O Lago do Espírito

A comissária de bordo me lançou um olhar estranho antes de seguir em frente. Esfreguei os olhos com as palmas das mãos, esperando que a conversa com Amon tivesse acontecido apenas na minha mente e que eu não tivesse falado enquanto dormia.

Ao me dirigir para a esteira de bagagens, não pude deixar de notar a mulher grisalha agitando de um lado para outro uma placa onde estava escrito à mão LILYPAD, o apelido pelo qual minha avó me chamava.

– Oi, vó.

Sorri enquanto ela baixava a placa e me abraçava. Era uma mulher robusta, de braços fortes e sólidos. Quando ela me apertou com força, senti a tensão nos ombros se dissolver como manteiga numa frigideira de ferro fundido.

– Senti sua falta, Lilypad. Faz muito tempo.

– Também senti a sua.

Ela segurou meus ombros, deu um passo para trás e me lançou um dos seus olhares perscrutadores.

– Humm. Você está magra demais. Bom, vamos cuidar disso. – Sorrindo, me envolveu com o braço e nos viramos para a esteira de bagagens. – Nem consigo expressar como você me deixou feliz quando pediu para passar este verão comigo.

– Fiquei contente que você tenha concordado.

– Claro que eu ia concordar. Você sabe como eu queria que você viesse fazer uma visita demorada.

Dei de ombros.

– É que nunca aparecia uma ocasião propícia.

Vovó fez um muxoxo.

– Você quer dizer que nunca aparecia uma ocasião propícia para os seus pais. Pensar que meu próprio filho é ocupado demais para se lembrar da coisa mais importante da vida.

– Você sabe que eles amam você, vovó.

– Se amar é o mesmo que estar ocupado demais para ligar para a própria mãe, sim. Tenho certeza de que eles me amam, do jeito deles.

Avistei minha mala e a tirei da esteira, com vovó me ajudando a colocá-la de pé.

– Está com fome? – perguntou ela enquanto caminhávamos até o carro.

– Morrendo! – admiti com um sorriso.

E estava mesmo. Surpreendentemente, meu apetite havia retornado. Eu não sabia se era porque estava com minha avó ou porque tinha tido a recente conversa com Amon, ou se apenas porque de repente me sentia mais eu mesma. Mas estava com fome suficiente para comer um boi inteiro, o que não era uma possibilidade muito remota na fazenda da minha avó.

Depois de pararmos numa lanchonete, voltamos à estrada e descobrimos que estávamos ambas doidas para escutar Elvis. Como seu carro velho não tinha rádio por satélite e a maioria das estradas por onde seguíamos ficava longe demais das estações normais, cantamos. Felizmente Elvis gravou tantas músicas que não precisamos repetir nenhuma. Olhei as letras no meu telefone e cantamos com entusiasmo durante todo o trajeto até a fazenda.

Havia algo de libertador em estar na estrada. Eu me sentia mais próxima do que eu era, como não me sentia havia meses, e sabia que era porque estava fazendo aquilo que Amon amava: rir, saborear uma farta refeição e estar com pessoas que gostam da gente.

Quando vovó parou junto à sede da fazenda, a tarde já ia avançada. Ela me apresentou ao seu novo cachorro, Winston, batizado em homenagem a Winston Churchill, que, ela jurava, era igualzinho a ele. Não vi a semelhança. Winston se levantou do local onde dormia na varanda e farejou minha mão balançando o rabo. Vovó foi olhar os outros animais enquanto eu arrastava a bagagem para dentro. Sabia que ela estaria cansada quando voltasse. Vovó era do tipo que dorme cedo e acorda cedo.

Mesmo assim, em vez de ir direto para o quarto, ela preparou um chá de camomila, adoçando como eu gostava, com leite e mel, e o serviu com biscoitinhos amanteigados. Depois foi para a sala, como se sentisse que eu precisava falar. Coloquei a bagagem no quarto de hóspedes, peguei uma velha colcha de retalhos e me aconcheguei numa poltrona reclinável puída, enquanto ela ocupava sua cadeira de balanço predileta.

Bebericando o chá e se balançando, vovó me examinou com seus olhos brilhantes na penumbra da sala.

– O que está perturbando você, Lilypad?

Um jorro de palavras cruzou minha língua mas derreteu como chocolate sobre o fogo.

– Eu... é difícil falar – respondi finalmente.

– São seus pais? A faculdade?

– Não.

– Ah... então é um rapaz. – Fiz uma careta e assenti uma vez. – Fale dele.

Será que eu podia? Se alguém pudesse me entender ou acreditar em mim, seria ela. Anúbis não dissera que eu não podia contar a ninguém. Provavelmente presumindo que ninguém aceitaria o que eu dissesse, de qualquer modo. E o fato de eu revelar minha história não mudaria nada.

– Ele tem queixo forte? – perguntou ela, interrompendo meus pensamentos.

– Tem... o quê? – retruquei.

– Queixo forte. É sempre possível dizer se um homem é bom pela linha do queixo.

Não pude evitar: dei uma gargalhada.

– Vovó, do que você está falando?

– Não: é sério. Um homem de queixo fraco é um homem de quem você deve se afastar.

Ela cortou o ar diante do corpo com a mão, como se derrubasse o sujeito com um golpe de caratê.

– Tem certeza de que não está falando de cavalos nem de vacas? – provoquei.

Vovó se inclinou para a frente.

– Seu avô, que Deus o tenha, tinha um queixo marcante. Era um homem forte. Um homem bom. Desde então nunca vi outro igual.

Cruzei os braços diante do peito e olhei para ela com um sorriso.

– Foi assim que você o escolheu? Com base no queixo?

– Bom, tinha isso e as janelas embaçadas.

– Janelas embaçadas?

– Toda vez que nos beijávamos, as janelas ficavam embaçadas.

Engasguei com o chá e pousei a xícara.

– Eu não precisava saber disso sobre o vovô.

– Você não respondeu à minha pergunta.

Meio sem graça, dei de ombros ligeiramente e admiti:

– Pode ter havido algumas janelas embaçadas, e ele tem, sim, um queixo bem marcante, pensando bem.

– Arrá! – Os olhos de vovó reluziram. – Agora estamos chegando a algum lugar.

Percebendo que eu não acrescentaria mais nenhuma informação, ela me instigou de novo, com gentileza:

– Ele partiu seu coração, Lilypad?

Esfreguei as mãos e, apesar de um grande esforço para me controlar, as lágrimas rolaram pelo meu rosto.

– Bom, meu coração está partido, mas não foi culpa dele.

– Como assim?

– Ele... ele morreu, vovó.

Ah. Ah, minha querida. Eu sinto muito! – Vovó se levantou e foi até o sofá, estendendo os braços para mim. Sem nem pensar, eu me levantei e me atirei em seus braços, deixando as lágrimas escorrerem pelo rosto numa torrente enquanto ela massageava minhas costas e murmurava: – Pode chorar, querida. Ponha tudo para fora. – Depois de um momento, acrescentou: – Seus pais não sabem?

Sacudi a cabeça.

– Eles não aprovariam.

Ela assentiu e me apertou com mais força. Mesmo sabendo que Amon ainda vivia, de algum modo, o reconhecimento de que ele estava fora do meu alcance pelo resto da minha vida mortal me oprimia demais o coração. O sofrimento era quente e apertado em meu peito. Ficar ali com vovó e deixar as emoções fluírem tão livremente ajudou. A tristeza foi me deixando devagar, me esvaziando até eu me sentir exaurida.

Ficamos sentadas em silêncio por vários minutos, a mão dela dando tapinhas de leve no meu ombro, até que finalmente levantei o rosto manchado de lágrimas.

– Como você fez, vovó?Como superou a perda do vovô?

Ela soltou um suspiro pesado enquanto suas mãos iam até o meu cabelo e o acariciavam com leveza.

– A gente não supera. De verdade, não supera. Sei que não é a resposta que a maioria dos seus amigos vai dar, mas é a verdade, pela minha experiência. Os outros não querem saber realmente disso, portanto se prepare. Ah, eles deixam a gente em paz durante um tempo, dão uma trégua, mas depois esperam que a gente se recupere e continue vivendo.

– Então você não superou?

– Acho que nunca vou superar. Seu avô era parte integral da minha vida. Não me entenda mal. Com o tempo o sofrimento muda. A gente se ocupa. Às vezes a mente até esquece a dor durante um tempinho. Mas, quando morre alguém que amamos, vamos sempre sentir uma dor por dentro, como uma farpa, e, quando pensamos naquela pessoa, a dor volta.

Meu lábio tremeu quando pensei que a farpa no meu coração mais parecia um tronco de árvore serrilhado.

– Ah, querida. Espero não ter piorado as coisas.

– Não sei se poderiam ficar piores.

– Sei que parece que não resta mais nada. Que a vida não vai continuar sem ele. Mas continua. Pelo menos até onde você permitir. Gosto de pensar que ele não se foi para sempre, que só está num lugar aonde eu não posso ir por enquanto. Pensei um bocado na morte desde o dia em que ele partiu deste mundo, e concluí que ela é como uma longa viagem de negócios. É uma separação que nenhum de nós quer, mas é uma parte normal da vida. E algum dia, não sei quando, essa viagem de negócios vai chegar ao fim e vamos ficar juntos de novo.

– Você acha mesmo que vai reencontrar o vovô?

– Eu não acho. Eu sei que vou.

– Nunca imaginei que você fosse tão romântica, vovó.

– Jamais subestime o poder do coração, Lilypad.

Soltei o ar num longo suspiro.

– E o que eu faço até que a gente possa se reunir de novo?

– Ocupe-se. Trabalhe. Ria. Aprenda. Ame sua família. Aproveite a vida do melhor modo que puder.

– Acho que ele concordaria com você, vovó.

Ela sorriu.

– Você vai ter de me contar mais sobre ele amanhã. Ele deve ter sido muito especial, para causar um impacto tão grande.

– Foi mesmo. – Funguei. – Acho que eu gostaria de dormir agora.

– Claro. Vou lhe dar outra colcha.

Enquanto ela remexia no armário e eu seguia para o quarto de hóspedes, virei-me e disse:

– Às vezes tenho pesadelos. Não quero que se preocupe se ouvir alguma coisa.

Vovó pôs nos meus braços a colcha grossa que ela mesma havia feito.

– Não se preocupe. Tenho sono profundo. Além disso, Mandona vai mugir pedindo para ser ordenhada antes de o sol nascer, de modo que nenhuma de nós vai dormir muito esta noite.

– Tudo bem. – Ela se virou para subir a escada até seu quarto. – Vovó? – chamei.

– Sim, querida?

– Estou feliz por estar aqui.

– Eu também, Lilypad. Eu também.

A barulhada de potes e panelas na cozinha me acordou antes da hora em que meu corpo despertaria naturalmente. Vesti um roupão gasto que estava no armário e fui para a cozinha. Ela já estava vestida e usava um par de botas de trabalho reforçadas.

– Prefere fazer o café da manhã ou ordenhar Mandona? – perguntou sem se virar.

– Cuido da Mandona – respondi bocejando.

– Certo. O balde está pendurado num gancho perto da porta. Dê um bom bocado de feno a ela. Vai distraí-la enquanto está sendo ordenhada.

– Ótimo.

Vesti rapidamente as roupas de trabalho que ela mantinha para mim. Se eu tentasse levá-las para casa, meus pais iriam queimá-las. Além disso, minha avó insistia que minhas roupas comuns eram “frufru” demais para trabalhar numa fazenda, por isso tinha comprado várias calças resistentes e camisas grossas, de mangas compridas, que ficavam guardadas na cômoda do quarto de hóspedes. Deveriam estar meio apertadas, já que fazia dois anos que eu tinha visitado vovó. As calças estavam mesmo curtas, mas eu tinha perdido peso nos últimos meses, de modo que as roupas ainda cabiam razoavelmente.

Reprimindo outro bocejo, fui para o celeiro e tateei no escuro até achar a corrente pendurada, para acender a luz.

– Oi, Mandona! – exclamei em resposta quando a vaca mugiu na minha direção. – Segure as pontas aí.

Depois de encher seu cocho com feno recém-cortado, de amarrá-la à baia e posicionar o balde e o banquinho, lavei as mãos e então me sentei perto da vaca. Encostei a bochecha em seu flanco macio e firmei o balde, esperando me lembrar da técnica. Após um mugido irritado e algumas tentativas erradas, descobri como era e entrei num ritmo confortável.

Meia hora depois meus dedos estavam meio rígidos, mas eu tinha quase 10 litros de leite e uma vaca feliz. Dei tapinhas no dorso de Mandona, alimentei os cavalos, recolhi os ovos e fui para a casa com os prêmios. Depois que coloquei o balde e o cesto de ovos na bancada, vovó agradeceu com um grunhido e apontou sua espátula para a mesa.

– Espero que esteja com fome. O cardápio é aquele chique, do qual você gosta.

– Rabanada com crème brûlée? – perguntei, a boca se curvando num sorriso esperançoso.

– Claro. Além disso tem ovos com bacon e queijo, portanto coma.

Um bom café da manhã depois do trabalho manual era algo a ser louvado. Consegui devorar três fatias de rabanada, uma porção gigantesca de ovos, um copo cheio de leite fresco e espumante e quatro fatias de bacon antes de gemer e me afastar da mesa.

Lavamos os pratos juntas e, quando perguntei qual era a programação, vovó me entregou uma das suas famosas listas. Eu também gostava de fazer listas, e, enquanto examinava a sua, me perguntei se teria adquirido o hábito com ela ou se havia algo em nossos genes que nos dava um sentimento de satisfação ao ticar os itens do dia.

A lista de vovó incluía limpar a horta, retirando as ervas daninhas; colher os tomates e as abobrinhas; dar banho no cachorro; exercitar os cavalos; fazer um bolo para o aniversário de seu irmão, Melvin; e visitar o túmulo do vovô.

Quando as tarefas da fazenda acabaram, fizemos o bolo de Melvin. Vovó não só bateu a massa como também o recheou com sua geleia de morango caseira. Depois achou que seria boa ideia matar dois coelhos com uma só cajadada e irmos de cavalo entregar o bolo.

Quando perguntei por que estávamos fazendo um bolo para Melvin, e não para Melvin e Marvin, ela disse que, quando os gêmeos eram mais novos, insistiam em que os pais comemorassem os aniversários separados, para evitar que eles tivessem a ideia louca de dar um único presente para os dois irmãos. O bolo predileto de Marvin, de limão, tão azedo que ninguém suportava comer a não ser ele próprio, tinha sido entregue na semana anterior.

Inexplicavelmente, vovó determinou que eu, a amazona menos experiente, deveria carregar o bolo durante a viagem. Apesar de a embalagem ser praticamente antibombas, um antigo recipiente de plástico da década de 1950, eu ainda me preocupava achando que, na melhor das hipóteses, iria estragar o glacê ou, na pior, largá-lo numa pilha de bosta de vaca.

De algum modo, consegui manter as mãos nas rédeas e no bolo e chegamos sem qualquer incidente à casa de Melvin, na extremidade oposta da propriedade. Depois da inevitável visita de uma hora à família de Melvin, das perguntas educadas sobre seus filhos e netos, da orgulhosa exibição por parte de vovó de sua neta recém-formada, da troca de várias mudas de plantas e da devolução de algumas saladeiras, finalmente nos vimos a caminho de casa.

Quando perguntei a vovó se ela queria ir logo ao túmulo do vovô, que ficava razoavelmente perto da casa, ela sacudiu a cabeça.

– Ele gosta quando eu me arrumo.

Fomos para casa, levamos os cavalos de volta às baias e, como havia sido um dia quente, úmido, do tipo perfeito para dar um banho no cachorro, também fui para o chuveiro quando voltei.

Depois de dizer olá ao vovô e substituir as flores mortas pelas novas que cortamos naquele dia, deixei-a a sós e fui para a sombra de uma árvore ali perto, para esperar. De vez em quando captava o som baixinho de sua voz vindo com a brisa, falando com o marido, e me perguntava o que ela estaria dizendo. Estaria contando o que havia acontecido em sua vida desde a última visita? Dizendo quanto sentia sua falta? Ou só que o amava?

Repassei as coisas que eu dissera a Amon e lamentei que ele não tivesse me ouvido dizer que o amava. Deveria ter ouvido. Essa deveria ter sido a primeira coisa dita por mim. Mas eu só perguntei se aquilo estava acontecendo mesmo. Que desperdício! Joguei fora uma oportunidade de falar de verdade com ele; em vez disso, apenas o enchi de perguntas. O que estava acontecendo e por que estava acontecendo não eram tão importantes quanto explicar como eu me sentia. Da próxima vez, se houvesse uma próxima vez, eu diria primeiro que o amava.

Quando me deitei na cama, soube que vovó estava certa. Levar a vida do melhor modo possível e trabalhar duro poderia ajudar a entorpecer a dor de perder uma pessoa amada. Tirei da bolsa o escaravelho do coração que Amon me deixara e o esfreguei com a ponta dos dedos. A pedra verde brilhou com a luz refletida do meu abajur. Estava quente e havia uma pulsação leve, como a batida fraca de um coração, emanando do interior da pedra. Comprimi os lábios contra ela, desejando que fosse a pele dourada de Amon, depois a coloquei sobre o coração, a posição em que Anúbis a teria deixado ao preparar a múmia de Amon.

Puxei as cobertas até o queixo, com a parte inferior presa sob o corpo, cruzei os dois braços sobre o peito, a palma da mão cobrindo a joia preciosa, e me perguntei se era essa a sensação de estar mumificada. Apesar do pensamento mórbido, não demorou muito para que eu caísse no sono, os dedos envolvendo o escaravelho. No entanto, em vez de encontrar Amon nos sonhos, como esperava, fui acordada bruscamente por uma luz forte e uma voz profunda, reverberante:

– É hora de levantar, Lilliana Young.