quando passávamos por algum barracão abandonado e o Ailton, muito animado, me explicava que, quando havia algum problema com a condução, ele simplesmente armava sua rede numa árvore ou num daqueles barracões-fantasmas e ficava lá até aparecer alguém, coisa que poderia durar uns dois ou três dias.

Começo a sentir um espírito de liberdade naquilo tudo... Afinal de contas, já sabia dar nó em rede, e ter uma rede por perto dá uma sensação de que você carrega consigo seu lar ambulante para qualquer lugar.

Ailton disse ser bom caçador, havia trabalhado para uma firma como rastreador de mata, e realmente estava se sentindo em casa. Paramos de vez em quando para fazer um xixi e esticar as pernas em meio a leitos de riachos deslumbrantes.

 

Chegamos às margens do rio Juma ao crepúsculo, lá pelas sete da noite, quando ainda havia alguma luz no céu, e o cenário era de uma beleza sombria. Dava para se ver a outra margem, ainda que escurecesse rapidamente e faltasse um bom pedaço de rio para se atravessar. Uma grande balsa jazia atracada, sem ninguém à vista. Ailton nos alerta que, se não chegasse alguma pessoa do vilarejo dos garimpeiros, acabaríamos por passar a noite ali mesmo, pois ele teria de voltar imediatamente para Novo Aripuanã.

Os mosquitos apareceram como num passe de mágica, em meio a uma nuvem espessa, para nos dar boas-vindas, e tratamos de nos besuntar de repelente. Começamos a desembarcar o equipamento quando o Rondon pede que eu me desloque até a margem e grite por alguém, e lá fui eu, meio anestesiado de cansaço, gritar por algum barqueiro providencial. Passam-se uns vinte minutos e nada... Começo a ficar apreensivo, quando notamos um movimento nos igarapés na outra margem. Para nosso rejúbilo, era uma voadeira vindo em nossa direção.

Com as sombras da noite nos engolindo, fui obrigado a colocar duas vezes a minha bagagem na voadeira, simplesmente porque me precipitei e me esqueci de fazer a “cabeça”!

No meio da travessia me bate um pânico, um desespero, e tudo que eu mais ansiava naquele momento era sair daquele lugar. Continuávamos totalmente desconectados da civilização; a comunicação externa só se dava pelo rádio da cooperativa.

 

Finalmente, depois de três dias e meio de viagem, alcançamos a vila do garimpo de Eldorado do Juma no momento em que as minhas relações com o resto da equipe estavam mais comprometidas do que nunca. Tudo o que queria era tomar um banho, amarrar a minha rede em qualquer lugar e desabar, desaparecer, evaporar.

Ao chegarmos à vila, fomos apresentados à nossa anfitriã, a Rússia, um ser de resplandecente alegria, uma querida pessoa que nos acolheu com todo o carinho e iria nos hospedar no barraco da sede da Cooperjuma. “Trouxe chapéu, protetor solar, repelente de mosquito? O sol no garimpo castiga muito, hein? Já veio muito jornalista estrangeiro por aqui. O cara da BBC também veio garimpar... Ficou vermelho que nem um camarão. Cara muito bacana. Eles trouxeram um monte de caixas de uísque. Foi muito divertido”, explicava a Rússia com um sorriso maroto, nos deixando sentir que seríamos muito bem-tratados naquele lugar.

Me lembrei do meu chapéu e pressenti que poderia ter sérios problemas com a sua falta, mas, no meio daquele cansaço todo, aquilo era o de menos.

Atravessamos a vila, entre barracos esparsos, um bar, uma vendinha, uma... Assembleia de Deus! Sim, aquele era um garimpo atípico. Não havia mais puteiros, tiroteio, jogatina, bebedeira. Isso acabou quando foi legalizado, depois de quatro anos de intensa atividade extrativista (a fofoca), justamente quando entrava em franco declínio, em 1º de maio de 2011. Pelo que se deduz, há fortes indícios de que essa legalização tenha sido de cunho eleitoreiro.

Aqueles contrastes todos, a beleza do rio, a imensidão da floresta, pássaros, araras, convivendo com a devastação dos igarapés (dez mil hectares de terra destruída), o barulho das bombas de sucção, a lama, a miséria. Um lugar de improvável clima de harmonia e paz entre seus habitantes, quando geralmente um garimpo é lugar de violência e prostituição.

A corrida do ouro promoveu uma intensa migração para o local e uma degradação ambiental sem precedentes na Amazônia. “O garimpo atraiu muita gente que vivia nos bolsões de miséria que ainda existem na Amazônia, e fechá-lo seria precipitado”, conta a chefe do grupo interministerial formado pelo governo federal para ordenar o garimpo, Maria José Salum, do Ministério de Minas e Energia.

 

Chegamos à sede da Coooperjuma, um barraco de madeira pintada de amarelo, teto de zinco, três cômodos, uma geladeira com TV em cima, uma mesa, uma balança de pesar ouro, um cartaz da cooperativa pregado na parede e eu, sem pensar duas vezes, começo a amarrar a minha rede no meio da sala, preparando meu cafofo local.

Tudo que desejava era tomar meu banho, e para isso deveria ligar a bomba do poço, mas, para tanto, precisava de gasolina e, logo de cara, temos que sair pela vila à cata de combustível.

A vida ali era muito dura, e o simples fato de ligar uma lâmpada era uma aventura extraordinária. A Rússia me leva até o galpão da gasolina, a uns trezentos metros da sede, e lá enchi um galão de vinte litros que trazia comigo. Volto botando os bofes pra fora e sendo filmado, é claro.

Demoramos uma meia hora para colocar a bomba para funcionar, até que, finalmente, iria tomar meu tão esperado banho!

Mas como nada naquele lugar era tão fácil assim, ao ligar a torneira do chuveiro dou de cara com uma aranha cabeluda pendurada na parede do boxe, do tamanho de um siri, e comecei a pensar com meus botões: se tento dar uma chinelada na aranha, periga de ela me atacar; vou é entrar de mansinho no chuveiro e fingir que ela não está a cinco centímetros de meus testículos, ligar a água e tomar meu banho sem fazer muitos movimentos bruscos, só no sapatinho...

Depois do abençoado banho, demos um rolé pela vila, bem na hora da novela das oito, com todo mundo aboletado nos bancos do barzinho curtindo aquele momento máximo de lazer. Era a grande diversão da rapaziada, pois logo em seguida ao término da novela os geradores da vila são todos desligados.

Com toda a equipe assentada em seus respectivos cômodos, cada um na sua rede, me embrulho dentro da minha como se estivesse em um útero e tudo de repente fica negro. Um breu amazônico cobre os meus olhos e, com a chegada da madrugada, o frio invade os meus ossos. Começo a tremer, sem acreditar que pudesse haver semelhante queda de temperatura num lugar tão quente quanto aquele, não obstante já ter sentido aquele frio no barco, mas como é fácil esquecer do frio naquela região... Me enrolo em cada pedaço de roupa que levei, sem conseguir nenhum resultado satisfatório. Às vezes, ligava o iPhone só para iluminar o recinto e verificar se a aranha do chuveiro não tinha vindo me visitar, e, de vez em quando, fazia minhas “autocenas” de exaustão e frio com a minicâmera do Diego.

MÃOS À OBRA! AO GARIMPO

Levanto da rede lá pelas cinco da manhã sem ter dormido mais que duas horas, e ninguém está acordado. Vou passear pela vila, filmar a paisagem com o meu iPad, para ver se tem alguma coisa aberta, pois, como pode se imaginar, estou morto de fome. Chove torrencialmente e penso na possibilidade de adiarmos a minha garimpagem para o dia seguinte, o que me deixa um tanto atemorizado com a perspectiva de ter alongada a nossa estada.

Foi aí que minha vidinha veio a ter um grande consolo por meio da aquisição de dois queridos companheiros de viagem: o Hulk, um vira-latão malhado, e o Tony, um pato simpático e muito social que ficava rondando alegremente fazendo quén-quén pelos arredores do nosso barraco.

Os rapazes acordam lá pelas sete da matina e começam os preparativos para a filmagem da minha performance no garimpo, pois eu trabalharia como um garimpeiro comum em tempo integral, das sete da manhã às seis da tarde.

A chuva arrefece e nós paramos no bar da novela das oito para tomar um salvador café bem forte e comer um pão de queijo. Finalmente, após uma caminhada de uns trezentos metros, começamos a ouvir o barulho das bombas de sucção. De repente, nos deparamos com aquela imensa devastação, diante de uma clareira às margens do rio Juma, do tamanho de uns três campos de futebol, meio que submersa por um palmo de água enlameada, restolho da extração, num caos de lama, terra avermelhada, barrancos, piscinões de água prateada e buracos enormes. Parecia um outro planeta, um lugar atingido por uma saraivada de asteroides. Me senti em Marte.

Em meio àquela paisagem de ficção científica, eis que surge o Celso, chefe dos garimpeiros, retornando do buraco da zona de extração. Homem de fala pausada, atencioso, devia estar com a minha idade, uns cinquenta e tantos anos, pele curtida pelo sol, conta que aquele local já teve os seus dias de glória e atualmente vivia seu triste ocaso, justo no momento em que fora legalizado. Há quatro anos, chegara a obter quatro a cinco quilos de ouro por dia, quando hoje em dia é raro extrair cinquenta gramas — e com essa matemática, não dá nem para pagar o diesel da máquina.

Solícito, ele me encaminha para o barraco das ferramentas e, logo em seguida, nos dirigimos aos barrancos íngremes, de cinco a seis metros de profundidade, pelas trilhas repletas de lama escorregadia.

Descemos até o local da garimpagem, muito barulho, jatos d’água jorrando das mangueiras, picaretas, peneiras, e, no meio dessa confusão atordoante, o Celso me conta que a cooperativa estava esperando um financiamento para adquirir o maquinário apropriado para continuar a extração no subsolo, uma vez que a superfície já estava esgotada e com aquelas ferramentas artesanais não haveria muito mais o que fazer por ali.

Segundo ele, o processo de extração tem quatro etapas: exploração do barranco, sucção da água, repescagem do material e resumo do material com substâncias químicas.

 

Me livro dos sapatos, dos óculos e mergulho entusiasmadamente no trabalho pesado encarando uma picareta. Àquela altura do campeonato, o desconforto desapareceu junto com o cansaço e qualquer possível inadequação. Estava feliz do lado dos meus novos companheiros e orgulhoso por ter a oportunidade de passar por aquela incrível experiência. O calor é intenso, um mormaço traiçoeiro impera, cozinhando a pele, e, sem meu saudoso chapéu, em 15 minutos estava todo rosa. Passo uns quarenta minutos naquela função, quando o Celso me convoca para pilotar a mangueira. É um trabalho bastante perigoso: um garimpeiro havia se ferido gravemente, perdendo todos os dentes, com um coice da pressão da água. Esse jato d’água ajuda a desbastar o barranco e escoar a lama com cascalho, pedras e outros detritos para um piscinão de coleta. Outro colega morreu soterrado por um barranco, havendo muitos garimpeiros com diversos tipos de mutilação.

De repente, um silêncio cobre o sítio numa paz momentânea. O motor da bomba parou por falta de combustível, e, como não poderia deixar de ser, vou lá ajudar a puxar a corda para religar a máquina, enquanto o Diego vai filmando tudo e o Rondon vai me passando o texto, mesmo sem que tivéssemos um só momento de concordância em relação ao que eu iria falar.

A essa altura, estou enturmadíssimo com a rapaziada e um dos meus novos colegas me mostra a boca cheia de ouro. “Aqui ninguém mete a mão”, explica o Roberto Carlos, com seu áureo sorriso.

Dá para imaginar que não demoraria muito para que eu cometesse a minha primeira gafe: estou submerso de lama na piscina de coleta a entrevistar entusiasmado um garimpeiro no meio daquele barulho todo quando ele me aponta uma vara de uns três metros de comprimento. Sem ouvir direito o que ele estava dizendo, deduzi se tratar de um artefato para desbastar o barranco. Sem transição, empunho a vara, começando desajeitadamente a cutucar a terra. O cara cai na gargalhada, larga o que estava fazendo e vem em meu auxílio, explicando a sua verdadeira função: a tal vara era apenas para se escorar, como se fosse um poleirinho, para facilitar ergonomicamente o acesso a pedras mais robustas que se assentam no fundo do piscinão...

Trabalhamos até uma e meia da tarde, quando percebo que estou morto de fome e todo queimado: do rosa fui ao roxo.

Paramos com tudo e nos encaminhamos para um casebre de madeira que fazia o papel de cantina, onde nos aguardava uma senhora muito simpática com um almoço celestial: frango assado com arroz, feijão e uma saladinha. Não comia uma refeição desde o café da manhã em Novo Aripuanã, mas refeição de verdade, mesmo, não comia desde o Galo Carijó, em Manaus.

Enquanto almoçamos, o Celso me explica com detalhes como é dividido o dinheiro no garimpo: 30% para o garimpeiro, 10% para a cooperativa e 60% para o dono do garimpo mais os custos de produção.

Agora, uma coisa que me deixou curioso foi o tal dono do garimpo. Quem seria o dono do garimpo, uma vez que eram terras do governo? Mas achei melhor não entrar em detalhes, mesmo porque a pauta deveria ser “favorável”.

Bato dois pratos e entro em estado de rejúbilo proteico!

 

Depois da boia, voltamos para o serviço, dessa feita em cima de uma prancha de madeira de uns três metros de altura, com uma inclinação de uns vinte graus, uns dez metros de comprimento, num formato de calha, toda forrada de telas de ferro pregadas na madeira. No topo, um barril de metal com uma mangueira jorrando água incessantemente no seu interior. O trabalho é desconfortável e perigoso, pois a prancha está cheia de pregos debaixo de toda aquela água lamacenta.

Segundo mais informações do Celso, o grama do ouro varia de 85 a 86 reais, em Porto Velho já são 90, e quanto mais longe, mais caro o grama do ouro. São necessárias 10 a 12 horas por dia para extrair pelo menos cem gramas, para não ter prejuízo, ou seja, àquela altura do campeonato, com a fofoca fenecida, era uma batalha perdida todo aquele esforço. De súbito, o barril estremece, aderna traiçoeiramente e quase despenca em cima do meu querido pé, que decerto seria amputado se o barril tivesse caído.

Estava na cara que o dia de trabalho seria mais um dia em vão quando começa a “bateção” das telas em um outro barril, no pé da prancha, escorrendo a água enlameada da calha para dentro, e eu tentando desajeitadamente dar a minha contribuição, a bater a tela e fazer a peneiração com uma cumbuca.

Por fim, temos o resultado do dia: uma quantidade ínfima de ouro.

Logo em seguida, nos dirigimos a outro piscinão de coloração prateada suspeita e, assolado pela visão apocalíptica do cenário, indago educadamente se não estaria contaminado de mercúrio: “Não. A gente não trabalha com azougue, não”, responde sorrindo um dos garimpeiros que estava com metade do corpo submersa naquela água. De imediato, me convida para entrar. Eu, por minha vez, tímido, insiro meus pés o mais raso possível. Ele, para me provar que estava em um meio saudável, retira uma castanha do Pará do bolso submerso de sua bermuda, dá uma mordida e me oferece. Meio que em pânico, mastigo a castanha com um sorriso amarelo, filosofando: “Puxa vida... que trabalhão pra essa merrequinha, né?” E ele me responde: “Pois é... acabou a fofoca por aqui. Fofoca boa tá no Jacaré, aqui do lado. Lá eles tiram uns cinco quilos num só dia, e por isso mesmo tá cheio de mulher por lá. A mulherada toda se mandou daqui. Só tem mulher onde tem fofoca.”

Subimos com o precioso e escasso material até o mesmo local do rango e lá nos pedem para não filmarmos o processo final; suspeito de que utilizavam o azougue (mercúrio) para a sublimação. Em seguida, acendem um maçarico em direção ao metal na cumbuca e, como que por um passe de mágica, aquela substância prateada se transforma em ouro. No caso, 26,3 gramas de ouro, como foi consignado na pesagem final. A divisão foi a seguinte: 2,6 gramas, os 10% da cooperativa, 16,2 gramas, os 60%, que dão 1.152 reais, 1.000 reais para o aluguel do trator, 400 reais para o combustível... Moral da história: depois de dez horas de trabalho, 248 reais de prejuízo!

FESTA NA FLORESTA

Saio um tanto perplexo com toda aquela terrível realidade, todo enlameado, com queimaduras de segundo grau nos ombros, bolhas nos dedos das mãos, os pés furados, e como a bomba-d’água do nosso barraco não está ligada, me disponho a tomar um banho de rio.

Caminho até a margem (o barracão devia estar a vinte metros do rio) e encaro as águas escuras do Juma acompanhado do Hulk e do Tony, impressionado com o papo do Isvair, imaginando piranhas, jacarés-açus, ariranhas e pirarucus vindos das profundezas. Não havia como entrar gradativamente, banhando os pés, e depois filosofar na companhia de meus dois amigos; tratava-se de uma ribanceira cheia de pedregulhos e lama. Percebendo que precisava radicalizar, me encho de coragem e mergulho aterrorizado, verificando ser o rio muito mais fundo do que imaginava, mesmo colado à margem. Aquilo mais parecia um poço! Entro em pânico e tento desesperadamente sair. A margem é alta, íngreme e cheia de lama muito escorregadia. Para chegar a salvo em terra firme, tenho que fazer uma série de circunvoluções esdrúxulas, me agarrando ao barranco. Uma cena ridícula. Resultado: saio mais enlameado do que entrei, ligeiramente humilhado, tendo como único respaldo emocional a indiferença tranquila e cúmplice dos meus dois amigos.

Ao cair da noite, nos recompensamos com um delicioso jantar patrocinado pela Rússia no restaurante local, pilotado por dona Maria, uma senhora que sempre viveu de prestação de serviço ao garimpo. Uma cozinheira soberba e requintada, que, se pudesse, chamaria para abrir um restaurante chiquérrimo nos Jardins. Comemos peixes recém-pescados do rio, uns assados, outros como ensopado, arroz, feijão, uma salada com as verduras colhidas diretamente de sua horta e uma pimenta local saborosíssima, muito quente (chumbinho), com que ela acabou me presenteando. Um jantar inesquecível.

Logo em seguida, vamos todos assistir à famigerada novela das oito para depois fazer um sarau antológico de despedida, regado a cerveja, na vendinha que ficava em frente ao barzinho da TV.

Arrebanhei meu violão no intuito de tocar umas canções para a rapaziada, todo mundo fazendo lá e lá, lá, lá... e lá, lá, lá (a Rússia revirava os olhinhos de felicidade), quando surge uma dupla sertaneja local de garimpeiros, o Neneca e o Tibúrcio, que se juntam a nós. O Neneca, muito arisco e tímido, reluta em aceitar o violão para nos dar uma palinha, desconfiadíssimo da minha pessoa, quando percebe a braçadeira e fica maravilhado: “Olha, vou te dizer uma coisa... se eu tivesse uma braçadeira igual a essa, nunca mais precisava de fazer pestana, sô!” É claro que dei a braçadeira de presente para o Neneca, ainda que a montagem do programa tenha feito o público acreditar que eu estava dando o violão. Animadíssimo, pegou o violão e começou a dedilhá-lo executando seu repertório. O Tibúrcio, mais arisco e desconfiado ainda, cantava com muita malandragem, com expressões marotas, e, quando estava mais à vontade na nossa roda, nos confessou ter perdido uma boa parte da mão numa bomba de sucção. Os dois começaram entoando uma canção muito engraçada e maliciosa, com o intuito de dar uma sacaneada no Nascimento, o dono da venda, com uma letra que dizia algo mais ou menos assim: “Gavião só dorme no pau e vive com o pinto no bico...” A noite estava deliciosa e todos nós caímos na gargalhada.

Em um determinado momento, o Tibúrcio, já completamente descontraído, me convida para dar um pulo até o seu barraco, ao lado da venda, enquanto Neneca continua a mandar ver no violão. Me mostra um estoque clandestino de cachaça, abrindo prontamente uma garrafa, e me oferece uma dose: “Sabe que aqui está proibido bebedeira de cachaça? Lá fora, só cerveja, senão pode dar tiroteio.” Num pacto de cumplicidade e camaradagem, tomamos uns goles generosos e voltamos para a festa, que bem cedo chegava ao fim. Uma festa cercada pela floresta, no coração de uma vila de garimpeiros, no coração da Amazônia, no coração do Brasil.

Tínhamos plena consciência de que estávamos todos ali, naquele momento raro, compartilhando uma felicidade genuína, pura e verdadeira. Na manhã seguinte, todos voltariam para aquela vida de sonhos e reveses, na esperança de, quem sabe um dia, achar um barranco cheio de ouro.

Ao deitar na rede, no meio daquela escuridão, me bateu uma alegria búdica. Me sentia em casa... Aquele local, de uma hora para outra, se tornara aconchegante, como se toda a floresta me abraçasse. Percebo a presença do Hulk deitado ao pé da rede, o Tony refestelado no jardim, os rapazes da equipe roncando numa incrível sinfonia de apneia, cansaço e recompensa.

O ÚLTIMO DIA NA VILA

De manhã, sou acordado com a Rússia batendo na porta acompanhada de uma figura impoluta: uma linda arara vermelha e azul, moradora original da floresta que fez amizade com a rapaziada da vila e em especial com nossa anfitriã. Tratava-se de uma ave incrível... se refestelando nos braços dela, voando raso entre os telhados dos barracos... A Rússia perguntava o nome dela e ela respondia: “Eu sou a Laura! Eu sou a Laura!” Voou até o barzinho da novela das oito, onde já havia uma xícara de café e um pão, especialmente servidos para ela. A Laura pegava o pão no bico, embebia na xícara e, depois, comia. Em seguida, muito enturmada e faceira, ia saudar todos os habitantes do local gritando seu nome, aos quatro cantos, pousando na janela de cada um a berrar: “Eu sou a Laura! Eu sou a Laura!”

Rússia, no afã de fazer uma aproximação maior comigo, disse para eu dar, sem medo, o braço para a Laurinha se aprochegar, quando, sorrateiramente, toda meiga, se encosta em mim e sem a menor cerimônia começa a me furar o antebraço com toda a calma do mundo! E eu ia aumentando o diapasão das minhas súplicas: “Pô, Laurinha. Laura, pô! Porra, Laaaaura!” Fez um buraco que dava para colocar um piercing. Foi encantador.

 

Na hora da nossa última refeição na vila, dona Maria fez questão de caprichar ao máximo nas suas habilidades culinárias e nos presenteou com um lauto banquete, uma enorme variedade de pratos na mesa num desfile de peixes variados, cozidos, aves, arroz, feijão, farofa e saladas.

Chegamos ao restaurante sabendo que teríamos um almoço e tanto de despedida, contudo, no meio daquela efeméride gastronômica, sofremos um baque, um choque! Todos nós, perplexos e sem saber como reagir, testemunhamos algo devastador: entre aqueles deliciosos acepipes, jazia elegante e dourado, envolto em tomates, folhas verdes e batatas, o meu querido Tony! Dona Maria assou o Tony!

 

Aguardava na tristeza daquela perda, envolto em profundo luto, ao lado do Hulk, a chegada de nossa viatura na vila, quando mais um acidente acontece: o Pedro, vulgo Bin Laden (recebera aquela alcunha em virtude de sua magreza de faquir, sua tez bronzeada e sua barba muçulmânica), o cara que tomava conta da bomba-d’água, teve uma séria crise de hérnia quando tentava colocar o motor de cordinha para funcionar, no intuito de nos proporcionar o último banho. Numa daquelas braçadas olímpicas, ele se entorta todo, e torto permanece, com terríveis dores. Nós iríamos ter de levá-lo conosco até o hospital da cidade de Apuí.

Enfim, chega a caminhonete com um bom atraso, nos despedimos de todos com muita emoção, e a Rússia, sempre com a Laura no ombro, nos deseja ver em breve, sendo que, da próxima vez, para registrar a volta triunfal da fofoca ao garimpo do Eldorado do Juma. Entramos na Mitsubishi preta e lá fomos nós pegar a balsa, quando o Hulk sai em disparada ao lado da caminhonete a latir, nos dando adeus.

 

Todavia, os setenta quilômetros que nos separavam de Apuí se transformariam numa epopeia de mais de seis horas para chegar à cidade. Tivemos um sério problema com a roda traseira e paramos oito vezes para conseguir, com muito gatilho e improvisação, chegar sãos e salvos ao nosso destino.

Após a internação do pobre Bin, rumamos felizes em direção ao hotel, porém, como não poderia deixar de ser, ao ultrapassarmos o perímetro urbano, percebemos que rolava aquele apagão familiar, tão onipresente e constante em nossas terras quanto as Assembleias de Deus e as novelas das oito.

Pernoitamos no hotel Silverado depois de um alegre passeio pela noite apuiense, quando celebramos o sucesso de nossa empreitada com uns espetinhos de frango e umas boas cervejas. Entretanto, contrariando nossas expectativas, as aventuras não haviam terminado ainda: na manhã seguinte, ao chegarmos ao aeroporto da cidade, uma surpresa. Não havia vivalma no lugar! Nenhum atendente, serviçal, garçom... Ninguém.

Esperamos nosso avião naquele sítio-fantasma, naquelas dependências totalmente desabitadas, por umas duas horas, imaginando como serão os próximos oitocentos aeroportos que a nossa governanta nos prometeu. Quando avistamos a aeronave chegando, nossa alegria se assemelhava à de náufragos num resgate. Me aboleto no lugar do copiloto e desfruto do passeio filmando aquelas paisagens incríveis, sobrevoando aquela região deslumbrante, exuberante, com aquela floresta, seus rios, barcos, as nuvens cinza das queimadas flutuando sobre o coração da Amazônia por mais duas horas até aterrissarmos em Manaus.

Me despeço dos meus companheiros de equipe, pois prosseguiriam no trabalho com outra reportagem. Com todos os atritos e arranca-rabos no transcurso da nossa aventura, nascia ali um sentimento de afeto e camaradagem por todos, e em especial pelo Rondon, que se tornou um amigo do peito. Dedico este capítulo a ele, a seu profissionalismo e a sua incansável paciência.

 

Depois de aproveitar aquele resto de dia em Manaus passeando por suas ruas, pela praça do teatro, fuçando livrarias, escolho um belo restaurante tradicional no afã de comer um excelente pirarucu com um Chablis geladíssimo. Ao cair da noite, já refestelado no meu quarto de hotel cinco estrelas, preparando minha bagagem para a viagem de retorno a São Paulo na manhã seguinte, me vem à cabeça toda essa experiência formidável, esse mergulho de corpo e alma num Brasil profundo, e o que fica no ar, além do amor, da miséria, da beleza, do afeto, do abuso e da devastação, é a percepção da Terra do Nunca como nossa sina: de um lado, a luta titânica de um povo que, numa alegria perturbadora, disputa palmo a palmo com a impossibilidade seu pedaço de existência, enquanto de outro prevalecem, intactos, incólumes, perenes e gloriosos, os pilares da nossa ruína.