O encantamento
de Ísis

Isis não parecia se incomodar com meu olhar confuso nem com minha absoluta incapacidade de pensar em alguma coisa ao menos remotamente adequada para dizer. Eu estava embasbacada. Só conseguia ficar ali parada, soltando gemidos. Havia algo especial nela, e não era simplesmente o fato de ser imortal. Ela possuía um astral muito diferente do de Anúbis, que era sombrio e misterioso e, com o ego inflado, podia parecer uma espécie de deus do rock temperamental. Ele era muito mais... humano.

Ísis era uma deusa da cabeça aos pés. O poder emanava dela. Estava em seus olhos, em sua postura, em cada movimento ágil de membros e asas. Talvez porque ela fosse mais do que uma deusa. Era uma feiticeira, também, capaz de exercer o tipo de magia que intimidava alguém tão poderoso quanto Anúbis. Enquanto ela se aproximava, senti um misto terrível, quase embriagante, de reverência e medo.

O vestido diáfano sussurrava em torno de seu corpo, as asas se deslocando antes de se dobrar. Quando ela falou, a voz intensa ecoou na sala como se o vento fosse um amante ciumento que desejasse capturar suas palavras para si próprio e proclamar a todos que ela pertencia somente a ele. Uma mulher como Ísis seria capaz de intimidar até mesmo minha mãe, e isso não era pouca coisa.

– Olá – disse a deusa. – Você deve ser Lilliana.

– Lily – corrigi, e imediatamente mordi o lábio inferior, percebendo que tinha acabado de dar uma péssima primeira impressão. Eu podia ser melhor que isso; tinha passado a vida toda sendo treinada para saber falar com gente importante mesmo quando estivesse nervosa.

Mas Ísis não pareceu se importar e sorriu.

Lily, então. Anúbis falou muito de você. – Eu não sabia se isso era bom ou ruim, e minha mente começou a fazer uma lista das possíveis histórias que ele teria contado. – Venha – chamou. – Deixe-me olhar para você.

Ísis estendeu as mãos e eu permiti que ela segurasse as minhas. De perto, seus olhos eram mais interessantes ainda. De longe eu tinha notado como brilhavam e como as cores mudavam dentro deles. Mas agora que estava bem perto pude ver os tons de rosa, violeta e azul em redemoinho como uma nuvem de tempestade carregada com uma ameaça sinistra, potencialmente mortal, escondida sob a superfície, à espera de ser liberada. Eu odiaria ser objeto de sua fúria. Aqueles olhos únicos estavam concentrados no meu rosto com tanta intensidade que eu me perguntei o que ela estaria procurando e o que seria capaz de ver.

– Humm – disse ela. – É como Anúbis pensou. Amon usou mesmo meu encantamento para ligar vocês dois. Devo admitir que tinha dúvidas. Cá entre nós, às vezes Anúbis tem uma tendência ao exagero. Mas agora vejo que ele estava certo e que de fato não há outra saída além de permitir que você tente passar pelo Rito de Wasret.

– E é isso que vai me transformar numa esfinge?

– Se você tiver sucesso, sim.

– A senhora é quem vai fazer o encantamento?

– Você conseguiu passar pelo teste das charadas, então obteve o direito a ele.

– E o que o encantamento... vai fazer comigo, exatamente?

A deusa ajeitou um cacho de cabelos sobre o meu ombro, de um jeito muito maternal.

– Vai transformar você completamente, imagino. Isto é, se você sobreviver à transformação.

Ísis deu tapinhas no meu rosto, virou-se e retornou ao trono dourado. Deve ter sentido que achei sua resposta muito pouco satisfatória, porque balançou a mão e acrescentou:

– Você ainda será você... em grande parte. E, se quiser, pode residir entre os mortais sem que qualquer um deles perceba, se é isso que a preocupa. Mas não se iluda: este é o único modo de salvar quem você ama.

Franzi a testa, repassando as palavras tente, em grande parte e sobreviver. Não foi minha vaidade que instigou a pergunta. A ideia de me transformar numa fera, num monstro, em alguma coisa não humana, era apavorante. Mas, no minuto em que ela mencionou que esse era o único modo de salvar Amon, eu soube que iria em frente, fosse qual fosse o resultado.

Pensar em Amon fez com que minha reverência e minha cautela natural ao conversar com alguém que poderia se livrar de mim como de um inseto irritante fossem substituídas pela incerteza e pela frustração. Todo esse processo estava demorando demais. Agora que eu tinha decidido que o cumpriria, cada momento que passava tornava mais provável que a Devoradora encontrasse Amon e consumisse seu coração.

Fui até o trono.

– Se precisava nos entregar o encantamento de qualquer modo, por que a senhora e Anúbis fizeram com que viéssemos aqui? Desperdiçamos horas vindo de carro até Luxor, e mais horas ainda tentando decifrar suas charadas, quando a senhora poderia simplesmente ter entregado a porcaria do encantamento, para começo de conversa. – Cruzei os braços. – Parece que vocês todos não se incomodam muito com o possível fim do mundo, e certamente a senhora não parece muito preocupada com Amon nem com o sofrimento dele.

– Lily! – O Dr. Hassan deu um passo à frente e pousou a mão no meu ombro, o rosto mostrando o pânico que sentia. – Não se esqueça de com quem está falando.

A deusa, novamente acomodada no trono, tinha ouvido minhas acusações sem qualquer reação visível. Quando terminei, ela ergueu uma sobrancelha e disse:

– Claro que a possibilidade do fim da humanidade nos preocupa. Nós cuidamos do mundo durante milênios e vamos continuar fazendo isso. É nosso dever. E nosso direito. Apesar de termos habilidades que parecem onipotentes para uma mortal como você, existem restrições para cada um de nós. Temos um procedimento para, como vocês dizem... – ela agitou a mão no ar, como se procurasse a palavra exata – ... estabelecer uma separação de poderes. Até mesmo nós precisamos seguir as regras. – Esta última frase ela disse franzindo a testa.

– Espantoso! – murmurou Hassan ao meu lado.

– Sim – prosseguiu Ísis. – Antes que essas regras fossem estabelecidas, os deuses tinham liberdade para fazer o que quisessem. Às vezes, devido à má avaliação, essa falta de estrutura provocava grandes sofrimentos e perdas humanas. É necessário que nós monitoremos uns aos outros. Afinal, como poderíamos guiar a humanidade se nossa própria casa não estivesse em ordem?

– Mas, se vocês tinham leis, por que Seth pôde matar seu marido? Seria porque na época não existiam diretrizes dizendo que ele não deveria fazer isso? – questionei.

– A maior parte das nossas leis tem a ver com a interferência no mundo mortal. As ações de Seth representaram a primeira vez que um deus atacou outro de sua espécie. Seth foi... repreendido depois de matar meu marido, porém o conselho dos deuses decidiu que, como eu tinha desafiado a ordem natural recriando Osíris, bastava aplicar um leve castigo a Seth. Mas depois que ele tentou assassinar meu filho, Hórus, além de sua tentativa de escravizar a humanidade durante a vida mortal dos Filhos do Egito, todos os deuses concordaram com seu banimento e fizeram um pacto de seguir um conjunto de diretrizes que chamamos de Leis Celestiais.

Com uma energia efervescente se derramando, o Dr. Hassan perguntou:

– Será que existe um registro dessa lista de Leis Celestiais?

– Não que você possa acessar. As leis estão escritas nas próprias estrelas e, como elas sempre brilham sobre nós, costumam denunciar quando um dos deuses tenta fazer qualquer coisa considerada inadequada. Somente alguns de nós conseguem ouvir os sussurros delas. Nenhum mortal jamais desenvolveu esse talento.

O rosto do Dr. Hassan murchou. Minutos antes ele parecia uma criança indo para uma sorveteria, com os olhos cintilando de possibilidades, só para descobrir que a loja havia fechado. Mesmo assim, o brilho de determinação retornou e eu tive certeza de que, se havia um modo de um mortal discernir a linguagem das estrelas e aprender as leis do Cosmo, ele iria descobri-lo.

Quanto a mim, não tinha certeza do que pensar de estrelas que espiavam deuses e mortais. Não fazia sentido. Mas, afinal de contas, deuses, monstros, e praticamente todo o resto que eu tinha visto desde que conhecera Amon também não faziam sentido.

Curiosa, perguntei:

– Bom. A senhora desafiou a ordem. Como?

Isis me dirigiu um sorriso maroto.

– Eu distorci as regras. – Ela fez uma pausa, como se esperasse minha apreciação por sua esperteza. – Convoquei Anúbis para ajudar a refazer meu marido, um ato que era proibido pelo conselho, mas, como fundi a forma dele com a do crocodilo que o devorou, ele não era inteiramente Osíris. Era totalmente novo. Osíris ainda era meu, e continuava a ser ele mesmo, no entanto nem eles podiam negar a prova de que sua forma havia mudado. E assim permitiram.

Mais do que preparada para terminar a conversa, perguntei:

– A senhora vai me dizer como fazer isso? Quero dizer, como entrar no além?

Ísis estreitou os olhos e balançou as asas antes de acomodá-las de novo às costas.

– Ainda que eu esteja inclinada a ajudá-la, Amon-Rá provavelmente lhe causaria mais problemas se soubesse que estou do seu lado. É melhor nos concentrarmos em uma coisa de cada vez, não concorda?

– Eu... acho que sim.

– Você deve entender que, para conseguir se aproximar de Amon-Rá, precisará primeiro passar pelo teste.

– Teste? Achei que tínhamos resolvido todas as charadas.

– As charadas não são o teste. São apenas a primeira de várias provas. Agora você ganhou a oportunidade de tentar o ritual. Sobreviva a isso e aí você poderá se preocupar com Amon-Rá.

– Ótimo. Então exatamente o que preciso fazer?

– Paciência. Para entender o Rito de Wasret você vai precisar compreender por que eu o criei.

Levantei as sobrancelhas.

– A senhora o criou?

– Sim. É um encantamento do qual tenho muito orgulho, apesar do resultado original. Foi um que os deuses não previram. Daí todas as regras e enigmas que hoje estão associados a ele.

– Certo. Então diga.

Quando ela mudou ligeiramente de posição no trono, tive a impressão de que a deusa estava pouco à vontade. Ela alisou a saia e deu um suspiro antes de continuar:

– Eu o criei para transformar uma mortal, uma de minhas criadas, de quem eu não queria me separar quando ela sofreu um ferimento fatal. Conspirei com minha irmã Sekhmet – ela indicou as estátuas das gatas guardiãs enfileiradas na sala – para lhe dar a imortalidade. Assim que o encantamento foi feito, os outros descobriram que tínhamos usado magia. Para impedir tentativas ineptas de imitar isso e controlar quaisquer ideias futuras que eu tivesse de repetir o ato, a Sala dos Enigmas foi criada. Seu propósito era garantir o merecimento de quem procurasse o mesmo dom. Nenhum outro humano conseguiu desvendar a sala até vocês. A maioria dos que a encontraram ficou distraída demais com o tesouro e acabou descobrindo que pôr as mãos nele levava à morte prematura.

– A senhora subestima a curiosidade dos mortais – disse o Dr. Hassan, passando o chapéu de uma mão para outra, ansioso. – Existem aqueles de nós que buscam mais do que tesouros.

– Sim. Existem uns poucos, mas não muitos com o seu talento, vizir. Quando os devotados como você tentaram acessar o rito secreto e fracassaram, também foram descartados.

– Então os outros deuses ficaram insatisfeitos com a transformação da sua serviçal? – perguntei.

Uma leve tristeza cobriu suas lindas feições.

– Eles não têm a mente tão aberta quanto a minha. Acreditam que a condição em que nascemos é a única à qual deveríamos aspirar. Se não fosse por mim, os Filhos do Egito não existiriam. Fui eu que convenci os deuses a agir e recompensar os três dignos mortais com nosso poder. Se não tivéssemos feito isso, seríamos obrigados a intervir e lidar com Seth sozinhos. Um ato assim acabaria drenando nossas energias, deixando-nos incapazes de cumprir nossos deveres.

Ísis sorriu, como se eu fosse entender completamente seu ponto de vista. A indiferença que senti nela com relação às coisas que Amon e seus irmãos precisaram suportar me deixou irritada.

– Então foi a senhora que deu um jeito para que Asten, Amon e Ahmose tivessem de morrer de novo e de novo? Eles não podem se apaixonar, ser maridos, pais ou ter uma vida normal por sua causa? É injusto dar a eles a tarefa de arrumar a bagunça só porque isso é inconveniente para vocês! A senhora ao menos perguntou se era isso que eles queriam?

A deusa inclinou a cabeça. O canto de sua boca havia se levantado ou porque ela estava pensando no que eu tinha dito, ou porque achava que eu era uma espécie de inseto curioso que precisava ser esmagado. Fosse o que fosse, fiquei ofendida. Eu sentia uma raiva justificada percorrer minhas veias.

– Os Filhos do Egito tiveram uma escolha. Eles podiam partir para o além e esperar seus parentes ou poderiam retornar por períodos de tempo supostamente breves para servir aos deuses. Eles escolheram a segunda opção.

– Não creio que eles tenham entendido de verdade o que vocês estavam pedindo.

– E você, Lily? Entende o que está sendo pedido? Está disposta a mudar a própria fibra do seu ser para salvar quem você ama? – Eu me remexi um pouco sob seu olhar, mas mantive o queixo erguido num esforço de desafiá-la. – Eu consigo ver seu coração, minha jovem, assim como pude ver o deles. Eles eram dignos da dádiva. Não importa se você a chama de bênção ou maldição. Eles estavam dispostos e nós encontramos uma utilidade para eles.

– Assim como a senhora usou sua criada?

A raiva cruzou as feições de Ísis, mas seus sinais desapareceram rapidamente.

– Você não sabe do que está falando. Baniti estava morrendo. Era uma coisa dolorosa. Quando eu a transformei em esfinge, queria que isso fosse um presente para uma criada amada.

– O que... o que aconteceu com ela?

– Baniti não conseguiu aceitar a nova vida. Não teve coragem para isso. Veja bem, uma esfinge tem um coração duplo por natureza. A mente dela se fragmentou e Baniti não conseguiu conciliar a mulher que ela havia sido com a criatura que precisava abraçar. As histórias de esfinges devorando homens são verdadeiras, se bem que não porque eles não pudessem decifrar um enigma. Caçadores a perseguiam, a encurralavam em cavernas.

A deusa fez uma pausa antes de continuar:

– Ela era quase selvagem, feroz; qualquer humanidade que lhe restasse foi eclipsada pelo animal. Sua única opção era contra-atacar. E, quando sentiu cheiro de sangue, a outra metade tomou conta. Ela sentia-se horrorizada com o que era e acabou procurando o próprio fim, embora a morte, a não ser em circunstâncias muito raras, não fosse mais uma opção. Por fim, incapaz de cuidar dela sozinha, procurei o conselho, confessei o que tinha feito e esperei a decisão. Eles concederam o que ela procurava. A própria morte.

– Então por que manter o rito, afinal? Por que não erradicar todas as evidências de que ele tinha sido realizado?

– Porque as estrelas disseram que iríamos precisar dele – respondeu com simplicidade.

– Como assim? – perguntou o Dr. Hassan. – As estrelas sabiam sobre Lily?

– Sobre Lily, não, mas não ousamos questionar o que as estrelas viram. Isso pode significar que Lily é o motivo. Pode significar outra coisa ou outra pessoa. Pode não significar nada. As coisas que as estrelas sussurram nem sempre são claras. Mas, qualquer que seja o caso, os deuses optaram por não apagar todas as evidências do encantamento, para o caso de as estrelas estarem certas.

– Sei. Bem. – Chutei uma pedrinha com minha sandália dourada. – Para mim só importa salvar Amon. Não acho bom que todos esses rituaizinhos de vocês demorem tanto.

– Ah, Lily. Como seus olhos mortais veem pouco! Se abríssemos mão dos rituais, iríamos mandá-la despreparada para a perdição garantida. Cada passo que você dá é necessário. Cada obstáculo a torna mais forte. O aço temperado não se quebra com facilidade. Você precisa acreditar que estamos lhe dando a melhor chance. Lembre-se de que mesmo no mundo dos mortos existem certas regras e limitações.

– Como a que diz que a senhora não tem permissão de intervir.

– Correto. Tente não se preocupar demais; se a Devoradora o tivesse nas garras, nós saberíamos. E, além do mais, o processo de drená-lo não é uma coisa rápida. Ela iria agir com toda a calma. Por causa disso, quero que você entenda a importância do que está fazendo. Este encantamento não é fácil. Você será testada e, mesmo que tenha sucesso, precisará de algum tempo para se habituar ao seu novo eu. Você deve ter a mente firme. Concentrar o olhar no objetivo. E, acima de tudo, deve abrir o coração. Caso contrário, pode se perder, como minha criada Baniti.

– E a senhora tem certeza de que esse é o único modo de salvá-lo?

– É o único que eu conheço.

Engolindo em seco, confirmei com a cabeça.

– Então vejamos se podemos fazer alguma coisa para ajudar Amon.

As asas da deusa se agitaram e ela sorriu.

– Vizir, está pronto para receber o encantamento?

– Estou – respondeu ele. – Mas tenho uma pergunta antes de começarmos.

– Qual é?

– Por que Wasret? O rito não deveria ter o nome de sua criada, Baniti?

– O que você sabe sobre Wasret? – perguntou Ísis.

– Sei que era uma deusa do Egito cuja maior parte dos adoradores se concentrava em Tebas. Sei que foi encarregada de proteger seu filho, Hórus, e que, segundo boatos, foi a primeira esposa de Amon-Rá.

– Humm. É interessante ver como as verdades se misturam até ficarem praticamente irreconhecíveis. A referência ao meu filho tinha a ver, na verdade, com Baniti. Ela foi a ama de leite dele. O motivo de Tebas fazer parte da história é porque essa foi a cidade onde ela nasceu e é a cidade onde eu honrei sua morte, criando um templo guardado por estátuas de esfinges. Mas essas referências são a Baniti, e não a Wasret. Veja bem, Wasret, a pessoa que supostamente foi a primeira esposa de Amon-Rá, a pessoa para quem este ritual permaneceu na Terra, é uma pessoa que nem havia nascido no tempo em que seu nome foi inscrito na parede. É o nome que as estrelas sussurraram a nós no correr das eras.

– Então as inscrições que encontramos falando de Wasret são sobre duas pessoas diferentes – murmurou o Dr. Hassan.

Ísis admirou um anel reluzente em seu dedo enquanto perguntava ao Dr. Hassan:

– Vocês encontraram duas versões da esfinge gravadas nestas paredes, não foi?

– Sim, encontramos – admitiu ele.

– Elas não representam dois tipos diferentes de esfinges, e sim duas pessoas diferentes. Uma era Baniti, que nasceu e morreu há milhares de anos, e a outra, Wasret, está perto de você agora. Presumindo, claro, que Lily seja mesmo quem estávamos esperando.

Levantei a mão.

– Espere um segundo. A senhora está dizendo que eu sou, ou posso ser, Wasret? A mulher-deusa que o Dr. Hassan descreveu?

– É exatamente o que estou dizendo.

– Então a senhora suspeitou disso a meu respeito o tempo todo? Sabia quem eu sou e o que deveria fazer?

– Como eu disse, nós sabíamos que chegaria um momento em que o encantamento poderia ser necessário. Só não sabíamos quando as circunstâncias iriam se apresentar. Até o momento em que Amon entrou no mundo dos mortos, não esperávamos que você fosse qualquer coisa além de um flerte mortal.

– Amon e eu não... – agitei as mãos no ar, aturdida – ... tivemos um “flerte”.

– Isso é irrelevante. Sabíamos que alguém como você iria existir, e os adivinhos e videntes capazes de entender os sussurros escreveram o que captaram nas estrelas, que não foi muito. As estrelas são instáveis demais quando se trata de revelar segredos, até mesmo para os deuses.

Um pequeno tremor me percorreu. Eu provavelmente jamais voltaria a olhar do mesmo modo para as estrelas. Agora só podia visualizá-las como intrometidas e fofoqueiras com um bilhão de olhos e que agitavam as línguas de prata sussurrando charadas para quem quisesse escutar. Durante toda a minha vida elas tinham olhado por cima dos meus ombros. A sensação era inquietante.

– Então a senhora está dizendo que, de algum modo, eu estou destinada a fazer isso, presumindo que todos vocês estejam certos.

– É uma declaração rudimentar, mas não totalmente inexata.

– Fantástico. Bom, então vamos desenrolar esse novelo mortal e fazer o que for preciso. Não adianta ficar lamentando meu triste fim humano. Pelo jeito, um destino foi escrito nas estrelas há milênios. Só esperemos que seja o meu. Caso contrário, vamos todos nos machucar um bocado. Especialmente eu.

Eu estava falando sem parar, querendo esconder o medo. Quando terminei, fiquei andando pela sala, meio em transe, passando as mãos nas estátuas como se elas fossem budas carecas que eu estivesse esfregando para dar sorte, enquanto Ísis ensinava o encantamento ao Dr. Hassan e lhe dava instruções.

Ela pareceu encerrar tudo depressa demais. Meus pensamentos eram uma confusão só, quase tão audíveis quanto uma serra circular cortando madeira. Mordi o lábio quando Ísis virou seus olhos de tempestade para mim e senti medo de que ela visse meu coração trepidar. Se viu, não disse nada, mas estendeu os braços, enquanto as asas se abriam totalmente.

O Dr. Hassan estivera enfiando várias coisas em sua bolsa, e a mais impressionante era um arco preto e brilhante de óleo que se projetava da abertura. Era óbvio que agora havia muito mais itens ali dentro do que antes. Ele mal conseguiu colocá-la no ombro. O Dr. Hassan entrou no círculo dos braços dela e os dois estenderam as mãos, me puxando.

– Talvez ajude se você fechar os olhos – alertou Ísis enquanto suas asas pesadas começavam a bater.

Após esse aviso pouco realista, meu estômago se revirou quando nos alçamos e disparamos na direção do teto. Gritei ao batermos na pedra, mas passamos através dela como se fosse apenas uma nuvem escura e subimos pelo céu. Continuei a olhar até que a ardência do vento e a claridade da forma dela se tornaram insuportáveis.

Ísis era um anjo. Um relâmpago aterrorizante e luminoso que atravessou o céu com um estrondo de trovão tão alto que o firmamento estalou. Como um cometa fugaz e fantasmagórico, feroz, ofuscante e evanescente, passamos por cidades e fazendas, desertos e montanhas. Tudo que eu podia fazer era me manter agarrada a ela com força e me perguntar o que seria feito de mim.